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domingo, 25 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26843: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte IV: Na Repartição de Autos Víveres, tenho de assinar o ponto todos os dias, trabalha-se das 8h00 às 12h30, e das 15h00 às 18h30, sábado e domingo de manhã... "Estamos em guerra, até em Bissau", dizem-me!...

Fotoo nº 1 > Exemplar de aparelho de rádio que era oferecido à população no âmbito das políticas "Por uma Guiné Melhor». Estava sintonizado para o PIFAS,,,




Foto nº 2 > O "Pifas", a popular mascote do Programa das Forças Armadas

(Cortesia do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)
 


1. Mais alguns extratos das "Recordações de um Furriel Miliciano, Guiné -1973/1974" (*)
 





O Carlos Filipe Gonçalves, Kalu Nhô Roque (como consta na sua página no facebook): (i) nasceu em 1950, no Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde; (ii) foi fur mil amanuense, QG/CTIG, Bissau, 1973/74; (iii) ficou em Bissau até 1975; (iv) radialista, jornalista, historiógrafo da música da sua terra, escritor, vive na Praia; (v) membro da nossa Tabanca Grande desde 14 de maio de 2019, nº 790; (vi) tem 2 dezenas de referências no nosso blogue.(*)
 

(...) "Convém alertar neste ponto, que todas as citações, indicações na gíria militar e documentação referida nos textos (já publicados e a publicar) beneficiam de uma 'Nota de Rodapé' explicativa, mas, infelizmente a formatação de textos no Facebook não aceita essa modalidade gráfica. 

"Os textos integrais e respetivas notas estarão disponíveis numa eventual edição do livro em papel, o que dará aos leitores uma outra perspetiva das descrições e personagens. 

"Continuação, pois, das minhas impressões, no primeiro dia da minha apresentação na Chefia dos Serviços de Intendência (Chefint),  situada no Batalhão da Intendência (Bint), no perímetro de Santa Luzia, onde estão o QG e outras infra estruturas." (...)




Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) (*)

Parte IV:   Na Repartição de Autos Víveres, tenho de assinar o ponto todos os dias, trabalha-se das 8h00 às 12h30, e das 15h00 às 18h30, sábado e domingo de manhã... "Estamos em guerra, até em Bissau", dizem-me!...



Ainda na Repartição de Autos Víveres (…),  fico a saber que tenho de assinar o ponto todos os dias à entrada e saída e que os horários de trabalho nos períodos da manhã (das 8h00 às 12h30) e à tarde (das 15h00 às 18h30) contam com mais uma hora do que o normal na metrópole... 

Sábados, trabalha-se de manhã, folga-se à tarde… Logo me dizem que também se trabalha aos domingos de manhã entre as 10 e o meio-dia. Folga? Só no domingo à tarde. 

Penso com os meus botões: isso é de arrebentar uma pessoa! Vendo o espanto na minha cara, explicam: 

“Temos de estar sempre operacionais, porque estamos em guerra! Bissau é também uma zona operacional!”

Pouco depois é hora de saída, vamos ao almoço na messe, onde há muita conversa e movimentação. Entra-se no refeitório, escolhe-se um lugar vago e sentamo-nos à mesa, já lá estão os pratos e talheres, a comida, o vinho, uma garrafa de água e um «balde de gelo», verifico depois que é «fundamental»! Os veteranos enchem os copos com o gelo para refrescar o vinho! 

O calor é intenso, sempre acima dos 33 graus de dia, à noite a temperatura desce um pouco, mas não se nota. Devido ao calor e humidade, ando sempre encharcado em suor, pois acabo de chegar, vindo do frio da metrópole. 

Tenho sempre sede e quanto mais bebo… mais sede tenho! Os ventiladores no teto não criam nenhum efeito de frescura, só roncam e movimentam o ar quente. Mas, a ventoínha é um utensílio que ninguém dispensa, por isso, também comprei uma no bar da messe, que tem quase tudo o que se precisa a preços módicos… 

Nos quartos, todos têm um ventilador que colocam na parede por cima da cabeceira da cama, explicam os veteranos é para evitar a projeção do ar diretamente no corpo… porque já houve paralisias de braços devido à incidência direta do ar do ventilador, noite inteira!

Chama-me atenção e vai marcar a minha rotina de todos os dias a difusão das emissões da rádio na esplanada da messe. Ouve-se o PIFAS, Programa das Forças Armadas,  que antecede o jornal da tarde às 13 horas em direto da Emissora Nacional em Lisboa. O PIFAS é um programa do Comando-Chefe, dizem-me, produzido pelo Departamento APSIC (Acção Psicológica).

“Na Guiné existe apenas uma emissora de rádio, prolongamento da Emissora Nacional. É divertida, tem anúncios locais, passa discos pedidos, ação psicológica, etc.” recorda o ex-militar António Graça de Abreu. 

A partir das 11 da manhã, começava o PIFAS, um programa de altíssima qualidade com muita animação e informação, transmite muita música Pop, os últimos sucessos em Portugal e na Europa! 

A malta em Bissau escutava nas repartições; eu, como ainda não tinha rádio, só ouvia depois do meio-dia, na esplanada da messe. Os discos pedidos eram o prato forte, mas havia também falatório sobre os mais diversos assuntos, notícias do mundo da música, cinema, etc. Recebia, muitas cartas, todas de militares espalhados pelo mato, em lugares com nomes esquisitos. 

Este programa de rádio tinha um boneco que o personificava/simbolizava (hoje diz-se marketing/ merchandising) sob a forma de um repórter, fardado de camuflado e microfone em punho, chamado Pifas! Era distribuído como prémio de concursos e a ouvintes com envio assíduo de cartas, ou por simples cortesia.

Depois do noticiário das 13:00 da Emissora Nacional, em direto de Lisboa, toda a malta recolhe para a sesta. No pavilhão metálico onde estou alojado, o calor é insuportável, impossível tirar uma soneca. 

Nesta altura, toda a instalação de Santa Luzia, é invadida, pelas lavadeiras! Batem à porta, para fazer a entrega da roupa lavada e tomar a roupa suja, há muita conversa, discussões sobre tal peça que desapareceu, ou não está bem lavada… enfim! 

Pouco depois estamos todos a caminho das repartições, verifico que há outras centenas de civis também a caminho, eles trabalham nas diferentes repartições e serviços deste complexo militar onde fui colocado. Homens e mulheres, civis guineenses, trabalham como datilógrafos, arquivistas, escriturários, etc. Espalham-se pelas salas juntamente com os militares. 

Compreendo agora a tal falta de pessoal militar, que o tenente-coronel apontou quando me apresentei; imagino também que é uma forma de se dar trabalho às pessoas. Soube depois que a utilização de civis na tropa é uma consequência da política «Por Guiné Melhor» lançada pelo general Spínola, que consiste em trazer bem-estar às populações, dar emprego, acesso aos serviços de saúde, acesso a toda a espécie de benefícios…

A rádio tem um papel importante e integra-se nas acções desenvolvidas nesta política, como recorda o ex-militar Miguel Pessoa: “uma das acções desenvolvidas era a sensibilização da população através da distribuição de rádios (recetores).” E chama então atenção para o seguinte pormenor: 

“O mais curioso daquele rádio (o recetor distribuído) é que o sintonizador rotativo estava naquele caso particular (não posso garantir que fosse em todos) colado na frequência do Pifas, o que impedia a sintonia do aparelho noutras emissões menos favoráveis às nossas cores...” 

Mas, rapidamente esse «bloqueamento» era desfeito e sintonizavam outras rádios como a «Maria Turra»,  nome pelo qual é conhecida entre a tropa portuguesa a Rádio Libertação do PAIGC. 

Um outro militar diz: 

“Lembro-me bem desses rádios que foram distribuídos a elementos da população do Dulombi e que eles se passeavam com os ditos (rádios) aos domingos, pela área do quartel.” 

Convém notar que na época, o «regime colonial» procurava impedir por todos os meios que a população e a tropa ouvissem a «propaganda» da Rádio Libertação do PAIGC.


(Revisão / fixação de texto: LG)

______________

6 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O aparelho de rádio na época (tal como o telemóvel hoje) era uma "peça essencial" para os guineenses, incluindo os que viviam sob controlo do PAIGC, no mato (uma minoria, dentro das fronteiras, convém dizê-lo por "mor da verdade")... De qualquer modo, se a tropa oferecia rádios à população (isso ainda não é do meu tempo, cheguei em finais de maio de 1969...), havia o problema do acesso às pilhas...Era preciso dinheiro para as comprar no comércio local... E, como tal, o guineense tinha de entrar no circuito da economia monetarizada, através de um emprego, militar (soldado do recrutamento local, milícia, guias, etc.), quer civil (lavadeiras, cozinheiros, professores, amanuenses no QG em Bissau, etc.).

De qualquer modo, data desta época a "guerra das ondas hertzianas", de um lado e do outro...Tanto Amílcar Cabral como Spínola sabiam da importância da "propaganda radiofónica"... E o Carlos, que é radialista, sabe isso melhor do que ninguém...

Não tinha ideia nenhuma da quantidade de gente, civil, que a tropa empregava em Bissau, em 1973:

(...) "Pouco depois estamos todos a caminho das repartições, verifico que há outras centenas de civis também a caminho, eles trabalham nas diferentes repartições e serviços deste complexo militar onde fui colocado. Homens e mulheres, civis guineenses, trabalham como datilógrafos, arquivistas, escriturários, etc. Espalham-se pelas salas juntamente com os militares." (...) (Negritos meus) (LG).

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Quem estava no "mato", criava muitas fantasias sobre os miliares estacionados em Bissau, como o Carlos (que era dos "serviços auxiliares")... Havia uma "dor de corno" do caraças, porque se pensava que eles estavam no "bem-bom" da "guerra do ar condicionado"(...), "gozando as delícias do sistema" (como eu escrevi algures numa carta)...

Uma m*erda, tinham ventoínhas, o que já não era mau... E sobretudo tinham eletricidade 24 horas por dia!... Tinham ventoínhas, rádio... e "baldes de gelo", isso, sim, supremo luxo!....

(...) Pouco depois é hora de saída, vamos ao almoço na messe, onde há muita conversa e movimentação. Entra-se no refeitório, escolhe-se um lugar vago e assentamo-nos à mesa, já lá estão os pratos e talheres, a comida, o vinho, uma garrafa de água e um «balde de gelo», verifico depois que é «fundamental»! Os veteranos enchem os copos com o gelo para refrescar o vinho!

(...) Tenho sempre sede e quanto mais bebo… mais sede tenho! Os ventiladores no teto não criam nenhum efeito de frescura, só roncam e movimentam o ar quente. Mas, a ventoínha é um utensílio que ninguém dispensa, por isso, também comprei uma no bar da messe, que tem quase tudo o que se precisa a preços módicos. (...)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mensagem enviada ao Hélder Sousa (que vive em Setúbal), com conhceimento às nossas camaradas enfermeiras paraquedistas que fazem parte da Tabanca Grande (Maria Arminda, Rosa Serra, Giselda, Aura Teles):

sábado, 24/05, 21:21

Hélder, vens ao convívio, no dia 29, a Algés... Não queres "desafiar" a tua vizinha Maria Arminda ? E ela, por sua vez, pode desafiar a Rosa Serra, a Aura, a Giselda...

5ª feira haverá mais "meninas" (mas que não foram à guerra)... Já somos 75... E até vem, de Nova Iorque (!), o mordomo da Jacqueline Kennedy Onassis, e grande ativista de causas sociais e humanitárias que nos tocam a todos (Gravuras de Foz Coa, Timor Leste, Aristides Sousa Mendes, Dia da Consciência, Não Às Armas Nucleares...)

Afinal, Algés, fica muito muito mais perto de Setúbal que Monte Real...E O Restaurante Caravela De Ouro serve bem e tem uma magnífica vista para a margem do sul do estuário do Tejo...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Infelizmente, a Arminda já nos disse que não pode vir...

Fernando Ribeiro disse...

O aparelho de rádio oferecido à população vinha equipado com duas bandas (logo duas!), a avaliar pela fotografia: ondas médias e ondas longas. Ondas longas, imagine-se, que é uma banda de rádio que nunca se usou em território português, fosse este metropolitano, insular ou ultramarino! Em África, só dois ou três países tinham emissores de rádio em ondas longas, que eram a Argélia, Marrocos e, eventualmente, o Egipto. Imagino que a Voz da Liberdade, nomeadamente, devia chegar em excelentes condições à Guiné através de um dos emissores de ondas longas da Argélia, melhor do que em ondas médias.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Alguns leitores perguntarão: por que é que há tão poucos grão-tabanqueiros cabo-verdianos no nosso blogue ? Manuel Amante da Rosa, Carlos Filipe Gonçalves, António Medina (já falecido, EUA), Carlos de Carvalho, Adriano Lima...E no entanto há mais de 620 referências a Cabo Verde ( > 590) e cabo-verdianbos ( > 30).