2. Fomos para a guerra e privilegiámos a paz!
por António Ramalho
Desembarcado em Bissau em Novembro de 1969, fui acompanhado por um T6 na subida do Rio Geba, um ruído ensurdecedor. Antes disso atravessei o Golfo da Guiné apinhado de barcos de pesca, uma imagem lindíssima, qual baía de Cascais, logo ali tive o primeiro sobressalto na manhã seguinte!Na noite anterior o Uíge ficou ancorado ao largo com a proa para Norte. Do meu camarote via a Bissau nocturna. Na manhã seguinte, quando acordei, vi floresta. Pensei que já nos tinham levado para outro local. Ignorância minha. Como os rios na Guiné sofrem de influência marítima, o navio tinha rodado, tudo bem!
T/T Uíge > Lisboa-Bissau > Outubro de 1969 > "O primeiro (e único) cruzeiro da minha vida.
Guiné > Região Cacheu > Bula > Ponta Consolação > CCAV 2639 (1969/71) > Capunga > Reordenamento
Fotos (e legendas): © António Ramalho (2018) . Todos os direitos reservados (Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)
Desembarcado sem arma mas com bagagem, tinha à minha espera o meu conterrâneo João Unas, distinto marinheiro. Percorri Bissau num autocarro das Viagens Costa a distribuir camaradas pelos diferentes quartéis até que me apresentei no QG (Biafra), tal era a desordem! Feito o chek in fui almoçar ao Pelicano!
Instalado nos Adidos à espera de transporte, ia diariamente ao QG (Biafra) saber da minha sorte. Não havia vaga, graças a Deus. Assim conheci melhor Bissau que, comparada com os dias de hoje está irreconhecível, um desconsolo!
Mais tarde, nas poucas vindas a Bissau, era hóspede do meu amigo José Germano, no quartel de Engenharia [, BENG 447], sempre principescamente recebido. Também em Bissalanca [, BA 12] saboreava as excelentes refeições e usufruía do ar condicionado dos Paraquedistas onde o meu conterrâneo João Belchiorinho me recebia. Já cá não estão os dois entre nós!
Aproveitei os meus tempos livres para conhecer a cidade, os seus bairros. Fui ao Pilão, como era óbvio, aos seus mercados, às suas escolas e liceu, passei bons momentos na 5ª Rep., na Solmar, também fui ao Chez Toi, Messe da FA e passei pelo HM [ 241} conhecer e saber do estado de saúde de alguns camaradas que tinham sofrido umas pequenas escoriações numa emboscada em Binare.
Fiquei com uma imagem que guardarei para toda a vida: sentados nos lancis dos passeios dos bairros de Bissau, estudavam crianças à luz dos candeeiros da iluminação pública, que vontade de aprender, que encanto me proporcionaram aqueles jovens!
Noutra ida ao HM apercebi-me da chegada de helicópteros. A minha curiosidade levou-me até às urgências, estarão a imaginar o dantesco cenário que presenciei naquela tarde! Que grande estímulo para um periquito! Resisti às imagens e ao ambiente tentando confortar aqueles que me ouviam... Não conheci ninguém! Na minha permanência nos Adidos em Bissau fiz rondas desde as antenas da EN, ao Presídio Militar onde numa das idas levei um oficial despromovido por “incompatibilidade” com outro oficial superior que foi calorosamente recebido pelos presentes, antes de o entregar tomámos uma cerveja e dei-lhe um abraço!
Esperei um mês pela coluna de reabastecimento e lá fui até Binar (Missão do Sono) de onde voltei no mesmo dia para Bula, ficando alojado num Celeiro fora do quartel. Fui na GMC da frente, carregada de sacos com batatas, para resistir melhor ao eventual rebentamento de alguma mina, fazendo companhia a um condutor nativo que fazia a sua estreia nestas andanças. Era ele e eu. Lá nos safámos!
O BCAV 2868 estava aquartelado em Bula nuns pavilhões desactivados (isotérmicos com ventilação estática) da petrolífera ESSO com piscina (entulhada), que em tempos fez prospecção de petróleo na província!
Lembro-me perfeitamente da minha Consoada de 1969 no mato: um pacote de bolachas da MM [, Manutenção Militar,] e um cantil com chá. Soube-me tão bem!
De Bula partimos para Capunga, Pete e Ponta Consolação para fazer o reordenamento das Tabancas, localizado no triângulo Bula, Choquemone (Base do IN) e Binare, aquartelados em magníficas e apropriadas instalações (tendas de lona) até ao fim da comissão!
Guiné > Guiné > Região do Cacheu > Carta de Bula (1953) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Ponta Consolação, ma margem esquerda do rio de Caleco ou de Bula, afluente do rio Mansoa. À direita da foz, ficava João Landim... Choquemone era uma das matas onde o PAIGC sempre teve as suas "barracas" (ou bases...).
Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2018)
Aqui reordenámos as Tabancas, construíram-se escolas com mão-de-obra nativa mas supervisionada por nós. No princípio sentiu-se alguma relutância das populações já que a nossa presença prejudicava o reabastecimento do IN, uma vez que era ali o seu celeiro.
No campo da educação foram submetidos a exame e aprovados 18 candidatos, tiraram a carta de condução 41 elementos. Construíram-se 538 moradias, fabricaram-se 582.799 Adobos, construíram-se 3 Escolas: população reordenada 2.509 pessoas.
Dado estar a pouca distância do Choquemone (Base IN) éramos apoiados pela rectaguarda por enormes peças de artilharia de grande alcance (Obuses) instaladas em Bula. Os dados de tiro para o aparelho de pontaria eram fornecidos por nós tendo como base a inscrição no topo dos bidões das sentinelas!
Apesar desta missão, eramos escalados para integrar operações. Naquelas em que fiz parte, o IN não quis contactos comigo, nunca trocámos tiros, nunca nos flagelámos. Já no acampamento fomos contemplados com algumas flagelações à distância.
Na terça-feira de Carnaval de 1970 uma bala perfurou-nos um pipo de vinho, uma pena! Efectuámos 148 Operações, muitos patrulhamentos e escoltas, picámos quilómetros de picadas! Uma noite fomos sobrevoados no acampamento a baixa altitude por um avião, o Pictures Enterprise, ficando sem saber o que andaria a fazer por ali àquela hora da noite!
Logo no princípio da nossa comissão, foi efectuada noutra zona da província [, no corredor de Guileje, no sul, na região de Tombali], uma operação para capturar 'Nino' Vieira. Não o conseguiram, tendo contudo capturado o Capitão Peralta, um cubano integrado nas fileiras do PAIGC, ficando gravemente ferido num braço. Assistimos à construção e asfaltamento da estrada de São Vicente que ligava BULA à margem direita do Rio Cacheu que mais tarde faria parte do nosso roteiro para Bissum.
Apesar do permanente patrulhamento naquela estrada, era o cilindro que com a sua carga máxima abria a picagem da estrada diariamente. É nesta altura que se despenha um helicóptero, devido ao mau tempo, com deputados, sendo um deles meu conterrâneo, José Vicente Abreu, e Pinto Bull, natural da Guiné, avô da actriz Patrícia Bull.
Fomos visitados em Capunga por Juan Carlos de Bourbon, mais tarde Rei de Espanha, acompanhado pelo Major Marcelino. Apareceram-nos de jipe, nunca soubemos qual a razão da visita.
De repente somos confrontados com a “Paz Podre”. Não podíamos usar armas, é verdade. Íamos nas colunas com as mãos nos bolsos até que se dá a cilada aos nossos ilustres Majores na zona de Teixeira Pinto, sendo que estava preparada para o General Spínola, como disseram os SI [, Serviços de Informação]. Neste período ofereceram-se enormes quantidades de tabaco e vinho do Porto ao IN.
Em Novembro de 1970, o Comandante Alpoim Galvão vai a Conacri tentar libertar elementos das NT e capturar elementos do PAIGC. Julgo ter tido mais êxito na libertação dos elementos das NT!
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Lema da CCAV 2639 (1969/71): "Pro bono pacis"
(, para o bem da paz) |
O Major Casquilho [, Luís Maria Coelho Casquilho,] caiu ao Rio Mansoa [, em 29/10/1070,] levando consigo o jipe e a máquina de projecção de filmes que, solícito, queria fazer chegar a horas a Bissau. Ultrapassou as Panhards que o iriam escoltar... e foi em frente, uma tragédia!
Também capturámos uma Kalachnikov ao IN enquanto namorava na Tabanca. Não era bem a nossa missão, já que íamos era comprar galinhas!
Celebrou-se o Dia da Cavalaria com pompa e circunstância em teatro de guerra! Construíram-se dois heliportos, um em Pete e outro em Ponta Consolação.
É substituído em Bula o BCAV 2868 pelo BCAÇ 2928 de onde sairia a seu tempo a CCAÇ 2789 que iria substituir-nos no reordenamento das Tabancas de Capunga, Pete e Ponta Consolação. Entretanto fiz parte de um Gr Comb composto por elementos de todos os Pelotões (presumo os mais bem comportados) com destino a Bissum/Bissorã onde fomos ajudar uma Companhia Açoriana a adaptar-se ao cenário de guerra, efectuando algumas rondas e patrulhamentos. Nunca participámos em qualquer outro tipo de operação!
Éramos reabastecidos de víveres uma vez por mês por via fluvial. Para receber o correio fretávamos uma avioneta à Marinha. Dali ouviu-se o ataque a Bissau com mísseis às 22:00 horas de um qualquer dia de 1971, previamente conhecido e divulgado. Não foi surpresa para ninguém! Como forma de proteger a população da capital, faziam-se exercícios nocturnos de ofuscação de luzes. Mesmo assim estiveram muito perto de acertar nos alvos. Éramos sobrevoados por B26 da NATO a bastante altitude que mais tarde ouviríamos as suas barulhentas descargas “ecológicas”!
No regresso de Bissum/Bissorã deslocaram-me para Ponta Consolação onde tive o privilégio de poder acompanhar o cabo enfermeiro Afonso Henrique da Silva Lucas ao nascimento de uma menina que baptizámos com Helga dos Reis já que nasceu ao meio dia do dia 6 de Janeiro de 1971. Também aqui fomos flagelados numa noite, felizmente sem consequências graves. Já em Pete, o ataque foi mais feroz, tendo o IN utilizado misseis que destruíram grande parte do aquartelamento, havendo alguns feridos, merecendo a visita das autoridades militares do CTIG.
Entretanto, chega a CCAV 3420 comandada pelo então Capitão Salgueiro Maia, meu instrutor em Santarém. Aquartelou-se em Bula, para se adaptar ao terreno, mais tarde foi destacada para outros pontos da Guiné mais complicados. Não tiveram vida fácil! Mais uma vez para o mato para a sua adaptação a eventuais cenários reais com que se poderiam deparar. Uma manhã, ao romper do dia ouço um grande alvoroço nas hostes, os periquitos estavam irrequietos e assustados: nada mais, nada menos pelo barulho provocado pelos macacos a acordarem esfregando os olhos e que saltavam duns ramos para os outros cumprimentando-se em voz alta, de forma semelhante ao acordar humano. Passado o susto, lá se acalmaram!
Só nos podemos orgulhar e sentir felizes: a Companhia regressou em 1971 com os mesmos homens com que chegou à Guiné em 1969, graças a Deus. Ainda que uns mais apanhados que outros! Hoje, que já muitos nos deixaram, é em sua memória que resumo a nossa permanência por aquelas terras há 50 anos! Que repousem em Paz!
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