Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 23 de novembro de 2005
Guiné 63/74 - P286: Antologia (26): A geração do stresse pós-traumático de guerra (Luís Graça)
© A. Marques Lopes (2005)
Dois jovens portugueses, "passando férias" em Banjara, algures na Zona Leste da Guiné, por volta de 1967 (enquanto os seus colegas americanos se batiam pela liberdade e morriam no Vietname, como tordos...).
Na altura estes tugas estavam alegremente a capinar o terreno e deitar abaixo árvores para montarem a tenda... Como se vê, naquela época ainda não havia qualquer sensibilidade ecológivca...
[ Banjara, destacamento da CART 1690, sediada em Geba, e de que o nosso A. Marques Lopes foi alferes miliciano atirador... Banjara ficava na estrada Bissau-Mansabá-Bafatá. Mais a norte, ou melhor, a nordeste, ficava Cantacunda, o sítio da Guiné onde o PAIGC, de um só vez, apanhou 11 militares portugueses, à mão, e matou outro...] (1)
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Por sugestão do nosso amigo e camarada Jorge Santos (ex-fuzileiro, autor da página sobre A Guerra Colonial e membro da nossa tertúlia), aqui fica um belíssimo, comovente e frontal testemunho de um oficial médico da Marinha - como presumo que seja o autor destas histórias da botica, escritas na Revista da Armada, sob o pseudónimo Doc - que um dia encontrou, na urgência de um hospital, um ex-combatente da Guiné, das tropas especiais, com visíveis problemas de stresse pós-traumático de guerra, e que o soube ouvir, apoiar e encaminhar, mesmo sendo ainda um jovem interno do internato complementar da sua especialdade (não diz qual...).
Curiosamente, reparo agora que nunca falámos aqui, nesta tertúlia, desse problema que se chama stresse pós-traumático de guerra (2). L.G.
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Histórias da botica (14): o combatente. Revista da Armada. 348, (Dezembro de 2001).
(Com a devida vénia e os nossos agradecimentos à esta excelente publicação da nossa Marinha e ao autor do texto. Subtítulos da minha responsabiliddae. L.G. ).
Há não muito tempo, numa Urgência de um grande hospital da capital alguém gritava:
- Olhe que eu já matei por Portugal!! – era um homem de meia idade, desgrenhado e de barba por fazer. Aproximei-me dos gritos. No caminho um enfermeiro saía irritado afirmando: mais um doido. É o terceiro hoje!
De perto o homem, apesar da agitação, tinha um ar digno. Era alto, com um ar sólido de quem é capaz de mover montanhas, a barba, já grisalha, assentava sob uma tez morena, de homem do campo. Olhava directamente nos olhos da sua interlocutora: uma médica, por quem eu não tinha muito apreço – no geral, conflituosa e pouco estimada por todos os outros naquela equipa de urgência. Era até conhecida, entre os mais novos, pela peçonhenta, uma vez que da sua pele emanava um brilho pouco natural, certamente graças aos muitos cremes de beleza, com que besuntava a face.
Tratava-se de uma discussão por papéis, em que a peçonhenta argumentava de maneira agressiva, afirmando que a “ficha” do paciente não existia. Este defendia-se dizendo que não sabia nada de “fichas”, esperava haviam já 3 horas e queria ser atendido. Então, com a humildade própria de um simples interno, avancei e disse, a tão ilustre clínica, que ia atender o senhor. Que se acalmasse, que outros doentes com “fichas” no devido lugar esperavam por ela.
Um ex-operacional das tropas especiais
Fui movido pela curiosidade, antevendo a história que tal homem produziria. Queria saber afinal quem ele matou e porquê? Conversámos, então, num corredor movimentado, onde todos passavam demasiado apressados para nos ouvir.
Queixava-se de insónias, há já uma semana que não conciliava o sono...
Tinha combatido nas tropas especiais da guerra de África, na Guiné. Já fora casado mas a mulher deixara-o. Os seus dois filhos viviam com a mulher, que lhes dizia que o pai não prestava. Desde o final da guerra, tinha tido vários empregos, mas não os conservara. Vivia de biscates e morava numa caravana, velha, num parque de campismo dos subúrbios.
- Mas agora não dorme exactamente porquê? – perguntei eu, tentando ser objectivo.
Não dormia porque era como se tudo fosse real. Ainda sentia os cheiros de África, a humidade no tarrafo, o capim na face, o camuflado colado ao corpo, o peso, frio, da metralhadora nas mãos... Mas o pior, o pior, era a sensação de medo...
A emboscada e o sangue do António, que ainda sentia nas mãos, o amigo que segurara nas mãos, até ao último estertor. Era véspera de Natal, tinham ido tomar banho a um riacho próximo, quando foram atacados...O António era o primeiro da fila – percebe, doutor – os turras apontaram a quem vinha à frente...
Tudo lhe voltava, num ciclo infindável de medo, agressividade e sofrimento...
Achava que não tinha tido do país, por quem arriscou a vida, qualquer reconhecimento. Afinal, quando voltou não lhe tinham reservado o trabalho, para o qual "era preciso ter o serviço militar cumprido", outro, um revolucionário exilado em Paris na época colonial, tinha ocupado o lugar...
Casou, mas divorciou-se, pouco tempo depois. Não conseguia explicar à mulher a ansiedade da espera, os gritos da refrega, nem o sangue do amigo morto, que lhe salpicara a cara. Se tinha pesadelos? Não, tinha poucos pesadelos, porque dormia pouco...Eram mesmo os dias que o enervavam...
Na Guiné, longe do Vietname...
Tudo isto, achava ele, não interessava a ninguém no país actual, E não compreendia nada...não compreendia um país em que as ruas se enchem de dejectos de cães e senhoras com nome de cão, como Lalá e Bibi, artificiais e secas, preenchem os serões de televisão. Não percebia, ainda, porquê pouco se falava do António, nem de todos os que partiram por servirem, a custo da própria vida, uma causa que lhes havia sido imposta...Não compreendia, finalmente, porquê, no nosso país se obliterava como se de um segundo se tratasse, uma guerra que marcou gerações...Pelo menos no Vietname há filmes, as pessoas revêm o seu sofrimento, parece haver reconhecimento – dizia com dor no olhar.
Lembrei-me, recentemente, deste Combatente. Nestas férias de Verão vi que na parada de um antigo quartel, onde existe uma placa com os nomes dos mortos em acção, nos vários conflitos em que o regimento participara, tinham construído um lago de aspecto nada condizente com o lugar, nem com o respeito merecido por aqueles que já partiram e cuja memória dignifica o lugar.
Pareceu-me um sacrilégio. Seria como construir um lago de patos sobre os monges sepultados, num qualquer átrio de igreja...Pareceu-me ainda pior, porque esse quartel, agora transformado em parque turístico, é gerido por militares...
Na verdade, acredito, que poucos países revelaram, pelo menos na época actual, tanto desrespeito pelos seus veteranos de guerra. E estou certo, que o Combatente tem razão. No nosso país, nem mesmo aos políticos – a grande maioria [tem]apresentado, de forma implícita ou explícita, pouca simpatia pelos militares - interessam os sofrimentos de um grupo de homens tristes, marcados pelo dor e pela desgraça.
Eu nunca combati. Nunca estive na Guiné. Não posso compreender, na sua totalidade, o sofrimento deste homem, nem de outros como ele...Impressionou-me a história de um homem destroçado, ainda a combater pela vida, tantos anos após o fim da guerra. Pareceu-me um preço patriótico demasiado elevado, num país em que cada vez mais os valores da nação se vergam ao dinheiro, ao voto fácil, à falsidade e à negociata barata.
Sei, que quando penso no Combatente, e na história da sua vida, tenho pena, muita pena de toda uma geração apanhada numa guerra – agora considerada politicamente incorrecta – que os continua a fazer sofrer com tanta intensidade. Tenho pena, também, de pertencer a um país que não distingue entre o poder e os homens simples, quase sempre joguetes inocentes...
E talvez eu seja indigno sequer de falar deste assunto, já que para mim "os turras" e a guerra de África, são apenas vozes e notícias, dispersas, de infância. Fica aqui, pelo menos aqui, este pequeno contributo para que tal injustiça seja reconhecida.
O Combatente, sei de fonte segura, frequenta há pouco tempo uma consulta de psicopterapia, com outros da sua geração que também perderam a juventude na guerra. Nunca recuperará a família, o emprego, mas talvez recupere o respeito dos filhos – um objectivo meritório.
Tem que deixar morrer os sons da batalha dentro de si e aceitar que há outro dia. Tem que perdoar. Só assim poderá fechar, acredito sinceramente, o abismo profundo que lhe dilacera a vida.
Fala-se agora mais nestes assuntos, do que na época em que ouvi o Combatente, no silêncio daquele corredor barulhento... Também houve um filme ou outro, sobre esta forma tão dolorosa de sofrer...Talvez as coisas melhorem finalmente.
Eu desejo, do fundo da alma - para ele e para todos como ele - que atinjam a benção do esquecimento e tenham a força para criar um novo princípio...Do pouco que tenho, ofereço aquilo que mais me custou a conquistar e mais prezo na vida: ofereço-lhes o meu respeito...
Bem hajam pelo sacrifício!!
Doc
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Nota de L.G.
(1) Vd. post de A. Marques Lopes, de 18 de Maio de 2005 > de Guiné 63/74 - XXI: "O ataque e assalto do IN ao destacamento de Cantacunda (1968)
(2) O stresse, como figura, jurídica é recente na legislação portuguesa: a primeira referência conhecida é a que consta na Lei nº 46/99, de 16 de Junho de 1999, respeitante ao “apoio às vítimas de stresse pós-traumático de guerra”.
O conceito de “deficiente das Forças Armadas” passava, então, a ser alargado ao cidadão português, militar ou ex-militar, que fosse “portador de perturbação psicológica crónica resultante da exposição a factores traumáticos de stresse durante a vida militar”, quer no teatro de guerra, quer no desempenho de missões humanitárias e de paz ou de acções de cooperação técnico-militar no estrangeiro.
Ao Estado competia criar uma "rede nacional de apoio" às vítimas de stresse pós-traumático de guerra, no âmbito do Serviço Nacional de Saúde e do Sistema de Saúde Militar, em articulação com as organizações não governamentais (ONG).
A essa rede incumbe "a informação, identificação e encaminhamento dos casos e a necessária prestação de serviços de apoio médico, psicológico e social". Essa rede foi entretanto criada, pelo D.L. nº 50/2000, de 7 de Abril. Por sua vez, a Portaria nº 647/2001, de 28 de Junho, veio estabelecer os termos do respectivo financiamento.
Luís Graça
terça-feira, 22 de novembro de 2005
Guiné 63/74 - P285: O 'malandro do Ribeiro' que arriou a nossa bandeira em Mansoa (Marques Lopes)
O ranger Eduardo Magalhães Ribeiro em Dezembro de 1973, em farda nº 1. Os rangers têm uma associação, a AOE - Associação de Operações Especiais. Entre os camaradas daquela época, o Ribeiro também era conhecido pelo seu nome de guerra, o Cavalo Branco.
© Eduardo Magalhães Ribeiro (2005)
Comentário, fora de horas, às tantas da madrugada, do nosso amigo e camarada A. Marques Lopes (coronel DFA, na reforma, que esteve na Guiné como alferes miliciano, em Geba e em Barro, respectivamente em 1967 e 1968), a propósito do post anterior: Guiné 63/74 - CCCIV: 'Eu estava lá, na entrega simbólica do território' (Mansoa, 9 de Setembro de 1974):
...Mas este malandro do Eduardo Magalhães Ribeiro até é primo da minha mulher. Já estava admirado por ele ainda não ter aparecido aqui... É um ranger. Conta mais, Eduardo!
Entretanto, conto eu aos camaradas que estive várias horas, esta noite, em grande conversa com o Albano Costa e o Allen. E vamos tornar a encontrar-nos na próxima sexta-feira para continuar.
O paisano Eduardo Magalhães Ribeiro, hoje, no Porto.
© Eduardo Magalhães Ribeiro (2005)
Fiquem também a saber que ficou mais ou menos projectada uma visita à Guiné-Bissau em 2006 (entre Janeiro e Maio, porque para época das chuvas já chegou...).
A. Marques Lopes
© Eduardo Magalhães Ribeiro (2005)
Comentário, fora de horas, às tantas da madrugada, do nosso amigo e camarada A. Marques Lopes (coronel DFA, na reforma, que esteve na Guiné como alferes miliciano, em Geba e em Barro, respectivamente em 1967 e 1968), a propósito do post anterior: Guiné 63/74 - CCCIV: 'Eu estava lá, na entrega simbólica do território' (Mansoa, 9 de Setembro de 1974):
...Mas este malandro do Eduardo Magalhães Ribeiro até é primo da minha mulher. Já estava admirado por ele ainda não ter aparecido aqui... É um ranger. Conta mais, Eduardo!
Entretanto, conto eu aos camaradas que estive várias horas, esta noite, em grande conversa com o Albano Costa e o Allen. E vamos tornar a encontrar-nos na próxima sexta-feira para continuar.
O paisano Eduardo Magalhães Ribeiro, hoje, no Porto.
© Eduardo Magalhães Ribeiro (2005)
Fiquem também a saber que ficou mais ou menos projectada uma visita à Guiné-Bissau em 2006 (entre Janeiro e Maio, porque para época das chuvas já chegou...).
A. Marques Lopes
segunda-feira, 21 de novembro de 2005
Guiné 63/74 - P284: Tabanca Grande: Eduardo Magalhães Ribeiro, ex-Fur Mil Op Esp do BCAÇ 4612/74 - Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)
Guiné > Mansoa > 9 de Setembro de 1974 >
O Furriel de Operações Especiais Ribeiro, da CCS do BCAÇ 4612, recolhe a bandeira verde-rubra, na presença de representantes do PAIGC (incluindo a viúva de Amílcar Cabral) e de autoridades militares do CTIG.
© Eduardo Magalhães Ribeiro (2005)
1. Fui hoje contactado, por telefone, por um ex-furriel miliciano, ranger, Eduardo Magalhães Ribeiro (que trabalha no Porto, na EDP) e que esteve na CCS do último batalhão da Guiné, em Mansoa (BCAÇ 4612)...
Ele considera-se o mais periquito dos periquitos da Guiné: foi para a Guiné já depois do 25 de Abril em "missão liquidatária"...
Na realidade, tratava-se de fazer a entrega (simbólica) do território aos novos senhores da Guiné e, ao mesmo tempo, assegurar a retirada, ordeira, digna e segura, das últimas tropas portuguesas. Mansoa, em pleno coração do território, serviu perfeitamente para esse duplo propósito...
Guiné > Mansoa > 9 de Setembro de 1974 >
Um português, Ribeiro, a fazer história...
© Eduardo Magalhães Ribeiro (2005)
Presumo que tenha sido uma experiência não menos dolorosa para muitos jovens portugueses, numa época não isenta de riscos, tensões e contradições... Pessoalmente confesso que não gostaria de lá ter estado, fardado, no pós-25 de Abril de 1974... Fez-se história nesse dia já longínquo de 9 de Setembro de 1974...
O Eduardo diz que ficou famoso pela sua foto a arriar a bandeira verde-rubra , em Mansoa, na presença da Maria Turra (sic), como era conhecida entre os tugas - com o sentido de humor, que é típico da caserna, mas com respeito e até carinho - a viúva do Amílcar Cabral, que assistiu com outros destacados dirigentes do PAIGC a este momento histórico...
Enquanto ansiava por receber as prometidas fotos e estórias do Eduardo, este nosso novo tertuliano acabou por fazer uma primeira remessa, agora mesmo...
2. Texto do Eduardo Magalhães Ribeiro:
Boa noite, amigo ex-combatente da Guiné, Luis Graça.
Tal como combinámos, anexo um pequeno texto e algumas fotos, das 38 que possuo aqui em casa, que vou repartir por 3 ou 4 emails, dada a sua grande ocupação de espaço.
Eu estive na Guiné, em Mansoa, em 1974, na CCS do BCAÇ 4612/74 (o último batalhão que partiu para a Guiné e também o último que de lá saiu), e participei, ali, na entrega do aquartelamento ao PAIGC e na simbólica entrega do território, que incluiu uma muito concorrida cerimónia do último arriar de bandeira nacional, com cerimónia oficial, na Guiné, e o hastear da primeira bandeira da Guiné-Bissau.
Se achares com interesse junta ao blogue.
MANSOA, 9 de Setembro de 1974
Com a revolução de 25 de Abril de 1974, foi dada como terminada aquela que foi designada como Guerra do Ultramar, que Portugal travava em África, nas três conhecidas frentes: Angola, Guiné e Moçambique.
Guiné > Mansoa > 9 de Setembro de 1974 >
Um privilégio que poucos tiveram e que provavelmente poucos quereriam ter... É de imaginar o tipo de sentimentos, contraditórios, que terá assaltado, naquele momento, este digno representante do povo português que foi o nosso camarada Ribeiro...
© Eduardo Magalhães Ribeiro (2005)
Em 9 de Setembro de 1974, com a independência da Guiné-Bissau, foi entregue o território ao PAIGC numa cerimónia oficial que decorreu no quartel de Mansôa.
Estiveram presentes nessa cerimónia: a CCS do BCAÇ 4612/74, comandada pelo Major Ramos de Campos; o CMDT do mesmo batalhão, Coronel António C. Varino; um grupo de combate, um grupo de pioneiros, Maria Cabral (viúva de Amilcar Cabral) e o comissário político Manuel Ndinga, do PAIGC; e, pelo CEME do CTIG, o Ten. Cor. Fonseca Cabrinha.
Guiné > Mansoa > 9 de Setembro de 1974 >
Um dia de sonhos e de esperanças para os guineenses... E de alguma nostalgia para os últimos soldados do império colonial português...
© Eduardo Magalhães Ribeiro (2005)
A bandeira foi arriada por mim, à data Furriel Miliciano de Operações Especiais, Eduardo José Magalhães Ribeiro.
À cerimónia compareceram ainda uns largos milhares de nativos locais, de diversas etnias: papéis, balantas, fulas, futa-fulas, mandingas, manjacos, etc., e umas dezenas de jornalistas de todo o mundo.
Um guerrilheiro do PAIGC hasteia a bandeira da nova República da Guiné-Bissau.
Os inimigos de ontem dão-se as mãos e prometem cooperar, no futuro, numa base igualitária, falando a mesma língua. Sob a bandeira do PAIGC os vários povos da Guiné lutaram pela indepência mas é através da língua portuguesa (oficial) que se entendem...
© Eduardo Magalhães Ribeiro (2005)
Desta cerimónia possuo em minha casa 38 fotografias, mas existe um filme deste acontecimento histórico inserido na série televisiva: Século XX Português, da SIC Notícias – no Episódio sobre a “Descolonização”, acompanhado de uma curta entrevista, que ali dei, sobre os factos então vividos.
O Furriel de Operações Especiais Ribeiro, da CCS do BCAÇ 4612, recolhe a bandeira verde-rubra, na presença de representantes do PAIGC (incluindo a viúva de Amílcar Cabral) e de autoridades militares do CTIG.
© Eduardo Magalhães Ribeiro (2005)
1. Fui hoje contactado, por telefone, por um ex-furriel miliciano, ranger, Eduardo Magalhães Ribeiro (que trabalha no Porto, na EDP) e que esteve na CCS do último batalhão da Guiné, em Mansoa (BCAÇ 4612)...
Ele considera-se o mais periquito dos periquitos da Guiné: foi para a Guiné já depois do 25 de Abril em "missão liquidatária"...
Na realidade, tratava-se de fazer a entrega (simbólica) do território aos novos senhores da Guiné e, ao mesmo tempo, assegurar a retirada, ordeira, digna e segura, das últimas tropas portuguesas. Mansoa, em pleno coração do território, serviu perfeitamente para esse duplo propósito...
Guiné > Mansoa > 9 de Setembro de 1974 >
Um português, Ribeiro, a fazer história...
© Eduardo Magalhães Ribeiro (2005)
Presumo que tenha sido uma experiência não menos dolorosa para muitos jovens portugueses, numa época não isenta de riscos, tensões e contradições... Pessoalmente confesso que não gostaria de lá ter estado, fardado, no pós-25 de Abril de 1974... Fez-se história nesse dia já longínquo de 9 de Setembro de 1974...
O Eduardo diz que ficou famoso pela sua foto a arriar a bandeira verde-rubra , em Mansoa, na presença da Maria Turra (sic), como era conhecida entre os tugas - com o sentido de humor, que é típico da caserna, mas com respeito e até carinho - a viúva do Amílcar Cabral, que assistiu com outros destacados dirigentes do PAIGC a este momento histórico...
Enquanto ansiava por receber as prometidas fotos e estórias do Eduardo, este nosso novo tertuliano acabou por fazer uma primeira remessa, agora mesmo...
2. Texto do Eduardo Magalhães Ribeiro:
Boa noite, amigo ex-combatente da Guiné, Luis Graça.
Tal como combinámos, anexo um pequeno texto e algumas fotos, das 38 que possuo aqui em casa, que vou repartir por 3 ou 4 emails, dada a sua grande ocupação de espaço.
Eu estive na Guiné, em Mansoa, em 1974, na CCS do BCAÇ 4612/74 (o último batalhão que partiu para a Guiné e também o último que de lá saiu), e participei, ali, na entrega do aquartelamento ao PAIGC e na simbólica entrega do território, que incluiu uma muito concorrida cerimónia do último arriar de bandeira nacional, com cerimónia oficial, na Guiné, e o hastear da primeira bandeira da Guiné-Bissau.
Se achares com interesse junta ao blogue.
MANSOA, 9 de Setembro de 1974
Com a revolução de 25 de Abril de 1974, foi dada como terminada aquela que foi designada como Guerra do Ultramar, que Portugal travava em África, nas três conhecidas frentes: Angola, Guiné e Moçambique.
Guiné > Mansoa > 9 de Setembro de 1974 >
Um privilégio que poucos tiveram e que provavelmente poucos quereriam ter... É de imaginar o tipo de sentimentos, contraditórios, que terá assaltado, naquele momento, este digno representante do povo português que foi o nosso camarada Ribeiro...
© Eduardo Magalhães Ribeiro (2005)
Em 9 de Setembro de 1974, com a independência da Guiné-Bissau, foi entregue o território ao PAIGC numa cerimónia oficial que decorreu no quartel de Mansôa.
Estiveram presentes nessa cerimónia: a CCS do BCAÇ 4612/74, comandada pelo Major Ramos de Campos; o CMDT do mesmo batalhão, Coronel António C. Varino; um grupo de combate, um grupo de pioneiros, Maria Cabral (viúva de Amilcar Cabral) e o comissário político Manuel Ndinga, do PAIGC; e, pelo CEME do CTIG, o Ten. Cor. Fonseca Cabrinha.
Guiné > Mansoa > 9 de Setembro de 1974 >
Um dia de sonhos e de esperanças para os guineenses... E de alguma nostalgia para os últimos soldados do império colonial português...
© Eduardo Magalhães Ribeiro (2005)
A bandeira foi arriada por mim, à data Furriel Miliciano de Operações Especiais, Eduardo José Magalhães Ribeiro.
À cerimónia compareceram ainda uns largos milhares de nativos locais, de diversas etnias: papéis, balantas, fulas, futa-fulas, mandingas, manjacos, etc., e umas dezenas de jornalistas de todo o mundo.
Um guerrilheiro do PAIGC hasteia a bandeira da nova República da Guiné-Bissau.
Os inimigos de ontem dão-se as mãos e prometem cooperar, no futuro, numa base igualitária, falando a mesma língua. Sob a bandeira do PAIGC os vários povos da Guiné lutaram pela indepência mas é através da língua portuguesa (oficial) que se entendem...
© Eduardo Magalhães Ribeiro (2005)
Desta cerimónia possuo em minha casa 38 fotografias, mas existe um filme deste acontecimento histórico inserido na série televisiva: Século XX Português, da SIC Notícias – no Episódio sobre a “Descolonização”, acompanhado de uma curta entrevista, que ali dei, sobre os factos então vividos.
Guiné 63/74 - P283: A CCAÇ 4150: Guidaje, o 'cú do mundo' (Albano Costa)
Texto do Albano Costa (ex- 1º cabo da CCAÇ 4150, 1973/74):
Vou descrever uma história sobre a passagem da CCAÇ 4150 pela Guiné.
Quando chegámos em Setembro de 1973, fomos logo colocados no Cumeré, aí permanecemos à volta de um mês. Até aí tudo normal mas quando começámos a ouvir rebentamentos ao longe, sempre ao fim do dia, começámos a ficar apreensivos. Os mais velhos lá nos iam dizendo:
- São colegas nossos que estão a sofrer um ataque para os lados de X...
Nós, com os nossos 20 anos, estávamos a ser instruídos psicologicamente para a guerra, ainda não imaginávamos o que aquilo era, mas já nos íamos apercebendo do que é que nos esperava.
Quando chegou a ordem de abalada para o mato (naquela altura o calão era assim, como sabem, e ainda hoje para quem lá vai em gozo de férias salta logo a palavra: vamos para o mato), fui informado que íamos para Bigene e Guidage, íamos ficar sobre as ordens do COP 3.
Despedi-me de uns colegas da minha terra (Matosinhos)(1). Disse-lhes para onde ia para onde ia e logo um deles me disse:
- Eh, pá, para onde tu vais, essa zona é muito má, em Maio foi muito massacrada.
Lgo me apeteceu foi fugir, mas não havia alternativa e lá fui eu para o mato no dia seguinte, em coluna passando por Safim e João Landim. Parámos em Bula, aí lembro-me do nosso capitão dizer:
- A partir de agora, é mesmo a sério!.
Eu na altura só pensei:
- Será que volto à metrópole ? - E lá fomos em coluna, mas agora a sério, já com as panhards, na frente, aí sim comecei a sentir a guerra. Para jovens com 20 anos era muito doloroso, é que não éramos informados para o que íamos, as coisas surgiam a qualquer momento... Lá seguimos até S. Vicente, entrámos numa LDG [Lancha de Desembarque Grande] e seguimos pelo rio Cacheu, em direcção a Ganturé, aonde chegados ao fim do dia, só com a racção de combate. Aí deparámos que tínhamos um barracão, sem camas para dormir e, como se não bastasse, não tínhamos refeitório. Para almoçar e jantar só íamos buscar as refeições e vínhamos para o barracão comer. Aí a companhia ficou muito desmoralizada...
Em Bigene estivemos um mês a fazer segurança às colunas que se faziam entre Bigene e Barro, eram as únicas por que a picada de Bigene a Binta estava fechada e só se faziam de barco pelo Cacheu. Lembro-me de fazermos uma operação de grande envergadura que meteu força aérea e naval e a CCAV 3568, levou 24 horas seguidas, na zona de Samoge, Sindina e Tabajan. Foi só o esforço humano, não encontrámos nada a não ser focos da presença do inimigo.
Tudo isto já era a doer e, para piorar a situação, a companhia foi dividida e dois grupos, incluindo o meu, fomos mudados para Guidage (é fazer de conta que foram dois irmãos que se separaram dos outros dois, e isso dói muito). E aí ainda foi pior porque o isolamento era muito grande. Quando ía na coluna comecei a deparar com coisas nunca vistas na picada. Que me desculpem os colegas de Bigene e Barro mas aquela era muito complicada, comecei a ver viaturas nossas todas desfeitas e fiquei ainda mais apreensivo. Os mais antigas diziam que tinha sido uma coluna que tinha sofrido uma emboscada e o inimigo tinha destruído aquelas viaturas, ainda eram bastantes...
O primeiro morto da Companhia
Em certas partes da picada entre Binta e Guidage era muito complicado aí pensei:
- Como vai ser possível aguentar a comissão aqui ?
Passando por Genicó, Cufeu e Ujeque, lá chegámos ao «cú do mundo» que era Guidage, mas para fazer mais ou menos 40 km, demorou o dia inteiro, não foi fácil, mas tinha de ser, fomos bem recebidos pelos colegas, nos dias seguintes começámos logo com saídas para o mato e aí começámos a ouvir estórias de coisas que se tinham passado em Maio [de 1973], que nos deixavam aterrorizados.
Só fazíamos colunas de 15 em quinze dias e nunca havia dia marcado, éramos informados sempre à noite que ia haver coluna no dia seguinte para evitar possível informação ao inimigo. Foram momentos muito difíceis.
A nossa missão era controlar o inimigo, principalmente, o corredor de Sambuiá. O PAIGC tinha a sua base mais importante em Gumbamory, no Senegal, onde se encontrava um corpo do seu exército, reforçada com vários bi-grupos de artilharia pesada, a cerca de 3 quilómetros da fronteira das NT entre Guidage e Bigene, sendo daqui que partiam as suas colunas de reabasticimento para o interior através do corredor de Sambuiá cujo itinerário provável era o seguinte: Cumbamory, Samoje, Talicó, Sambuiá e Malibolom, até ao rio Cacheu.
Tivemos uma emboscada no mato e dois ataques ao quartel: o primeiro foi no dia 8 de Dezembro 1973, fez duas baixas de colegas guineenses da CCAÇ 19; uns dias depois a CCAÇ 4150 teve um morto e dois feridos num acidente (todos vocês que lêem esta crónica, sabem bem o trauma que ficava nas nossas mentes).
O regresso, vinte e seis anos depois
Passado 26 anos regressei à Guiné para rever os sítios por onde passei, e aí sim pude saborear e conhecer a Guiné, foi simplesmente deslumbrante, acreditem que eu tive sempre um certo receio em lá voltar.
Ao longo de dezenas de anos eu convivia com esse pensamento que era quase impossível lá chegar, primeiro porque era longe, segundo porque era muito perigoso, mas um dia uma estrela iluminou-me, e atravessou-se, no meu caminho, um colega nosso, de nome Francisco «Chico» Allen, e então começámos a falar da Guiné ao qual ele me disse que já lá tinha ido algumas vezes, eu quase duvidava do que ele me contava, mas eu sempre com o meu pensamento ainda do tempo de tropa, contrapunha:
- Não, a minha zona era Guidage; além de muito perigosa era difícil lá chegar! - E ele dizia:
- Esqueça a Guiné do tempo de tropa, agora é muito diferente.- Mas eu é que fiquei sempre na dúvida, então ele um dia apresentou-me a esposa, e a D. Zélia, uma senhora muito simpática, me disse:
- Não tenha receio, vá que vai gostar! - E eu lá ganhei coragem e falei com a minha mulher, e ela me disse:
- Se queres ir, vai! - E fui, mas levei o meu filho mais velho, e então aí sim, adorei, quando cheguei a Guidage tudo parecia mentira, parecia um sonho mas tornou-se realidade, e agora estou aqui para ajudar a abrir uma janela para quem puder e quiser ir à Guiné à zona aonde esteve, deve ir, mas que se prepare que leva aquela vacina, que fica rendido, aquela terra é mágica e depois só queremos lá voltar, aquele povo é muito bom, e nós portugueses somos mesmo irmãos (2).
Luís Graça: vou mandar fotos, antigas e actuais, para meteres no blogue sobre Guidage, mas eu tenho fotos de muitos destacamentos que posso enviar. Acho que quem lá vai, ao blogue e às outras páginas, gosta de ver fotos do «seu» ex-quartel. Se for interessante eu posso enviar mas agradeço que me informes como fazer, porque são muitas fotos e eu nisto da Net ainda sou infantil.
Um abraço,
Albano
__________
(1) Tentei telefonar ao A. Marques Lopes, meu conterrâneo de Matosinhos, mas o número de telemóvel que me deram, não está atribuído, por isso no consigo falar com ele.
(2) Há pouco tempo encontrei um colega, estive com ele em Guidage, só que ele esteve no período de Abril, Maio e Junho de 73, e fiquei impressionado quando falei que tinha estado em Guidage e ele me disse: "Não quero falar disso"... Ainda hoje ele não consegue esquecer o grande amigo que morreu nos seus braços.. Fiquei bastante impressionado.
Vou descrever uma história sobre a passagem da CCAÇ 4150 pela Guiné.
Quando chegámos em Setembro de 1973, fomos logo colocados no Cumeré, aí permanecemos à volta de um mês. Até aí tudo normal mas quando começámos a ouvir rebentamentos ao longe, sempre ao fim do dia, começámos a ficar apreensivos. Os mais velhos lá nos iam dizendo:
- São colegas nossos que estão a sofrer um ataque para os lados de X...
Nós, com os nossos 20 anos, estávamos a ser instruídos psicologicamente para a guerra, ainda não imaginávamos o que aquilo era, mas já nos íamos apercebendo do que é que nos esperava.
Quando chegou a ordem de abalada para o mato (naquela altura o calão era assim, como sabem, e ainda hoje para quem lá vai em gozo de férias salta logo a palavra: vamos para o mato), fui informado que íamos para Bigene e Guidage, íamos ficar sobre as ordens do COP 3.
Despedi-me de uns colegas da minha terra (Matosinhos)(1). Disse-lhes para onde ia para onde ia e logo um deles me disse:
- Eh, pá, para onde tu vais, essa zona é muito má, em Maio foi muito massacrada.
Lgo me apeteceu foi fugir, mas não havia alternativa e lá fui eu para o mato no dia seguinte, em coluna passando por Safim e João Landim. Parámos em Bula, aí lembro-me do nosso capitão dizer:
- A partir de agora, é mesmo a sério!.
Eu na altura só pensei:
- Será que volto à metrópole ? - E lá fomos em coluna, mas agora a sério, já com as panhards, na frente, aí sim comecei a sentir a guerra. Para jovens com 20 anos era muito doloroso, é que não éramos informados para o que íamos, as coisas surgiam a qualquer momento... Lá seguimos até S. Vicente, entrámos numa LDG [Lancha de Desembarque Grande] e seguimos pelo rio Cacheu, em direcção a Ganturé, aonde chegados ao fim do dia, só com a racção de combate. Aí deparámos que tínhamos um barracão, sem camas para dormir e, como se não bastasse, não tínhamos refeitório. Para almoçar e jantar só íamos buscar as refeições e vínhamos para o barracão comer. Aí a companhia ficou muito desmoralizada...
Em Bigene estivemos um mês a fazer segurança às colunas que se faziam entre Bigene e Barro, eram as únicas por que a picada de Bigene a Binta estava fechada e só se faziam de barco pelo Cacheu. Lembro-me de fazermos uma operação de grande envergadura que meteu força aérea e naval e a CCAV 3568, levou 24 horas seguidas, na zona de Samoge, Sindina e Tabajan. Foi só o esforço humano, não encontrámos nada a não ser focos da presença do inimigo.
Tudo isto já era a doer e, para piorar a situação, a companhia foi dividida e dois grupos, incluindo o meu, fomos mudados para Guidage (é fazer de conta que foram dois irmãos que se separaram dos outros dois, e isso dói muito). E aí ainda foi pior porque o isolamento era muito grande. Quando ía na coluna comecei a deparar com coisas nunca vistas na picada. Que me desculpem os colegas de Bigene e Barro mas aquela era muito complicada, comecei a ver viaturas nossas todas desfeitas e fiquei ainda mais apreensivo. Os mais antigas diziam que tinha sido uma coluna que tinha sofrido uma emboscada e o inimigo tinha destruído aquelas viaturas, ainda eram bastantes...
O primeiro morto da Companhia
Em certas partes da picada entre Binta e Guidage era muito complicado aí pensei:
- Como vai ser possível aguentar a comissão aqui ?
Passando por Genicó, Cufeu e Ujeque, lá chegámos ao «cú do mundo» que era Guidage, mas para fazer mais ou menos 40 km, demorou o dia inteiro, não foi fácil, mas tinha de ser, fomos bem recebidos pelos colegas, nos dias seguintes começámos logo com saídas para o mato e aí começámos a ouvir estórias de coisas que se tinham passado em Maio [de 1973], que nos deixavam aterrorizados.
Só fazíamos colunas de 15 em quinze dias e nunca havia dia marcado, éramos informados sempre à noite que ia haver coluna no dia seguinte para evitar possível informação ao inimigo. Foram momentos muito difíceis.
A nossa missão era controlar o inimigo, principalmente, o corredor de Sambuiá. O PAIGC tinha a sua base mais importante em Gumbamory, no Senegal, onde se encontrava um corpo do seu exército, reforçada com vários bi-grupos de artilharia pesada, a cerca de 3 quilómetros da fronteira das NT entre Guidage e Bigene, sendo daqui que partiam as suas colunas de reabasticimento para o interior através do corredor de Sambuiá cujo itinerário provável era o seguinte: Cumbamory, Samoje, Talicó, Sambuiá e Malibolom, até ao rio Cacheu.
Tivemos uma emboscada no mato e dois ataques ao quartel: o primeiro foi no dia 8 de Dezembro 1973, fez duas baixas de colegas guineenses da CCAÇ 19; uns dias depois a CCAÇ 4150 teve um morto e dois feridos num acidente (todos vocês que lêem esta crónica, sabem bem o trauma que ficava nas nossas mentes).
O regresso, vinte e seis anos depois
Passado 26 anos regressei à Guiné para rever os sítios por onde passei, e aí sim pude saborear e conhecer a Guiné, foi simplesmente deslumbrante, acreditem que eu tive sempre um certo receio em lá voltar.
Ao longo de dezenas de anos eu convivia com esse pensamento que era quase impossível lá chegar, primeiro porque era longe, segundo porque era muito perigoso, mas um dia uma estrela iluminou-me, e atravessou-se, no meu caminho, um colega nosso, de nome Francisco «Chico» Allen, e então começámos a falar da Guiné ao qual ele me disse que já lá tinha ido algumas vezes, eu quase duvidava do que ele me contava, mas eu sempre com o meu pensamento ainda do tempo de tropa, contrapunha:
- Não, a minha zona era Guidage; além de muito perigosa era difícil lá chegar! - E ele dizia:
- Esqueça a Guiné do tempo de tropa, agora é muito diferente.- Mas eu é que fiquei sempre na dúvida, então ele um dia apresentou-me a esposa, e a D. Zélia, uma senhora muito simpática, me disse:
- Não tenha receio, vá que vai gostar! - E eu lá ganhei coragem e falei com a minha mulher, e ela me disse:
- Se queres ir, vai! - E fui, mas levei o meu filho mais velho, e então aí sim, adorei, quando cheguei a Guidage tudo parecia mentira, parecia um sonho mas tornou-se realidade, e agora estou aqui para ajudar a abrir uma janela para quem puder e quiser ir à Guiné à zona aonde esteve, deve ir, mas que se prepare que leva aquela vacina, que fica rendido, aquela terra é mágica e depois só queremos lá voltar, aquele povo é muito bom, e nós portugueses somos mesmo irmãos (2).
Luís Graça: vou mandar fotos, antigas e actuais, para meteres no blogue sobre Guidage, mas eu tenho fotos de muitos destacamentos que posso enviar. Acho que quem lá vai, ao blogue e às outras páginas, gosta de ver fotos do «seu» ex-quartel. Se for interessante eu posso enviar mas agradeço que me informes como fazer, porque são muitas fotos e eu nisto da Net ainda sou infantil.
Um abraço,
Albano
__________
(1) Tentei telefonar ao A. Marques Lopes, meu conterrâneo de Matosinhos, mas o número de telemóvel que me deram, não está atribuído, por isso no consigo falar com ele.
(2) Há pouco tempo encontrei um colega, estive com ele em Guidage, só que ele esteve no período de Abril, Maio e Junho de 73, e fiquei impressionado quando falei que tinha estado em Guidage e ele me disse: "Não quero falar disso"... Ainda hoje ele não consegue esquecer o grande amigo que morreu nos seus braços.. Fiquei bastante impressionado.
Guiné 63/74 - P282: Tabanca Grande: Albano Costa, ex-1.º Cabo da CCAÇ 4150 (Guidaje, 1973/74)
"Periquito vai no mato..." (O 1º Cabo Costa, em 1973 ou 74)
© Albano Costa (2005)
1. Telefonou-me há dias o Albano Costa, de Guifões, Matosinhos. Ele pertencia à CCAÇ 4150 (Guidaje e Binta, 1973/74). Esteve também com a CCAÇ 19, em Guidaje, e ainda conheceu a malta do Capitão Salgueiro Maia (CCAV 3420, Bula, 1971/73).
O Albano, juntamente com o filho (finalista de um curso de comunicação social), e mais um grupo de camaradas, ex-combatentes, fez um verdadeiro safari turístico-sentimental, durante 15 dias, de 11 a 26 de Novembro de 2000, percorrendo a Guiné-Bissau, de lés a lés, em dois jipes. Dessa aventura há um registo, em vídeo, com cerca de 6 horas, e que eu já tive o privilégio de visionar. Chegou-me uma cópia, em 4 DVD, por mão do Sousa de Castro.
Hoje o Albano cumpre-me o prometido, que foi o de enviar duas fotos suas (uma antiga e outra recente) e de se apresentar ao resto da tertúlia.
2. Texto do Albano Costa:
Luís, vou enviar as minhas fotos da tropa e actual Desculpa eu ainda não fazer nenhum texto, (mas vou sempre ao blogue). Estou a preparar o texto sobre a minha ida para a guerra, ainda não tive possibilidade porque os motivos profissionais [ele tem uma loja de artigos fotográficos em Guifões] nem sempre me deixam muito tempo, mas estou com bastante atenção e com prazer em ir ao blogue. Também estou a preparar umas fotos de várias zonas da Guiné. Vou fazer diligências para que colegas que tenham estado no Norte [da Guiné] também possam entrar para a nossa tertúlia.
O Luís diz e muito bem que nós fomos metidos no buraco e de lá saímos sem conhecer mais nada a não se aquela picada que faziamos nas colunas e o regresso a Bissau para vir para a metrópole. É bom que aparecem colegas como o Mário Dias (eu julgo que é da CCAÇ 2636, mas eu vou saber), para fazer certas correcções, bem hajam.
O nosso camarada Costa, hoje (Guifões, Matosinhos) © Albano Costa (2005)
Eu tive o prazer de poder ir 15 dias à Guiné, como já sabes, e conhecer localidades que só conhecia de nome quando me encontrava com colegas que diziam aonde tinham estado, e eu agora passei por muitas delas: Mansoa, Jugudul, Bambadinca, Xime, Mansambo, Xitole, Saltinho, Aldeia Formosa, a famosa ponte Balana, Buba, Guilege, Gadamael Porto, Chogué, Empada, Catió Canjabari, Jumbembem, Farim e muitas, muitas mais) [vd. mapa geral da Guiné, 1961].
Pude conhecer essas terras num ambiente de puro safari, e conviver com aquele maravilhoso povo. Numa próxima vez quero ver se mando algumas fotos de Guidage assim como de Bijene e Binta [na região do Cacheu] que foi o triângulo que fiz no tempo de tropa.
Tenho mapas militares de Bigene e Binta, falta-me o de Guidage. Mas eu sei quem o tem, só espero que ele ainda saiba dele. Estou a catalogar as fotos que eu depois quero saber como as posso enviar para os camaradas recordarem e, quem sabe, lá irem um dia...
Eu ainda sou infantil nisto, talvez vá precisar da tua ajuda. Agradeço confirmação desta mensagem. Um até sempre.
Albano Costa
© Albano Costa (2005)
1. Telefonou-me há dias o Albano Costa, de Guifões, Matosinhos. Ele pertencia à CCAÇ 4150 (Guidaje e Binta, 1973/74). Esteve também com a CCAÇ 19, em Guidaje, e ainda conheceu a malta do Capitão Salgueiro Maia (CCAV 3420, Bula, 1971/73).
O Albano, juntamente com o filho (finalista de um curso de comunicação social), e mais um grupo de camaradas, ex-combatentes, fez um verdadeiro safari turístico-sentimental, durante 15 dias, de 11 a 26 de Novembro de 2000, percorrendo a Guiné-Bissau, de lés a lés, em dois jipes. Dessa aventura há um registo, em vídeo, com cerca de 6 horas, e que eu já tive o privilégio de visionar. Chegou-me uma cópia, em 4 DVD, por mão do Sousa de Castro.
Hoje o Albano cumpre-me o prometido, que foi o de enviar duas fotos suas (uma antiga e outra recente) e de se apresentar ao resto da tertúlia.
2. Texto do Albano Costa:
Luís, vou enviar as minhas fotos da tropa e actual Desculpa eu ainda não fazer nenhum texto, (mas vou sempre ao blogue). Estou a preparar o texto sobre a minha ida para a guerra, ainda não tive possibilidade porque os motivos profissionais [ele tem uma loja de artigos fotográficos em Guifões] nem sempre me deixam muito tempo, mas estou com bastante atenção e com prazer em ir ao blogue. Também estou a preparar umas fotos de várias zonas da Guiné. Vou fazer diligências para que colegas que tenham estado no Norte [da Guiné] também possam entrar para a nossa tertúlia.
O Luís diz e muito bem que nós fomos metidos no buraco e de lá saímos sem conhecer mais nada a não se aquela picada que faziamos nas colunas e o regresso a Bissau para vir para a metrópole. É bom que aparecem colegas como o Mário Dias (eu julgo que é da CCAÇ 2636, mas eu vou saber), para fazer certas correcções, bem hajam.
O nosso camarada Costa, hoje (Guifões, Matosinhos) © Albano Costa (2005)
Eu tive o prazer de poder ir 15 dias à Guiné, como já sabes, e conhecer localidades que só conhecia de nome quando me encontrava com colegas que diziam aonde tinham estado, e eu agora passei por muitas delas: Mansoa, Jugudul, Bambadinca, Xime, Mansambo, Xitole, Saltinho, Aldeia Formosa, a famosa ponte Balana, Buba, Guilege, Gadamael Porto, Chogué, Empada, Catió Canjabari, Jumbembem, Farim e muitas, muitas mais) [vd. mapa geral da Guiné, 1961].
Pude conhecer essas terras num ambiente de puro safari, e conviver com aquele maravilhoso povo. Numa próxima vez quero ver se mando algumas fotos de Guidage assim como de Bijene e Binta [na região do Cacheu] que foi o triângulo que fiz no tempo de tropa.
Tenho mapas militares de Bigene e Binta, falta-me o de Guidage. Mas eu sei quem o tem, só espero que ele ainda saiba dele. Estou a catalogar as fotos que eu depois quero saber como as posso enviar para os camaradas recordarem e, quem sabe, lá irem um dia...
Eu ainda sou infantil nisto, talvez vá precisar da tua ajuda. Agradeço confirmação desta mensagem. Um até sempre.
Albano Costa
Guiné 63/74 - P281: Morreu um soldado português no Afeganistão...
Vários tertulianos - para já, o A. Marques Lopes, o Afonso Sousa e o João Tunes - manifestaram-se a propósito da notícia da morte de um dos nossos soldados, no Afeganistão (1). Aqui ficam os seus comentários. O texto e o contexto justificam a sua inserção no nosso blogue.
1. Texto do A. Marques Lopes (de 18 de Novembro de 2005, que circulou por e-mail, pela tertúlia)
Morreu um soldado português no Afeganistão (foi um sargento) e dois ficaram feridos (um em estado grave, já sabemos o que isso quer dizer...). Foi com uma mina. Onde é que já ouvimos... e vimos isto, nós os veteranos de guerra?...
Primeira questão:
- No Iraque não morreu nenhum GNR, mas no Afeganistão morreu já um soldado portugês; missões diferentes? cuidados diferentes? Uma coisa é certa: a condição do militar é poder ser morto no desempenho da sua missão. Mas há quem continue a não perceber (ou não querer perceber) esta particularidade, merecedora de mais respeito e atenção, e contrapartidas adequadas.
Segunda questão:
- Todos nós estivemos nesta condição na Guiné, voluntária ou involuntariamente, consciente ou inconscientemente; estivemos para defender o que os governantes da altura chamaram os interesses de Portugal, também voluntária ou involuntariamente, também conscientes ou sem nenhuma consciência disso. Teve que ser, que remédio, já passou, e vamos falando disso. A maior parte lamenta-se, e bem, porque não lhes estão a reconhecer essa condição(imposta, na altura).
Terceira questão:
- Os interesses eram claros para nós (embora contestados) em Angola, Guiné e Moçambique. Mas quais são os interesses em jogo no Afeganistão (país charneira naquela região da Ásia, estrada dos pipe-lines que ligam às repúblicas asiáticas da ex-URSS, e produtoras de petróleo) ou no Iraque (fonte quase inesgotável de petróleo)? Neste aspecto, não é claro que sejam interesses de Portugal, e há outros com todo o interesse.
Quarta questão:
- Estamos em alianças com estes e temos que cumprir as nossas obrigações de aliados. Morremos a cumpri-las. E eles? A nossa frota pesqueira, a nossa agricultura e a nossa indústria são destruídas para podermos comprar os seus produtoa nos hiper e supermercados de Portugal; o nosso desemprego sobe exponencialmente, porque os nossos aliados deslocam a s empresas para onde há mão-de-obra mais barata (mas o nosso governo está a trabalhar para corrigir esse problema, é verdade...)...
Vou dar de beber à dor, adeus.
A. Marques Lopes
2. Comentário do Afonso M. Ferreira Sousa (também com a data de 18 de Novembro; circulou apenas por alguns e-mails de nós):
Tudo claro como a água, mais não pode ser !
Mas os contestatários de outrora (e bem)...foram, muitos deles, os governantes ou timoneiros neste caminhar de 31 anos !...
Afinal como é ?!
A mesma detracção que tentaram (*) lançar-nos, continua infelizmente a gerar, para o futuro, companheiros no "demérito injusto e vergonhoso".
(*)...e fico só com esta: TENTARAM (salvo mais avalizada opinião)
Um abraço
Afonso Sousa
3. Texto do João Tunes (de 21 de Novembro de 2005; não circulou, por e-mail, pela tertúlia)(2):
Leio isto e percebo isto:
"Estive na guerra, vi morrer amigos meus e quando morre um soldado ou um militar português, seja onde for, evidentemente que isso deixa de luto todo o país e nos deixa de luto a todos nós" (Manuel Alegre, sobre a morte em combate do Sargento Comando João Paulo Roma, no Afeganistão).
Eu que também estive na guerra, contra a guerra, fazendo a guerra, a mando de um ditador parado no tempo, sob o comando de um actor feio como a noite mas maníaco de poses prussianas e disfarçado de general com um vidro redondo empoleirado teatralmente num olho, vergado sob o peso dos colonos - mais que os dali, da Guiné, os de Moçambique e de Angola (as jóias da coroa) - que cada um de nós trazia às cavalitas para afastarem com chicote e para longe, um chicote afiado pelos pides, a pretalhada na sua terra, eu entendo-o bem.
Naquelas circunstâncias, ali parados para matar e morrer, sair vivo da merda, dos cus de judas, um camarada é camarada, é muito mais que patrício ou mesmo irmão, até que o mais amigo, o melhor amigo.
Um camarada de armas na guerra é alguém que perdemos, ou podemos perder, nos braços, na força da juventude, sabendo que foi a pura sorte que evitou o inverso - sermos, nós, tripas ao léu, a dizermos-lhe "estou fodido, eu sei que estou fodido, foderam-me, estou mais que fodido, foda-se, diz por mim à Luísa que, agora que estou fodido, estou a pensar nela, só penso nela!". Um camarada de armas, na guerra, é um pedaço de nós, alguém que morre no nosso lugar ou a quem nos pode calhar morrermos no lugar dele.
Este sentido, que a paneleiragem pacifista-folclórica não entende, não pode entender, perdura perante um qualquer nosso morto em combate, ontem, hoje e amanhã. Ficamos sempre com a sensação que ele lerpou no nosso lugar. Eu não sei quantos entenderam as palavras de Manuel Alegre. Porque se entendessem, se calhar não entendem e preferirão - talvez - o "amigo da Unita" ou o "cara de pau", o candidato que apoio - o Presidente de Palavra e das Palavras - ganhava logo à primeira volta. Limpinho, porque um gajo teso e de alma límpida, que mantém, assim, esta camaradagem do tempo de guerra é o homem de sentimentos e sensibilidade que merece ser saudado em Belém, batendo-lhe a pala para o gozar e nos gozarmos. Em cumplicidade de camarada. Numa camaradagem que vai além da política, é, apenas e sobretudo, coisa de alma. Sei que pouquíssimo decido, eu só tenho um voto, como manda a democracia e assim está bem. Mas o meu voto será especial - é de um camarada.
João Tunes
________________
Notas de L.G.
(1) Segundo o Diário de Notícias, de 19 de Novembro de 2005, "a guerra contra o terrorismo fez ontem, nos arredores de Cabul, a primeira vítima mortal entre os militares portugueses". O sargento João Paulo Roma Pereira, de 33 aqnos, natural de Alhos Verdos, foi "o décimo soldado luso a morrer desde que, em finais de 1995, Portugal começou a participar em missões internacionais de paz". Facto não menos significativo, "é também o primeiro militar comando a falecer desde o fim da Guerra Colonial". Houve ainda três feridos. A viatura blindada em que os quatro militares seguiam, numa patrulha de rotina, nos arredores de Cabul, accionou um "engenho explosivo".
(2) Está publicado no blogue do autor > Água Lisa (4) > 21 de Novembro de 2005 > Camarada Presidente
1. Texto do A. Marques Lopes (de 18 de Novembro de 2005, que circulou por e-mail, pela tertúlia)
Morreu um soldado português no Afeganistão (foi um sargento) e dois ficaram feridos (um em estado grave, já sabemos o que isso quer dizer...). Foi com uma mina. Onde é que já ouvimos... e vimos isto, nós os veteranos de guerra?...
Primeira questão:
- No Iraque não morreu nenhum GNR, mas no Afeganistão morreu já um soldado portugês; missões diferentes? cuidados diferentes? Uma coisa é certa: a condição do militar é poder ser morto no desempenho da sua missão. Mas há quem continue a não perceber (ou não querer perceber) esta particularidade, merecedora de mais respeito e atenção, e contrapartidas adequadas.
Segunda questão:
- Todos nós estivemos nesta condição na Guiné, voluntária ou involuntariamente, consciente ou inconscientemente; estivemos para defender o que os governantes da altura chamaram os interesses de Portugal, também voluntária ou involuntariamente, também conscientes ou sem nenhuma consciência disso. Teve que ser, que remédio, já passou, e vamos falando disso. A maior parte lamenta-se, e bem, porque não lhes estão a reconhecer essa condição(imposta, na altura).
Terceira questão:
- Os interesses eram claros para nós (embora contestados) em Angola, Guiné e Moçambique. Mas quais são os interesses em jogo no Afeganistão (país charneira naquela região da Ásia, estrada dos pipe-lines que ligam às repúblicas asiáticas da ex-URSS, e produtoras de petróleo) ou no Iraque (fonte quase inesgotável de petróleo)? Neste aspecto, não é claro que sejam interesses de Portugal, e há outros com todo o interesse.
Quarta questão:
- Estamos em alianças com estes e temos que cumprir as nossas obrigações de aliados. Morremos a cumpri-las. E eles? A nossa frota pesqueira, a nossa agricultura e a nossa indústria são destruídas para podermos comprar os seus produtoa nos hiper e supermercados de Portugal; o nosso desemprego sobe exponencialmente, porque os nossos aliados deslocam a s empresas para onde há mão-de-obra mais barata (mas o nosso governo está a trabalhar para corrigir esse problema, é verdade...)...
Vou dar de beber à dor, adeus.
A. Marques Lopes
2. Comentário do Afonso M. Ferreira Sousa (também com a data de 18 de Novembro; circulou apenas por alguns e-mails de nós):
Tudo claro como a água, mais não pode ser !
Mas os contestatários de outrora (e bem)...foram, muitos deles, os governantes ou timoneiros neste caminhar de 31 anos !...
Afinal como é ?!
A mesma detracção que tentaram (*) lançar-nos, continua infelizmente a gerar, para o futuro, companheiros no "demérito injusto e vergonhoso".
(*)...e fico só com esta: TENTARAM (salvo mais avalizada opinião)
Um abraço
Afonso Sousa
3. Texto do João Tunes (de 21 de Novembro de 2005; não circulou, por e-mail, pela tertúlia)(2):
Leio isto e percebo isto:
"Estive na guerra, vi morrer amigos meus e quando morre um soldado ou um militar português, seja onde for, evidentemente que isso deixa de luto todo o país e nos deixa de luto a todos nós" (Manuel Alegre, sobre a morte em combate do Sargento Comando João Paulo Roma, no Afeganistão).
Eu que também estive na guerra, contra a guerra, fazendo a guerra, a mando de um ditador parado no tempo, sob o comando de um actor feio como a noite mas maníaco de poses prussianas e disfarçado de general com um vidro redondo empoleirado teatralmente num olho, vergado sob o peso dos colonos - mais que os dali, da Guiné, os de Moçambique e de Angola (as jóias da coroa) - que cada um de nós trazia às cavalitas para afastarem com chicote e para longe, um chicote afiado pelos pides, a pretalhada na sua terra, eu entendo-o bem.
Naquelas circunstâncias, ali parados para matar e morrer, sair vivo da merda, dos cus de judas, um camarada é camarada, é muito mais que patrício ou mesmo irmão, até que o mais amigo, o melhor amigo.
Um camarada de armas na guerra é alguém que perdemos, ou podemos perder, nos braços, na força da juventude, sabendo que foi a pura sorte que evitou o inverso - sermos, nós, tripas ao léu, a dizermos-lhe "estou fodido, eu sei que estou fodido, foderam-me, estou mais que fodido, foda-se, diz por mim à Luísa que, agora que estou fodido, estou a pensar nela, só penso nela!". Um camarada de armas, na guerra, é um pedaço de nós, alguém que morre no nosso lugar ou a quem nos pode calhar morrermos no lugar dele.
Este sentido, que a paneleiragem pacifista-folclórica não entende, não pode entender, perdura perante um qualquer nosso morto em combate, ontem, hoje e amanhã. Ficamos sempre com a sensação que ele lerpou no nosso lugar. Eu não sei quantos entenderam as palavras de Manuel Alegre. Porque se entendessem, se calhar não entendem e preferirão - talvez - o "amigo da Unita" ou o "cara de pau", o candidato que apoio - o Presidente de Palavra e das Palavras - ganhava logo à primeira volta. Limpinho, porque um gajo teso e de alma límpida, que mantém, assim, esta camaradagem do tempo de guerra é o homem de sentimentos e sensibilidade que merece ser saudado em Belém, batendo-lhe a pala para o gozar e nos gozarmos. Em cumplicidade de camarada. Numa camaradagem que vai além da política, é, apenas e sobretudo, coisa de alma. Sei que pouquíssimo decido, eu só tenho um voto, como manda a democracia e assim está bem. Mas o meu voto será especial - é de um camarada.
João Tunes
________________
Notas de L.G.
(1) Segundo o Diário de Notícias, de 19 de Novembro de 2005, "a guerra contra o terrorismo fez ontem, nos arredores de Cabul, a primeira vítima mortal entre os militares portugueses". O sargento João Paulo Roma Pereira, de 33 aqnos, natural de Alhos Verdos, foi "o décimo soldado luso a morrer desde que, em finais de 1995, Portugal começou a participar em missões internacionais de paz". Facto não menos significativo, "é também o primeiro militar comando a falecer desde o fim da Guerra Colonial". Houve ainda três feridos. A viatura blindada em que os quatro militares seguiam, numa patrulha de rotina, nos arredores de Cabul, accionou um "engenho explosivo".
(2) Está publicado no blogue do autor > Água Lisa (4) > 21 de Novembro de 2005 > Camarada Presidente
domingo, 20 de novembro de 2005
Guiné 63/74 - P280: Viana-Cacheu: aquele abraço! (Sousa de Castro)
Fortaleza de Cacheu, a primeira feitoria a ser construída pelos navegadores portugueses.
A verdadeira exploração da actual costa da Guiné-Bissau deverá ter começado a partir de 1444 (Fonte: Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses, Vol. I. Direcção de Luís de Albuquerque. s/l: Círculo de Leitores. 1994. 478-481).
Foto: © AD - Acção para o Desenvolvimento (2005) (ONG guineense, fundada e dirigida pelo nosso amigo Carlos Schwarz, que foi engenheiro agrónomo em Contuboel e é também, actualmente, deputado no Parlamento por aquela região do leste).
Pelo e-mail do Sousa de Castro chegou, à nossa tertúlia, o convite para a participação na Semana da Guiné, a decorrer de 19 a 23 de Novembro, em Viana do Castelo, e que envolve amigos e camaradas nossos como o Carvalhido da Ponte e o Leopoldo Amado, membros desta tertúlia.
Amigo/a
Data: 07/11/05
Assunto: Semana da Guiné – 19/23 de Novembro de 2005
A ACGB [Associação de Cooperação com a Guiné-Bissau] (1) vai realizar as actividades previstas no seguinte programa, para
* visibilizar o seu aparecimento como Associação,
* tornar público o seu trabalho desenvolvido como Plataforma e os seus projectos como Associação,
* lembrar os 17 anos de geminação de Viana com Cacheu,
* divulgar a Guiné pela sua história, pela sua realidade, pela sua cultura.
Neste sentido gostaríamos de contar com a tua presença em todas as acções, muito especialmente nas dos dias 19 e 21.
Saudações cordiais
Pela ACGB
José Luís Carvalhido da Ponte
Programa
Viana-Cacheu: construir um abraço
Semana da Guiné no 17º aniversário da Geminação Viana/Cacheu
19 a 23 de Novembro
19 (21h30m/ SEDE) -
* Abertura da exposição "5 anos de cooperação";
* Assinatura de um Protocolo de utilização de sede, com a AJHLAM [Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Alto Minho] ;
* Lançamento das campanhas:
+ mil sócios/mil abraços
+ juntos por Cacheu 2005/2006 (angariação de material médico-medicamentoso e didáctico para Cacheu)
20 (13h/ESM) – Almoço de confraternização de todos quantos são/passaram da/pela Guiné
Local: Escola Secundária de Monserrate (dependente das inscrições)
Senhas de inscrição: Tabacaria CISO / Viana
21 (21h30m/SEDE) – Lembrando os 17 anos de geminação de Viana com Cacheu:
PAINEL:
* "Cacheu, cidade antiga" - Dr. Leopoldo Amado (Historiador e Secretário Executivo da GUINEÁSPORA)
* Os caminhos desta geminação (balanço) - Drª Flora Silva (Vice-Presidente da Câmara Municipal de Viana do Castelo)
23 (21h15m/Verde Viana) – Cinema Guineense : Nha Fala
INFORMAÇÕES: 966057830 ou cdaponte@portugalmail.pt
________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 20 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLI: Cooperação, caridade ou negócio ? (2) e, em especial, a mensagem do Carvalhido da Ponte, que foi furriel miliciano enfermeiro na CART 3494, a mesma companhia ( do BART 3873, 1972/74), a que pertenciam outros dois membros da nossa tertúlia, Sousa de Castro e Manuel G. Ferreira. Eles estiveram no Xime (até ao 1º trimestre de 1973) e depois em Mansambo (até ao fim da guerra).
(2) Segundo o presidente da ACGB, José Carvalhido da Ponte, em declarações ao JN - Jornal de Notícias, de hoje, a propósito da Semana da Guiné, que está a decorrer em Viana, e do balanço de cinco anos de cooperação, "várias actividades foram desenvolvidas em prol da cidade de Cacheu, nomeadamente a recolha de cerca de 10 toneladas de roupa, livros, medicamentos e jogos didácticos".
Por outro lado, a foi feita a recuperação de um jardim-de-infância e da casa do capitão-mor, onde se instalou um centro de recursos que, entre Outubro de 2003 e Maio de 2005, teve uma afluência de 1900 utilizadores. Estas foram algumas intervenções também realizadas em Cacheu. "No entanto muito há ainda por fazer", salienta, José Carvalhido da Ponte.
Até 2009, a ACGB pretende: (i) restaurar o centro de saúde e o espaço inicialmente destinado a maternidade, através de campanhas de angariação de material médico-medicamentoso e de mobiliário; (ii) efectuar despistes oftalmológicos e oferta de óculos aos técnicos de saúde e aos professores do sector de Cacheu; (iii) recuperar diversas escolas; e (iv) apostar na formação de professores e no apoio aos estudantes guineenses em Viana.
Ainda segundo a mesma fonte noticiosa, o Jornal de Notícias, do Porto, a Associação de Cooperação com a Guiné Bissau (ACGB) surgiu em 27 de Maio de 2000, então com a designação de Plataforma de Cooperação com a Guiné-Bissau. Actualmente, a ACGB tem como membros, em Viana do Castelo, a Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental, os Amigos do Mar, a Associação dos Técnicos de Turismo, a Câmara Municipal, a Escola Secundária de Monserrate e a Escola Superior de Educação e, pelo lado guineense, o Conselho Nacional da Juventude.
Um grande abraço ao Carvalhido da Ponte por este trabalho extraordinário de cinco anos! Que é dele e de toda uma comunidade. A guerra (colonial) acabou, mas a paz, essa, continua a construir-se todos os dias... Nós, que fomos os primeiros europeus a conviver e a negociar com os povos da Guiné (dos mandingas aos felupes), temos a obrigação (histórica e moral) de continuar a manter a nossa especial relação com eles, embora hoje numa base fraterna e falando em português...
A verdadeira exploração da actual costa da Guiné-Bissau deverá ter começado a partir de 1444 (Fonte: Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses, Vol. I. Direcção de Luís de Albuquerque. s/l: Círculo de Leitores. 1994. 478-481).
Foto: © AD - Acção para o Desenvolvimento (2005) (ONG guineense, fundada e dirigida pelo nosso amigo Carlos Schwarz, que foi engenheiro agrónomo em Contuboel e é também, actualmente, deputado no Parlamento por aquela região do leste).
Pelo e-mail do Sousa de Castro chegou, à nossa tertúlia, o convite para a participação na Semana da Guiné, a decorrer de 19 a 23 de Novembro, em Viana do Castelo, e que envolve amigos e camaradas nossos como o Carvalhido da Ponte e o Leopoldo Amado, membros desta tertúlia.
Amigo/a
Data: 07/11/05
Assunto: Semana da Guiné – 19/23 de Novembro de 2005
A ACGB [Associação de Cooperação com a Guiné-Bissau] (1) vai realizar as actividades previstas no seguinte programa, para
* visibilizar o seu aparecimento como Associação,
* tornar público o seu trabalho desenvolvido como Plataforma e os seus projectos como Associação,
* lembrar os 17 anos de geminação de Viana com Cacheu,
* divulgar a Guiné pela sua história, pela sua realidade, pela sua cultura.
Neste sentido gostaríamos de contar com a tua presença em todas as acções, muito especialmente nas dos dias 19 e 21.
Saudações cordiais
Pela ACGB
José Luís Carvalhido da Ponte
Programa
Viana-Cacheu: construir um abraço
Semana da Guiné no 17º aniversário da Geminação Viana/Cacheu
19 a 23 de Novembro
19 (21h30m/ SEDE) -
* Abertura da exposição "5 anos de cooperação";
* Assinatura de um Protocolo de utilização de sede, com a AJHLAM [Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Alto Minho] ;
* Lançamento das campanhas:
+ mil sócios/mil abraços
+ juntos por Cacheu 2005/2006 (angariação de material médico-medicamentoso e didáctico para Cacheu)
20 (13h/ESM) – Almoço de confraternização de todos quantos são/passaram da/pela Guiné
Local: Escola Secundária de Monserrate (dependente das inscrições)
Senhas de inscrição: Tabacaria CISO / Viana
21 (21h30m/SEDE) – Lembrando os 17 anos de geminação de Viana com Cacheu:
PAINEL:
* "Cacheu, cidade antiga" - Dr. Leopoldo Amado (Historiador e Secretário Executivo da GUINEÁSPORA)
* Os caminhos desta geminação (balanço) - Drª Flora Silva (Vice-Presidente da Câmara Municipal de Viana do Castelo)
23 (21h15m/Verde Viana) – Cinema Guineense : Nha Fala
INFORMAÇÕES: 966057830 ou cdaponte@portugalmail.pt
________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 20 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLI: Cooperação, caridade ou negócio ? (2) e, em especial, a mensagem do Carvalhido da Ponte, que foi furriel miliciano enfermeiro na CART 3494, a mesma companhia ( do BART 3873, 1972/74), a que pertenciam outros dois membros da nossa tertúlia, Sousa de Castro e Manuel G. Ferreira. Eles estiveram no Xime (até ao 1º trimestre de 1973) e depois em Mansambo (até ao fim da guerra).
(2) Segundo o presidente da ACGB, José Carvalhido da Ponte, em declarações ao JN - Jornal de Notícias, de hoje, a propósito da Semana da Guiné, que está a decorrer em Viana, e do balanço de cinco anos de cooperação, "várias actividades foram desenvolvidas em prol da cidade de Cacheu, nomeadamente a recolha de cerca de 10 toneladas de roupa, livros, medicamentos e jogos didácticos".
Por outro lado, a foi feita a recuperação de um jardim-de-infância e da casa do capitão-mor, onde se instalou um centro de recursos que, entre Outubro de 2003 e Maio de 2005, teve uma afluência de 1900 utilizadores. Estas foram algumas intervenções também realizadas em Cacheu. "No entanto muito há ainda por fazer", salienta, José Carvalhido da Ponte.
Até 2009, a ACGB pretende: (i) restaurar o centro de saúde e o espaço inicialmente destinado a maternidade, através de campanhas de angariação de material médico-medicamentoso e de mobiliário; (ii) efectuar despistes oftalmológicos e oferta de óculos aos técnicos de saúde e aos professores do sector de Cacheu; (iii) recuperar diversas escolas; e (iv) apostar na formação de professores e no apoio aos estudantes guineenses em Viana.
Ainda segundo a mesma fonte noticiosa, o Jornal de Notícias, do Porto, a Associação de Cooperação com a Guiné Bissau (ACGB) surgiu em 27 de Maio de 2000, então com a designação de Plataforma de Cooperação com a Guiné-Bissau. Actualmente, a ACGB tem como membros, em Viana do Castelo, a Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental, os Amigos do Mar, a Associação dos Técnicos de Turismo, a Câmara Municipal, a Escola Secundária de Monserrate e a Escola Superior de Educação e, pelo lado guineense, o Conselho Nacional da Juventude.
Um grande abraço ao Carvalhido da Ponte por este trabalho extraordinário de cinco anos! Que é dele e de toda uma comunidade. A guerra (colonial) acabou, mas a paz, essa, continua a construir-se todos os dias... Nós, que fomos os primeiros europeus a conviver e a negociar com os povos da Guiné (dos mandingas aos felupes), temos a obrigação (histórica e moral) de continuar a manter a nossa especial relação com eles, embora hoje numa base fraterna e falando em português...
sexta-feira, 18 de novembro de 2005
Guiné 63/74 - P279: É bom! (A. Marques Lopes)
"Sei que, infelizmente, também mataram [depois da independência] alguns dos meus jagudis e até o meu guia Braima..." (A. Marques Loes, e-mail de 11 de Novembro de 2005).
O Alf Mil Lopes, da CCAÇ 3, em Barro, em 1968, com o seu guarda-costa, balanta. O seu grupo de combate era constituído pelos Jagudis...
"O meu guarda-costas chamava-se Bletche-Intete. Grande amigo. Um dia deu-me um grande empurrão durante um tiroteio... é que eu tinha-me virado de costas para o local de onde o IN estava a disparar (fiquei mal dos ouvidos desde que fui ferido em Geba)".
© A. Marques Lopes (2005)
Excerto de um aerograma, datado de Geba, 7 de Maio de 1967.
Remetente: Alf Mil António Marques Lopes, SPM 04228.
© A. Marques Lopes (2005)
Execerto de aerograma com data de Barro, 4 de Junho de 1968.
© A. Marques Lopes (2005)
Caros camaradas:
Só quero, desta maneira, manifestar a minha muito grande satisfação pelo advento a esta tertúlia de mais (ex-)camaradas combatentes na guerra da Guiné [os mais recentes, três comandos Virgínio Briote, A. Mesdes e Mário Dias].
Valorizo, sobretudo, a forma calma e serena como nos contam as suas experiências. Desta forma é que contribuem também para a calma e a serenidade de cada um de nós. Ajudam-nos a assumir a nossa história e as nossas vivências no sentido de que foi uma parte (marcante, claro) da nossa vida, que continua no nosso íntimo (não podia ser de outra maneira), mas que a estamos a ver com os olhos calmos da distância e ... da idade.
Não há fantasmas, foi simplesmente a vida que tivemos de ter, muito contra vontade, com certeza, mas que tivemos de enfrentar. Apesar das mortes e dos padecimentos creio que todos estamos a ver (e eu vejo isso por mim e pelos vários depoimentos) que não foi o IN que nos fez mal, a tal entidade que eu já vos disse que foi um tapa-olhos para não tentarmos ver, mas sim as contingências que nos obrigaram a lutar contra ele.
A não existência de rancores fundos para com aqueles que tivemos de enfrentar, apenas só o relato de situações que cada um viveu, a empatia solidária e sentimental por aquele povo da Guiné que deixamos transparecer no que dizemos, é sinal de que estamos bem connosco próprios, apesar daquilo que vimos e daquilo que passámos. É bom.
Os meus agradecimentos, por isso, a esta iniciativa do Luís e a todos aqueles que lhe têm dado corpo.
Um abraço amigo para todos do
A. Marques Lopes
(Ex-Alf Mil, da CART 1690, em Geba; e da CCAÇ 3, em Barro, Guiné, 1967/68; hoje, Coronel, DFA, na reforma).
Guiné 63/74 - P278: Projecto Guileje (5): contra o demónio étnico (Lui´s Graça)
1. Há tempos escrevi ao Carlos Scharwz, da AD - Acção para o Desenvolvimento, transmitindo-lhe algumas reticências e dúvidas (legítimas) dos nossos amigos e camaradas de tertúlia (Sousa de Castro, Humberto Reis, David Guimarães, entre outros), relativamente ao projecto Guileje. Eis as questões que eu lhe pus:
"Era bom dares mais detalhes sobre um dos subprojectos, a reconstrução do quartel... Alguns camaradas torceram o nariz: será viável (do ponto de vista técnico, ambiental e financeiro) reconstruir o aquartelamento ? tens contactos com a antiga companhia acçoreana que lá estava em Maio de 1973 ? que valor simbólico tem hoje Guileje para os guineenses ? não haverá outras prioridades ? Enfim, são perguntas legítimas"...
2. Responde-nos agora o Carlos Scharwz, a quem agradeço:
Luís,
Vou procurar responder às questões levantadas sobre a pertinência da reconstrução do quartel de Guiledje.
(i) Viabilidade técnica, financeira e ambiental:
Quando se fala em recuperar o quartel, estamos a referir-nos a utilizar as antigas instalações para actividades viradas para o futuro e não como simples depositários de memórias e recordações.
Por exemplo:
- as messes serão usadas como salas de aula do futuro CENAR (Centro de Aprendizagem Rural), onde os jovens adquirirão conhecimentos profissionais (electricidade, carpintaria, pedreiros, ferreiros, etc.) ou de artesanato (construção de camas, armários e mesas em bambú, tara e mampufa; recuperação e produção de máscars e esculturas nalús; etc.);
- a secretaria será a sede do Parque Transfronteiriço de Cantanhez;
- as casas da população será o local onde serão construídos os futuros bangalows para acolher as pessoas que visitem e turistas;
- a cantina será o museu; e assim sucessivamente.
É importante que se diga que não vamos contratar nenhuma empresa para a reconstrução do quartel. Ela será gradualmente feita utilizando o apoio comunitário e pagando a jovens carpinteiros e pedreiros locais. Os custos serão, por isso, muito baixos e evita-se ter infraestruturas luxuosas. Não se pense que se trata de retórica nossa, pois ao longo dos 14 anos a AD tem construído centros de saúde, escolas, centros culturais, casas de ambiente e cultura, etc., sempre com esta metodologia. Com resultados muito bons.
Ambientalmente a reconstrução preservará integralmente todas as árvores que existem e que dão um clima e tranquilidade muito agradáveis. A procura de um arquitecto paisagista é já o reflexo desta nossa opção.
(ii) Valor simbólico para os guineenses:
Para os mais velhos e os de meia idade, Guileje continua a ser um marco decisivo para a conquista da independeÊncia da Guiné-Bissau e o voltar da última página da luta. Foi o momento determinante que decidiu a guerra.
Poucos restam dos que participaram nesse acontecimento. É uma responsabilidade actual e urgente não os deixar morrer sem que nos transmitam o seu testemunho.
Para a concretização da iniciativa Guileje, fizemos apelo a várias pessoas dentro e fora da AD. A resposta deixou-nos absolutamente surpresos pelo entusiasmo e entrega.
(iii) Não haverá outras prioridades?
Claro que, se perguntarmos à população local, eles enumerarão as suas actuais prioridades: saúde, escola, água, meios de transporte.
Para a AD também estas são prioridades suas, não só claramente expressas nos seus estatutos, como na prática dos seus 14 anos e também no projecto que envolve a componente Guileje e que compreende o apoio ao Centro Materno-Infantil de Iemberém (análises clínicas, assistência às mulheres ante e pós-parto, campanhas de vacinação, etc.), a construção de escolas primárias (nos últimos 2 anos construímos 11 escolas, todas elas com latrinas e poços de água).
No entanto, para a AD, são tão importantes estas prioridades como a da sua sustentabilidade futura. Nenhuma escola ou centro de saúde funciona quando se instala uma lógica tribal, tanto a nível nacional como local. O demónio étnico que agora conquista terreno na Guiné-Bissau (e não só), leva a que se priorize o combate a esta lógica, sob pena das tais outras iniciativas prioritárias morrerem logo à partida.
Para a AD a recuperação da memória da luta de libertação, que é pertença de todos, independentemente das respectivas etnias, pode desempenhar um papel importante na coesão nacional e na procura de consensos nacionais.
Por outro lado, há que aliar o passado ao sentimento de progresso futuro, para que a identificação e coesão nacional não tenha um cunho passadista e saudosista, mas seja dinâmica e aglutinadora. Incrementar o ensino profissional onde ele nunca foi feito e onde os jovens estão entregues a si próprios e a repetir exclusivamente o percurso dos seus pais, ou então a emigrar para o estrangeiro ou centros urbanos, é uma iniciativa prioritária.
O ecoturismo vai permitir às associações locais de jovens e mulheres, beneficiarem financeiramente através de guias turísticos locais, venda de artesanato, esculturas, restauração e alojamento. O ambiente permitirá a defesa da biodiversidade, especialmente da fauna selvagem e da flora que é utilizada para medicamentos naturais.
Daí que a recuperação do quartel (que nunca será um quartel, mas um polo de desenvolvimento) se justifique plenamente.
Basta ver o entusiasmo que a população local está a emprestar às primeiras iniciativas já em curso (limpeza e demarcação da zona geográfica do quartel).
Sei que, quando se escreve, dificilmente se consegue explicar bem o que uma conversa ajudaria a esclarecer melhor.
Daí que insista na minha disponibilidade em encontrar-me, quando aí for em Fevereiro de 2006, com as pessoas interessadas nesta iniciativa para batermos um papo e tirarmos as dúvidas restantes.
abraços
Carlos
"Era bom dares mais detalhes sobre um dos subprojectos, a reconstrução do quartel... Alguns camaradas torceram o nariz: será viável (do ponto de vista técnico, ambiental e financeiro) reconstruir o aquartelamento ? tens contactos com a antiga companhia acçoreana que lá estava em Maio de 1973 ? que valor simbólico tem hoje Guileje para os guineenses ? não haverá outras prioridades ? Enfim, são perguntas legítimas"...
2. Responde-nos agora o Carlos Scharwz, a quem agradeço:
Luís,
Vou procurar responder às questões levantadas sobre a pertinência da reconstrução do quartel de Guiledje.
(i) Viabilidade técnica, financeira e ambiental:
Quando se fala em recuperar o quartel, estamos a referir-nos a utilizar as antigas instalações para actividades viradas para o futuro e não como simples depositários de memórias e recordações.
Por exemplo:
- as messes serão usadas como salas de aula do futuro CENAR (Centro de Aprendizagem Rural), onde os jovens adquirirão conhecimentos profissionais (electricidade, carpintaria, pedreiros, ferreiros, etc.) ou de artesanato (construção de camas, armários e mesas em bambú, tara e mampufa; recuperação e produção de máscars e esculturas nalús; etc.);
- a secretaria será a sede do Parque Transfronteiriço de Cantanhez;
- as casas da população será o local onde serão construídos os futuros bangalows para acolher as pessoas que visitem e turistas;
- a cantina será o museu; e assim sucessivamente.
É importante que se diga que não vamos contratar nenhuma empresa para a reconstrução do quartel. Ela será gradualmente feita utilizando o apoio comunitário e pagando a jovens carpinteiros e pedreiros locais. Os custos serão, por isso, muito baixos e evita-se ter infraestruturas luxuosas. Não se pense que se trata de retórica nossa, pois ao longo dos 14 anos a AD tem construído centros de saúde, escolas, centros culturais, casas de ambiente e cultura, etc., sempre com esta metodologia. Com resultados muito bons.
Ambientalmente a reconstrução preservará integralmente todas as árvores que existem e que dão um clima e tranquilidade muito agradáveis. A procura de um arquitecto paisagista é já o reflexo desta nossa opção.
(ii) Valor simbólico para os guineenses:
Para os mais velhos e os de meia idade, Guileje continua a ser um marco decisivo para a conquista da independeÊncia da Guiné-Bissau e o voltar da última página da luta. Foi o momento determinante que decidiu a guerra.
Poucos restam dos que participaram nesse acontecimento. É uma responsabilidade actual e urgente não os deixar morrer sem que nos transmitam o seu testemunho.
Para a concretização da iniciativa Guileje, fizemos apelo a várias pessoas dentro e fora da AD. A resposta deixou-nos absolutamente surpresos pelo entusiasmo e entrega.
(iii) Não haverá outras prioridades?
Claro que, se perguntarmos à população local, eles enumerarão as suas actuais prioridades: saúde, escola, água, meios de transporte.
Para a AD também estas são prioridades suas, não só claramente expressas nos seus estatutos, como na prática dos seus 14 anos e também no projecto que envolve a componente Guileje e que compreende o apoio ao Centro Materno-Infantil de Iemberém (análises clínicas, assistência às mulheres ante e pós-parto, campanhas de vacinação, etc.), a construção de escolas primárias (nos últimos 2 anos construímos 11 escolas, todas elas com latrinas e poços de água).
No entanto, para a AD, são tão importantes estas prioridades como a da sua sustentabilidade futura. Nenhuma escola ou centro de saúde funciona quando se instala uma lógica tribal, tanto a nível nacional como local. O demónio étnico que agora conquista terreno na Guiné-Bissau (e não só), leva a que se priorize o combate a esta lógica, sob pena das tais outras iniciativas prioritárias morrerem logo à partida.
Para a AD a recuperação da memória da luta de libertação, que é pertença de todos, independentemente das respectivas etnias, pode desempenhar um papel importante na coesão nacional e na procura de consensos nacionais.
Por outro lado, há que aliar o passado ao sentimento de progresso futuro, para que a identificação e coesão nacional não tenha um cunho passadista e saudosista, mas seja dinâmica e aglutinadora. Incrementar o ensino profissional onde ele nunca foi feito e onde os jovens estão entregues a si próprios e a repetir exclusivamente o percurso dos seus pais, ou então a emigrar para o estrangeiro ou centros urbanos, é uma iniciativa prioritária.
O ecoturismo vai permitir às associações locais de jovens e mulheres, beneficiarem financeiramente através de guias turísticos locais, venda de artesanato, esculturas, restauração e alojamento. O ambiente permitirá a defesa da biodiversidade, especialmente da fauna selvagem e da flora que é utilizada para medicamentos naturais.
Daí que a recuperação do quartel (que nunca será um quartel, mas um polo de desenvolvimento) se justifique plenamente.
Basta ver o entusiasmo que a população local está a emprestar às primeiras iniciativas já em curso (limpeza e demarcação da zona geográfica do quartel).
Sei que, quando se escreve, dificilmente se consegue explicar bem o que uma conversa ajudaria a esclarecer melhor.
Daí que insista na minha disponibilidade em encontrar-me, quando aí for em Fevereiro de 2006, com as pessoas interessadas nesta iniciativa para batermos um papo e tirarmos as dúvidas restantes.
abraços
Carlos
quinta-feira, 17 de novembro de 2005
Guiné 63/74 - P277: Tabanca Grande: Mário Dias, o nosso homem da Ilha do Como
Aqui estou eu em 1965 (pose à cinéfilo, como se dizia na altura). © Mário Dias (2005)
Texto do Mário Dias, o nosso novo tertuliano:
Caro Luis:
Obrigado pela tua receptividade e simpatia. Na verdade, o Briote já várias vezes me tinha incentivado a juntar à tertúlia mas eu, pobre de mim, por ser um autêntico nabo nas manobras dos computadores - limito-me a martelar no Word e pouco mais - não me quis aventurar a tanto.
Espero por isso que, ao fazê-lo, me sejam relevadas as nabices de ordem técnica que possa eventualmente cometer e conto com a ajuda de todos.
Então, lá vai:
1 - Em anexo seguem as fotos do ontem e do hoje.
2 - Eu resido em Alhos Vedros e tenho uma página na internet sobre Música Coral > Partituras que, embora não relacionada com os temas do foranada poderá ser visitada por quem desejar. Trata-se de uma página onde disponibilizo partituras de música coral, actividade há muito da minha especial predileção, e que agora preenche grande parte dos meus ócios de reformado.
3 - Quanto ao termo guinéus [respondendo a uma pergunta posta pelo Luís Graça], ele foi introduzido pelo General Spínola. Até essa altura, eram referidos como guineenses nos meios mais evoluídos (portugueses e africanos assimilados). Na generalidade da população que falava crioulo, o adjectivo que qualifica o natural da Guiné, não existia. Diziam francês, português, inglês, etc., mas quanto a eles diziam simplesmente fidjo de Guiné (filho da Guiné).
4 - A minha vivência na guerra também é longa e conto, a seu tempo, ir narrando alguns episódio de interesse. De momento, estou a colaborar com alguns esclarecimentos na elaboração do História dos Comandos no âmbito da Direcção de Documentação e História Militar que sobre o assunto vai publicar um livro.
5 - Sem qualquer intento de crítica destrutiva, irei colaborar no que se refere à interpretação de alguns termos do crioulo e que os nossos militares deturparam completamente ao longo dos tempos. Nada de grave uma vez que as palavras significam aquilo que quem as profere entenda ser o seu sentido.
Por exemplo: é comum os militares utilizarem tabanca como casa, mas não é. Tabanca significa um aglomerado de casas - povoação; aldeia. As casas típicas da Guiné chamam-se em crioulo palhota ou até mesmo casa. Tomam a designação de morança quando duas ou mais palhotas do mesmo agregado familiar estão agrupadas e delimitadas por uma cerca que vulgarmente é uma sebe de cajueiros,de purgueira ou paliçadas de entrançado de verga a que chamam quirintim.
Um grande abraço para todos
Mário Dias
© Mário Dias (2005)
Cá estou hoje. Instantâneo obtido em 24 de Setembro de 2005 durante a 1ª reunião de convívio (ao fim de 40 anos) dos Grupos de Comandos da Guiné (64/66).
Ao ver as diferenças, veio-me à memória Guerra Junqueiro no seu poema Regresso ao lar: "...olha o teu menino, como está mudado"...
Texto do Mário Dias, o nosso novo tertuliano:
Caro Luis:
Obrigado pela tua receptividade e simpatia. Na verdade, o Briote já várias vezes me tinha incentivado a juntar à tertúlia mas eu, pobre de mim, por ser um autêntico nabo nas manobras dos computadores - limito-me a martelar no Word e pouco mais - não me quis aventurar a tanto.
Espero por isso que, ao fazê-lo, me sejam relevadas as nabices de ordem técnica que possa eventualmente cometer e conto com a ajuda de todos.
Então, lá vai:
1 - Em anexo seguem as fotos do ontem e do hoje.
2 - Eu resido em Alhos Vedros e tenho uma página na internet sobre Música Coral > Partituras que, embora não relacionada com os temas do foranada poderá ser visitada por quem desejar. Trata-se de uma página onde disponibilizo partituras de música coral, actividade há muito da minha especial predileção, e que agora preenche grande parte dos meus ócios de reformado.
3 - Quanto ao termo guinéus [respondendo a uma pergunta posta pelo Luís Graça], ele foi introduzido pelo General Spínola. Até essa altura, eram referidos como guineenses nos meios mais evoluídos (portugueses e africanos assimilados). Na generalidade da população que falava crioulo, o adjectivo que qualifica o natural da Guiné, não existia. Diziam francês, português, inglês, etc., mas quanto a eles diziam simplesmente fidjo de Guiné (filho da Guiné).
4 - A minha vivência na guerra também é longa e conto, a seu tempo, ir narrando alguns episódio de interesse. De momento, estou a colaborar com alguns esclarecimentos na elaboração do História dos Comandos no âmbito da Direcção de Documentação e História Militar que sobre o assunto vai publicar um livro.
5 - Sem qualquer intento de crítica destrutiva, irei colaborar no que se refere à interpretação de alguns termos do crioulo e que os nossos militares deturparam completamente ao longo dos tempos. Nada de grave uma vez que as palavras significam aquilo que quem as profere entenda ser o seu sentido.
Por exemplo: é comum os militares utilizarem tabanca como casa, mas não é. Tabanca significa um aglomerado de casas - povoação; aldeia. As casas típicas da Guiné chamam-se em crioulo palhota ou até mesmo casa. Tomam a designação de morança quando duas ou mais palhotas do mesmo agregado familiar estão agrupadas e delimitadas por uma cerca que vulgarmente é uma sebe de cajueiros,de purgueira ou paliçadas de entrançado de verga a que chamam quirintim.
Um grande abraço para todos
Mário Dias
© Mário Dias (2005)
Cá estou hoje. Instantâneo obtido em 24 de Setembro de 2005 durante a 1ª reunião de convívio (ao fim de 40 anos) dos Grupos de Comandos da Guiné (64/66).
Ao ver as diferenças, veio-me à memória Guerra Junqueiro no seu poema Regresso ao lar: "...olha o teu menino, como está mudado"...
Guiné 63/74 - P276: Antologia (25): Depoimento sobre a batalha da Ilha do Como (Luís Graça)
Fonte: Extractos de Diário do Alentejo, de 23 de Abril de 2004. Com a devida vénia.
Crónica do soldado 328, por Alberto Franco
O alentejano Joaquim Ganhão foi um dos milhares de portugueses que lutaram em África, nos anos da Guerra Colonial. Nas dificuldades e sustos que viveu em terras da Guiné – participou na célebre Operação Tridente, em 1964 – certamente muitos outros ex-militares se reconhecem. Quando passam 30 anos sobre o 25 de Abril, é oportuno recordar a longa guerra, unanimemente considerada uma das principais causas da revolução.
Quando o Niassa zarpou de Lisboa, em 17 de Julho de 1963, não se pode dizer que os rapazes do Batalhão de Cavalaria 490 estivessem inquietos. Afinal, iam para Moçambique, onde a guerra que lavrava noutras colónias portuguesas não tinha ainda chegado. Mas a meio da viagem o programa sofreu alterações. O agravamento da situação militar na Guiné obriga ao reforço do contingente naquele território. O Niassa recebe ordem de rumar a Bissau, e aí desembarcar as tropas que transportava.
- Foi um balde de água fria para todos nós-, recorda Joaquim Moita Ganhão, 61 anos, nado e criado em Moura, um dos muitos alentejanos que integravam o Batalhão Quatro Noventa. A guerra na Guiné começara há escassos meses, mas o território gozava já de má reputação entre os militares portugueses. À ameaça que a guerrilha do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) representava, combinava-se com uma geografia inóspita e um clima duríssimo, quente e húmido, favorável ao paludismo e a outras doenças tropicais. Quem esperava passar dois anos em Moçambique, no sossego de Vila Pery, e se vê inesperadamente atirado para a Guiné, não podia ter outra reacção que não fosse o alarme. Mesmo que se tivesse 20 anos, muito sangue na guelra e se pertencesse a um batalhão cujo lema era Sempre em Frente.
Em casa de Joaquim Ganhão eram nove irmãos, que o curto salário do pai, caiador de profissão, não chegava para sustentar:
- Eu ficava em casa a cuidar dos meus irmãos mais novos, enquanto a minha mãe trabalhava a dias. Essa a razão porque só entrei para a escola com nove anos-. Aos 12, Joaquim perde o pai. Com o amparo reduzido, vê-se forçado a trabalhar antes do tempo. Aprende o ofício de pedreiro, que exerce até aos 20 anos, idade em que é mobilizado para a tropa.
O soldado 328 estaciona três meses em Beja e dali segue para Estremoz, onde o Batalhão 490 está a ser formado. No Quatro Noventa, os alentejanos estavam em maioria:
- Havia gente de Elvas, Estremoz, Messejana, Aljustrel, Salvada. Só os cozinheiros eram do Norte…- , assinala Joaquim Ganhão - A instrução em Estremoz foi dura. Preparam-nos para combater, segundo os modelos da época.
Vendo os conflitos que deflagravam nos territórios coloniais de outros países europeus, o exército português tinha-se preparado para enfrentar o fenómeno a que uns chamavam guerra subversiva e outros guerra de libertação. Oficiais portugueses estagiaram junto do exército francês na Argélia e especialistas estrangeiros ministraram em Portugal para acções de formação. Mas uma coisa era a guerra teórica, outra a guerrilha nos pântanos da Guiné, as bolanhas, nas matas de Angola e Moçambique. Pela sua parte, Joaquim Ganhão fez pela vida e frequentou em Estremoz o curso de cabos:
- Fui o segundo melhor classificado. Quando embarquei para África, em Julho de 1963, já era 1º cabo da minha Companhia, a 489.
Baptismo de fogo no Oio-Morés
Até àquela data, o pedreiro de Moura não tinha posto os pés num navio, e em matéria de cursos de água só conhecia o mansos rios Ardila e Guadiana. Mesmo assim não se deu mal na jornada a bordo do Niassa:
- Tive a sorte de não enjoar, ao contrário de muitos companheiros”-. Os seis dias de viagem passou-os a dormitar nas baleeiras do Niassa, a espantar as saudades com cartas para a família e em camaradagem com o seu amigo de infância Henrique Pinto, outro militar mourense em trânsito para a Guiné.
Chegados a Bissau em plena estação das chuvas, são alojados no quartel da Amura, um antigo entreposto de escravos. O clima doentio surpreende-os desde logo:
- Era diferente de tudo o que conhecíamos. Com a humidade, a roupa colava-se-nos ao corpo. Só estávamos bem debaixo do chuveiro. De vez em quando, caíam trovoadas que metiam medo -. Outro motivo de espanto é a pobreza do território. Com poucos ou nenhuns recursos naturais, sem núcleos urbanos desenvolvidos, a Guiné era a peça menos valiosa do império português, e como tal a mais desprezada por Lisboa. Ganhão sublinha “a miséria das populações, as filas de mulheres e crianças com latas, à espera que lhes dessem alguma comida”.
A guerra aberta na Guiné principiou em 23 de Janeiro de 1963, com o ataque ao quartel de Tite, embora desde 1961 se registassem actos de sabotagem levados a cabo pelo Paigc de Amílcar Cabral. Bem armada, apoiada por países fronteiriços como a Guiné-Conacri e o Senegal, a guerrilha alastra pelo território guineense como um regueiro de pólvora. A companhia do 1º cabo Joaquim Ganhão recebe o baptismo de fogo no Norte da colónia:
- Fomos render uma companhia que se encontrava em Mansabá. Aí sofremos uma emboscada nocturna, na zona do Oio-Morés, que por ser muito pantanosa e de acesso difícil era um bom refúgio para os guerrilheiros.
Joaquim Ganhão lembra-se que a noite estava escura e a mata era cerrada:
- Ia à frente da minha companhia, quando senti o encosto de uma arma. O guia deu o alarme, eu comecei a disparar no escuro e a correr pelo capim, como um doido. Quando as coisas acalmaram e a companhia se reorganizou, deparo com um guerrilheiro a apontar-me uma pistola-metralhadora. Tentou atirar, mas, felizmente para mim, a arma estava encravada -. O soldado 328 captura o homem, apreende-lhe a metralhadora e três carregadores de munições.
- O guerrilheiro chamava-se Albino Sampa. Mais tarde cheguei a ir visitá-lo à cadeia, em Bissau -. O melhor desta aventura acabou por ser o prémio de um mês de licença na Metrópole:
- Quando me deram a notícia, ia ficando maluco de alegria. O pior foi que a minha família, quando soube que eu estava em Lisboa, pensou que estava todo partido... Só descansaram quando a minha irmã me foi buscar a Estremoz e viram que estava bem de saúde.
Tridente da morte
Mas a emboscada no Oio-Morés foi uma brincadeira, comparada com o que veio a seguir. O Batalhão de Cavalaria 490, e com ele Joaquim Ganhão, foi um dos participantes na operação Tridente, uma das mais aparatosas ofensivas portuguesas na Guerra Colonial. Denominada Tridente porque envolvia a marinha, o exército e a força aérea, a operação visava ocupar as ilhas do Como, Caiar e Catunco, no Sul da Guiné, onde os combatentes do PAIGC dispunham de importantes bases. Ali se movimentava o astuto comandante Nino Vieira, formado nas técnicas da guerrilha pela Academia Militar de Pequim, que teria no Como cerca de 300 homens, incluindo militares da Guiné-Conacri. Um dos objectivos da missão consistia em conquistar o apoio da população das ilhas, que os guerrilheiros controlavam:
- Em todas as tabancas (aldeias tradicionais) do Como, se viam retratos de Amílcar Cabral-, observa Joaquim Ganhão.
A operação Tridente iniciou-se em 15 de Janeiro de 1964. O 1º cabo Ganhão só soube o que o esperava quando se viu a bordo de uma lancha LDM, dos fuzileiros. Através das bolanhas, ladeadas por uma vegetação densa e asfixiante, o tarrafo, a Companhia 489, comandada pelo capitão Pato Anselmo, avançou até à ilha de Catunco. Ganhão permaneceu ali mais de dois meses, “entrincheirado num buraco, juntamente com dois companheiros, agarrados às G3, com as balas do inimigo a passarem-nos rente”. Quem disparava?
- Nenhum de nós sabia. Os tiros vinham da mata, onde os guerrilheiros estavam bem escondidos -. Por isso, sair do buraco só em último caso:
- Tínhamos o exemplo de um companheiro que se levantou para beber uma pinga de água e foi atingido por um tiro no queixo.
Quando se iniciou a segunda fase da operação, foi necessário deixar os abrigos e patrulhar as ilhas:
- Saíamos aos ziguezagues, em grupos de três. Depois deitávamo-nos ao chão e saíam outros três. E isto sempre aos tiros. Foi numa destas acções que Joaquim Ganhão perdeu o seu amigo Henrique Pinto, o primeiro militar de Moura a tombar na guerra:
- O Henrique, que pertencia à Companhia 487, seguia numa patrulha, formada em leque. Ele, que estava numa das pontas, avançou demais e foi capturado, às três da tarde do dia 24 de Janeiro -. Ganhão e outros tinham ido buscar mantimentos à base logística da operação, instalada numa praia. Aí viu chegar um helicóptero com o cadáver de Henrique, resgatado pelos fuzileiros. O choque foi terrível. Quarenta anos passados, ainda hoje a voz de Ganhão se embarga quando fala do caso:
- Podia ter sido eu. Tive sorte, não calhou.
Os aviões F-86 e T-6 flagelavam as matas do Como com napalm, as granadas explodiam a toda a hora, mas os resultados práticos da operação tardavam em ver-se. A única evidência era o sofrimento dos militares portugueses:
- Bebia-se qualquer água e a alimentação resumia-se a rações de combate-, conta o 1º cabo Ganhão - Comemos carne fresca uma única vez, quando os fuzileiros abateram algumas vacas. Não admira que durante a operação Tridente 193 militares tenham sido retirados do teatro de guerra, por motivo de doença.
Setenta e um dias depois, a missão é considerada finda. As estatísticas apontavam 76 guerrilheiros mortos, 15 feridos e nove detidos. Do lado português contaram-se nove mortes e ferimentos em 47 soldados. Foram disparadas 124 mil balas, 1200 granadas de artilharia e 550 granadas de morteiro. Os militares aliviaram a tensão consumindo 15 500 garrafas de cerveja e fumando 10 100 maços de tabaco. Números que não maquilham o insucesso da operação. A última palavra pertenceu à guerrilha, que continuou a servir-se do Como, só abandonando a região quando os seus interesses se transferiram para outros locais.
Cruz de Guerra no 10 de Junho
Depois de intervir na Tridente, a Companhia 489 é destacada para o Norte:
- Fomos para junto da fronteira com o Senegal, com o objectivo de dificultar as entradas e saídas dos guerrilheiros e das forças que os apoiavam.
Joaquim Ganhão andou por Contima, Farim, Bula, Bafatá, Mansoa. Porém, antes de pensar em fiscalizar o que quer que fosse, era preciso construir as bases necessárias ao estacionamento de tropas. Na Guiné, como na generalidade das vastas colónias portuguesas, faltavam aquartelamentos, vias de comunicação e demais infra-estruturas. Por outro lado, no caso específico do Norte da Guiné, tornava-se necessário atrair e organizar a população que tinha cruzado a fronteira do Senegal, fugindo à guerra. Os soldados da 489 ajudavam à reconstrução de tabancas, construíam abrigos, “à mão, sem a ajuda de quaisquer máquinas”, de valas em redor dos quartéis e outras infra-estruturas defensivas, muitas vezes debaixo de fogo. Quando empunhavam a G3, vigiavam a fronteira e montavam as suas emboscadas. A tropa “saía por volta da meia-noite. Então víamo-los passar, a pé, outras vezes de bicicleta”. Nessas alturas, “a fuzilaria era tanta que nem os raios das bicicletas se aproveitavam.”
As normas da altura determinavam que o tempo de serviço militar era de 24 meses. Todavia, muitos militares excediam, contra vontade, este período. Às vezes morriam em África, quando, segundo a lei, já deviam estar em Portugal. Joaquim Ganhão lembra um episódio ocorrido em Bula, com uma companhia de caçadores que já tinha atingido os 27 meses de comissão:
- Por sermos mais novos, a nossa companhia seguia atrás deles, numa deslocação pelo mato. De repente, caem numa emboscada. Recordo-me que os guerrilheiros tinham cortiços de abelhas em cima de árvores; cortavam as cordas e os cortiços caíam em cima dos soldados. Com este truque e com o tiroteio, morreram dois ou três caçadores. Que já não deviam estar na Guiné, porque já tinham cumprido o seu tempo.
Ganhão teve mais sorte. Regressou a Moura em Setembro de 1965, são e salvo. Um ano depois, já casado, recebeu em Évora, nas cerimónias do 10 de Junho, a Cruz de Guerra de terceira classe, pelo seu desempenho na Guiné. Quarenta anos depois, Joaquim Ganhão, mestre de construção civil, pai de duas filhas, olha para trás com serenidade:
- É bom que se diga que fui para a Guiné obrigado. Tínhamos que livrar o corpo, para não morrer. Foi o que eu fiz. Estimo muito a Cruz de Guerra, mas lamento que além da medalha ninguém me tenha compensado pelos dois anos de vida que perdi.
A Guerra Colonial e o 25 de Abril
O desgaste que a guerra provocou nas forças armadas portuguesas e a ausência de soluções pacíficas para a questão colonial, contam-se entre as principais motivações do 25 de Abril. Treze anos de confrontos exigiram o destacamento de 70 mil homens para Angola, 42 mil para a Guiné e 57 mil para Moçambique. Segundo a Resenha Histórico-Militar das Campanhas de de África (1961-1974), registou-se um total de 8 290 mortos, nas três frentes de batalha. A este número há a juntar 112 000 feridos, dos quais 30 mil terão sofrido deficiências para toda a vida, e perto de 100 mil vítimas do stresse de guerra.
Este factor conjugou-se com uma série de transformações na instituição militar, ditadas pelo esforço de guerra. A falta de capitães para o comando de companhias levou o Governo a recorrer a oficiais milicianos, para postos normalmente ocupados por militares de carreira. Facilitou-lhes o ingresso na Academia Militar, reduziu a duração dos cursos e criou um “quadro especial de oficiais”. Por um lado, esta situação refrescou as fileiras das forças armadas, mas gerou tensões e conflitos entre milicianos e oficiais oriundos de cadetes da Academia Militar.
A gota de água acabou por ser o famoso Decreto 353/73, de 13 de Julho, que introduziu diversas alterações ao nível da antiguidade na carreira das armas. Os protestos levam o Governo a recuar, publicando um outro diploma que protege os interesses dos oficiais superiores e põe em causa os dos capitães. O avolumar da contestação, a que se junta, naturalmente, a oposição ideológica entre militares e governantes, e as aspirações de liberdade dos primeiros, está na génese do Movimento dos Capitães, que desencadeou o 25 de Abril.
Manhas de soldado
Nem sempre o soldado 328 estava disposto a dar o corpo ao manifesto. Um enfermeiro amigo livrou-o de uma ou outra incursão, atestando que Joaquim Ganhão não se encontrava a cem por cento. “Eram manhas típicas da guerra”, recorda. O truque nem sempre resultava:
- Aconteceu quando tive que substituir um furriel, que tinha cegado com o rebentamento de uma granada. Uma noite em que me chamaram para uma operação, pedi ao Fernando, o enfermeiro, que me desse uma ou duas injecções. Ele assim fez. Passei a estar doente, incapacitado para qualquer missão. Mas o alferes que devia chefiar a missão não engoliu o truque. Chega ao pé de mim e diz-me: ‘Tu está tão doente como eu! Levanta-te da cama, que o pessoal está todo à tua espera’. E lá fui, mesmo com duas injecções.
(...)
Crónica do soldado 328, por Alberto Franco
O alentejano Joaquim Ganhão foi um dos milhares de portugueses que lutaram em África, nos anos da Guerra Colonial. Nas dificuldades e sustos que viveu em terras da Guiné – participou na célebre Operação Tridente, em 1964 – certamente muitos outros ex-militares se reconhecem. Quando passam 30 anos sobre o 25 de Abril, é oportuno recordar a longa guerra, unanimemente considerada uma das principais causas da revolução.
Quando o Niassa zarpou de Lisboa, em 17 de Julho de 1963, não se pode dizer que os rapazes do Batalhão de Cavalaria 490 estivessem inquietos. Afinal, iam para Moçambique, onde a guerra que lavrava noutras colónias portuguesas não tinha ainda chegado. Mas a meio da viagem o programa sofreu alterações. O agravamento da situação militar na Guiné obriga ao reforço do contingente naquele território. O Niassa recebe ordem de rumar a Bissau, e aí desembarcar as tropas que transportava.
- Foi um balde de água fria para todos nós-, recorda Joaquim Moita Ganhão, 61 anos, nado e criado em Moura, um dos muitos alentejanos que integravam o Batalhão Quatro Noventa. A guerra na Guiné começara há escassos meses, mas o território gozava já de má reputação entre os militares portugueses. À ameaça que a guerrilha do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) representava, combinava-se com uma geografia inóspita e um clima duríssimo, quente e húmido, favorável ao paludismo e a outras doenças tropicais. Quem esperava passar dois anos em Moçambique, no sossego de Vila Pery, e se vê inesperadamente atirado para a Guiné, não podia ter outra reacção que não fosse o alarme. Mesmo que se tivesse 20 anos, muito sangue na guelra e se pertencesse a um batalhão cujo lema era Sempre em Frente.
Em casa de Joaquim Ganhão eram nove irmãos, que o curto salário do pai, caiador de profissão, não chegava para sustentar:
- Eu ficava em casa a cuidar dos meus irmãos mais novos, enquanto a minha mãe trabalhava a dias. Essa a razão porque só entrei para a escola com nove anos-. Aos 12, Joaquim perde o pai. Com o amparo reduzido, vê-se forçado a trabalhar antes do tempo. Aprende o ofício de pedreiro, que exerce até aos 20 anos, idade em que é mobilizado para a tropa.
O soldado 328 estaciona três meses em Beja e dali segue para Estremoz, onde o Batalhão 490 está a ser formado. No Quatro Noventa, os alentejanos estavam em maioria:
- Havia gente de Elvas, Estremoz, Messejana, Aljustrel, Salvada. Só os cozinheiros eram do Norte…- , assinala Joaquim Ganhão - A instrução em Estremoz foi dura. Preparam-nos para combater, segundo os modelos da época.
Vendo os conflitos que deflagravam nos territórios coloniais de outros países europeus, o exército português tinha-se preparado para enfrentar o fenómeno a que uns chamavam guerra subversiva e outros guerra de libertação. Oficiais portugueses estagiaram junto do exército francês na Argélia e especialistas estrangeiros ministraram em Portugal para acções de formação. Mas uma coisa era a guerra teórica, outra a guerrilha nos pântanos da Guiné, as bolanhas, nas matas de Angola e Moçambique. Pela sua parte, Joaquim Ganhão fez pela vida e frequentou em Estremoz o curso de cabos:
- Fui o segundo melhor classificado. Quando embarquei para África, em Julho de 1963, já era 1º cabo da minha Companhia, a 489.
Baptismo de fogo no Oio-Morés
Até àquela data, o pedreiro de Moura não tinha posto os pés num navio, e em matéria de cursos de água só conhecia o mansos rios Ardila e Guadiana. Mesmo assim não se deu mal na jornada a bordo do Niassa:
- Tive a sorte de não enjoar, ao contrário de muitos companheiros”-. Os seis dias de viagem passou-os a dormitar nas baleeiras do Niassa, a espantar as saudades com cartas para a família e em camaradagem com o seu amigo de infância Henrique Pinto, outro militar mourense em trânsito para a Guiné.
Chegados a Bissau em plena estação das chuvas, são alojados no quartel da Amura, um antigo entreposto de escravos. O clima doentio surpreende-os desde logo:
- Era diferente de tudo o que conhecíamos. Com a humidade, a roupa colava-se-nos ao corpo. Só estávamos bem debaixo do chuveiro. De vez em quando, caíam trovoadas que metiam medo -. Outro motivo de espanto é a pobreza do território. Com poucos ou nenhuns recursos naturais, sem núcleos urbanos desenvolvidos, a Guiné era a peça menos valiosa do império português, e como tal a mais desprezada por Lisboa. Ganhão sublinha “a miséria das populações, as filas de mulheres e crianças com latas, à espera que lhes dessem alguma comida”.
A guerra aberta na Guiné principiou em 23 de Janeiro de 1963, com o ataque ao quartel de Tite, embora desde 1961 se registassem actos de sabotagem levados a cabo pelo Paigc de Amílcar Cabral. Bem armada, apoiada por países fronteiriços como a Guiné-Conacri e o Senegal, a guerrilha alastra pelo território guineense como um regueiro de pólvora. A companhia do 1º cabo Joaquim Ganhão recebe o baptismo de fogo no Norte da colónia:
- Fomos render uma companhia que se encontrava em Mansabá. Aí sofremos uma emboscada nocturna, na zona do Oio-Morés, que por ser muito pantanosa e de acesso difícil era um bom refúgio para os guerrilheiros.
Joaquim Ganhão lembra-se que a noite estava escura e a mata era cerrada:
- Ia à frente da minha companhia, quando senti o encosto de uma arma. O guia deu o alarme, eu comecei a disparar no escuro e a correr pelo capim, como um doido. Quando as coisas acalmaram e a companhia se reorganizou, deparo com um guerrilheiro a apontar-me uma pistola-metralhadora. Tentou atirar, mas, felizmente para mim, a arma estava encravada -. O soldado 328 captura o homem, apreende-lhe a metralhadora e três carregadores de munições.
- O guerrilheiro chamava-se Albino Sampa. Mais tarde cheguei a ir visitá-lo à cadeia, em Bissau -. O melhor desta aventura acabou por ser o prémio de um mês de licença na Metrópole:
- Quando me deram a notícia, ia ficando maluco de alegria. O pior foi que a minha família, quando soube que eu estava em Lisboa, pensou que estava todo partido... Só descansaram quando a minha irmã me foi buscar a Estremoz e viram que estava bem de saúde.
Tridente da morte
Mas a emboscada no Oio-Morés foi uma brincadeira, comparada com o que veio a seguir. O Batalhão de Cavalaria 490, e com ele Joaquim Ganhão, foi um dos participantes na operação Tridente, uma das mais aparatosas ofensivas portuguesas na Guerra Colonial. Denominada Tridente porque envolvia a marinha, o exército e a força aérea, a operação visava ocupar as ilhas do Como, Caiar e Catunco, no Sul da Guiné, onde os combatentes do PAIGC dispunham de importantes bases. Ali se movimentava o astuto comandante Nino Vieira, formado nas técnicas da guerrilha pela Academia Militar de Pequim, que teria no Como cerca de 300 homens, incluindo militares da Guiné-Conacri. Um dos objectivos da missão consistia em conquistar o apoio da população das ilhas, que os guerrilheiros controlavam:
- Em todas as tabancas (aldeias tradicionais) do Como, se viam retratos de Amílcar Cabral-, observa Joaquim Ganhão.
A operação Tridente iniciou-se em 15 de Janeiro de 1964. O 1º cabo Ganhão só soube o que o esperava quando se viu a bordo de uma lancha LDM, dos fuzileiros. Através das bolanhas, ladeadas por uma vegetação densa e asfixiante, o tarrafo, a Companhia 489, comandada pelo capitão Pato Anselmo, avançou até à ilha de Catunco. Ganhão permaneceu ali mais de dois meses, “entrincheirado num buraco, juntamente com dois companheiros, agarrados às G3, com as balas do inimigo a passarem-nos rente”. Quem disparava?
- Nenhum de nós sabia. Os tiros vinham da mata, onde os guerrilheiros estavam bem escondidos -. Por isso, sair do buraco só em último caso:
- Tínhamos o exemplo de um companheiro que se levantou para beber uma pinga de água e foi atingido por um tiro no queixo.
Quando se iniciou a segunda fase da operação, foi necessário deixar os abrigos e patrulhar as ilhas:
- Saíamos aos ziguezagues, em grupos de três. Depois deitávamo-nos ao chão e saíam outros três. E isto sempre aos tiros. Foi numa destas acções que Joaquim Ganhão perdeu o seu amigo Henrique Pinto, o primeiro militar de Moura a tombar na guerra:
- O Henrique, que pertencia à Companhia 487, seguia numa patrulha, formada em leque. Ele, que estava numa das pontas, avançou demais e foi capturado, às três da tarde do dia 24 de Janeiro -. Ganhão e outros tinham ido buscar mantimentos à base logística da operação, instalada numa praia. Aí viu chegar um helicóptero com o cadáver de Henrique, resgatado pelos fuzileiros. O choque foi terrível. Quarenta anos passados, ainda hoje a voz de Ganhão se embarga quando fala do caso:
- Podia ter sido eu. Tive sorte, não calhou.
Os aviões F-86 e T-6 flagelavam as matas do Como com napalm, as granadas explodiam a toda a hora, mas os resultados práticos da operação tardavam em ver-se. A única evidência era o sofrimento dos militares portugueses:
- Bebia-se qualquer água e a alimentação resumia-se a rações de combate-, conta o 1º cabo Ganhão - Comemos carne fresca uma única vez, quando os fuzileiros abateram algumas vacas. Não admira que durante a operação Tridente 193 militares tenham sido retirados do teatro de guerra, por motivo de doença.
Setenta e um dias depois, a missão é considerada finda. As estatísticas apontavam 76 guerrilheiros mortos, 15 feridos e nove detidos. Do lado português contaram-se nove mortes e ferimentos em 47 soldados. Foram disparadas 124 mil balas, 1200 granadas de artilharia e 550 granadas de morteiro. Os militares aliviaram a tensão consumindo 15 500 garrafas de cerveja e fumando 10 100 maços de tabaco. Números que não maquilham o insucesso da operação. A última palavra pertenceu à guerrilha, que continuou a servir-se do Como, só abandonando a região quando os seus interesses se transferiram para outros locais.
Cruz de Guerra no 10 de Junho
Depois de intervir na Tridente, a Companhia 489 é destacada para o Norte:
- Fomos para junto da fronteira com o Senegal, com o objectivo de dificultar as entradas e saídas dos guerrilheiros e das forças que os apoiavam.
Joaquim Ganhão andou por Contima, Farim, Bula, Bafatá, Mansoa. Porém, antes de pensar em fiscalizar o que quer que fosse, era preciso construir as bases necessárias ao estacionamento de tropas. Na Guiné, como na generalidade das vastas colónias portuguesas, faltavam aquartelamentos, vias de comunicação e demais infra-estruturas. Por outro lado, no caso específico do Norte da Guiné, tornava-se necessário atrair e organizar a população que tinha cruzado a fronteira do Senegal, fugindo à guerra. Os soldados da 489 ajudavam à reconstrução de tabancas, construíam abrigos, “à mão, sem a ajuda de quaisquer máquinas”, de valas em redor dos quartéis e outras infra-estruturas defensivas, muitas vezes debaixo de fogo. Quando empunhavam a G3, vigiavam a fronteira e montavam as suas emboscadas. A tropa “saía por volta da meia-noite. Então víamo-los passar, a pé, outras vezes de bicicleta”. Nessas alturas, “a fuzilaria era tanta que nem os raios das bicicletas se aproveitavam.”
As normas da altura determinavam que o tempo de serviço militar era de 24 meses. Todavia, muitos militares excediam, contra vontade, este período. Às vezes morriam em África, quando, segundo a lei, já deviam estar em Portugal. Joaquim Ganhão lembra um episódio ocorrido em Bula, com uma companhia de caçadores que já tinha atingido os 27 meses de comissão:
- Por sermos mais novos, a nossa companhia seguia atrás deles, numa deslocação pelo mato. De repente, caem numa emboscada. Recordo-me que os guerrilheiros tinham cortiços de abelhas em cima de árvores; cortavam as cordas e os cortiços caíam em cima dos soldados. Com este truque e com o tiroteio, morreram dois ou três caçadores. Que já não deviam estar na Guiné, porque já tinham cumprido o seu tempo.
Ganhão teve mais sorte. Regressou a Moura em Setembro de 1965, são e salvo. Um ano depois, já casado, recebeu em Évora, nas cerimónias do 10 de Junho, a Cruz de Guerra de terceira classe, pelo seu desempenho na Guiné. Quarenta anos depois, Joaquim Ganhão, mestre de construção civil, pai de duas filhas, olha para trás com serenidade:
- É bom que se diga que fui para a Guiné obrigado. Tínhamos que livrar o corpo, para não morrer. Foi o que eu fiz. Estimo muito a Cruz de Guerra, mas lamento que além da medalha ninguém me tenha compensado pelos dois anos de vida que perdi.
A Guerra Colonial e o 25 de Abril
O desgaste que a guerra provocou nas forças armadas portuguesas e a ausência de soluções pacíficas para a questão colonial, contam-se entre as principais motivações do 25 de Abril. Treze anos de confrontos exigiram o destacamento de 70 mil homens para Angola, 42 mil para a Guiné e 57 mil para Moçambique. Segundo a Resenha Histórico-Militar das Campanhas de de África (1961-1974), registou-se um total de 8 290 mortos, nas três frentes de batalha. A este número há a juntar 112 000 feridos, dos quais 30 mil terão sofrido deficiências para toda a vida, e perto de 100 mil vítimas do stresse de guerra.
Este factor conjugou-se com uma série de transformações na instituição militar, ditadas pelo esforço de guerra. A falta de capitães para o comando de companhias levou o Governo a recorrer a oficiais milicianos, para postos normalmente ocupados por militares de carreira. Facilitou-lhes o ingresso na Academia Militar, reduziu a duração dos cursos e criou um “quadro especial de oficiais”. Por um lado, esta situação refrescou as fileiras das forças armadas, mas gerou tensões e conflitos entre milicianos e oficiais oriundos de cadetes da Academia Militar.
A gota de água acabou por ser o famoso Decreto 353/73, de 13 de Julho, que introduziu diversas alterações ao nível da antiguidade na carreira das armas. Os protestos levam o Governo a recuar, publicando um outro diploma que protege os interesses dos oficiais superiores e põe em causa os dos capitães. O avolumar da contestação, a que se junta, naturalmente, a oposição ideológica entre militares e governantes, e as aspirações de liberdade dos primeiros, está na génese do Movimento dos Capitães, que desencadeou o 25 de Abril.
Manhas de soldado
Nem sempre o soldado 328 estava disposto a dar o corpo ao manifesto. Um enfermeiro amigo livrou-o de uma ou outra incursão, atestando que Joaquim Ganhão não se encontrava a cem por cento. “Eram manhas típicas da guerra”, recorda. O truque nem sempre resultava:
- Aconteceu quando tive que substituir um furriel, que tinha cegado com o rebentamento de uma granada. Uma noite em que me chamaram para uma operação, pedi ao Fernando, o enfermeiro, que me desse uma ou duas injecções. Ele assim fez. Passei a estar doente, incapacitado para qualquer missão. Mas o alferes que devia chefiar a missão não engoliu o truque. Chega ao pé de mim e diz-me: ‘Tu está tão doente como eu! Levanta-te da cama, que o pessoal está todo à tua espera’. E lá fui, mesmo com duas injecções.
(...)
Guiné 63/74 - P275: A verdade sobre a Op Tridente (Ilha do Como, 1964) (Carlos Fortunato / Mário Dias)
1. Texto do Carlos Fortunato [ex-furriel miliciano, de transmissões, da CCAÇ 13, 1969/71, aquartelado em Bissorã, entre outros sítios]:
Mário:
Bem vindo à nossa tertúlia, penso que poderás dar um contributo importante.
Tendo tu participado na Operação Tridente [Ilha do Como, Janeiro-Março de 1964], gostaria de te colocar uma questão: o que se passou efectivamente com esta operação, referida como de reocupação da ilha do Como?
A operação não é do meu tempo, pois estive na Guiné de 1969 a 1971 [na CCAÇ 13], e na maior parte do tempo na região do Oio, mas era uma referência para o PAIGC. Para alguns como o Héliio Felgas foi um passeio, mas para o PAIGC foi a morte de centenas dos nossos soldados, e a derrota, o que nos obrigou a retirar mais tarde.
A ilha do Como continua hoje em dia a ser uma referência, pois assisti em Bissau, em 1986, a uma peça de teatro,em que os alunos de uma escola primária cantavam a derrota dos tugas na ilha do Como, ao mesmo tempo que simulavam um ataque. A ilha sempre foi um simbolo para o PAIGC, sendo referida no primeiro livro de instrução primária do PAIGC.
Um abraço
Carlos Fortunato
(CCAÇ 13, 1969/71)
Webmaster da página sobre Os Leões Negros
2. Resposta do Mário [Dias]:
Caro Fortunato:
Gostosamente respondo às tuas dúvidas sobre a Op Tridente.
Antecedentes:
A ilha do Como, situada a sudoeste da Guiné, junto a Catió, era, de facto, pertença do PAIGC. Aí não existia qualquer tipo de ocupação administrativa.
Além das tabancas de Curcô, Cauane, Cachil e algumas palhotas dispersas, a única coisa que lá havia eram instalações do comerciante e produtor de arroz Manuel Pinho Brandão que explorava as bolanhas e praticamente era o dono e senhor da ilha.
Devido à sua localização, próxima da Guiné-Conacri, e por não existir lá qualquer autoridade que o impedisse, o PAIGC, inteligentemente, ocupou a ilha para dela fazer o seu santuário e território conquistado.
Pelo acima exposto, o Comandante-Chefe só tinha uma solução: a conquista da ilha.
Operação Tridente:
Resumidamente, esta operação não foi um passeio, como diz o Hélio Felgas (que nem sequer lá esteve) nem a derrota para os portugueses que refere o PAIGC. É natural que o PAIGC se refira a esta operação como um êxito para si, dentro da propaganda que tão habilmente soube utilizar, mas não foi. Não mataram centenas de soldados, como dizem. Eles, sim. Tiveram muitas baixas e nós conseguimos, de facto, conquistar a ilha.
Para que tudo fique melhor esclarecido, vou preparar um trabalho com algumas fotos e mais pormenores sobre este assunto e que, a seu tempo, enviarei para o blogue.
Está prometido.
Um abraço.
Mário Dias
(ex-comando, 1963/66)
Mário:
Bem vindo à nossa tertúlia, penso que poderás dar um contributo importante.
Tendo tu participado na Operação Tridente [Ilha do Como, Janeiro-Março de 1964], gostaria de te colocar uma questão: o que se passou efectivamente com esta operação, referida como de reocupação da ilha do Como?
A operação não é do meu tempo, pois estive na Guiné de 1969 a 1971 [na CCAÇ 13], e na maior parte do tempo na região do Oio, mas era uma referência para o PAIGC. Para alguns como o Héliio Felgas foi um passeio, mas para o PAIGC foi a morte de centenas dos nossos soldados, e a derrota, o que nos obrigou a retirar mais tarde.
A ilha do Como continua hoje em dia a ser uma referência, pois assisti em Bissau, em 1986, a uma peça de teatro,em que os alunos de uma escola primária cantavam a derrota dos tugas na ilha do Como, ao mesmo tempo que simulavam um ataque. A ilha sempre foi um simbolo para o PAIGC, sendo referida no primeiro livro de instrução primária do PAIGC.
Um abraço
Carlos Fortunato
(CCAÇ 13, 1969/71)
Webmaster da página sobre Os Leões Negros
2. Resposta do Mário [Dias]:
Caro Fortunato:
Gostosamente respondo às tuas dúvidas sobre a Op Tridente.
Antecedentes:
A ilha do Como, situada a sudoeste da Guiné, junto a Catió, era, de facto, pertença do PAIGC. Aí não existia qualquer tipo de ocupação administrativa.
Além das tabancas de Curcô, Cauane, Cachil e algumas palhotas dispersas, a única coisa que lá havia eram instalações do comerciante e produtor de arroz Manuel Pinho Brandão que explorava as bolanhas e praticamente era o dono e senhor da ilha.
Devido à sua localização, próxima da Guiné-Conacri, e por não existir lá qualquer autoridade que o impedisse, o PAIGC, inteligentemente, ocupou a ilha para dela fazer o seu santuário e território conquistado.
Pelo acima exposto, o Comandante-Chefe só tinha uma solução: a conquista da ilha.
Operação Tridente:
Resumidamente, esta operação não foi um passeio, como diz o Hélio Felgas (que nem sequer lá esteve) nem a derrota para os portugueses que refere o PAIGC. É natural que o PAIGC se refira a esta operação como um êxito para si, dentro da propaganda que tão habilmente soube utilizar, mas não foi. Não mataram centenas de soldados, como dizem. Eles, sim. Tiveram muitas baixas e nós conseguimos, de facto, conquistar a ilha.
Para que tudo fique melhor esclarecido, vou preparar um trabalho com algumas fotos e mais pormenores sobre este assunto e que, a seu tempo, enviarei para o blogue.
Está prometido.
Um abraço.
Mário Dias
(ex-comando, 1963/66)
Guiné 63/74 - P274: Tabanca Grande: Apresenta-se o 'comando' Mário Dias, "pai da velhice"
Estátua do Teixeira Pinto, em Bissau e não na antiga Teixeira Pinto (hoje Canchungo), como por lapso apareceu indicado no blogue. Postal da época.
Digitalizição do João Varanda (CCAÇ 2636, 1969/71).
1. Texto de Mário Dias:
Caro Luis,
Antes de mais, os meus cumprimentos e admiração pelo blogueforanada de que sou habitual frequentador e poderei mesmo dizer colaborador por intermédio do Briote que tem enviado alguns dos esclarecimentos que lhe tenho prestado.
Eu sou o Mário Dias, fui para a Guiné com 15 anos (em 1952). De lá saí em 1966. Conheço, como seria de esperar - dada a minha longa permanência naquelas terras - a quase totalidade da Guiné. Lá cumpri o serviço militar obrigatório (recruta e CSM - Curso de Sargentos Milicianos) e, estando já na disponibilidade, regressei à efectividade de serviço (em 1963) como furriel miliciano apenas com a intenção de colaborar e ajudar na guerra que tinha já começado.
Fiz parte de um grupo de oficiais e sargentos que se deslocaram a Angola para tirar o curso de comandos e, uma vez regressados, formámos um grupo que actuou na célebre Operação Tridente, na ilha do Como (Janeiro a Março de 1964). Posteriormente, demos instrução e fizemos parte dos 3 primeiros grupos de comandos da Guiné.
Mas estou a desviar-me do motivo principal desta mensagem.
Deparo, por vezes, com algumas naturais incorrecções nas descrição de assuntos relativos à Guiné como palavras do criôlo mal traduzidas e engano na identificação de alguns lugares como é o caso presente.
Ao visitar o blogue hoje, deparei com a fotografia de uma estátua de Teixeira Pinto como sendo na localidade com o mesmo nome, actual Canchungo. Ora, na verdade o postal reproduzido é em Bissau. A referida estátua ficava ao cimo da Avenida que, saindo da Praça do Império, (cujo obelisco dedicado "Ao Esforço da Raça" se pode ver ao fundo na linha do horizonte), ia até ao Alto do Crim e depois seguia como estrada para o aeroporto etc. Essa estátua estava bem próxima do depósito de água aí existente e, dada sua "pose", de mão direita estendida, nós dizíamos por brincadeira que estava a "falar mantenha" (cumprimentar) a quem passava.
Desculpe esta intromissão. Se a fiz é apenas com o desejo que quanto aqui for dito corresponda à realidade.
Um abraço do
Mário Dias .
2. Resposta do L.G.:
Mário: Muito obrigado pelos teus comentários, pertinentíssimos. Posso tratar-te por tu, já que fomos camaradas ? ! Aliás, esta é uma das regras de ouro da nossa tertúlia. Fico encantado com esta nova aquisição para a nossa tertúlia… É claro que, para além da tua vivência pessoal e do teu profundo conhecimento da Guiné e dos guinéus (eles não levam a mal, se eu usar este termo arcaico ?), tens também a tua quota-parte de operacional, de combatente…
Portanto, meu amigo, não precisas de pedir licença a ninguém para entrares: tu é que estás em casa… Em boa verdade, a maior parte de nós, mal conhece a Guiné… Quem esteve no Cacheu, passou por Bissau, atravessou o Rio Mansoa em João Landim e ficou metido num buraco o tempo todo… Quem foi para Bambadinca, não foi ao Gabu, fez a LDG Bissau-Xime e, com sorte, apanhou o barco, de regresso, ao fim de 21 meses... Por outro lado, quem esteve no sul, não conheceu o leste…
Por isso, desculpa lá as nossas ingenuidades e ignorância em muitas matérias (geografia, história, cultura, etnologia, linguística…). Estás à vontade para nos ensinar e até puxar as orelhas, tens a autoridade suficiente para isso.
Agradeço-te vivamente todas as correcções que queiras e possas fazer. Tu vais passar a ser o nosso professor da disciplina Guiné! Já agoira, onde vives ? Aqui perto de nós ? Posso inscrever-te na nossa tertúlia ? Mandas-me duas fotos, uma do antigamente e outra actual, para a nossa fotogaleria ? (Claro que isto é voluntário)…
Digitalizição do João Varanda (CCAÇ 2636, 1969/71).
1. Texto de Mário Dias:
Caro Luis,
Antes de mais, os meus cumprimentos e admiração pelo blogueforanada de que sou habitual frequentador e poderei mesmo dizer colaborador por intermédio do Briote que tem enviado alguns dos esclarecimentos que lhe tenho prestado.
Eu sou o Mário Dias, fui para a Guiné com 15 anos (em 1952). De lá saí em 1966. Conheço, como seria de esperar - dada a minha longa permanência naquelas terras - a quase totalidade da Guiné. Lá cumpri o serviço militar obrigatório (recruta e CSM - Curso de Sargentos Milicianos) e, estando já na disponibilidade, regressei à efectividade de serviço (em 1963) como furriel miliciano apenas com a intenção de colaborar e ajudar na guerra que tinha já começado.
Fiz parte de um grupo de oficiais e sargentos que se deslocaram a Angola para tirar o curso de comandos e, uma vez regressados, formámos um grupo que actuou na célebre Operação Tridente, na ilha do Como (Janeiro a Março de 1964). Posteriormente, demos instrução e fizemos parte dos 3 primeiros grupos de comandos da Guiné.
Mas estou a desviar-me do motivo principal desta mensagem.
Deparo, por vezes, com algumas naturais incorrecções nas descrição de assuntos relativos à Guiné como palavras do criôlo mal traduzidas e engano na identificação de alguns lugares como é o caso presente.
Ao visitar o blogue hoje, deparei com a fotografia de uma estátua de Teixeira Pinto como sendo na localidade com o mesmo nome, actual Canchungo. Ora, na verdade o postal reproduzido é em Bissau. A referida estátua ficava ao cimo da Avenida que, saindo da Praça do Império, (cujo obelisco dedicado "Ao Esforço da Raça" se pode ver ao fundo na linha do horizonte), ia até ao Alto do Crim e depois seguia como estrada para o aeroporto etc. Essa estátua estava bem próxima do depósito de água aí existente e, dada sua "pose", de mão direita estendida, nós dizíamos por brincadeira que estava a "falar mantenha" (cumprimentar) a quem passava.
Desculpe esta intromissão. Se a fiz é apenas com o desejo que quanto aqui for dito corresponda à realidade.
Um abraço do
Mário Dias .
2. Resposta do L.G.:
Mário: Muito obrigado pelos teus comentários, pertinentíssimos. Posso tratar-te por tu, já que fomos camaradas ? ! Aliás, esta é uma das regras de ouro da nossa tertúlia. Fico encantado com esta nova aquisição para a nossa tertúlia… É claro que, para além da tua vivência pessoal e do teu profundo conhecimento da Guiné e dos guinéus (eles não levam a mal, se eu usar este termo arcaico ?), tens também a tua quota-parte de operacional, de combatente…
Portanto, meu amigo, não precisas de pedir licença a ninguém para entrares: tu é que estás em casa… Em boa verdade, a maior parte de nós, mal conhece a Guiné… Quem esteve no Cacheu, passou por Bissau, atravessou o Rio Mansoa em João Landim e ficou metido num buraco o tempo todo… Quem foi para Bambadinca, não foi ao Gabu, fez a LDG Bissau-Xime e, com sorte, apanhou o barco, de regresso, ao fim de 21 meses... Por outro lado, quem esteve no sul, não conheceu o leste…
Por isso, desculpa lá as nossas ingenuidades e ignorância em muitas matérias (geografia, história, cultura, etnologia, linguística…). Estás à vontade para nos ensinar e até puxar as orelhas, tens a autoridade suficiente para isso.
Agradeço-te vivamente todas as correcções que queiras e possas fazer. Tu vais passar a ser o nosso professor da disciplina Guiné! Já agoira, onde vives ? Aqui perto de nós ? Posso inscrever-te na nossa tertúlia ? Mandas-me duas fotos, uma do antigamente e outra actual, para a nossa fotogaleria ? (Claro que isto é voluntário)…
quarta-feira, 16 de novembro de 2005
Guiné 63/74 - P273: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (2): "Periquito vai no mato, que a velhice vai p'ra Bissau"... (João Varanda)
João Varanda, em Có, sentado num enorme bagabaga (feito pelas segregações das formigas gigantes).
© João Varanda (2005)
Segunda parte da história da CCAÇ 2636 (Cacheu e Zona Leste, 1969/71). Autor: João José Varanda, de Coimbra. Há uma parte sobre os "senhores da guerra" (Spínola e Nino Vieira) que será publicada, à parte, noutra altura (1).
Percurso em África
Depois de seis longos dias [em Bissau], a partida para Có levou-nos a saborear não só as implicações bélicas envolventes, mas, não menos importante, também a grandeza dos prazeres que uma terra tão pródiga e fascinante nos pode conceder.
Retirando desta experiência alguns valores acrescidos, compartilhados com o ambiente frenético e redutor da luta que então se travava dentro de uma envolvência onde a magia da terra africana serviu de estímulo e compensação perante as horas amargas da luta, do sofrimento e da alienação de outras referências essenciais.
Primeira etapa: a comissão em Có
Bissau ficará para trás passados que foram estes seis dias (sem outro atractivo que não a ausência da guerra). A noite foi toda passada a levantar arraiais e consumar despedidas, pela manhã cedo ainda nos foi servido o pequeno almoço – café com leite e casqueiro com manteiga.
Em Brá, ao longo de quinhentos metros que iam desde o centro do aquartelamento até à saída da porta de armas, a coluna auto que nos foi atribuída, composta por viaturas civis (para transporte da nossa bagagem) e viaturas militares (Unimog e GMC), foi-se espreguiçando enquanto os problemas logísticos relacionados com a nossa deslocação para Có se resolviam.
Foram longas as horas para colocar a coluna em marcha. Antes da partida, a verificação de que tudo estava em ordem, toda a bagagem, quer pessoal, quer da companhia estava nas viaturas. Cerca das 12,30 horas, com tudo em ordem, eis que após as últimas recomendações do Capitão Medina Matos, este subiu para o lado do condutor do Unimog que abria a coluna, dando ordem ao pessoal para montar nas viaturas.
G3 segura na mão, lenços coloridos no pescoço (cada cor destrinçava o grupo de combate), toca a andar!... Fora dado o sinal para iniciar a marcha até João Landim, era perto (30 Kms), estrada segura, foi rápida a viagem. João Landim era posição isolada e de paragem obrigatória. Fomos bem recebidos e assistidos por um grupo de fuzileiros que fazia segurança da zona, viviam em abrigo subterrâneo na encosta da cambança do Rio Mansoa.
Guiné > 1965/66 >
A famosa jangada que atravessava o Rio Mansoa em João Landim, ligando Bissau com a região do Cacheu
© Virgínio Briote (2005)
O rio Mansoa apresentou-se-nos calmo, com uma cor cinza. Foi atravessado de jangada. Viaturas e homens, em levas ininterruptas, foram sendo transferidos para a outra margem. Foram longas horas neste vai e vem para colocar a companhia do lado de lá de João Landim. A jangada tinha, com bom comportamento, uma vez mais realizado a sua missão. A travessia, dadas as fortes correntes, era tarefa dura. Teve de ser passada a corda de margem a margem, esta servia para evitar que se deslizasse com a corrente e para garantir a atracção no sítio certo, rampa de acesso íngreme da beira rio para a planura que nos separava de um tecto.
Cerca das 6,00 horas da tarde do mesmo dia a travessia de João Landim para a margem do corredor de acesso ao cruzamento de Bula estava finalmente no lado para onde seguíamos Có, lado esse onde nos esperavam prometidos meses de sofrimento e trabalho duríssimo.
Atravessado o rio Mansoa, tínhamos mais umas dezenas de quilómetros de tensão acrescida, uma vez que até ao cruzamento da placa para Bula era território completamente abandonado. Nem sequer era patrulhado. Um grupo de combate de tropa veterana de Có, a CCAÇ 2584, cumpriu a segurança junto à margem do rio Mansoa.
Do lado de Cá de João Landim até ao cruzamento da placa para Bula era perto e por estrada segura. Foi rápida a viagem até à pequena tabanca na margem esquerda da estrada junto à placa para Bula, onde a população veio junto da estrada ver passar a companhia, estendendo-nos o dedo polegar, à laia de saudação e boas vindas à tropa e gritando "Periquito vai no mato”.
Desta pequena tabanca para a frente foi a avançar com precaução até à fatídica curva de Bula onde do lado direito teria existido uma antiga destilaria. Esse local era zona habitualmente pouco acolhedora e de maus resultados para as nossas tropas, era (ponto negro) onde as forças do PAIGC faziam as suas repetidas emboscadas.
Daqui para a frente só Có esperava por nós, aonde chegámos já noite (cerca das 8,30 horas), exaustos por termos feito grande parte do percurso para esta tabanca em cima de viaturas sobre tapete de alcatrão que só ficara interrompido na placa que nos indicava o destacamento de Có, sem luz e cada um agarrado ao do lado para não nos perdermos na escuridão de breu. Contudo, e na primeira experiência, só o cansaço era tudo quanto se podia lamentar.
© João Varanda (2005)
Em Có fomos recebidos pela velhice daCCAÇ 2584, com grande algazarra e desejo de bom regresso. Chegados ao destacamento, o nosso pessoal começou, de imediato, o frenezim da descarga da coluna, e o desenrrascanço de como passar a primeira noite no aquartelamento de Có, já que este era pequeno e não tinha instalações suficientes para nos acolherem na sua totalidade, dado o ajuntamento da nossa companhia com a guarnição normal do aquartelamento da CCAÇ 2584. Mas na guerra há sempre lugar para mais um, e apesar dessa tensão toda a companhia ficou acomodada e tudo correu pelo seu melhor.
Era a nossa primeira noite. A companhia da velhice foi extremamente simpática para connosco, esses nossos camaradas queriam saber novidades frescas da Metrópole, porque as saudades eram imensas, escusado será dizer que todos estávamos descontraídos, embora nos sentíssemos cansados, já que a sobrecarga tinha sido bastante intensa.
Era a carga psicológica a fazer os seus efeitos. Como era dia diferente para o aquartelamento de Có, todo o pessoal, velhice e periquitos, tivemos a novidade dada pelo cantineiro de que o bar estaria toda a noite aberto e onde teríamos café e toda a espécie de bebibasd espirituosas. Foi bem passada a noite e bebeu-se muito bem.
O aquartelamento de Có tinha um aspecto airoso, cada grupo de combate tinha a responsabilidade de um sector de linha defensiva, vivíamos em abrigos subterrâneos ao longo de todo o perímetro do quadrado mal desenhado, que constituía a nossa posição, com cerca de seiscentos metros de lado. Alguns metros mais para dentro ficavam as casernas dos soldados de serviços, seguia-se o refeitório, a cozinha, a padaria, a sede (secretaria) das companhias, o posto médico, e virado para a porta de entrada do aquartelamento, ao lado de um enorme embondeiro, que dava protecção ao abrigo subterrâneo do posto rádio e à messe e alguns quartos para oficiais, ao lado destes um bar cantina, a oficina auto e nos pontos cruciais de defesa em abrigos cavados no chão estavam as peças pesadas de defesa (morteiros 60 e de 81) e as metralhadoras (Bredas, MG, Borzig). Estávamos poderosamente armados, e no centro do aquartelamento havia um imponente posto de vigia, erguido sobre troncos de palmeira e coberto a colmo.
Circundavam o aquartelamento três fiadas de arame farpado distantes entre si de alguns metros, pregadas na estacaria de palmeira, sendo a parte de fora a orla da floresta, capinada, para termos pontos de observação. Ao longo da fiada de arame mais interior estavam os postes de iluminação do perímetro do aquartelamento com os seus holofotes orientados para o exterior, e cuja a energia era garantida por um gerador, metido num abrigo subterrâneo.
Fora do perímetro defensivo situava-se a fonte de abastecimento de água, que por sua vez descarregava para um pequeno lago, onde colectivamente, nós e população, tomavamos o nosso duche diário. Ainda também, a morança e a tasca familiar (café e minimercado) do velho Tavares, um cabo-verdiano estabelecido no local, pai de duas lindas filhas, tendo uma delas perecido numa flagelação levada a cabo pelas forças do PAIGC ao aquartelamento cuja defesa estava a cargo da CCAÇ 2584, em início de comissão.
Este velho Tavares dizia-se que fazia a guerra nos dois lados, pois os guias da nossa tropa garantiam que sempre que as tropas do PAIGC se aproximavam de Có era no quintal da morança do velho Tavares que, na véspera da iminência de ataque a Có, faziam o local de abrigo e arrecadações de material de guerra inimigo.
Paredes meias com o aquartelamento ficava a tabanca, onde se poderiam ver enormes, mangueiros e palmeiras. Contornava o aquartelamento à excepção da ala norte, onde não havia habitações de africanos. A tabanca era também cercada por arame farpado, junto ao qual existiam diversos postos fortificados para sentinelas (milícias ou tropas paramilitares que faziam parte do dispositivo militar implantado no território, também designadas por tropas auxiliares, ou de segunda linha). Para estes, as causas da independência, da autonomia ou as de uma Pátria para os guineenses não constavam do seu ideário.
Sentiam-se confortavelmente bem a nosso lado, tão Portugueses como nós, sem deixarem contudo de ser Guineenses e amarem a sua terra. Nunca será demais assinalar o comportamento irrepreensível, abnegado, corajoso mesmo desta gente. Duma coragem talvez diferente da nossa, mas não menos eficaz, verdadeira, eloquente. Arquitectada numa longa experiência de combate, numa fé e num patriotismo insuperáveis. Tudo executado com simplicidade, facilidade, gosto e redobradas dose de determinação e vigor. Foram estes homens singulares que também escreveram páginas gloriosas de sangue e sacrifício, que se bateram melhor que nós por todos estes ideais, que nos fizeram acreditar no sucesso daquela guerra, que por lá ficaram. Entregues a si próprios, abandonados à sua sorte, pagando com a vida aquilo que com a mesma vida haviam combatido e sonhado, a nosso lado, sem nada nos exigirem.
A nossa história operacional
Enquanto se combatia um inimigo que não dava tréguas nem descanso numa guerra também ela intratável, havia espaço, tempo e vontade para outros combates. E homens dispostos a assumirem essas e outras preocupações que muito nos honraram, pelos resultados obtidos e pela satisfação gratificante de mais estas missões cumpridas.
À época a que se reportam estas crónicas, combatia-se por um ideário que apontava para a defesa intransigente do Império Ultramarino como parte integrante e inalienável do todo nacional. Ideário bem arquitectado e melhor montado pelo poder vigente, que entendia que a própria sobrevivência do regime e do próprio País dependia inteiramente do êxito daquelas campanhas. E a Nação, nestes primeiros anos do conflito, parecia aceitar placidamente resignada este desfecho, com algumas lamentações, outras tantas recriminações e alguns, ainda poucos, protestos. Enquanto a guerra prosseguia neste e nos restantes teatros sem outras referências ou perspectivas, alguns valores e preocupações eram simplesmente deixados para trás, num completo menosprezo pela natureza humana deste impenetrável conflito.
A vivência dos combates, pelo menos daqueles prestados em verdadeiro cenário de guerra como o nosso, ia deixando marcas impressivas em alguns dos seus intérpretes, sem que disso o poder instituído mostrasse qualquer remorso ou apresentasse qualquer tipo de terapêutica. Nós, ao nosso nível, na altura também não assumíamos por inteiro essa realidade. Não por inconsciência, má formação ou insensibilidade crónica. Unicamente, todavia, porque em relação a alguns desses aspectos não tínhamos sido alertados, nem existia no campo de preparação para este tipo de campanhas qualquer prevenção específica, profilaxia, ou simples preocupação. Não constava dos manuais, pura e simplesmente, essa séria problemática e como tal, não se discutia, sequer. Marcas essas das quais só viemos a adquirir alguma consciência no decurso dos acontecimentos e já no final do nosso percurso e, bastante tempo depois, face ao tratamento que ao assunto veio a ser dado, cientificamente, um conhecimento bem mais profundo e esclarecedor. A Nação e os seus mentores limitava-se a mandar combater a qualquer preço. Não falando já das aludidas carências materiais, técnicas, logísticas e humanas largamente referenciadas nestas ou moutras crónicas afins, o acompanhamento psicológico dos homens, se assim o quisermos singelamente denominar, em qualquer fase do seu empenhamento, nunca foi visto, tratado ou falado.
Havia efectivamente a chamada "acção psico-social", ou simplesmente "psico", mas esta era destinada unicamente aos então "terroristas", configurada a promover a sua apresentação, a renúncia à luta e aos seus propósitos, em troca de favores e de uma melhor vida, longe das agruras da mata austera. E aí alguma coisa efectivamente se fez, embora com resultados muito aquém daquilo que chegava a ser propalado. Muitos meios foram aqui empenhados, muita doutrina e recursos humanos se consumiram, muitos quadros aqui se esgotaram em campanhas de duvidosa realização, mas tudo vocacionado para a captação de um inimigo e população afectas, que nunca terá consubstanciado resultados à altura do esforço dispendido.
_____
(1) Primeira parte: vd post de 15 de Novembor de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCI: Campanha da CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (1): De Santa Margarida ao Pilão ...
Guiné 63/74 - P272: Có? Isto é comigo! (João Tunes)
O Alf Mil, de Transmissões, Tunes, no Pelundo, em Outubro de 1969. De calções, e óculos, ao fundo...
O Pelundo fica na região do Cacheu, entre Teixeira Pinto (hoje, Canchungo) e Bula. A seguir ao Pelundo é Có, na estrada que vai para Bula. (vd. mapa dos Serviço Cartográficos do Exército, 1961)
© João Tunes (2005)
Caros Luís e João,
É-me permitido um gesto de humildade? [Se calhar é pedir muito, porque nós, os da guerra, aprendemos cedo a meter a basófia no lugar do medo que nos apertava o olho do cú, afinal uma espécie de rolha com gola, como as de champanhe.]
Eu li o magnífico texto do João Varanda, no ilustre blogue de que o Luís é Cmdt Chefe, depois li o nº da Companhia dele (2636), o número tocou-me uma campainha, mais o período de comissão, fixei-me no local: Có.
Depois lembrei-me as vezes que estive em Có, no mesmíssimo período, enquadrado no mesmo Batalhão (sediado em Pelundo). E como era, então, uma alegria dar um salto a Có, malta bacana, ok sobre rádios e cripto?, vamos aos copos, assegurando (eles) a segurança da construção de uma nova estrada asfaltada (que já não lembro se ia para Teixeira Pinto ou para Bula ou para a puta que pariu o Caco).
Julgo até (outra falha ou confusão?) que a Companhia de Có era comandada por um Capitão Miliciano, já economista com canudo e antifascista, um gajo porreiraço, já com uns cabelos a puxar para o grisalho, com quem punha a escrita em dia, deitando abaixo a porra da guerra, o fascismo, o colonialismo, e, claro, o Caco, o Marcelo e o Tenente Coronel "facho" do Pelundo que não percebia nada da poda.
E fico-me com a pior das minhas vergonhas pelos tempos que ali andei - foda-se, não consigo lembrar-me do nome do Batalhão, em cuja CCS servi, como Alferes de Transmissões, e a que a CCAÇ 2636 terá pertencido, comandada pelo "facho" do TC Romão Nogueira (não sei se lhe acertei no nome, quanto ao "facho", isso sim, o gajo vinha da União Nacional e fez carreira "militar" na Câmara de Viseu e foi à guerra por exigência de promoção, mas era um merdas como guerreiro).
No meio de tantas amnésias, tenho a do número do meu Batalhão no Pelundo (o primeiro em que servi e com que embarquei, havia de servir ainda outros, em Catió e em Bissau) e não me lembro de ter bebido copos com o Varanda. Se calhar bebi. Mas foi-se a lembrança com o avanço da idade. Que fazer? Para já, apenas, pedir ao João Varanda que me lembre o nome do meu (e seu) Batalhão. Dás o jeito ao velhote, camarada?
Abraços para todos os tertulianos,
João Tunes
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