Maria Celeste [Guerra, ex-alferes graduada enfermeira paraquedista]: é do 2º curso (1962), para o qual entrou aos 19 anos. É oriunda da Escola de Enfermagem Franciscanas Missionárias de Maria. Esteve na FAP de 1963 a 1965. Cumpriu uma missão de serviço em Moçambique e duas na Guiné.
Foto: "Nós, as enfermeiras paraquedistas" (2014), pág. 389 (com devida vénia).
Humor de caserna > Para mais sendo mulher, eu tive medo de ser capturada e pedi ao piloto que me desse... um tiro!
por Maria Celeste
A Maria Celeste devia ser uma jovem encantadora e com grande sentido de humor...Já aqui foi publicado um pequeno excerto de uma das cenas "divertidas" que ela guardou da sua experiência como enfermeira paraquedista (*).
Gosto da pessoa que, tendo passado por situações dramáticas ou até de risco de vida, sabe depois "dar a volta", e contá-las, aos outros, com graça, com leveza, com descontração, até como forma de catarse. E sem complexos, nomeadamente sem receio de ser julgada mal pelos outros ou de cair no ridículo.
(...) Em outra ocasião fui fazer uma evacuação de feridos, num dia com muito nevoeiro.O piloto ainda não conhecia bem o terreno e, às tantas, tivemos de aterrar num local desconhecido!
Sabíamos que era perigoso, mas não havia alternativa...
Como mulher, eu tinha medo de cair em mãos erradas, por isso pedi ao piloto que se, ao aterrar, visse que haveria problemas, me desse um tiro...
Aterrámos... O motor do helicóptero foi parado... Só se ouvia 'silêncio' em nosso redor!. Nós nem falávamos, apenas sussurrávamos, de um para o outro! Havia um silêncio total...
Daí a alguns minutos, ouvimos vozes a dar ordens, que não eram percetíveis para nós e que pareciam ser de indígenas. Senti medo de ser capturada!
— Afonso, por favor, faça o que lhe pedi mal eles apareçam! — disse-lhe eu.
~
— Ai são ?! — respondo eu... e caio "redondinha" no chão!
A valentia tinha-me fugido a sete pés!... E, durante muito tempo, fui amigavelmente "gozada"... (**)
Fonte: Excertos de Maria Celeste - "Cenas do quotidiano, na guerra". In: "Nós, enfermeiras paraquedistas", 2ª ed., org. Rosa Serra, prefácio do Prof. Adriano Moreira (Porto: Fronteira do Caos, 2014), pág. 342/343 (com a devida vénia)(Imagem à esquerda: Capa do livro)
A verdade é que todos nós, antigos combatentes, e sobretudo no início da guerra, quando ainda éramos "periquitos", devemos ter passado, em "noites palúdicas", pelo pesadelo de podermos ser "apanhados à unha" no mato...Infelizmente, esses casos não foram assim tão raros, na Guiné... Mas ao fim de seis meses, já éramos "imortais"...
Talvez até com mais razões, as enfermeiras paraquedistas também ponderavam esse risco , mesmo subliminarmente: por avaria ou fogo inimigo, o helicóptero ou a avioneta que usavam quase todos os dias, em evacuações no mato, podiam correr o risco de ser capturadas pelos "turras"... E, sendo mulheres, estavam, mais do que nós, sujeitas a ser violadas ou sexualmente molestadas... Era o que se passava na cabeça da Maria Celeste nesta situação em que ela partilha,com ingenuidade e sinceridade, mas com muita piada, os medos que a afligiram... Ainda devia a estar a aprender a lidar com o(s) medo(s)... (LG).
(...) Em outra ocasião fui fazer uma evacuação de feridos, num dia com muito nevoeiro.O piloto ainda não conhecia bem o terreno e, às tantas, tivemos de aterrar num local desconhecido!
Sabíamos que era perigoso, mas não havia alternativa...
Como mulher, eu tinha medo de cair em mãos erradas, por isso pedi ao piloto que se, ao aterrar, visse que haveria problemas, me desse um tiro...
Aterrámos... O motor do helicóptero foi parado... Só se ouvia 'silêncio' em nosso redor!. Nós nem falávamos, apenas sussurrávamos, de um para o outro! Havia um silêncio total...
Daí a alguns minutos, ouvimos vozes a dar ordens, que não eram percetíveis para nós e que pareciam ser de indígenas. Senti medo de ser capturada!
— Afonso, por favor, faça o que lhe pedi mal eles apareçam! — disse-lhe eu.
~
Olhei para ele e vi-o de pistola na mão, muito pálido, a dizer que tinha pena... mas não seria capaz!
— Deus do céu, dê cá isso que eu trato do assunto !
Fiquei com a arma na mão à espera, fria que nem gelo... Nisto começámos a ouvir o barulho de gente a aproximar-se, gente apressada a pisar as folhas e ainda tenho nos ouvidos aquele restolhar!
— São nossos! — grita o Afonso, hilariante.
— Deus do céu, dê cá isso que eu trato do assunto !
Fiquei com a arma na mão à espera, fria que nem gelo... Nisto começámos a ouvir o barulho de gente a aproximar-se, gente apressada a pisar as folhas e ainda tenho nos ouvidos aquele restolhar!
— São nossos! — grita o Afonso, hilariante.
— Ai são ?! — respondo eu... e caio "redondinha" no chão!
A valentia tinha-me fugido a sete pés!... E, durante muito tempo, fui amigavelmente "gozada"... (**)
Fonte: Excertos de Maria Celeste - "Cenas do quotidiano, na guerra". In: "Nós, enfermeiras paraquedistas", 2ª ed., org. Rosa Serra, prefácio do Prof. Adriano Moreira (Porto: Fronteira do Caos, 2014), pág. 342/343 (com a devida vénia)(Imagem à esquerda: Capa do livro)
(Seleção, revisão / fixação de texto, título, introdução: LG)
Coautoras: Maria Arminda Pereira | Maria Zulmira André (†) | Maria da Nazaré Andrade (†) | Maria do Céu Policarpo | Maria Ivone Reis (†) | Maria de Lourdes Rodrigues | Maria Celeste Guerra | Eugénia Espírito Santo | Ercília Silva | Maria do Céu Pedro (†) | Maria Bernardo Teixeira | Júlia Almeida | Maria Emília Rebocho | Maria Rosa Exposto | Maria do Céu Chaves | Maria de Lourdes Cobra | Maria de La Salette Silva | Maria Cristina Silva | Mariana Gomes | Dulce Murteira | Aura Teles | Ana Maria Bermudes | Ana Gertrudes Ramalho | Maria de Lurdes Gomes | Octávia Santos | Maria Natércia Pais | Giselda Antunes | Maria Natália Santos | Francis Matias | Maria de Lurdes Costa.
________________
________________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 21 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26066: Humor de caserna (79): O soldado que foge, apavorado, do bloco operatório ao ver "tantas tesouras e faquinhas"... (Maria Celeste Guerra, ex-alferes graduada enfermeira paraquedista, FAP, 1962/65)
(**) Último poste da série > 2 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26223: Humor de caserna (83): "Oh, senhora enfermeira, deixe-me pôr os olhos... em cima de si!" (Natércia Neves)
(*) Vd. poste de 21 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26066: Humor de caserna (79): O soldado que foge, apavorado, do bloco operatório ao ver "tantas tesouras e faquinhas"... (Maria Celeste Guerra, ex-alferes graduada enfermeira paraquedista, FAP, 1962/65)
(**) Último poste da série > 2 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26223: Humor de caserna (83): "Oh, senhora enfermeira, deixe-me pôr os olhos... em cima de si!" (Natércia Neves)
7 comentários:
Esta "cena" deve-se ter passado na Guiné ou em Moçambique,no início da guerra... Pergunto se alguém sabe, onde e quando... E quem seria o Afonso, o piloto que não foi "capaz de matar" a Celeste para lhe salvar... a "honra"!... (É bem possível que o nome seja fictício...).
Espero que "elas" (as nossas talentosas escritoras, o livro está cheio de pérolas destas...) não levem a mal a publicação destes "pedaços" das suas vidas, na nossa série "Humor de caserna"...
Tenho dois ou três pequenos excertos da Giselda para publicar... Contextualizado sempre as "cenas"...e promovo o livro... Giselda, posso contar com o Ok da senhora autora ? (E, claro, da editora literária, a Rosa Serra.)
Julgo que esta cena não se teria passado na Guiné, a nossa caríssima enfermeira paraquedista Maria Celeste Guerra estava no mato preocupada com "indígenas".
Caso fosse na Guiné, julgo que não estaria preocupada com "indígenas" mas sim com os
"turras".
Mas, imagino como teria ficado quando apareceram da nossa tropa,
Valdemar Queiroz
"Num dia com muito nevoeiro"... Seria no planalto dos Macondes, em Moçambique ?...É possível que tenhas razão, Valdemar... A Celeste esteve duas vezes na Guiné e uma em Moçambique... Em qualquer dos casos, estava-se no início da guerra: Guiné, 1963, Moçambique, 1964...Talvez a Giselda ou a Rosa nos possam esclarecer...
Não usávamos, no nosso tempo, na Guiné, o termo "indígena" (que de facto tem uma conotação..."colonialista"). Os relatos de viagens, a literatura, os missionários, a administação colonia, etc. uavam o termo "indígena" (em Timor, na Guiné, e por aí fora...) Pelo menos até 1951... E ficou no vocabulário de muita gente que andou por lá...
indígena
indígena (in·dí·ge·na)
adjectivo de dois géneros e nome de dois géneros
1. Que ou aquele que é natural da região em que habita. = ABORÍGENE, AUTÓCTONE, NATIVO
2. Que ou quem pertence a um povo que habitava originalmente um local ou uma região antes da chegada dos europeus. = ABORÍGENE
nome de dois géneros
3. Natural de um país ou localidade. ≠ ÁDVENA
sinonimo ou antonimo
Antónimo geral: ALIENÍGENA, ESTRANGEIRO, FORASTEIRO
etimologia
Origem etimológica:latim indigena, -ae, natural do país.
Colectivo:indigenato.
"indígena", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024, https://dicionario.priberam.org/ind%C3%ADgena.
Comentários no Facebook da Tabanca Grande
Dos meus maiores pesadelos. Estava com o meu 4⁰ grupo na segurança da população de Mato Farroba e num curto "passar pelas brasas", onde não havia iluminação e era uma daquelas noites escuras com só nós conhecíamos, tive a sensação de estar a ser raptado, felizmente foi só susto, mas o sono fugiu.
Armando Faria | 5/12/2024, 20:03
A Maria Celeste fez comissões na Guiné e em Moçambique, entre 1963 e 1965... Nessa altura, a malta ainda tinha presente as cenas horríveis do início da guerra em Angola...
Luís Graça | 5/12/2024, 20:17
Uma palavra de gratidão às n/ Enf. Paraquedistas que actuando na Frente revelaram uma coragem desmedida ...
Jorge Ferreira | 5/12/2024, 20:51
Mulheres extraordinárias!
Acho que ainda está por fazer uma justa homenagem a sua ação!
António Pimentel | 6/12/2024, 00:21
António, temos que ser nós, aqui, e no blogue, a contar as suas pequenas grandes histórias...
Luís Graça | 6/12/2024, 11:15
As caríssimas Enfermeiras Paraquedistas teriam muitas confidências para nos contar de ocasiões que foram socorrer soldados feridos em combate, esta ficou-me na ideia.
"A enfermeira tentou confortá-lo, dizendo-lhe para ter confiança na competência e dedicação dos médicos e de toda a equipa hospitalar que o iria tratar. Prontamente, ele olhou fixamente para a enfermeira e diz-lhe com contida emoção: “Senhora enfermeira, com pé ou sem pé, estou vivo! O que me preocupa é a dor da minha mãe quando souber.”
(filha da puta da guerra)
Valdemar Queiroz
Valdemar, em seis meses de recruta e especialidade, era pressuposto ficarmos "formatados"... Faziam de nós "soldados", prontos física e mentalmente para matar e morrer... (NInguém nasce "soldado"...)
Mas depois vem o palco, o teatro de operações, a guerra a sério, os primeiros mortos e feridos, a prova dos nove...Seis meses de "periquitagem"... onde, aí, sim, fazíamos o tirocínio, a consolidação da aprendizagemn militar...No nosso aparelho psíquitico, tínhamos interiorizado a crença da "imortalidade"...
Se uma soldado não souber racionalizar as situações de vida ou de morte, se não se sentir invulnerável (daí os nossos "amuletos"...), está feito, entra em colapso, torna-se inoperacional, perde a lucidez, o sangue-frio, a coragem, o autodomínio, e corre o sério risco de colapsar, se não morrer antes, ou cometer alguma asneira (álcoool, droga, automutilação, tentativa de suicídio ou de homicídio, deserção...).
Ao fim de seis meses, "passado o teste", já éramos "veteranos"...E ao fim de ano e meio, velhinhos como o c*r*lho (VCC)... E aí era ainda maior o risco de lerpar, "ingloriamente", a escasso meio ano de regressar a casa, coberto de "honra e glória" (como se diz em linguagem castrense)...
Mas quando um gajo ia de padiola para Bissau, "by air", devia "saber tão bem" (!) para além do soro com morfina, ter um "anjo da guarda" ao nosso lado, que nos fazia lembrar a mãe, a mulher, a namorada...
Entende-se, por isso, por que é que muitos dos evacuados, o primeiro pensamento que tinham, iam para a "dor da mãe", quando soubesse do acontecido... (Isso é referido pelas autoras do livro "Nós, as enfermeiras"..., um grande livro, que merece figurar nas nossas estantes...)
Enviar um comentário