Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 11 de novembro de 2006
Guiné 63/74 - P1267: Estórias de Bissau (2): A minha primeira máquina fotográfica (Humberto Reis); as minhas tainadas (A. Marques Lopes)
Foto: © A. Marques Lopes (2005). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
1. Alguns camaradas aceitaram, de imediato, a minha provocação para contar estórias de Bissau (1), as impressões (necessariamente breves e fragmentadas) de quem, como a maior parte de nós, por lá passou, a correr, a caminho do mato, ou do regressso do mato (leia-se: da guerra)...
Mesmo os que fizeram a guerra do ar condicionado têm direito à palavra, embora eu não me lembre de ter aparecido até agora, na nossa tertúlia de amigos e camaradas da Guiné, nenhum felizardo que tenha estado toda a comissão em Bissau, na guerra dos papéis... Se quiser aparecer, posso assegurar que não será hostilizado... Eu sei que, já naquele tempo, uns eram filhos e outros enteados: era o caso, por exemplo, do Almodôvar, aqui evocado por Marques Lopes. Vieram juntos no mesmo barco: um, o felizardo ficou no QG; o outro, o desgraçado, foi para Barro...
Já tenho aqui duas mensagens, a do Humberto Reis, meu camarada da CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71) e do A. Marques Lopes que, para chegar a coronel, teve que comer o pão que o diabo ia amassando, de Geba a Barro: nove meses de Hospital Militar Principal foi quanto demorou o parto (distócico) que o levou à sua... segunda comissão, em Barro, na região do Cacheu!
2. Mensagem de Humberto Reis:
Luís:
Comprei a minha 1ª máquina fotográfica, uma Petri, na Foto Serra em Bissau, em 1969. Nessa altura a Foto Serra era numa esquina mesmo em frente ao Forte da Amura, onde se apanhavam os transportes para o QG.
Um abraço
Humberto
Comentário de L.G.: Bendita compra. Apanhaste o gosto da fotografia e hoje, graças a ti, temos excelentes provas, irrefutáveis, da nossa passagem pela Guiné...
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Região do Xime > O Humberto Reis, assinalado com um círculo a vermelho, numa das muitas piscinas de água aquecida que havia no triângulo Xime-Bambadinca-Xitole... (Aqui, com o seu pelotão, o 2º Grupo de Combate da CCAÇ 12 , deslocando-se numa bolanha em zona controlada pela guerrilha do PAIGC)...
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
3. Texto do A. Marques Lopes:
Caros camaradas,
Vou responder ao desafio do Luís e falar sobre a minha experiência em Bissau. Foi curta, porque de alguns dias apenas, lá passados: (i) antes de embarcar para o puto (quando cheguei à Guiné passei do Ana Mafalda (2) para uma LDG e fui de imediato rio Geba acima...); (ii) quando esperei para ser colocado em Barro, depois de regeressar do HMP; e (iii) quando lá estive de passagem no final de 1968... Mas foi uma experiência intensa, porque aproveitada como primeira oportunidade de esconder mágoas e frustrações, porque tive necessidade de, também ali, dar largas à loucura que se apossara de mim durante todo o tempo em que estive no mato.
Nesse período, conheci pouco de Bissau, apenas restaurantes, o QG e o Pilão. Muito boas recordações dos restaurantes, onde fiz grandes tainadas e apanhei grandes bebedeiras com outros camaradas, tão necessitados como eu. Mas, quanto a nomes, só me lembro do Bento - a famosa 5.ªRep -, centro de conversas dos velhinhos regressados do mato e de histórias das suas guerras, perante os olhos e, sobretudo, os ouvidos atentos dos miúdos que ali engraxavam as botas dos militares por 1 ou 2 pesos.
Guiné > Região de Cacheu > Barro CCAÇ 3 > Barro > 1968 > O Alfero Lopes, despois do seu regresso do HMP, com alguns dos elementos do seu novo grupo de combate, Os Jagudis, de etnia balatanta.
Foto: © A. Marques Lopes (2005). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
Óptimas lembranças da Fátima, uma fula do Pilão, em cuja casa (um quarto apenas...) dormi algumas noites, numa cama onde dormia também o bébé de um ano. Boa rapariga, que fazia pela vida e que, por isso, me fez, uma noite a proposta de eu trazer umas quantas cervejas do QG para ela vender aos seus visitantes:
- Estou doido, filha, mas não tanto. Nem penses nisso.
Boas noites lá passei, uma ou outra com emoção, quando os comandos ou os fuzos batiam à porta e ela respondia:
- Está ocupado! - e eu a ajudava dizendo:
- Estou eu, vão pra outra!
Houve uma noite, não nenhuma destas nem a da proposta dela, que tive de sair a meio. É que o bébé borrou-se todo. Enquanto ela tirava água do pote para lavar o filho e os lençóis, tive de lhe dizer:
- Fatinha, já não dá. Vou-me embora.
Nesta ordem de lembranças, havia também, junto ao estádio do UDIB, um branco que tinha uma filhas mulatas (não me lembro do nome dele). A sua casa era um local aberto à frequência dos militares, com muitas bebidas, e as filhas lá estavam para o que desse e viesse. Fui lá uma ou outra vez, só para beber, porque, perante aquela situação, senti que o raio da consciência ainda me zurzia.
Quanto ao QG, poucas coisas agradáveis. Extremamente desagradado fiquei, como não é difícil calcular, quando, depois de vir do HMP [Hospital Militar Principal] (3), procurei que não me enviassem para o mato, que estava mal dos ouvidos, etc...
- É pá, há um gajo que tem de ser substituído lá em cima. - E mandaram-me para Barro. Mas o Almodôvar (o nome por que eu o tratava), um gajo que tinha chegado comigo, filho de um latifundiário alentejano, ficou no QG.
Depois, quando por lá passei em finais de 1968, fui encarregado, na passagem de ano, de montar uma emboscada perto do aeroporto de Bissalanca. Pensava-se num ataque do IN. Deram-me um grupo de maçaricos recém-chegados, com alferes e tudo. Achei por bem esvaziar os carregadores de todos, menos os dos furriéis e o do alferes. Mas o desagradável foi outra coisa: antes de partirmos para a missão, fui até ao bar da messe de oficiais do QG beber umas coisas. Estava calmamente assentado num maple com as bebidas em cima duma mesita e eis que o gerente da messe, o tenente-coronel Lavrador (assim lhe chamavam por se preocupar muito com a horta da messe), se me dirige:
- Você não pode estar aí.
- Porquê!? - espantei-me eu.
Apontou e criticou-me a camuflado sujo, debotado, com alguns buracos:
- Está a sujar o maple.
Bem - foi a bebida, foi a raiva, foi o desprezo?... - levantei-me e virei-me a ele. Não chegámos a vias de facto porque o Major Fabião, que estava ao balcão, veio prestes separar-nos. Acabei as bebidas e arranquei para levar o grupo para o aeroporto. No caminho, quando passámos junto da Associação Comercial, vi que havia lá grande festa, muita música e, pensei, com certeza bailarico. Ali estão os gajos que me fazem estar aqui. Mandei parar as viaturas. A minha primeira ideia foi ir lá e foder aquilo tudo (assim pensei, sic). Mas acabei por estar alguns minutos a falar sobre o que íamos fazer e como actuar. Fraqueza ou bom senso, ainda não sei.
Mas houve algumas coisas giras quando passei pelo QG, antes do regresso à metrópole. Algumas noites, eu e mais alguns farrantes dos restaurantes de Bissau, pegávamos em algumas garrafas das bebidas que de lá ainda tínhamos trazido, gritávamos Ataque!, e lançávamo-las sobre os telhados de zinco das camaratas ao pé da messe de oficiais. Era um grande gozo ver o pessoal a sair esbaforido e em cuecas!
E, um certo dia, o Almeida Santos (não é esse!...), meu amigo e parceiro de borgas, requisitou um jipe e convidou-me para dar uma volta por fora de Bissau. E lá fomos os dois até Nhacra. Aí parámos numa baiúca para nos atestarmos. Bem comidos e bem bebidos, decidimos que podíamos ver mais coisas, e decidimos ir estrada fora. E fomos, fomos sempre... até chegar a Mansoa! Vimos um jogo de futebol entre os elementos da companhia que lá estava. Entrámos na festa no fim do jogo e bebemos mais umas coisas.
Quando se fez tarde, achámos por bem regressar a Bissau. Demos boleia a um fuzileiro que lá estava (a fazer não sei o quê), o Almeida Santos a conduzir, eu no banco ao lado e o fuzileiro no banco de trás. Foi uma viagem agradável, pôs-se escuro rapidamente, era melhor acelerar e eu achei por bem animar o pessoal, levantei-me e, com as mãos no pára-brisas, comecei a cantar algumas canções do festival de San Remo. Estava giro. Só que, antes de chegarmos à base aérea, o Almeida Santos perdeu o controle do jipe e foi contra uma árvore que estava a dez metros da estrada.
Eu fui projectado, voei e aterrei dentro do capim, não desmaiei e tomei consciência de mim, passados alguns segundos. Olhei para trás e vi o jipe a arder. Levantei-me e fui lá para ver. Havia dois corpos ao pé: o fuzileiro gemia, o meu amigo não dizia nada. Peguei-lhe na cabeça e fiquei com as mãos cheias de sangue. Merda! O fuzileiro disse-me que lhe doía o peito. Que vou fazer? A resposta foi-me dada pelas luzes de duas viaturas que vi aproximarem-se vindo da base aérea. Tinham visto o fogo e vinham ver o que se passava. Foram eles que nos levaram para o HMR 241. Como eu não tinha nada fui mandado em paz. O fuzileiro ficou lá com duas costelas partidas, o Almeida Santos com um lanho na cabeça e uma ferida grossa na barriga da perna.
No dia seguinte, fui contactado para ir ao local com um major que fora encarregado de instruir o processo de acidente. Eu era testemunha. O Almeida Santos, que requisitara o jipe, que ia a conduzir e que era mais antigo do que eu, era o arguido. Quando lhe disse que o jipe saíra da estrada porque tinham falhado as luzes, o major riu-se muito. Fiquei a saber, mais tarde, que o arguido tinha levado 10 dias de prisão disciplinar, teve de pagar o jipe (cerca de 300 contos na altura) e, o pior, não embarcou quando devia embarcar. Antes de apanhar o barco de regresso, fui ao hospital visitá-lo: estava de cabeça ligada, uma perna pendurada ao alto e (estava sempre na maior!) a beber uma cerveja pelo gargalo.
E uma que me deu muito gozo. Tinham-me dado o processo de um cabo que fora apanhado a tomar banho na piscina da messe de oficiais do QG. Escandaloso, claro, inadmissível. Na véspera do meu embarque de regresso, ao preparar as minhas coisas, olhei para o processo e achei que não devia ter futuro. Rasguei-o aos bocadinhos e meti-o num caixote de lixo. Ninguém me perguntou por ele, sequer.
Muitas considerações e reflexões há a fazer sobre o que vos conto. Eu já as fiz, mas prefiro, agora, contar-vos os factos friamente. Até porque sei que todos pensarão nos quês e nos porquês de tudo isto.
Um abraço
A. Marques Lopes
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Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 10 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1264: Postais Ilustrados (10): Bissau, melhor do que diz o fotógrafo (Beja Santos / Mário Dias)
(2) Vd. post de 28 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVII: A caminho da Guiné, no "Ana Mafalda" (1967)
(A. Marques Lopes)
(...) " Às 16h00 do dia 15 de Abril de 1967 o Ana Mafalda chegou ao porto de Bissau. A 16 de Abril a companhia passou directamente do navio para LDGs e seguiu pelo Geba acima até Bambadinca.
"Foi engraçado e giro, como devem calcular, para o pessoal que ia enfiado, ouvir os fuzileiros que nos levaram ir dizendo, em cada curva ou ponto mais apertado do rio:
- Olhem que aqui costuma haver ataques!...
"A 17 de Abril seguimos de Bambadinca para Geba em coluna auto. E fomos render a CCAÇ 1426, do Belmiro Vaqueiro" (...)
(3) Vd. posts de:
30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXIII: A morte no caminho para Banjara (A. Marques Lopes)
(...) "E já agora, aqui vai um exemplo das dificuldades para chegar a Banjara. Digo-vos também que foi no caminho para lá que eu fui ferido e fui, por isso, para uma estadia de nove meses no Hospital Militar Principal da Estrela [,em Lisboa] "(...)
5 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLVI: Em memória dos bravos de Geba... (A. Marques Lopes)
(...) Sempre que possível, fiz-me acompanhar de um atirador-fotógrafo, que atirou algumas fotografias sempre que pôde. E pôde poucas vezes, é claro, como podem calcular. Algumas das fotografias não corresponderão, provavelmente, às operações relatadas, porque já não as consigo situar, mas servem de ilustração do que era normal em todas elas [vd. também Banjara e Cantacunda].
"Era uma zona muito propícia a azares, como têm visto. Também me calhou a mim (não era mais que os outros, claro, apesar de ter estado 24 horas no campo do inimigo... "teve de ser assim", como disse o Comandante Gazela). Um dia, quando ia no caminho de Geba para Banjara, fui ferido (e sortudo, mais uma vez), assim como o soldado Lamine Turé, do meu grupo de combate ; na mesma altura morreu o comandante da CART 1690, que quis ir comigo nessa viagem, o capitão Manuel C.C. Guimarães (tinha 29 anos, era filho de um sargento-ajudante e sobrinho da Beatriz Costa), e morreu o soldado Domingos Gomes, também do meu grupo de combate.
"Levei o corpo do capitão, porque me pareceu que estava ainda vivo, e o Lamine, directamente para Bafatá... porque em Geba não havia médico, vejam lá! Não levei o do Domingos Gomes, porque ficou aos bocados, não deu tempo nem tive condições para os recuperar. De Bafatá fui evacuado para o HM241 [em Bissau], primeiro, e para o Hospital Militar Principal,[em Lisboa], passada uma semana.
"Lá se foi, pois, o régulo de Geba... (gostei desta, amigo Luís Graça!). Não há relatório desta situação, obviamente, uma vez que não ficou quem o pudesse fazer.
"Falar-vos-ei, depois, da CCAÇ 3 [Barro, 1968], onde fui colocado depois da minha estadia no HMP, embora dela não tenha senão a minha lembrança e as fotografias que um outro atirador-fotógrafo teve oportunidade de atirar" (...).
Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): "Cabrito pé de rocha, manga di sabe" (Vitor Junqueira)
Montemor-o-Novo > Ameira > Herdade da Ameira > Café do Monte > 14 de Outubro de 2006 > Confraternização de camaradas da Guiné que se acabaram de se conhecer: ao fundo, o Vitor Junqueira, de óculos escuros, mais a filha, ladeados por Virgínio Briote e esposa. De costas, da esquerda para a direita: Victor David, Fernando Franco, António Baia e Paulo Santiago.
Foto: © Manuel Lema Santos (2006). Todos os direitos reservados.
1. Mensagem do Vitor Junqueira:
Luís,
O Blog tem estado muito pesado. A guerra é assim, morteiradas, cadáveres, destruição, sofrimento ...
O episódio que relato a seguir, é autêntico e poderá ajudar a descomprimir um pouco a enorme tensão que posts recentes certamente desencadearam na mente de alguns camaradas. Se achares que é publicável. E até pode acontecer que outros adiram à ideia.
Saudações cordiais,
Vitor Junqueira
2. Resposta do editor do blogue:
Vitor: É uma obra-prima!... Uma maravilha!... Vem mesmo a calhar, vou já publicá-la esta noite! Eu já desconfiava que tu tinhas muito talento para a este tipo de escrita… (que não é para todos, o saber contar uma bela estória!)…
Este é daqueles posts que vão figurar numa futura antologia do nosso blogue… Dou-te mais do que as cinco estrelas: dou-te o firmamento todo… Obrigado, Vitor, estava mesmo a precisar de ler uma short story assim, antes de dar uma aula sobre “métodos qualitativos de investigação social e em saúde” aos meus alunos do mestrado de saúde pública…
Fico com água na boca, à espera de mais.... Enfim, da receita do cabrito pé de rocha farás mais uma estória, para deleite da nossa tertúlia… E decerto terás outras, tão ou mais divertidas do que esta, relacionadas com os nossos encontros e desencontros com aqueles povos simples, hospitaleiros e amigos…
Arranja lá um título para a tua série… Como já viste, há várias: estórias de Dulombi (Rui Felício), estórias cabralianas (Jorge Cabral)… O Rui e o Jorge são dois dos nossos melhores contistas… Mas há outros, com talento... Fico à espera. Se não disseres nada, escolho um título apropriado, desde que bata certo com a tua personalidade, ou pelo menos com a imagem que eu tenho de ti, como pessoa que está bem com a vida, positiva, frontal, solidária...
3. Cabrito pé de rocha,
por Vitor Junqueira (1)
Quando a minha Companhia [, a CCAÇ 2753,] aterrou em Bissau, após uns dez dias de viagem no velho N/M TT (era mais ou menos esta a sigla para navio motor transporte de tropas) Carvalho Araújo (*), fomos acolhidos no cais do Pidjiguiti por malta que eu não conhecia de lado nenhum, que soltava uns pius esquisitos cuja razão de ser não entendia. Soube ali que eram os choferes, velhinhos, das camionetas que nos haveriam de conduzir ao destino. As viaturas, alinhadas em coluna ao longo do cais, estavam a ser carregadas enquanto as entidades superiores tratavam da papelada. Até ao desembaraço da Companhia, e enquanto carrega, não carrega, os pius acossavam-nos de todos os lados. Comecei a ficar enervado e com apetite!
Naquela zona portuária, que se poderia chamar marginal da Amura, existiam umas tabernas semelhantes às que poderíamos encontrar em qualquer lugar do Portugal de então: um garrafão de cinco litros ou um ramo de louro pendurado na frontaria, e uma tabuleta com os dizeres, casa de pasto, vinhos e petiscos.
Seriam para aí umas quatro da tarde quando entrei numa delas. Pela primeira vez na vida dirigi-me a alguém de outra ... etnia. A situação era nova para mim e um pouco estranha. Meio tonhó, perguntei num português escorreito e pausado a uma negra, com estatura de bisonte, que se encontrava sentada num mocho do lado de dentro do balcão:
– Boa tarde, minha senhora, tem alguma coisa de que possa fazer uma sandes?
– Tem. Tem sim. Olha, tem cabrito pé de rocha, tem ...
– Cabrito?
– Sim, cabrito, é muito bom. Ainda está quente.
Virou-me as costas e dirigiu-se para um canto da baiúca de onde regressou com um pequeno tacho de barro na mão contendo uns pedacitos de carne guisada, com bom aspecto e um cheiro capaz de fazer um morto babar-se. Perguntou-me o que queria beber e falou-me em coisas estranhas, Fanta, Coca-qualquer-coisa ... Pedi uma laranjada.
Ali fiquei encostado ao balcão a vê-la rasgar a carcaça e nela acomodar o conduto. Ia magicando com os meus botões o quanto as aparência iludem. Aquela mulher enorme era um monstro de simpatia, nos gestos, no brilho do olhar, na doçura da voz. Acho que começou ali a minha paixão pela Guiné. Serviu-me com delicadeza numa pequena mesa de pinho, carunchosa e coxa, que só se mantinha de pé porque estava encostada à parede.
Comi. E que bem me soube. Ao fim de tantos dias a comer a lambeta de bordo, que nem era má, mas à qual o balanço do navio retirava todo o requinte, aquele petisco caiu-me que nem ginjas. Paguei em escudos, recebi o troco em pesos e saí animado com a perspectiva das vindouras patuscadas de cabrito pé de rocha que já se perfilavam no meu horizonte de expedicionário. Fosse parar aonde quer que fosse, não faltaria caça daquela, pois se até na cidade se encontrava ao dispor ... Aquele cabrito era mesmo delicioso. E o apelido pé de rocha? Devia estar relacionado com o habitat do animal. Altas montanhas com os picos cobertos de neve, pensei eu. O Kilimanjaro devia ficar ali perto, provavelmente.
Juntei-me ao resto da guerra, a quem dei conta das minhas descobertas e lá vou com a tropa toda, sob um altíssimo astral, direito ao AGRBIS (eu sabia lá o que isso era!). À nossa espera estava um hangar, sem portas, sem janelas, sem luz e com milhões de mosquitos, gordos e ferozes. Nos oito dias seguintes dormimos em cima dos ferros das camas porque colchões também não havia para distribuir. E quanto à bianda, ração de combate ao almoço, ração de combate ao jantar. Sobremesa, sempre à base de mancarra que umas garotas apareceram por ali a vender dentro de uns penicos que transportavam à cabeça.
O problema maior era a água. Na altura grassava uma epidemia de cólera no território pelo que nos aconselharam a beber só água engarrafada. Resultado, ao terceiro dia estava não só falido, como via as dívidas a acumularem-se. É que a única água engarrafada disponível que havia era a Perrier, usada no tratamento do whisky, que eu comprava a oitenta mil réis cada garrafa, no bar dos oficiais do Depósito de Adidos que ficava ao lado. Escusado será dizer que, por essa razão ou outra qualquer, houve caganeiras monumentais.
E eis que recebo guia de marcha para ir comandar os destacamentos de Safim e João Landim.
Força instalada, faço o reconhecimento da zona e concluo que no que respeita a infra-estruturas de apoio como tasca, restaurante, animação (batuque e bajudas), posso considerar-me um homem de sorte. Tenho ao dispor um fundo de maneio e o seu parente, o inevitável saco azul. Agora sim, tinha qualidade de vida. Permitíamo-nos comer quase à la carte. Além disso, por ali não se ouviam tiros. Perfeito ...
É neste contexto que, estando um dia a bater uma galharda sesta, sou acordado subitamente por um militar que me vem perguntar se pode ir lá fora dar um tiro com a G3 ???
– A quem? – perguntei.
– Não sei bem de que se trata – diz ele –. É um gajo da população que está ali à porta de armas a pedir que vá alguém à tabanca abater uma peça de caça.
– Alto e pára o baile – disse eu, meio desconfiado. – Quem lá vai sou eu.
Visto os calções num ápice, enfio os chinelos, pego na canhota que tinha dependurada à cabeceira da cama e, todo nervoso, antecipando um presunto de gazela para o tacho, dirijo-me ao cavalo de frisa que servia de porta de armas.
Lá estava o homem. Pareceu-me inofensivo. Pediu-me que o seguisse, enquanto num crioulo que eu já começava a entender, me explicava que se tratava de um cabrito pé de rocha que andava por ali a vaguear. Nisto aponta para o cocuruto de uma árvore e diz:
– Pessoal, olha ali. Por favor mata ele ...
Fiz um único disparo. Aos meus pés caiu um bruto babuíno (macaco-cão) que devia pesar para aí uns trinta quilos. Dispensei a minha quota-parte da caçada! (**)
Guiné > Zona Leste > Sector L2 > Geba > CART 1690 > Destacamento de Banjara > 1968 > Quando a fome é negra, até "cabrito pé de rocha" se come... Só que em Bissau o periquito Vitor Junqueira estava longe de imaginar que o dito cabrito era... macaco-cão!
Foto: © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados.
República da Guiné-Bissau > Macacos Africanos > Selo de 1 peso > 1983 > Babuíno-hamadrias
(Papio hamadryas)
Fonte: © Franclkim Ferreira (2001-2006) . Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto > Franclim F. Ferreira > Filatelia - Mamalia (5) (com a devida vénia...)
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Notas do autor
(*) Esta foi a última viagem do Carvalho Araújo. De Lisboa para Bissau, navegou notavelmente adornado a estibordo. No regresso, ouvi dizer que chegou pelo seu pé a Cabo Verde, tendo sido depois rebocado até ao seu destino final.
(**) Voltei a comer cabrito pé de rocha, muitos meses depois e, desconhecendo a ementa, numa acção de Psico. Outra delícia! Um dia destes mando a receita.
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Nota de L.G.:
(1) O Vitor Junqueira foi alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72). Vive hoje em Pombal, onde é médico.
Vd. posts de:
23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoreana CCAÇ 2753 pela região de Farim (Vitor Junqueira)
27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74: P1215: Vitor Junqueira: Irmãos de sangue, suor e lágrimas (Vitor Junqueira)
7 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1255: Dicas para o viajante e o turista (1): A experiência e o saber do Vitor Junqueira
sexta-feira, 10 de novembro de 2006
Guiné 63/74 - P1265: Recordações do ex-Alf Rainha (Xaneco, para os amigos), da CCAÇ 3490 (Saltinho), morto há 20 anos (Maurício Vieira, CCS/BCAÇ 3884)
Fotos: © Maurício Vieira(2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
1. Mensagem do Maurício Vieira (com quem já falei uma vez ao telefone):
Camarada Luís Graça, quando colocas as minhas fotos na Fotogaleria? Julgo que chegaram em boas condições, aliás já comprovado por ti, pelo que gostaria de as ver lá, não obstante compreender as inúmeras tarefas que tens no dia a dia, são emails e muito trabalho que te enviam.
Aproveito para lançar um apelo, a alguém que tivesse privado ou simplesmente conhecido o alferes Rainha (Xaneco):
Nome completo: Alexandrino José Fialho Correia Rainha.
Unidade BCAÇ 3872 - Galomaro (1972/74); CCAÇ 3490 - Saltinho (O Cmdt de Companhia era o capitão Lourenço) (2).
Lanço um apelo aos que o conheciam. Foi assassinado há quase vinte anos, era um grande amigo e leal companheiro. Julgo que o Sousa Castro, o Albano Costa e o Luis Carvalhido poderão ajudar. Desde já o meu muito obrigado a todos pelas eventuais informações que me possam prestar.
Um dia destes vou-te conhecer pessoalmente, será para mim uma honra poder conviver com alguém que, de alma e coração, muito tem contribuído para unir camaradas que sofreram na pele as agruras da guerra colonial. Um abraço e até breve.
Maurício Vieira
Bafatá 72/74
Tenho cá as tuas fotos desde 2 de Outubro de 2006. Estão OK e já foram inseridas na fotogaleria. Já lá estás, todo janota: podes mostrar os netos, que ainda são os únicos que te ouvem, te dão importância e te vão chamar herói...
Sobre o teu pedido àcerca do Rainha, já agora podias dizer-nos em que circunstâncias ele foi assassinado, há 20 anos. Sobre a minha modesta pessoa, só posso dizer-te que faço a minha obrigação... Mas as tuas palavras, simples e sentidas, são também um bom incentivo para levar para a frente, com a colaboração dos cento e tal camaradas e amigos que já temos, este projecto, bonito e solidário, de nos pormos todos a falar em voz alta, antes de demais uns para os outros, na nossa caserna... Bem hajas, pela tua contribuição, amizade e camaradagem.
Tinham uns terrenos que confinavam com um de um vizinho pouco recomendável, conflituoso e quase sempre com o álcool. Um dia o tal indivíduo implicou com o Rainha nesses terrenos e, acto contínuo, puxou da pistola e disparou à queima-roupa, tendo o meu amigo morte imediata.
Sem exagero, todo o concelho chorou a sua morte, era muito benemérito, deixou órfãos uma filha de 11 anos e um filho de 9, a esposa é fisioterapeuta, de forma que com o seu trabalho e património (que felizmente possuíam), conseguiu formá-los, a filha farmacêutica como é tradição da família. Eis, em resumo, o trágico fim de quem era muito querido e popular.
Um abraço
Essa estória do teu amigo e nosso camarada Rainha é triste. Como é que um homem, que sobreviveu à guerra da Guiné - o nosso Vietname - vai morrer, deixa-se morrer, de morte matada, na sua terra, em Trás-os-Montes... Não vou especular sobre a cultura da honra que leva, por vezes o transmontano a puxar de armas de fogo para resolver conflitos que ele acha insanáveis noutras instâncias e que têm a ver com o orgulho de macho, a territorialidade, a propriedade, a honra...
Seguramente, temos aqui tertulianos que conheceram o teu amigo (e, presumo, teu conterrâneo) Xaneco (aliás, Rainha). Há camaradas nossos que o devem ter conhecido, no Saltinho, a começar pela malta da sua companhia, como o Joaquim Guimarães (que vive hoje nos EUA)... Mas também malta de outras unidades que conviveram, seguramente, com ele: o Paulo Santiago (do Pel Caç Nat 53), o Martins Julião e o Carlos Santos (da CCAÇ 2701), e outros.
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(1) Vd. post de 9 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXXIV: Camaradas do BCAÇ 3884 (Bafatá, 1972/74), procuram-se!
(...) "Gostaria de contactar com ex-combatentes do BCAÇ 3884, do qual faziam parte a CCAÇ 3547, CCAÇ 3548 e CCAÇ 3549, estacionadas em Geba, Fajonquito e Contuboel, respectivamente .
"Eu fazia parte da CCS, que estava sedeada em Bafatá (1972/74). Era comandante o tenente coronel Correia de Campos, o 2º comandante era o conhecido major Vargas (ligado ao Ginásio Clube Português).
"Eu era radiotelegrafista (...). Telemóvel: 914614074; Telefone de serviço > 219236088 (Câmara Municipal de Sintra)" (...).
____________
Notas de L.G.:
(1) Sobre a figura do então tenente-coronel Correia de Campos, um dos heróis de Guidaje, vd. posts de:
2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1235: Coronel Correia de Campos: um homem de grande coragem em Sambuiá e Guidaje (A.Marques Lopes)
(...) "Eu conheci o tenente-coronel António Correia de Campos num dia de 1968, quando eu estava com a CCAÇ3 de Barro, durante uma operação realizada no corredor de Sambuiá e por ele comandada (foi nessa altura também o comandante do COP3).
"No meio do fogachal de uma emboscada vi a sua figura insólita, para as circunstâncias, de pingalim de cavaleiro, pistola e coldre à cowboy, seguros com um fio à volta da coxa direita, sempre em pé e gritando:
- O morteiro está à direita, uma bazucada para lá!... Fogo intenso para o lado esquerdo, é lá que está o RPG!" (...)
28 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1220: Guidaje, Maio de 1973: o depoimento do comandante de um destacamento de fuzileiros especiais (Alves de Jesus)
24 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1210: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (6): Guidaje ? Nunca mais!...
(...) "Assisti durante os ataques a um espectáculo insólito: enquanto durava o fogo, um oficial, nesta caso o Comandante, caminhava sereno pelo meio da confusão dando ordens e tentando manter a calma, alheio aos ataques e aos gritos. Esse senhor era o Coronel Correia de Campos, que comandava o COP3 ao qual a minha companhia ficou dependente enquanto esteve em Guidaje.
" (...) O Comandante achou perigoso a coluna seguir nesse dia pois fazia-se noite e concerteza o IN iria estar emboscado à nossa espera. CDurante a noite sofremos mais ataques. Creio que no total e no curto tempo que aqui estivemos, sofremos pelo menos 15 ataques ao destacamento" (...).
(2) Vd. post de 25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P985: CCAÇ 3490 (Saltinho), do BCAÇ 3872 (Galomaro, 1971/74)
Guiné 63/74 - P1264: Postais Ilustrados (10): Bissau, melhor do que diz o fotógrafo (Beja Santos / Mário Dias)
Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
1. Bilhete postal gentilmente cedido pelo nosso camarada Beja Santos (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70).
O postal foi enviado nas vésperas de Natal de 1969, pelo Beja Santos (2), a alguém das suas relações, a quem dizia o seguinte, entre outras coisas: “Bissau é melhor do que o postal diz. Os fotógrafos também se enganam!”…
Guiné > Bissau > Vista aérea > 1966 > Fotografia do álbum do ex-furriel miliciano Mecânico Auto Adrião Mateus, pertencente à CART 1525 (Bissorã, 1966/67). Reproduzido com a devida vénia. Fonte: © Companhia de Artilharia 1525 - Os Falcões (Bissorã, 1966/67). (1)
Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
2. Pedia a outro Mário, o Mário Dias, para comentar o Postal Ilustrado de Bissau, edição Foto Serra (infelizmente não lhe pude mandar esta magnífica vista área de Bissau que só ontem encontrei no sítio dos Falcões de Bissorã).
Mário: Eis a Bissau do teu tempo, a Bissau que tu, menino e moço, viste crescer e que amavas… e sobre a qual escreveste uns magníficos textos (3)… Não queres fazer uns curtos comentários ? Eu sei que saíste em 1966… De qualquer modo, obrigado, Mário, em meu nome, do outro Mário (Beja Santos) e do resto dos tertulianos.
PS – Tu deves também ter uma rica colecção de postais da Guiné do teu tempo… Ou não ? Estamos a recuperar esse material: Postais Ilustrados… O Beja Santos tem sido incansável em fazer-me chegar alguns dos que mandou pelo correio a amigos e familiares…
3. Eis uma primeira resposta do M.D., com data de de Outubro de 2006:
Caro Luis:
Antes de mais, mea culpa pelo meu tão longo silêncio provocado por três factores:
(i) Constantes e prolongadas ausências no Portugal profundo. (Que raio de expressão!).
(ii) O emergir de novos e qualificados tertulianos com maiores e mais aprofundados conhecimentos sobre a guerra na Guiné sobretudo na sua fase de maior perigo (para as NT) e violência ou seja, a partir de 1969. Como sabes, eu saí de lá em Fevereiro de 1966. Assisti e participei nos primeiros anos dessa guerra, desde 1963, quando, embora já bastante dura e perigosa, não tinha ainda atingido as proporções de (quase) catástrofe
(iii) O principal: preguiça. Quanto a esta, à preguiça, é para mim fonte de grande prazer pois me posso dar ao luxo de a cultivar e usufrui-la em toda a sua plenitude. Não imaginas como é bom alguém poder sentir preguiça e fazer-lhe a vontade!... Porém, a solideriedade e a amizade que se gerou entre nós me leva a que, de vez em quando, me esforce e a sacuda para longe.
Vamos, então, ao que interessa. Neste mail não vem a fotografia de Bissau nele referida. Espero por ela e depois de a ver (recuso-me a utilizar neologismos estúpidos como visualizar e semelhantes) terei muito gosto em dar os esclarecimentos possíveis. Conheci muito bem o fotógrafo Serra bem como a esposa que tirava as fotografias no estúdio.
Infelizmente a minha colecção de fotografias de Bissau e de outras localidades da Guiné é muito escassa. As que tenho serão enviadas com mais alguns textos sobre a Guiné do antigamente. Para isso, conto com a tua preciosa ajuda no sentido de sacudir esta preguiça crónica. Embora sem participar directamente no Blogue nos últimos tempos, não tenho deixado de o visitar sempre que possível. Julgo que os textos recentemente publicados têm bastante interesse para o conhecimento da história da guerra na Guiné. A minha colaboração será mais um olhar ao passado dos felizes anos que antecederam o conflito, embora também tenha algo que contar sobre a guerra propriamente dita.
4. Eis por fim os comentários do Mário Dias - o ex-sargento comando Roseira Dias - ao Postal Ilustrado, enviados ontem e que se publicam a seguir. Mas antes disso quero aqui uma palavra de agradecimento (...e de incitamento)
Amigos e camaradas: É um excelente trabalho, este, que só foi possível graças à cooperação dos dois Mários: o Beja Santos (que me mandou o postalito) e o Dias (que o comentou). Já viram o que se pode fazer com um postalito ? A torrente de memórias que jorra por aí ?
De facto, espero que isto provoque reacções em cadeia... Falem-me das bugigangas (orientais...) que vocês compraram na Casa Gouveia ou no Nunes, para oferecer à namorada e à prima da namorada, às manas, à mamã... Falem-me das últimas cervejas, ostras e camarães, à beira-rio... Das últimas incursões ao Pilão (Cupelom, em crioulo)... Falem-me de amores e de amizades, que foram breves como os furacões tropicais (Tu, Virgínio Briote, que sabes falar da Bissau intimista como ninguém...)... Falem-me da nostalgia, da saudade... Se calhar não é de Bissau, mas dos nossos verdes anos que lá ficaram... para sempre. Bissau, camaradas, para o periquito que ia no mato, ou para a velhice que regressava a Bissau, era bem melhor do que dizia o fotógrafo...
Para muitos camaradas que passaram por Bissau como cão por vinha vindimada, a correr, a caminho do mato - ou no regresso, gastando o último patacão, e escrecendo o último postal ilustrado - é uma autêntica visita guiada em flash back... São comentários preciosos que nos ajudam a compor o puzzle da nossa memória da Guiné e da sua capital, Bissau... (5)...
Obrigado Mário Beja Santos, obrigado Mário Dias...
Memórias de Bissau,
por © Mário Dias (2006)
Aceitando o desafio do nosso comandante Luís, aqui estou eu para prestar alguns esclarecimentos sobre o postal ilustrado de Bissau que o Beja Santos enviou.
É da autoria do fotógrafo Serra, pessoa que muito bem conheci nos idos anos 50 e 60. Tinha o seu estúdio numa moradia, onde também residia, situada na avenida que ligava a praça do Império ao Alto do Crim. Várias vezes tirei fotografias para BI, passaporte ou simples recordação no seu estúdio. Lá, no estúdio, pontificava a sua esposa, pessoa de uma extrema simpatia e simplicidade e de notável nível profissional.
Falando ainda em fotógrafos de Bissau, conheci também o fotógrafo Macedo, natural de Cabo Verde, cujas instalações se situavam na rua que, passando pelo campo de futebol (ver fotografia colorida, no lado direito), seguia em direcção ao rio. A casa ficava do lado esquerdo da rua, um pouco abaixo da esquina do campo.
Outro fotógrafo muito conhecido era o Geraldo, com actividade principalmente ligada a reportagens, oficiais ou não, e que foi, nos anos 50, uma das poucas pessoas em todo o mundo a conseguir fotografias e filmes da circuncisão masculina e da excisão feminina [, vulgo Fanado].
Feito este breve preâmbulo, passo então a assinalar os principais pontos de interesse que podem ser identificados no postal. Como, porém, a perspectiva não é muito favorável, tomei a liberdade de incluir outra, a preto e branco, publicada no blogue pelo Paulo Raposo (3) e que, a avaliar pela posição dos barcos no rio, me parece ter sido tirada na mesma ocasião.
Postal Ilustrado > Guiné Portuguesa > Vista aérea de Bissau. Edição Foto Serra. Comentários de Mário Dias (a complementar com a consulta da nossa página sobre Bissau).
1 -Ponte-cais.
2 - Pidjiguiti. (Aproveito para esclarecer que são dois locais com designações diferentes e que, por vezes, são erradamente referidos. O porto principal de Bissau (1) nada tem a ver com o Pidjiguiti que se situa ao fundo da Avenida da República que tem início da Praça do Império.)
3 - Forte da Amura.
4 -Esplanada-cervejaria conhecida por Zé da Amura onde tantas vezes me deliciei com os excelentes camarões da Guiné e percebes de Cabo-Verde.
5 -Palácio do governador. No jardim tinham lugar em datas festivas e ocasiões especiais recepções, muito bem servidas, como era timbre daquela terra, e que, por se realizarem normalmente ao fim do dia depois de passado o calor, se apelidavam de pôr-do-sol.
6 -Hotel Portugal, mais conhecido por Espada, nome do proprietário.
7 -Residência do bispo.
8 -Casa pertencente à minha madrasta e onde residi durante algum tempo.
9 -Bairro de pequenas residências para funcionários públicos.
10 -Uma das primeiras zonas de expansão da cidade situada nas proximidades do local conhecido como Achada de Burro. Na rua de cima residiu o Fernando Fortes, um dos fundadores do PAIGC.
Guiné > Bissau > 1970 > Vista aérea da cidade, com o ilhéu do Rei, ao fundo, frente ao porto. Ao centro, a Praça do Império e o palácio do Governador.
Foto: © Paulo Raposo (2006) (4). (Julgo que esta foto, tirando a cor, é a mesma que se reproduz acima, a cores, disponibilizada pelo ex-Fur Mil Adrião Mateus, da CART 1525. Muito possivelmente tratava-se de um outro postal ilustrado, vendido nas lojas de Bissau aos nossos militares. L.G.)
Comentários de Mário Dias (a complementar com a consulta da nossa página sobre Bissau).
1- Praça do Império com o monumento Ao esforço da raça.
2 - Palácio do governo.
3 -Moradia onde residia o governador antes de concluído o palácio à qual me referi no episódio da serenata (3).
4 - Associação Comercial.
5 - Museu e biblioteca, edifício onde inicialmente funcionou o colégio-liceu de Bissau.
6 - Pastelaria Império que era também a principal padaria de Bissau.
7 - Cinema da UDIB. Encostado ao edifício pode ver-se uma casa mais baixa que era a secretaria, sala de jogos, bar e outras instalações do clube. Tinha anexo um recinto cimentado onde se fizeram grandes bailaricos. (Belos tempos)
8 - Hospital.
9 - Edifício comercial de Nunes & Irmão.
10 - Catedral.
11 -Edifício dos Serviços de Administração Civil. Nas traseiras situava-se uma escola primária.
12 - Estação dos Correios.
13 - Banco Nacional Ultramarino.
14 - Casa Gouveia. Situado à direita da seta, no limite da foto, era o barracão onde se realizava o cinema antes do novo da UDIB ter sido construído. A ele me referi numa das minhas memórias de Bissau (3).
15 - Aqui, no jardim à entrada do porto, havia, e suponho que ainda lá estejam, dois enormes poilões que tinham uma especial serventia -além da sombra como é evidente.
Era por eles que os pilotos, entrados a bordo dos navios em Caió, se orientavam para a entrada no canal navegável.
16 -Ilhéu do Rei com as instalações da Casa Gouveia: armazéns e fábrica de óleo de amendoim.
17 - Referência indispensável: aqui se situava, embora não visível, a célebre 5ª Repartição ou seja, o Café do Bento.
18 - Alfândega, armazéns e outras instalações portuária.
19 -Escola, tipo artes e ofícios ou industrial, pertencente às Missões Católicas.
20 - Edifício sede do Sport Bissau e Benfica.
21 - Grande Hotel, inicialmente propriedade do senhor Marques e mais tarde do Pireza, anterior dono do hotel existente em Varela, destruído no início da guerra e que, por tal facto, veio para Bissau.
22 - Era sensivelmente neste local que se situava o Foto Serra.
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 9 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1263: Os Falcões de Bissorã, festejando os 39 anos de regresso a casa (Rogério Freire, CART 1525)
(2) Vd. post de 3 de de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1242: Postais Ilustrados (9): Dança do compó, Bissau (Beja Santos)
(3) Vd. posts do Mário Dias sobre a Bissau do seu tempo:
9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXII: Memórias do antigamente (Mário Dias) (1): Um cabaço de leite
19 de Fevereirod e 2006 > Guiné 63/74 - LDXVI: Memórias do antigamente (Mário Dias) (2): Uma serenata ao Governador
15 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXX: Memórias do antigamente (Mário Dias) (3): O progresso chega a Bissau
Vd. também o post de 1 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCI: Domingos Ramos, meu camarada e amigo (Mário Dias)
(4) Vd. post de 3 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1022: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (16): De novo em Bissau, a caminho de... Dulombi
(5) Vd. post de 8 de Dezembro de 2005 > de Guiné 63/74 - CCCXLVIII: Cartas que nunca foram postas no correio (1): Em Bissau, longe do Vietname (Luís Graça)
"Diário de um Tuga > Bissau, far from the Vietnam. 10 de Fevereiro de 1970:
"Meu caro L.
"Gostaria de falar-te de Bissau, cidade lumpen, e da sua morna dolce vita, em termos não propriamente de desencanto mas de desmistificação, a ti que ficaste no Vietname… E com palavras que fossem como ácido sulfúrico na pele!... Receio, porém, que a minha crueldade não chegue a tanto (que a realidade, essa, é requintadamente sádica, grotesca, como as telas de Brueghel ou do Goya!) e que não passe, afinal, de azeda esta carta que daqui te envio, aproveitando o macaréu da minha neurastenia e uns fugazes dias de liberdade vigiada. Daqui, da esplanada do Pelicano, frente ao estuário do Geba, rio tragicamente belo, insubmisso como os povos que habitam as suas margens! (...)
Vd. também outros posts que evocam Bissau como, por exemplo:
20 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXVII: Estórias cabralianas (9): Má chegada, pior partida (Jorge Cabral)
quinta-feira, 9 de novembro de 2006
Guiné 63/74 - P1263: Os Falcões de Bissorã, festejando os 39 anos de regresso a casa (Rogério Freire, CART 1525)
Guiné > Região do Oio > Bissorã > CART 1525 (Os Falcões) (1966/67) > Armamento IN apreendido em 3 de Fevereiro de 1967 em circunstâncias que tem algo de insólito e até de hilariante... A estória está contada na excelente página dos Falcões e merece ser aqui transcrita(1) . Estas fotos foram-me gentilmente cedidas pelo webmaster da página, o ex-Alf Mil Rogério Freire (2).
Texto e fotos: © Rogério Freire (2006). Direitos reservados. Fotos alojadas no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
Caro amigo:
Tenho o prazer de te informar que a CART 1525 (Os Falcões) se vai reunir no próximo dia 11 de Novembro, no Restaurante José Julio, em Santa Luzia, Mealhada para comemorar o 39º ano após o regresso da Guiné que ocorreu em 11 de Novembro de 1967 (Meu Deus, como o tempo passa !!!)
Informações detalhadas estão disponíveis no nosso sítio: Companhia de Artilharia 1525 - Os Falcões (Bissorã, 1966/67).
Aproveito para te convidar a visitar o nosso site que foi actualizado, com a inclusão do nosso Historial e de muitas fotos do tempo e não só.
Agradeço-te que registes esta reunião e, se possível, que a coloques no painel informativo que regularmente recebo anunciando estes convívios.
Bem hajas.
Cordialmente
Rogério Freire
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Notas de L.G.:
(1) (...) "Na madrugada de 3 de Fevereiro de 1967, um grupo de balantas de Bissorã, no qual iam integrados Milícias e Polícias Administrativos, encontrou-se, em plena escuridão da noite, na região de Conjogude [, vd. carta de Binta], com uma coluna de reabastecimento de material do IN.
"A surpresa foi geral, de parte a parte, sendo contudo os elementos de Bissorã os primeiros a reagir e a aperceber-se da situaçãoo, abrindo, acto imediato, fogo. Desorientados, os carregadores inimigos puseram-se em fugas, abandonando, pura e simplesmente, o material que transportavam.
"O nosso pessoal, ainda incrédulo, mais não teve do que recolher aqueles despojos e regressar à vila [de Bissorã], onde contou o sucedido e apresentou as provas materiais da acção. Tinham trazido consigo 4 ML, 8 Esp Aut e grande quantidade de granadas de Mort 82 e LGFog.
"Calculando-se que no local do encontro, houvesse ainda outro material abandonado, imediatamente saiu o 2º Grupo de Combate [da CART 1525], devidamente enquadrado, em plena madrugada ainda, e, efectivamente, pouco depois, regressava, trazendo consigo mais duas MP, granadas de Mort e LGFog, medicamentos, cunhetes com fitas de ML e material diverso. Esta acção, pelo ineditismo de que se revelou, pelos óptimos resultados obtidos, pela acção decisivamente colaboradora da população nativa que colaborou nela, a todos causou satisfação, merecendo até um Comunicado Especial, por parte das entidades responsáveis" (...).
O autor - estamos a citar a história da unidade que está integralmente reproduzido no site - tece a seguir algumas considerações ambivalentes sobre o imprevisível comportamento do balanta do Óio e a sua mania de roubar gado aos vizinhos das outras etnias:
"Como é do conhecimento geral, o balanta é, por tradição, ladrão de vacas. Esse seu costume, que, para além dos enormes benefícios que trouxe para as NT, se veio também, por vezes, a revelar bem pernicioso, foi para nós motivo de bastantes aborrecimentos. Impossível de controlar nas suas saídas para o Mato, o grupo de balantas, no qual se integravam clandestinamente elementos nativos da Milícia e Polícia armados, arriscava-se em incursões perigosas no seio dos terrenos mais bem controlados pelo IN. Daqui resultou um elevado número de baixas por parte dos balantas, assim como da parte dos Milícias e Polícias que seguiam incluídos no grupo" (...).
(2) Vd. post de 13 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXXIX: CART 1525, Os Falcões (Bissorã, 1966/67)
(3) Tanto quanto eu conheço, é a página mais completa sobre uma companhia individual, no TO da Guiné. Desejo aos nossos amigos Falcões um belíssima festa e dou-lhes os parabéns, pelo aniversário. De facto, 39 anos é obra!... Também já é altura de descansarem.... As estatísticas sobre a actividade operacional dos Falcões é impressionante: 281 acções de carácetr operacional, realizadas, das quais 20% com contacto; quase 3600 km percorridos a pé; mais de 4300 km, de carro... Tiveram 19 mortos (apenas 3 propriamente da CART 1525, sendo os restantes das unidades adidas: mílicias, polícia administrativa e caçadores nativos)...
Esta unidade foi condecorado com 9 cruzes de guerra. O Cap Piçarra Mourão (hoje coronel) é autor do livro Guiné, sempre: testemunho de uma guerra (2001), já qui recenseado no nosso blogue: vd. post de 19 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXIII: Piçarra Mourão, militar e escritor (CART 1525, Bissorã, 1966/67) (A. Marques Lopes)
(...) "Não conheço o coronel Piçarra MOURÃO, mas li o livro. A companhia com que foi inicialmente, uma CART, foi colocada em Bissau às ordens do Comando Chefe (noto que ele nunca diz o nome das companhias, é cumpridor das normas, não é como eu).
"Conta que uma vez a companhia foi mandada para o Queré com um pendura, um tenente-coronel americano que vinha ver como era a guerra na Guiné e que, parece, iria depois para o Vietnam. Conta a sua atrapalhação, pois que o deram à sua responsabilidade pessoal. Acabaram por cair numa emboscada e o pendura desatou a tirar fotografias e a filmar de máquina em punho, em vez de usar a G3 (a melhor da companhia) que lhe fora distribuída. Não aconteceu nada e ele pergunta-se se aquelas imagens lhe terão valido alguma coisa no Vietnam.
"A sua companhia ficou, depois, adida a um Batalhão colocado em Mansoa, colocada no Olossato. Diz que durante 1966 foi quatro vezes ao Morés, com o apoio de outras forças. Da primeira vez conseguiram capturar material. Na segunda, em Junho, o guia fugiu na altura decisiva e valeu-lhe um segundo guia para indicar o caminho da retirada. A terceira investida foi em Setembro, com o apoio dos páras e de artilharia; tiveram dificuldades, levaram porrada antes de lá chegar, e os páras não quizeram mais e retiraram para Mansabá. Em Outubro chegaram a Morés, mas a base estava abandonada (...).
"Em resumo, gostei do livro escrito por este militar de carreira. Tem um olhar crítico sobre a preparação antes de ir para a Guiné. Curiosamente, fez o IAO, como eu, na serra de Sintra e na Carregueira. Foi uma lástima para ele, como foi para mim. Como profissional fez a guerra, mas reconhece que esteve envolvido num processo sem saída. O livro, com um traço de humanidade sentida, procura transmitir os sentimentos dos intervenientes, tem relatos de actividade operacional, tem um perspectiva correcta sobre o povo da Guiné, o IN é um combatente sério e motivado. Vale a pena ler.
"Curiosamente (para mim), quem assina o texto do prefácio é o Gen Octávio de Cerqueira Rocha, que era Oficial de Operações do BCAÇ 1857, o tal para onde a companhia do coronel Piçarra Mourão foi como adida. O Vidrão (a alcunha que foi dada ao Gen Cerqueira Rocha quando foi Chefe do Estado-Maior do Exército) diz que a companhia do coronel Piçarra Mourão era a CART 1525" (...).
Guiné 63/74 - P1262: Guidaje: a verdade sobre o Cemitério de Cufeu (A. Mendes, 38ª CCmds)
Foto: © Amilcar Mendes (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
1. Há tempos o nosso camarada A. Mendes, ex-1º Cabo Cmd da 38ª CCmds (Os Leopardos) (Guiné, Brá, 1972/74), abordou aqui o tema (delicado e doloroso) dos nossos mortos em combate, naturais da metrópole ou da Guiné, que terão ficado abandonados na zona do Cufeu, perto de Guidaje (1). Já o convidei a aprofundar este assunto, que mexe com todos nós: "Um dia que queiras escrever sobre isso, estás à vontade... Por muito doloroso que isso seja, temos o dever de contar a verdade"...
No post anterior, da autoria de outro camarada que conheceu o inferno de Guidaje, o 1º cabo paraquedista Vitor Tavares, também há uma referência explícita ao sinistro cemitério de Cufeu (2).
2. No passado dia 3 do corrente, o Amílcar mandou-me a seguinte nota:
Com respeito a tua pergunta sobre os restos mortais das NT que ficaram no Cufeu, deixa primeiro que eu mande mais algumas coisas de choque para despertar consciências e preparar os espíritos e depois vamos lá, ok?
Como reparastes a verdade sobre Guidaje (3) teve o condão de derrubar algumas barreiras mas só algumas. Ainda há verdades que eu acho que são demasiado, digamos, reais.
Corri toda a Guiné, conheci cada mata, cada bolanha, cada etnia, aprendi a falar crioulo, ouvi muitas queixas das pops [populações] naquele tempo sobre militares portugueses, coisas que tu nem imaginas e que constatávamos serem verdades muitas delas (e que se eu hoje aqui as contasse seria sacrificado).
Os excessos também fizeram parte da nossa passagem por lá e e, sem ter sido santo, garanto-te que só no contexto do factor guerra é que os cometi.
Vamos deixar que os camaradas continuem a falar das suas experiências, que eu noto agora serem os relatos já menos poéticos e mais reais. E aí eu irei falar-te da parte encoberta do chamado Cemitério de Cufeu.
Não sei se reparaste que na foto do camarada morto no Cufeu (4), que tu publicaste, vê-se uma mão a mexer no cadáver: é a minha mão à procura de documentos para identificar o corpo. Naquele caso não tinha, por isso passou a número, pecebeste?
Acho a que a derteminada altura em Guidaje os mortos eram números que era não preciso humanizar para não dar rosto à tragédia e os números eram fáceis de apagare. Mas as ordens vinham sempre de cima e essas eram: façam o que puderem!
Perante esse cenário e com dificuldades de evacuações de feridos, como é que se evacuavam mortos?
Guiné > Região de Bafatá > Saltinho > Fevereiro de 2005 > O abutre ou jagudi (corruptela do crioulo jugude). Foto do João Santiago, filho do Paulo Santiago... Na batalha de Guidaje (Maio/Junho de 1973), quantos combatentes, de um lado e de outro, ficaram no terreno para pasto dos jagudis ? Nunca o saberemos ao certo...
Foto: © João/Paulo Santiago (2006). Direitos reservados.
O destino final de muitos foi o chão da bolanha, pois foi preferível isso do que ver os corpos a servirem de repasto aos abutres. Dito assim, parece demasiedo cruel, mas mais cruel era ficar onde estavam. E repara que esses corpos não foram deixados ali por nós, nós apenas ali os encontrámos.
Hoje ficamos por aqui, ok? Voltaremos ao assunto mais tarde e em mais pormenor.Se quiseres, podes publicar.
Um abraço e fica bem.
A. Mendes
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 27 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1123: Um espectáculo macabro na bolanha de Cufeu, em 1973 (A. Mendes, 38ª Companhia de Comandos)
(2) Vd. post de hoje > Guiné 63/74 - P1260: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (2): o dia mais triste da minha vida
(...) "Entretanto a CCP 121, seguida pelos Fuzileiros, elementos do exército e um grupo de Companhia de Comandos Africanos, que foram regressando da Operação Ametista Real, cruzaram-se connosco no Cufeu. Seguimos rumo a Binta, não sem que víssemos inúmeros cadáveres em decomposição, alguns já só em esqueleto, dando a indicação de não serem todos referentes aos mesmos combates.
"Esta zona, sim, era um autêntico cemitério ao ar livre. Para provar isso, quem esteve em Guidaje, nesse período, deve-se ter apercebido que, quando fazia aragem desse lado, o cheiro era bastante acentuado" (...).
Vd. também post de 25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto
(3) Vd. posts de
22 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1199: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (1): Sete anos de serviço
22 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1200: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (2): Um dia de Natal na mata de Cubiana-Churo
22 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1201: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (3): De Farim a Guidaje: a picada do inferno (I parte)
23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1203: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (4): De Farim a Guidaje: a picada do inferno (II Parte)
23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1205: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (5): uma noite, nas valas de Guidaje
24 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1210: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (6): Guidaje ? Nunca mais!...
(4) Vd. post de 23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1203: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (4): De Farim a Guidaje: a picada do inferno (II Parte)
Guiné 63/74 - P1261: Convívio do pessoal do BCAV 2876, em 25 de Novembro: lá estarei com o Nelson (Manuela Gonçalves)
1. Recebi notícias da nossa amiga Nela [Manuela Gonçalves], nossa tertuliana (1) e editora do Blogue Caminhos por onde andei (2)
Boa noite, Luís...
Apesar de uma ausência mais ou menos longa, tenho ido ao blogue com alguma frequência embora sem tecer comentários alguns.
Bem, como tenho verificado que a zona de S. Domingos e Ingoré está muito ausente, aproveito para dizer que dia 25 de Novembro de 2006 vai haver um almoço de antigos elementos do BCAV 2876 - CCS e CCAV 2538, 2539 e 2540.
Vou estar lá com o Nelson e procurarei saber se alguém conhece o Blogue.
Tive imensa pena de não ter ido ao convívio na Ameira (3), mas cá em casa, a bloguista sou eu... Pode ser que no próximo almoço, lá possamos estar.
Saudações amigas
nela
"...nada deve parecer natural , nada deve parecer impossível de mudar!" (B. Brecht)
2. Comentário de L.G:
Nela: Gostei das notícias, gostei do teu mail, gostei do Brecht… Aqui vai o anúncio do vosso convívio, do pessoal da BCAV 2876, a que pertenceu o teu marido, o ex-alf mil Nelson, ferido em combate por mina anticarro na região do Cacheu, na altura em que eu estive na Guiné, em 1969/71 (aliás, viemos no mesmo barco, sem nos conhecermos)…
É verdade, amiga, não temos grande coisa dessa parte do Cacheu, a não ser as cartas ou mapas (Varela, Susana, S.Domingos, Sedengal) que eu introduzi recentemente…
Um beijinho para ti, um abraço ao camarada Nelson (cujo silêncio eu respeito)… A próxima reunião da tertúlia poderá ser em Pombal: aí não terás desculpas, já que é quase ao pé de casa (Caldas da Rainha)…
____________
Notas de L.G.:
(1) Vd. posts de:
26 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLIII: Uma mina na estrada de São Domingos para Susana (Manuela Gonçalves)
8 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXVIII: Dia Internacional da Mulher (6): a guerra no feminino (Manuela Gonçalves)
(2) Caminhos por Onde Andei > Descrição do blogue > "São muitos os lugares por onde tenho passado mas não tantos como os que desejava ainda percorrer! De todos os lugares e tempos, guardo memórias que contribuíram para a pessoa que sou! Viajar no tempo e no espaço, com palavras sentidas!"
(3) Vd. pots de 15 de Outubro de 20056 > Guiné 63/74 - P1177: Encontro da Ameira: foi bonita a festa, pá... A próxima será no Pombal (Luís Graça)
Guiné 63/74 - P1260: Guidaje, de má memória para os pára-quedistas (Victor Tavares, CCP 121) (2): o dia mais triste da minha vida
Guiné > Região do Cacheu > Guidaje > Maio de 1973 > CCP 121 > O ex-1º Cabo Paraquedista Victor Tavares em acção.
Guiné > BCP 12, CCP 121 (1972/74) > O crachá da unidade.
Texto e fotos: © Victor Tavares (2006). Direitos reservados. Fotos alojadas no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
Segunda e última parte do relato A Caminho de Guidaje
Operação Mamute Doido
Guidaje > 23 a 29 de Maio de 1973
CCP 121- Companhia Caçadores Paraquedistas 121
Estimado amigo e camarada Luís:
Conforme prometi cá estou para dar continuidade ao texto A Caminho de Guidaje (1).
Depois de chegados e instalados junto às valas que circundavam Guidaje, do lado da picada que dava entrada no destacamento, aí ficámos a montar segurança durante a nossa permanência.
Depois disto a noite aproximava-se. Entretanto os nossos feridos, o Melo e o Peixoto, foram colocados num abrigo que servia de enfermaria improvisada uma vez que as restantes infra-estruturas se encontravam todas danificadas pelos constantes bombardeamentos que esta unidade tinha sofrido até à data, não oferecendo nem tendo quaisquer condições para socorrer os nossos feridos nem aqueles que já lá se encontravam.
Ai, tudo foi tentado para salvar os nossos companheiros que, em agonia de morte, aguardavam a sua hora de partida para a eternidade. Poucas horas passadas viria a falecer o Peixoto: veio-se assim, infelizmente, a confirmar o que poucas horas antes eu tinha pensado, quando o fui ver à viatura que o transportou do local da emboscada, de Cufeu até Guidaje (2).
Depois de mais uma baixa das nossas forças restava a esperança que o Melo viesse a ter melhor sorte, o que não viria a acontecer, tal era a gravidade do seu ferimento, que o levou ao estado de coma da qual não saiu até à sua morte, depois de evacuado para Bissau, para o HMB 241 e depois para a metrópole onde viria a falecer.
Não posso deixar de referir a coragem de um piloto dos Helis que se deslocou a Guidaje para fazer a evacuação do Melo, pois que como todos sabiam os riscos eram enormes naquela zona derivado à utilização dos Mísseis Strella (3).
Nessa viagem o mesmo piloto acabou por nos levar elos para as HK21 e MG42, assim como meias uma vez já andávamos há cerca de 15 dias com as mesmas - os que ainda as tinham! Foi feita a evacuação do nosso companheiro Melo.
A CCP 121 tinha ainda pela frente a tarefa mais árdua e difícil para executar. Atrevo-me mesmo dizer: a mais difícil da sua história, naquela altura ainda curta - só com 17 anos apenas, na altura; hoje com 50 anos, desde a criação das Tropas Paraquedistas em Portugal (4)...
Perante os factos havia que tomar decisões: tínhamos 3 companheiros mortos, não aguentaríamos muito mais tempo com eles em estado de decomposição, não havia meios para os retirar dali... Fizemos uma tentativa para regressar a Binta mas já em progressão fora do destacamento, deparámos com uma situação delicada: a população seguia-nos...
Tivemos que regressar ao destacamento, por ordens superiores. Posto isto não tínhamos outra alternativa. A solução foi enterrar os nossos companheiros em local ermo, perto do arame farpado, na condição de mais tarde serem daqui retirados, o que até hoje ainda não aconteceu (5).
Quero dizer a todos os Tertulianos que para mim foi o dia mais triste que passei durante toda a minha comissão na Guiné. E esse dia ainda hoje o recordo com tristeza.
Todas as situações relacionadas com a forma de enterrar em Guidaje os paraquedistas isso deveu-se ao facto não haver qualquer previsão de formação de nova coluna a partir de Binta, o que só veio a acontecer passados seis dias, ou seja, a 29 de Maio de 1973 (3).
De 23 a 29 de Maio o destacamento foi atacado várias vezes tanto de dia como durante a noite. Devido à falta de munições da nossa artilharia, esta disparava muito esporadicamente em resposta. Era impressionante a eficácia das granadas IN que raramente falhavam o objectivo, o interior do destacamento.
Quanto à alimentação durante este período, era ao meio dia arroz com conserva de sardinha, um autentico paté. Ao jantar era paté de sardinha com arroz, nos dias seguintes para variar era a mesma coisa, mas digo-vos, amigos, com toda a sinceridade, esta situação da alimentação, embora crítica, nunca preocupou os paraquedistas, porque para atenuar a deficiente alimentação tínhamos como sabem muita e boa água.
Os paraquedistas da 121, quando foram solicitados para romper o cerco para Guidaje (3), tinham consciência plena dos riscos que iam correr, porque a preocupação não era só fazer chegar a coluna a Guidaje, era também tentar chegar lá para dar ânimo e reforçar a capacidade de defesa das NT e preparar-se para apoiar, a partir desta posição, nova tentativa de reabastecimento terrestre.
Fomos informados pelo nosso comandante de companhia, o Cap Paraquedista Almeida Martins, das dificuldades que poderiam surgir, as incertezas e privações que poderíamos vir a ter, porque sabíamos que a alguns quilómetros se encontravam camaradas que precisavam de apoio. por isso avanáamos como sempre o fizemos neste TO e comprimos o nosso dever, à custa da valentia de muitos e o sacrifício de alguns bravos que tombaram heroicamente.
Travámos uma dura batalha mas ultrapassámo-la num combate difícil, mesmo desigual. Mais uma vez provámos que merecemos a Divisa QUE NUNCA POR VENCIDOS SE CONHEÇAM. Assim como para o 1º Cabo Paraq Peixoto e os Sold Paraq Victoriano e Melo a Divisa DAQUELES EM QUEM PODER NÃO TEVE A MORTE.
Entretanto estamos a 29 de Maio e as ordens são para preparar o regresso a Binta (3). Fazem-se as últimas inspecções às armas para passado pouco tempo iniciarmos a marcha de regresso.
Ao contrário do que aconteceu na ida em que eu segui sempre na retaguarda, agora seria o primeiro logo a seguir o meu municiador desta operação, o Sold Paraq Correia, que tão bem deu conta do recado no contacto em Cufeu (1), transportando fitas várias debaixo de intenso fogo do IN. Normalmente o meu municiador era o Sold Paraq Domingos.
Em terceiro lugar no início do deslocamento seguia o Cap Comando Raul Folques (6), o qual tive que chamar a atenção por não guardar a distância adequada à segurança, além de também falar muito alto na comunicação por rádio. Progredíamos com atenção redobrada porque a zona assim o exigia e os acontecimentos recentes aconselhavam.
Andados cerca de trinta minutos, detectámos uma mina antipessoal que balizámos, seguindo em marcha lenta , até que a pouca distância se ouvem duas pequenas rajadas de armas ligeiras. Fizemos uma pequena paragem para logo de seguida reatar a marcha, íamos progredindo muito próximo da picada existente, a mata era semiaberta.
Entretanto estávamos nas redondezas do ponto mais crítico de todo o percurso, estacionámos durante algum tempo, até que rebenta uma emboscada do outro lado da bolanha. Era mais um ataque no Cufeu, à sexta coluna que vinha de Binta para Guidaje, protegida por uma Companhia de Comandos, a 38ª , e por mais duas ou três companhias do exército, que até ao destacamento não tiveram mais problemas .
Entretanto a CCP 121, seguida pelos Fuzileiros (8), elementos do exército e um grupo de Companhia de Comandos Africanos, que foram regressando da Operação Ametista Real (6), cruzaram-se connosco no Cufeu. Seguimos rumo a Binta, não sem que víssemos inúmeros cadáveres em decomposição, alguns já só em esqueleto, dando a indicação de não serem todos referentes aos mesmos combates.
Esta zona sim era um autêntico cemitério ao ar livre. Para provar isso, quem esteve em Guidaje, nesse período, deve-se ter apercebido que, quando fazia aragem desse lado, o cheiro era bastante acentuado (7).
Retomando a picada aberta de novo, seguimos em viaturas rumo a Binta, aonde chegámos sem mais qualquer percalço. Daqui fomos para Farim, onde pernoitámos, partindo na manhã seguinte [, a 30 de Maio de 1973,] rumo a Bissau.
Um forte abraço para ti e todos os tertulianos.
PS - O próximo texto será sobre a Op Amestista Real
____________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto
(2) Extracto do post anterior: (...) "A partir daqui aguardava-se a chegada de viaturas que vinham de Guidaje. Chegadas estas, carregaram-se os mortos e feridos. Nnessa altura fui à viatura onde se encontrava o Peixoto para ver qual era o seu estado. Apertando o meu braço, diz-me ele:
"- Tavares, desta vez é que eu não me safo. - Aí respondi-lhe:
"- Não, tu és forte e tudo vai correr bem, tem calma.
"Quando desci da viatura depois de ver os ferimentos, fiquei com a convicção de que só por milagre é que o Peixoto se safava: fora atingido por vários tiros em zonas vitais" (..)
(3) Vd. post de 21 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1198: Antologia (53): Guidaje, Maio de 1973: o inferno (Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes)
(...) "Para cercar Guidaje, o PAIGC começou por cortar o itinerário de Binta e instalar sistemas antiaéreos com mísseis Strella. O isolamento aéreo de Guidaje iniciou-se com o abate de um avião T-6 e de dois DO-27 e o terrestre acentuou-se em 8 de Maio, quando uma coluna que partira de Farim, escoltada por forças do Batalhão de Caçadores 4512, accionou uma mina anticarro e foi emboscada, sofrendo 12 feridos. Em 9 de Maio, a mesma força foi de novo emboscada, mantendo-se o contacto durante quatro horas.
"A coluna portuguesa sofreu mais quatro mortos, oito feridos graves, dez feridos ligeiros e quatro viaturas destruídas, deslocando-se então para Binta, em vez de subir para Guidaje" (...).
(...) "Em 23 de Maio, saiu uma coluna de Binta para Guidaje protegida por uma companhia de pára-quedistas [, a CCP121]. A coluna regressou ao ponto de partida, porque a picada estava minada em profundidade, e a companhia de pára-quedistas, apesar de ter sofrido violenta emboscada feita por um grupo de cerca de 70 elementos, que lhe causou quatro mortos, chegou a Guidaje " (...).
(...) "Em 29 de Maio, foi organizada uma grande operação para reabastecer Guidaje. Constituíram-se quatro agrupamentos com efectivos de companhia em Binta e dois agrupamentos em Guidaje, estes para apoiar a progressão na parte final do itinerário. A coluna alcançou Guidaje nesse dia, tendo sofrido dois mortos e vários feridos" (...).
(...) "Em 12 de Junho, considerou-se terminada a operação de cerco a Guidaje. Uma coluna partiu desta guarnição para Binta, trazendo o tenente-coronel Correia de Campos, que comandara o COP3 durante este difícil período.
"Baixas das colunas de e para Guidaje, entre 8 de Maio e 8 de Junho de 1973: Mortos: 22; Feridos: 70; Viaturas destruídas: 6.
"Em suma, o primeiro objectivo do PAIGC foi isolar Guidaje, o segundo foi flagelar a posição e destruir o espírito de resistência das forças portuguesas e o último seria conquistar a povoação. Guidaje sofreu, entre o dia 8 e o dia 29 de Junho, 43 flagelações com artilharia, foguetões e morteiros. Logo no dia 8 esteve debaixo de fogo por cinco vezes, num total de duas horas, em 9 sofreu quatro ataques, em 10 três, e até ao final todos os dias foi atacada. No total dos 43 ataques, a guarnição de Guidaje sofreu sete mortos, 30 feridos militares e 15 entre a população civil. Foram causados estragos em todos os edifícios do quartel" (...).
(4) Vd. O sítio das Tropas Páraquedistas (1956-2006) > o historial das tropas paraquedistas em Portugal >
(...) "1952 - É promulgada a Lei 2055, de 27 de Maio, que cria a Força Aérea Portuguesa como ramo independente das Forças Armadas. Esta Lei, no seu artº nº 9, prevê a constituição de uma unidade de pára-quedistas" (...).
(...) "1956 - É criado o Batalhão de Caçadores Pára-quedistas - BCP (Portaria Nº 15671, de 26 de Dezembro de 1955), com sede em Tancos e dependente da recém criada Força Aérea Portuguesa" (...)
(...) "1966 - Formação do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas Nº12 (BCP 12) em Bissau - Guiné (Portaria 22260, de 20 de Outubro). O Batalhão será activado a 14 de Outubro de 1966 incluindo a Companhia de Pára-quedistas do AB2" (...) .
(5) Vd. posts de:
21 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1099: O cemitério militar de Guidaje (Manuel Rebocho, paraquedista)
28 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P919: Vamos trasladar os restos mortais dos nossos camaradas, enterrados em Guidage, em Maio de 1973 (Manuel Rebocho)
(6) Comandante da 3ª Companhia de Comandos, do Batalhão de Comandos da Guiné. Participou na Op Ametista Real (18-20 de Maio de 1973), onde foi ferido (3).
Vd. ainda posts de:
26 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1213: A CCAV 3420, do Capitão Salgueiro Maia, em socorro a Guidaje (João Afonso)
16 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXV: Antologia (16): Op Ametista Real (Senegal, 1973) (JOão Almeida Bruno)
(7) Vd. posts de:
27 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1123: Um espectáculo macabro na bolanha de Cufeu, em 1973 (A. Mendes, 38ª Companhia de Comandos)
22 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1199: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (1): Sete anos de serviço
22 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1201: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (3): De Farim a Guidaje: a picada do inferno (I parte)
23 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1203: A vida de um comando (A. Mendes, 38ª CCmds) (4): De Farim a Guidaje: a picada do inferno (II Parte)
(8) Vd. post de 28 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1220: Guidaje, Maio de 1973: o depoimento do comandante de um destacamento de fuzileiros especiais (Alves de Jesus)
quarta-feira, 8 de novembro de 2006
Guiné 63/74 - P1259: Dicas para o viajante e o turista (4): Um cheirinho a alecrim & rosmaninho (Luís Graça / Jorge Neto)
Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
Para quem chegou agora ao blogue e/ou à nossa caserna virtual, o Jorge Neto (aliás, Rosmaninho, em auto-homenagem à sua costela alentejana) é um branco, um tuga (não sei se ele gosta do termo), da nova geração - e que portanto não fez a guerra colonial, como nós-, que vive e trabalha em Bissau, e que dá voz (e imagem) aos guineenses que a não têm.
Há uns meses atrás (1), eu disse-lhe que continuava a apreciar (e a invejar) o seu trabalho como jornalista independente, lúcido, sensível e corajoso e sobretudo o seu blogue, o seu Africanidades (que agora mudou de poiso)... (Eu penso que ele é também mais coisas, como professor, formador...).
Continuo a pensar que o nosso Jorge (e mais um punhado de gente heróica e solidária, como o Pepito ou o Paulo Salgado) continua a fazer mais pela língua de todos nós, pela lusofonia, pela cultura portuguesa, e pela amizade luso-guineense do que todos os burocratas do Ministério dos Negócios Estrangeiros, de cá e de lá, juntos e atirados aos jacarés do Rio Corubal... Dir-me-ão que é uma hipérbole, uma caricatura, uma metáfora... Seja. A verdade é que eu continuo a ser fã do Jorge, o nosso Alecrim & Rosmaninho em terras da Guiné...
Não resisto, por isso, a roubar-lhe, de tempos a tempos, um cheirinho daquelas terras por onde passámos nos nossos verdes anos (ou onde deixámos os nossos verdes anos)... Hoje transcrevo um saborosíssimo texto que ele postou, no seu blogue, no dia 1 de Maio de 2006, sob o título Buracos e Decibéis...
O Jorge não é um coleccionador do anedótico e do exótico, é um cidadão do mundo que ama sobretudo a aventura humana e que é capaz de se emocionar com o quotidiano dos homens e mulheres que (sobre)vivem em países tão belos e tão precários como a Guiné-Bissau... Conhecedor de África como poucos jovens da sua geração, não mete todos os africanos, povos e países, no mesmo saco da globalização pós-modernista, sendo capaz de fazer juízos diferenciais como este: "Na Guiné-Bissau admirei-me com o civismo (em geral acima da média africana) com que grande parte dos condutores locais conduz os seus veículos"...
Acho que esta é uma também boa dica, para a reflexão e a acção dos nossos camaradas e amigos que se preparam dentro de dias - no dia 17 - para partir para a Guiné (estou a pensar mais concretamente no Carlos Fortunato e no José Bastos) (2)... Enfim, é também uma pequena achega às valiosas dicas que o Vitor Junqueira, outro andarilho e amigo da Guiné e dos guineenses, já aqui nos deixou (3)... Mais dicas de outros tertulianos serão bem-vindas.
PS - Poder-me-ão acusar de paternalismo e de estar a projectar no Jorge - que eu, por infelicidade, ainda não conheço pessoalmente - os fantasmas, as culpas, as frustações, as expectativas e as ilusões da geração da guerra colonial (ou do Ultramar, como queiram)... Até pode ser, mesmo que ele, coitado, não tenha costas tão largas para arcar com tremenda responsabilidade... Mas não é isso: sendo da geração pós-colonial, só tendo conhecido a Guiné pós-independência, o Jorge está naquele país por vontade própria e em missão de paz, como paisano... E se acaso eu o invejo, é apenas porque ele substituiu a G-3 pelo portátil, a máquina digital e o gravador... Como eu gostaria de ter estado nessa situação em 1969/71!...
2. Buracos e decibéis
por Jorge Neto (aliás, Jorge Rosmaninho)
Fazendo por alto a soma do conta-quilómetros pessoal em transportes públicos africanos, calculo que a coisa se situe entre os 10 e os 15 mil. A estes ainda poderei juntar cerca de 10 mil quilómetros, palmilhados no conforto de veículos próprios, alugados ou emprestados.
Horas a fio de estrada. Incontáveis esperas sonolentas em paragens de pó e gasóleo (aqui um carro só anda depois de a lotação estar completa). Cansaço acumulado em estradas pavimentadas a buracos. Avarias na berma, pedidos de boleia à sombra de embondeiros. Furos. Um despiste e uma ressurreição, no Niassa, Moçambique, quando alguns companheiros de viagem morreram abalroados por um camião. Tinha deixado o local minutos antes.
No Zimbabué, cretinocracia habitada por gente com fome, decadentes autocarros mostraram-me um país de capim dourado e elefantes. No centro e norte de Moçambique visitei o paraíso em oxidados machimbombos e trôpegas chapas (as de caixa aberta e as históricas Toyota Hiace). Nas sept places [sete lugares] senegalesas (as também históricas carrinhas Peugeot 504) provei o sabor de um país bonito, recheado de gente oportunista. As neuf places [nove lugares] mauritanas (as mesmas Peugeot, mas com dois passageiros mais que no vizinho Senegal) fizeram-me voar, literalmente, pelas areias do deserto. Nos autocarros estufa (sem janelas ou ar-condicionado) do tórrido Mali desfiz-me em suor, procurando o sul do Sahara. Na Guiné-Bissau admirei-me com o civismo (em geral acima da média africana) com que grande parte dos condutores locais conduz os seus veículos.
No fim de tantas viagens aprendi uma máxima que guardarei para sempre no livro das errâncias por estradas africanas: aqui (como em todo o continente), um transporte público pode não ter faróis, piscas, seguro, chapa de matrícula ou travões, mas tem, de certeza, um potente rádio de colunas roufenhas a debitar decibéis e a desfazer, desta forma, a angústia de longas jornadas a consumir buracos. No interior de uma candonga todos se abanam, não ao som dos acordes, mas ao sabor das covas da estrada. Também poucos falam, que o condutor sempre faz questão de mostrar a potência das roufenhas colunas que adornam o veículo. A foto e o som do interior de uma candonga guineense para ver e ouvir em baixo. Boa Viagem! Boa Viagem!
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Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLV: Ajudar os guineenses a fazer o luto (Luís Graça / Jorge Neto)
(2) Vd. post de 15 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1177: Encontro da Ameira: foi bonita a festa, pá... A próxima será no Pombal (Luís Graça)
(3) Vd. post Guiné 63/74 - P1255: Dicas para o viajante e o turista (1): A experiência e o saber do Vitor Junqueira