sábado, 9 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26131: Os nossos seres, saberes e lazeres (653): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (178): Regresso aos Açores, às ilhas do grupo oriental (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Julho de 2024:

Queridos amigos,
Foi uma chegada a Vila do Porto, com pompa e circunstância. Faz-se uma boa caminhada entre casario e lavoura, segue-se uma longa descida até dar com um largo e um belo convento, na Rua do Cotovelo, pergunta-se pela biblioteca, sugere-se que vá à Casa dos Fósseis, é aí que se dá o milagre da ressurreição dos vivos, quando me sentar no Museu Municipal, umas centenas de metros mais abaixo, a começar e ler um livro ali comprado A Ilha de Gonçalo Velho há uma chamada telefónica do sr. João a dizer que o pai descobriu o sr. José Braga Chaves, este pede contacto imediato, do imediato se chega à fala, e estes dois amigos, um que foi aspirante oficial miliciano e o outro seu soldado recruta, se vão abraçar e encontrar frequentemente durante aquela curta estadia, cada um tem uma história para contar, mas o mais importante foi o que se passou nos Arrifes e em Ponta Delgada, onde firmaram amizade, onde este mariense, conhecido como o mestre do karaté consertou um dedo repuxado na clínica do dr. Furtado Lima, intervenção cirúrgica que paguei em prestações suaves, e onde amigos queridos acolheram o convalescente, todos já partiram para as estrelinhas, nós ainda cá ficámos a luzir. E a viagem por Sta. Maria continua.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (178):
Regresso aos Açores, às ilhas do grupo oriental – 7


Mário Beja Santos

Recordo que durante a viagem até ao aeroporto de Sta. Maria me senti enfurecido por não ter devidamente tratado a questão do ciclo da laranja, uma riqueza que brindou ilhas açorianas particularmente nos séculos XVIII e XIX, e que uma sucessão de pragas extinguiu. No ponto mais alto do Museu Municipal de Vila Franca do Campo falou-se exatamente da laranja, que se deu muito bem nestes solos de origem vulcânica, formados por basaltos, tufos, traquites, lavas e pedra pomes. A chamada laranja doce foi cultivada especialmente em S. Miguel, mas também na Terceira, Faial e Pico. Gaspar Frutuoso fala deste citrino em quase todas as ilhas do arquipélago, com exceção da Graciosa, Flores e Corvo, o principal mercado para onde se exportava laranja era o Reino Unido. Paciência, voltarei à questão quando aqui voltar, juro a mim próprio.
Busco alguma documentação para me orientar, é uma brochura intitulada Sta. Maria para pessoas curiosas: nesta ilha encontram-se fósseis marinhos raros com milhões de anos e as suas jazidas fossilíferas, com relevância internacional, são um verdadeiro laboratório ao ar livre; a extração do barro foi durante muitos anos uma atividade económica de relevo na ilha e a intensidade das trocas comerciais entre Vila do Porto e Vila Franca do Campo levou a que fossem geminadas; Sta. Maria serve de habitat à ave mais pequena da Europa: a Estrelinha de Sta. Maria. Arrumados os tarecos no hotel, faz-se uma longa caminhada até se chegar a Vila do Porto, pergunta-se onde é o Museu Municipal, uma solicita senhora manda seguir em frente, olhe, depois daquela igreja, siga pelo passeio da direita, passa pelo convento e a Câmara, mais adiante tem a Casa dos Fósseis, aí lhe dizem como vai chegar rapidamente ao museu.
E assim foi, dá-se com o largo, ainda todo engalanado, uma ermida aberta com a imagem do Senhor Santo Cristo, uma bela talha, uma réplica da imagem guardada no Convento de S. Francisco em Ponta Delgada.

Senhor Santo Cristo dos Milagres, da capelinha junto ao Convento de S. Francisco
Convento de S. Francisco e a entrada para a Câmara da Vila do Porto à esquerda
A Estrelinha de Sta. Maria, obra de Bordalo II, no largo do Convento de S. Francisco
Casa dos Fósseis ou Centro de Interpretação Ambiental Dalberto Pombo, Vila do Porto

O sr. João é um jovem muito amável, vejo-o empolgado em mostrar-me o acervo legado de Dalberto Pombo, é nos explicada a riqueza dos fósseis e aquela particularidade que distingue Sta. Maria das demais ilhas, submergiu alguns milhões de anos, veio depois à superfície, assim se explica como uma parte da ilha é bastante plena (foi aí que se construiu o aeroporto de Sta. Maria, durante a Segunda Guerra Mundial) outra parte com bastante relevo e muito declivosa. Perguntou ao sr. João onde é a conservatória, ele questiona se venho comprar, não venho comprar nem vender, meu caro senhor, pretendo saber se está vivo e aqui reside José Braga Chaves, dei-lhe a recruta nos Arrifes, em S. Miguel, ficámos grandes amigos, por vicissitudes da vida há muitas décadas que não sabemos um do outro, tenho por ele uma profunda estima. O sr. João responde que ele deve ser parente do pai, o pai tem apelido Braga, dê-me o seu telemóvel, vou conversar com o meu pai, a ver se lhe vou dar uma boa resposta. Quanto ao Museu Municipal é só descer esta rua, do lado esquerdo.
Aqui arribei, tenho os pés moídos, a curiosidade pelos livros está sempre desperta, compro Ilha de Gonçalo Velho, por Jaime Figueiredo, instalo-me num cadeirão estofado, fico a saber que a ilha mede cerca de 17 km e tem uma superfície de 97 km2, dista 780 milhas de Lisboa e 2285 de Nova Iorque. Há as costas de arribas e alcantis, furnas e grutas, cheias de sedução e mistério, é o caso da furna de Santana e a do Romeiro. Estou nesta leitura da origem vulcânica, nos filões sedimentares de calcário miocénico quando toca o telefone, o senhor está cheio de sorte, o meu pai sabe muito bem de quem o senhor está a falar, esse senhor é o mestre do karaté, telefonou-lhe logo, o senhor Chaves está em pulgas, pediu para lhe dar o número de telefone, agradeço-lhe tudo sr. João, não agradeça, volte sempre, já que gostou do museu, ligo para o Zé Braga Chaves, são duas vozes exaltadas, taramelas, soluços, estou no Museu Municipal, pois eu dentro de minutos vou aí, tal como aconteceu, os dois velhos correm um para o outro, o rececionista do museu, sabiamente, mesmo cheiinho de curiosidade, afasta-se de uma cena íntima, temos a sábia prudência de voltar a 1967, aos marienses que não puderam passar o Natal na sua terra, a festa que se pôde organizar, as prendas para os soldados do pelotão, as senhoras de Ponta Delgada até foram buscar o comandante militar e a mulher para a festa que decorreu numa garagem toda forrada de criptomérias, o Botas a fazer de Pai Natal e a dar embrulhinhos às crianças, até houve missa cantada e depois um repasto especial. Fomos a um café onde pedi uma Kimba de maracujá, falámos depois das nossas guerras e é nisto que o Zé me pergunta por quanto tempo venho, qual o meu programa, só tenho programa amanhã de manhã, então vamos já buscar o carro e começar a conhecer a ilha, assentámos que eu sou o Mário e ele o Zé, então fica assim, a emoção é de tal ordem que me escusam de perguntar qual foi exatamente o itinerário percorrido, o que recordo é que saímos de Vila do Porto por uma estrada que levava a Praia Formosa, casario aqui, casario acolá, muito oceano à vista, na minha inocência perguntei-lhe se aquela enseada de Praia Formosa tinha a ver com São Lourenço, naquele outubro de 1967 o Carvalho Araújo aportou em frente a São Lourenço, ali se descarregou mercadoria, tivemos oportunidade de vir a terra num barquinho, ficara agradado. O Zé respondeu-me que amanhã o passeio seria até à baía de São Lourenço, mas olhe que há grandes diferenças, pronto lhe respondi que ainda bem, a minha grande alegria é ver como toda esta região medra e se dignifica. É pá, explica-me lá porque te chamam mestre do karaté. E ele explicou.

Museu Municipal de Vila do Porto, no centro da vila
Pormenor das janelas do Museu Municipal
Vista panorâmica da Praia Formosa
Ocasião acertada para fotografar o José Braga Chaves
Outro pormenor da Praia Formosa
Acertei com o Zé programa para a tarde de amanhã, ele insiste que quer fazer em sua casa um jantar para mim, agradeço-lhe muito. A manhã do dia seguinte, tanto quanto em recordo, já que atingiu o cúmulo do desleixo e nem me lembro de meter no bolso o caderninho viajante, é um itinerário que passa por Praia Formosa, segue para a Maia, estamos na Costa Norte, fico maravilhado com os vinhedos em terreno tão penhascoso, mal comparado lembra a organização do terreno na ilha do Pico, onde se produz o seu vinho, mas a imaginação puxou mais longe, até parecia uma construção maia, que beleza de terraços, ver a vida a nascer entre aquelas barreiras de pedra. O pessoal da Câmara de Vila do Porto é atencioso e gentil, o senhor esteja à vontade, pergunte o que quiser, como eu já conhecia a brochura, perguntei se já era tempo da meloa de Sta. Maria, onde seria possível comer uma sopa de Espírito Santo ou caldo de nabos, como eram os vinhos, e vieram explicações de quem gosta de satisfazer o perguntador.
Pormenor da vinha de Sta. Maria
A cascata do Aveiro, uma das atrações turísticas a que ninguém se quer furtar, tivesse eu vindo pela invernia que a água seguramente escorripichava em cachão, agora são aqueles fiozinhos de água, mas não deixa de ser impressionante.
Um belo pormenor da Costa Norte, o casario lá no sopé do rochedo. Pouco dei pelas ribeiras, parece que no verão desaparecem, pelo que li há duas em direção a Vila do Porto; a ribeira de Aveiro despenha-se sob a forma de cascata, há uma outra, a do Salto que lança as suas águas por detrás da Ponta Negra, e também Sta. Bárbara que desemboca nas Lagoinhas. Há também ilhéus, irei ver o do Romeiro, a tal baía gigante na entrada de São Lourenço.
Fica-me a impressão que não longe do Farol da Maia se desce até esta vista impressionante do que foi uma fábrica de aproveitamento do óleo do cachalote, o que mais me impressionou foram os tons da cor da água, aquele impressionante enrugado da corrente e contracorrente, olha-se de cima para baixo e até dá para imaginar um mundo desaparecido mergulhado em águas tão cristalinas.

(continua)

_____________

Nota do editor

Último post da série de 2 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26107: Os nossos seres, saberes e lazeres (652): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (177): Regresso aos Açores, às ilhas do grupo oriental (6) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Ramiro Jesus disse...

Boa-tarde.
Como "apaixonado" pelos Açores, tenho de, uma vez mais, agradecer ao nosso Mário, as crónicas e (especialmente) as imagens.
Porém, desta vez, também fazer um "reparo", que, desde já, peço que me desculpe: é que a Praia Formosa e a Maia ficam na costa sul da linda Ilha de Santa Maria.
Obrigado!
Ramiro Jesus