quinta-feira, 15 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1595: História da CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72) (Fernando Barata) (3): minas, tornados, emboscadas, flagelações e acção... psicossocial

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Guiné > Zona Leste > Sector de Galomaro > Dulombi > CCAÇ 2700 (1970/72) > Aspecto do Edifício do Comando após o tornado de 25 de Abril de 1971.



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Guiné > Zona Leste > Sector de Galomaro > Dulombi > CCAÇ 2700 (1970/72) > Seis minas A/P detectadas na região de Padada e recuperadas pelas NT.



Fotos: Fernando Barata (2007). Direitos reservados. Fotos alojadas no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.



III parte do resumo da história da CCAÇ 2700 (Dulombi, Maio de 1970/ Abril de 72), unidade que pertenceu ao BCAÇ 2912, e foi render a CCAÇ 2405 do BCAÇ 2852 (1968/70). O autor do texto é o ex-Alf Mil Fernando Barata, da CCAÇ 2700 (1).


2.4 – Incidentes

A 14 de Dezembro [dce 1970] são detectadas 6 minas antipessoal (A/P) em Padada,enquanto decorria a Operação Diamante Indiano.

Em Fevereiro de 1971, é detectada e neutralizada uma mina A/C, em Padada e accionada uma mina A/P, sem consequências pessoais, já que foi accionada por uma viatura. Foram, também, encontradas 50 munições de PPSH [costureirinha].

A 18 de Fevereiro, a 300 metros do aquartelamento, foi accionada por uma viatura uma mina A/C da qual resultaram 2 mortos, António Vasconcelos Guimarães e José Augusto Dias de Sousa e 3 feridos.

A 25 de Abril, pelas 17 horas, forma-se violento tornado, que na sua plenitude arranca a cobertura de zinco do pavilhão que servia de Secretaria, Quarto dos Oficiais e Quarto dos Sargentos bem como da Caserna. Debaixo desta pesada estrutura ficam o Furriel Moniz e dois soldados, tendo um destes sofrido uma fractura exposta da perna.


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Guiné > Zona Leste > Sector de Galomaro > Dulombi > CCAÇ 2700 (1970/72) > Aspecto da caserna após o tornado de 25 de Abril de 1971.

Na noite de 1 de Outubro, quando 2 secções da CCS executavam um patrulhamento nas Duas Fontes, foram emboscadas por um grupo inimigo estimado em 50 homens, causando 5 mortos às nossas tropas. Dois destes, pertenciam à nossa Companhia e estavam destacados no Batalhão [, sedeado em Galomaro]. Eram o Rogério António Soares e o José Guedes Monteiro.

A 5 de Outubro, quando uma coluna se deslocava para Galomaro, uma das viaturas accionou uma mina A/C, causando 1 morto, Luís Vasco Fernandes e 3 feridos.

Não posso precisar no tempo, mas houve um incidente que muito me marcou pela sua brutalidade. Certa noite vem ter ao quarto dos Oficiais um sentinela dizendo que tinha ouvido rebentar uma armadilha provavelmente accionada por qualquer animal, pois ouvia gemidos. Mal o sol raiou uma secção deslocou-se ao local da deflagração dando então com dois gilas (2) feridos, um ligeiramente, mas o segundo com graves ferimentos numa perna. Perante tal cenário interroguei-me como foi possível ter ficado toda a noite a esvair-se em sangue não tendo sucumbido.

Levados para a Enfermaria, aí lhes foram prestados os socorros possíveis, sendo de imediato evacuados para Bissau num helicóptero. Embora um dos nossos milícias, que os interrogava em determinado dialecto, me asseverasse que "eram turras de verdade", eu naquele olhar, para além do sofrimento óbvio, vi também uma certa candura, de não comprometimento. Estaria a ser ingénuo? Na realidade, não faria muito sentido utilizar uma zona de conflito como corredor de passagem. Numa entrevista dada por Pedro Pires ao Jornalista do Diário de Notícias (12/9/2000, pag. 7), aquele referia que a informação que obtinham era "mandada por .... ou pelos célebres djilas, os comerciantes que iam e vinham".

Estaríamos mais ou menos a meio da nossa comissão de serviço, quando vejo chegar ao aquartelamento os dois pelotões que horas antes tinham saído para uma operação que deveria durar 2 dias como quase todas as outras. Logo adivinhei que algo de grave se estaria passar. O grupo de combate tinha sido atacado por enxame de abelhas que deixaram alguns dos militares em estado lastimoso (recordo o estado em que chegou o nosso Capitão!), tendo mesmo dois ou três desmaiado.


2.5 – Flagelações

Sofremos algumas flagelações (nove) ao aquartelamento com uma duração muito curta, nunca excedendo os dois minutos e executadas a longa distância sempre com armas ligeiras (costureirinhas) e ao cair da noite, o que permitia aos grupos debandar, a coberto da escuridão, na expectativa de que não seriam perseguidos.

No dia seguinta à nossa chegada a Dulombi (*), estávamos a sofrer a primeira flagelação (6 de Maio), mantendo-se uma certa pressão durante os primeiros 6 meses de permanência no território. Inexplicavelmente, ou talvez não, estivemos praticamente um ano sem ser flagelados (de Setembro de 70 a Agosto de 71). Contudo foi durante este período que accionámos 1 mina A/C (18 de Fevereiro).
Se nos primeiros tempos houve um certo receio, por de início desconhecermos qual a amplitude que a flagelação iria ter, com o tempo fomo-nos habituando e praticamente já ninguém corria para os abrigos quando se ouvia a costureirinha lá ao longe. Só o Russo saltava para o morteiro de longo alcance, garantindo peremptoriamente que alguma das ameixas com que tinha presenteado o inimigo, teria alcançado o seu objectivo.


Datas das flagelações

1970 > 6 de Maio - 28 de Junho - 3 de Julho - 11 de Julho - 20 de Agosto - 23 de Setembro
1971 > 3 de Agosto - 15 de Outubro - 15 de Novembro



2.6 - Contacto com a população

A população civil de Dulombi rondaria os 250 habitantes. Era abúlica por natureza, na linha da filosofia fatalista característica do povo fula. A agricultura era a sua única actividade produtiva e limitada, de forma incipiente, ao cultivo de mancarra, milho e arroz, produtos que não chegavam para satisfazer as suas necessidades.

Digno de registo na área social terá sido a construção de moradias para cada uma das famílias indígenas, inserida na política de reordenamento da população idealizada por Spínola, a construção duma mesquita e dum posto escolar e respectivo apoio didáctico através de professor recrutado entre um dos elementos da Companhia (o Márinho), assistência sanitária dada pelos nossos enfermeiros e pelo médico do Batalhão, sempre que este se deslocava ao aquartelamento, bem como apoio alimentar através da distribuição regular de arroz pela população.

Sempre que uma coluna militar se deslocava, quer a Galomaro quer a Bafatá, havia o cuidado de proporcionar à população alguns lugares nas viaturas para que pudessem visitar os seus familiares que se encontravam nestas localidades, para fazerem as suas compras (embora o seu poder de compra fosse quase nulo), ou mesmo para darem a simples passeata. Só quando se sabia, à partida, que as viaturas no regresso viriam superlotadas com toda a espécie de géneros, aí essa benesse era banida mas explicada a razão.

Podemos considerar que os militares, após terem terminado os trabalhos de construção do aldeamento, passaram a ser a única entidade empregadora da população feminina, que prestava o serviço de lavagem de roupa.

Tudo isto contribuiu para que entre população e tropa se tivesse construído um ambiente de familiaridade sem incidentes de qualquer espécie.

2.7 - Análise da actividade

É digna de registo a forma sacrificada como todos vivemos, no início da campanha, em abrigos subterrâneos e por vezes alagados na companhia de alguns répteis, sem quaisquer condições de vida. Mesmo assim, conseguiu a nossa Companhia entregar-se de forma denoda à construção do aldeamento para a população ao mesmo tempo que decorria a construção do nosso aquartelamento e sem descurar a actividade operacional. Relembro que a equipa de pedreiros e carpinteiros que ajudaram a levantar tanto o nosso quartel como o aldeamento, foram recrutados entre os operacionais de cada um dos pelotões, do que resultou um emagrecimento em efectivos para a actividade operacional.

Na época das chuvas as estradas eram de difícil transitabilidade o que dificultava os nossos movimentos logísticos.

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Guiné > Zona Leste > Sector de Galomaro > Dulombi > CCAÇ 2700 (1970/72) > Troço de ligação Dulombi/Galomaro na época das chuvas.


Durante os primeiros 6 meses (até 10 de Novembro 1971), o 4.º Pelotão esteve a reforçar o subsector de Galomaro e durante algum tempo, e de forma rotativa entre pelotões, assegurámos a protecção à aldeia de Cansamba [, entre Galomaro, a noroeste, e Dulomni, a sudeste]. Por tudo isto, o nosso Comandante de Batalhão salientou no seu relatório final "a maneira estóica" como suportámos as adversidades, quer através das frequentes flagelações, quer com o rebentamento das 3 minas a/c que nos causaram 5 mortos, "o que de modo algum quebrou a sua determinação de cumprir a Missão que lhe fora imposta, não afectando o seu moral nem a sua capacidade de resistência e de valor combativo".

Também por parte da Repartição de Operações do Comando Chefe das Forças Armadas a apreciação da nossa actividade operacional nos é favorável, sendo por várias vezes referida pelo Tenente-Coronel Mário Firmino Miguel (**), a "boa e bem orientada actividade geral", salientando a amplitude de algumas operações realizadas "com efectivos perfeitamente ajustados à missão e à região" onde se desenvolveram.

Mas como nem tudo são rosas, também no período entre 12 e 19 de Dezembro de 1971, notaram "precária actividade nocturna". É que o Natal aproximava-se, e nestas alturas o instinto de defesa fica mais apurado. Ou então: "ausência de emboscadas sobre os eixos de aproximação IN". Pergunto, alguém saberia quais eram os eixos de aproximação IN? Entre 15 e 22 de Novembro de 1970, "não foi efectuada qualquer acção de reconhecimento ao Rio Corubal" (3). Para quê, se nós já o conhecíamos tão bem?!

A 7 de Abril de 1971, fez o General Spínola uma visita de inspecção ao nosso aquartelamento. O mesmo discordou da forma como estava construído o torreão de defesa que "não estava de acordo com o torreão-tipo aprovado para todo o território"!. No seu relatório, em relação a Cancolim, referia: "notei um mau ambiente humano talvez derivado da pouca dedicação do Comandante da Companhia" ... "parece ser uma pessoa doente". A que tipo de doença se estaria a referir o General Spínola?

A 23 de Janeiro de 1972 chega a Dulombi a CCAÇ 3491 para nos render. Pouco mais de uma semana passada, a 1 de Fevereiro decorre a Operação Varina Alegre compartilhada por um pelotão da 2700 e outro da nóvel Companhia. Embora fosse uma operação para que os periquitos se ambientassem ao cheiro do capim, recordo as preocupações que dela advieram.

No regresso alguns militares atearam fogo ao capim, resultando uma queimada de tais proporções, que gerou a desorientação entre alguns dos novos elementos. Depois de muitos esforços de reunião, não se consegue detectar um dos alferes, adivinhando-se que o mesmo tivesse morrido carbonizado. Imagine-se o alívio que todos sentimos quando pelo alvorecer do dia seguinte ele, exausto, nos aparece junto ao arame farpado. Foi uma dupla sorte: o ter aparecido e não ter accionado nenhuma das armadilhas colocadas à volta do quartel.

A 10 de Março [e 1972] termina a responsabilidade da nossa Companhia no subsector de Dulombi. Dia 11 de Março a Companhia parte com destino ao Cumeré para aí aguardar transporte aéreo para a Metrópole, o que vem a acontecer a 22 de Março.


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Guiné > Zona Leste > Sector de Galomaro > Dulombi > CCAÇ 2700 (1970/72) > Chegada da CCAÇ 3491, os periquitos.

__________

Notas de F.B.:

(*) Não podemos dizer que o inimigo não estivesse bem informado das nossas movimentações.


(**) Chegou a Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, e mesmo a Ministro da Defesa.

_____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:
4 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1494: Tertúlia: Apresenta-se o ex-Alf Mil Fernando Barata, CCAÇ 2700 / BCAÇ 2912

22 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1541: História da CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72) (Fernando Barata) (1): Introdução: a 'nossa Guiné'

26 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1550: História da CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72) (Fernando Barata) (2): A nossa gente
(2) Gilas (pronuncia-se dgilas): vendedores ambulantes, em geral da etnia futafula, que pecorriam a Guiné, e falavam bem o francês, dadas as ligações aos dois países vizinhos: o Senegal e a Guiné-Conacri.

(3) Sobre o Rio Corubal, a sul e a sudeste de Dulombi: vd. cartas de Contabane e de Padada.

quarta-feira, 14 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

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Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Brasão da CART 2339 (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/79)

Foto: © Carlos Marques Santos (2005). Direitos reservados.

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Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Mansambo > CART 2339 > 1968 > O terceiro e penúltimo Comandante da Companhia (um Capitão do QP, de artilharia, com o seu metro e oitenta e tal de altura, assinalado com um círculo a amarelo). Atrás de si, o comandante do Batalhão 2852, Tenente-Coronel Pimentel Bastos, também conhecido por Pimbas. Ao todo, a CART 2339 teve seis comandantes, sendo três capitães, um miliciano e dois do QP, um tenente do QP graduado em capitão, e ainda dois alferes milicianos, nos interregnos... (LG)

Foto: © Torcato Mendonça (2006) . Direitos reservados

Início de mais uma série de estórias do Torcato Mendonça que foi Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69. Vamos chamar-lhe estórias de Mansambo, aquartelamento construído heroicamente, de raíz, pelo pessoal da CART 2339 (1).

Começo então pela… Dança dos Capitães. Uso as iniciais dos nomes. O nome completo será enviado ao Luís Graça, no fim de cada estória. Não é medo. Creio que muitos estão vivos e, devido a um texto recente, achei preferível fazer assim. Assunto a resolver quando do envio. Assumo tudo o que escrevo e, uma vez enviado, deixa de ser meu. Ou seja, o Luís Graça publica ou não da forma que entender.

Conto, procurando ser o mais fiel possível, a experiência vivida por mim e pela minha Companhia há 40 anos.

A Companhia Independente de Artilharia 2339, foi formada em Setembro de 1967. A Unidade mobilizadora foi o RAL 3 de Évora. Na mesma data, para não ficar só, teve uma irmã gémea, a CART 2338. Ambas foram para a Guiné e para o Leste. Nós, CART 2339, dependentes de Bambadinca (sede do Sector L1) e de Bafatá (sede do Agrupamento nº 2959), eles para a zona de Nova Lamego (Gabu).

Em Évora, eram comandadas, aquando da formação, por Capitães Milicianos.

O primeiro capitão, miliciano e arquitecto...

O meu comandante teria cerca de trinta anos ou um pouco mais, arquitecto de profissão, casado. Era o Capitão Mil M. de C. Não pretendia ter grande profissionalismo militar. Procurava o convívio aberto, próprio de quem era uma excelente pessoa na vida civil. Sentia-se que, o ser militar não lhe agradava. Também não tinha grande apreço, estou a ser leve, pelo regime. Nem eu. Soube-o, porque nas escolhas dos nomes para a companhia sugeriram, Centuriões ou Pretorianos. Influências dos livros de Jean Laterguy, sobre as guerras na Indochina e Argélia. O Capitão M. de C. disse-me:
- Olhe que isso tem a ver com Roma mas também com Mussolini.

Falava-se com cuidado. O assunto também seria tratado do mesmo modo. Procurou-se outro nome. Surgiu, sabe-se lá como, o nome do Chefe Guerrilheiro Lusitano Viriato. Ficou a Companhia com o nome Os Viriatos. Como diria Bocage, foi pior a emenda que o soneto. Os portugueses que ajudaram Franco tinham esse nome (2).

Um dia o Capitão informou-nos:
- Devido a doença vou ser internado e, pelos exames já feitos, as doenças de pele, que é o meu caso, não se dão bem em climas tropicais...

Foi internado e não mais voltou. Ficamos assim órfãos do 1º Comandante. Pouco tempo depois ficámos sem um aspirante. Uma lesão num pé e tornozelo levou-o ao Hospital Militar Principal. Não mais regressou também.

2ª Comandante: Um tenente com uma comissão em Angola

Veio o 2º Comandante. Era um Tenente, mais tarde graduado em Capitão. Já tinha feito uma comissão em Angola. Após o regresso continuou como militar. Mais tarde, por razão que desconheço, foi mobilizado e enviado para a CART 2339.

Ainda participou connosco na instrução e fez a semana de campo. Estávamos acampados, próximo de Évora em Novembro de 1967 (2), quando das grandes cheias mais sentidas, principalmente na periferia de Lisboa. A imprensa livre de então relatou bem o que se passou. País amordaçado!

O 2º Comandante da 2339, Capitão L., foi connosco para a Guiné. Por lá andou talvez até Agosto de 68. Se consultarmos o Historial da Companhia vemos que os castigos ou punições terminaram com a saída dele. Posteriormente, uma ou outra, sem intervenção directa de ninguém da Companhia.

O nosso Comandante um dia regressou à Metrópole. Veio, segundo creio, frequentar a Academia Militar. Não sei nem me interessa a carreira militar por ele seguida.

Enquanto esteve connosco, quantas operações fez? Duas ou três? Não sei. Não falo mais dele. Gostei do 1º Comandante pois era uma óptima pessoa. Deste não gostei e não me dei bem com ele.

3º Comandante: um tipo alto, com o seu metro e oitenta e tal...

Ficou a Companhia a ser comandada pelo Alferes Cardoso.

Um dia, no início de Outubro de 68, regressava eu de uma operação e, na subida para o aquartelamento de Bambadinca, sentido Rio Geba ou estrada de Bafatá para o aquartelamento, uma viatura negou-se a cumprir a missão e não subiu. Salta militar e o Unimog recua, desgovernado. Percorre curta distância, entra na valeta e pára meio virado.

Veio gente e gera-se o burburinho do costume. A situação estava controlada. No meio das tropas surge um Capitão, camuflado novo, voz forte e ordem pronta vinda do alto do seu metro e oitenta e muito. Não sabia quem ele era e achei que devia pertencer a outro filme. Dirigi-me a ele, pus-me em sentido e disparei:
- Meu capitão, sou o comandante da coluna, tenho a situação controlada e se precisar de ajuda trato disso.- A resposta veio rápida:
- Sei quem você é, já me falaram de si e esperava-o. As ordens dou-as eu. Sou o seu comandante de Companhia.

Melhor apresentação não podia ter acontecido. Se com o 2º Capitão tinha corrido mal, com o 3º prometia!

Aí estava o terceiro comandante da 2339, Capitão do Quadro Permanente (QP), quase a passar a major e a iniciar a sua terceira comissão, a primeira na Guiné, o seu nome era M. S. A apresentação não foi pacífica mas o relacionamento foi bom. Meses depois, quando o Capitão M. S. comandava a Bataria de Artilharia em Bissau, ajudou alguns militares da sua ex-companhia que continuava com a base em Mansambo.

Foi curta a passagem do 3º Comandante. A Companhia, em Outubro de 68 atravessava um período menos bom. As condições do aquartelamento em tempo de chuvas eram péssimas e a parte militar também não ia bem. O desastre da fonte (4), dois mortos e vários feridos graves, estava bem presente. Cedo o Capitão disso se apercebeu. Tentou e em parte conseguiu, melhorar as condições de vida da companhia.

Operacionalmente, cedo se apercebeu também, haverem muitas diferenças entre os dois teatros de operações – Angola/Guiné. Creio ter feito só uma operação. Bem falava dos seus feitos em Angola. A operação que fez foi ao Burontoni. Azar do Capitão. Correu mal, demasiado mal e foi abortada. Adoeceu, pouco tempo depois, com um problema doloroso e veio até Bambadinca. Assim se finou a passagem do 3º Comandante da 2339. Convenhamos que perder tanto capitão é obra.

O 4º, o último e o verdadeiro comandante da companhia

Passado algum tempo, finalmente, aparece o verdadeiro Comandante da nossa Companhia.

Recebemos, em Dezembro de 68, a visita do nosso antigo Comandante, acompanhado de um outro Capitão. Viemos a saber ser o Capitão L.H. do QP, também na sua 3ª comissão. Era mais novo, vinte e oito anos creio eu, mais baixo na estatura, mais alto na operacionalidade e não só. Um verdadeiro profissional, mesmo com alguma mazela provocada pelas duas comissões anteriores. Era o Comandante que uma Companhia com o perfil da nossa necessitava. Comandou a 2339 em cerca de metade da comissão.

A ele se deveu o elevar da moral, da auto-estima, operacionalidade e um novo ritmo na construção do aquartelamento. Melhoraram os aspectos sanitários, de saúde, alimentação. Logicamente tivemos, a partir daí, uma melhor qualidade de vida. Mesmo assim, foi-nos difícil manter aquele ritmo de operacionalidade, apoio à construção de Manssambo, autodefesas e não só.

Apesar de um melhor comando, não foi fácil. No final da comissão deixou-me saudades. Certamente aos outros militares também. Tinha menos tempo de comissão e ficou em Bissau.

O último comandante fui eu, o sexto se contarmos com o Alf Cardoso. Já a terminar a comissão, o Cardoso veio para o Hospital em Bissau. O estômago atraiçoou-o. Felizmente esperava-nos à chegada em Lisboa.

Se bem me lembro, quarenta anos depois, os acontecimentos ora relatados passaram-se assim. Claro que havia muito mais a relatar. Talvez não tenha interesse. Fica para outras estórias.
___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 30 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDI: Mansambo, um sítio que não vinha no mapa (3): Memórias da CART 2339 (Luís Graça / Carlos Marques dos Santos)

(2) Vd. Fundação Mário Soares > Arquivo & Biblioteca > Guerra Civil de Espanha 1936/39

(3) Na noite de 25 para 26 de Novembro de 1967 registou-se, na região de Lisboa, precipitação intensa e concentrada, tendo atingido, na estação de São Julião do Tojal, no concelho de Loures, 111 mm em apenas 5 horas (entre as 19h e as 24 h do dia 25). As estações da região de Lisboa registaram, nesta data, cerca de um quinto do total da precipitação anual. A dimensão da tragédia foi ocultada pelo regime de Salazar, através da censura: cerca de 500 pessoas perderam a vida, e cerca de 1100 ficaram desalojadas ou viram as suas casas serem seriamente danificadas, muitos quilómetros de estradas ficaram destruídos... Estimaram-se os prejuízos em mais de milhões de dólares, preços da época. Fonte: Geologia Ambiental > Cheias > Casos de Estudo > As Cheias de Novembro de 1967 em Lisboa

(4) Sobre a fonte de Mansambo e as suas tragédias, vd. posts de:

5 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1248: Monteiro: apanhado à unha na fonte de Mansambo em 1968, retido pelo IN em Conacri, libertado em 1970 (Torcato Mendonça)

2 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXV: Do Porto a Bissau (12): A fonte de Mansambo (Albano Costa)

14 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCVIII: A emboscada na fonte de Mansambo (19 de Setembro de 1968) (Carlos Marques dos Santos)

Guiné 63/74 - P1593: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (8): A. Marques Lopes


1. Post do A. Marques Lopes > Ir ou desertar

Caro Luís:

Pensei, primeiramente, não entrar nesta discussão da aceitação, ou não, de desertores na nossa tertúlia (1). Mas entro porque me parece que estamos a falar calmos e serenos, cada um com as suas ideias, o que é natural e bom que seja. E eu penso assim:

(i) Os 2.179 mortos na Guiné (centenas dos quais nem de caixão regressaram), os oficialmente reconhecidos como tal (houve mais...), não foram para lá simbolicamente nem eram filhos de reis - sabemos, aliás, que a maioria dos nossos reis da altura nem sequer por uma questão simbólica quiseram enviar os seus filhos.

Todos eles, e nós que regressámos em cima de duas pernas - ou numa só ou em cima de dois cotos - e pudémos abraçar os nossos queridos com os dois braços - ou com um só ou com dois cotos - e conseguimos rever a nossa terra - ou cheirá-la apenas, porque nos tiraram os olhos -, todos nós e todos esses mortos fomos para lá por imposição de serviço. Houve quem terá ido galhardamente para cumprir um dever sagrado, mas a grande maioria foi com o coração apertado de receios e afogado nas lágrimas dos pais e das mulheres, todos obrigados ou para cumprir um dever profissional. O meu grande respeito e consideração por todos.

Os casos que se falam de aproveitamento oportunista da guerra, da guerra no ar condicionado, não podem ser generalizados, meu caro amigo David Guimarães (2), e fazer esquecer os sacrifícios próprios e os dos familiares dos militares profissionais que também deram o litro na guerra. Todos sabemos do Pedro Lauret e do Lema Santos. Os meus respeitos também por eles.

Creio que é todo este panorama que nos faz estar aqui unidos nesta tertúlia, num só sentido de troca de vivências, na recordação de factos com um fundo comum, na recordação de amigos, de dificuldades partilhadas.

(ii) E isto é política, a discussão da vida naquela nossa cidade distante. Mas, mesmo quando lá estávamos, apercebo-me que a maioria de nós já punha em dúvida ou não estava já de acordo com a vivência nela. Já púnhamos em causa a justeza e os objectivos de quem governava a cidade (3) . Começámos a reflectir politicamente, e houve quem decidisse tomar os caminhos que as suas reflexões lhe indicavam. Desertaram, como já tinham desertado outros antes de partir, bastantes mais, porque já tinham antecipadamente reflectido sobre a falta de justeza e maus objectivos dos governantes.

Houve também os que desertaram por medo. E quem, operacional, não teve medo na Guiné? Não posso por em causa os desertores. Até porque, confesso, essa ideia também passou pela minha cabeça quando estava deitado numa cama do HMP. Só que havia outra opção, mais dolorosa e mais arriscada, sem dúvida, e que era continuar lá junto de todos, partilhar e influenciar a vida de todos, falar com todos sobre a falta de justeza da guerra e dos seus objectivos, criando condições para a aceitação da mudança. Foi o que pensei, eu e muitos outros. Generalizando, agora, todos tivémos uma ideia comum: acabar e voltar vivos.

(iii) E a questão fulcral desta discussão: penso que não faz sentido a presença de desertores neste blogue. Não por serem desertores e escorraçá-los por isso, mas unicamente porque acho que não podem minimamente contribuir nesta troca de experiências que só nós vivemos. Não poderão dizer-me: é verdade porque eu também conheci os fulas, os mandingas, os balantas... lembro-me bem porque eu também estive lá... ou também passei por isso... ou não foi bem assim... ou o Pilão, ah!...
Todos nos percebemos porque vivemos uma experiência comum.

Abraços
A. Marques Lopes
Ex-Alf Mil At Inf (Hoje Cor DFA, reformado)
CART 1690 (Geba) / CCAÇ 3 (Barro)
1967/69
_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

3 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1560: Questões politicamente (in)correctas (25): O ex-fuzileiro naval António Pinto, meu camarada desertor (João Tunes)

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1585: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (1): Carlos Vinhal / Joaquim Mexia Alves

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1586: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (2): Lema Santos

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1587: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (3): Vitor Junqueira / Sousa da Castro

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1588: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (4): Torcato Mendonça / Mário Bravo

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1589: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (5): David Guimarães / António Rosinha

13 de Março de 2007 >
Guiné 63/74 - P1591: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (6): Pedro Lauret

14 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1592: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (7): João Bonifácio / Paulo Raposo / J.L. Vacas de Carvalho

(2) Vd. posts de:

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1589: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (5): David Guimarães / António Rosinha

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1590: O sacrifício dos oficiais do quadro permanente (Pedro Lauret)

(3) Recorde-se a etimologia da palavra Metrópole: do grego metropolis, que significava cidade-mãe, metrópole, cidade natal > metra (matriz, útero, ventre) + polis (cidade).

Guiné 63/74 - P1592: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (7): João Bonifácio / Paulo Raposo / J.L. Vacas de Carvalho


Amadora > RI 1 > 1968 > CCAÇ 2402, em formação > De pé e da esquerda para a direita, o Raul Albino, o Francisco Silva e o Medeiros Ferreira, aspirantes milicianos. O João Bonifácio, que pertenceu à CCAÇ 2402, evoca aqui o exemplo do Medeiros Ferreira que, como é publicamente sabido, não compareceu ao embarque, para a Guiné. Ele é, das nossas figuras públicas, talvez o mais conhecido dos desertores da guerra colonial (1). Na foto, o antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros de Mário Soares (I Governo Constitucional, 1976/78) aparece assinalado com um círculo a vermelho .


Foto: © Raul Albino (2006). Direitos reservados.


1. Mensagem do João Bonifácio:

Olá, Amigo LuÍs;

A minha opinião, e em resposta ao nosso amigo Torcato (2), é apenas aquilo que penso à distância de 7 mil kms. A Guerra do Ultramar já passou e a verdade é que apenas nós, os que por lá andamos, compreende a verdade. Compreendo a frustração do nosso amigo Torcato, e também eu desejava que isto não se tivesse passado, mas do mesmo modo também não podemos fazer nada. Afinal, o Ex-Alferes Miliciano Medeiros, hoje Dr. Medeiros Ferreira, uma figura conhecida na política socialista, também não compareceu ao embarque em Julho de 1968, como parte integrante da CCAÇ 2402, a que eu próprio pertencia.

Pessoalmente, acho que cada um de nós tem o direito a demonstrar o seu ponto de vista, mesmo que negativo. Depois do 25 de Abril, penso que todos os que foram obrigados pelo antigo regime de Salazar e Marcelo Caetano, a refugiar-se em certos países da Europa, puderam todos, ou quase todos, regressar a Portugal e restabelecer as suas vidas junto aos seus familiares.

Por isso, penso que este tema, por muito complicado que seja, deverá ser discutido abertamente por todos os que sintam ter as suas ideias quanto aos chamados desertores. Hoje, e depois de ler neste blogue que o Amigo Luís em tão boa hora iniciou, ter lido das dificuldades de tantos militares, que por pouco não foram apanhados à mão e até fugiram para o mato, para não falar do abandono total por parte dos chefes da guerra em abandonar estes nossos irmãos, até já fiz a pergunta se eu não deveria ter feito o mesmo.

Esta foi a Guerra da mentira, e sinto-me envergonhado de que o Governo actual do Eng Sócrates não tenha dado resposta ao e-mail que lhes enviei, para o Gabinete do Primeiro Ministro, em que solicitei que, pelo menos, reconhecesse este erro grave e publicamente pedisse, em nome do Governo da altura, as desculpas a todos os ex-combatentes e seus familiares, pela afronta de uma guerra sem justificação e um fim sem negociações.

Afinal, meu amigo Torcato, quem estará mais em pecado? Um Governo de arrogantes ou uma meia dúzia que apenas demonstraram a sua revolta em não participar nesta guerra, refugiando-se no estrangeiro ? (...).

Um grande Abraço a todos os que lerem esta minha resposta. E, como vivemos em Liberdade e Democracia, e há 33 anos que vivo no Canada, parece que sei o significado da pura igualdade de pensamentos.

Fiquem todos bem.

João Gomes Bonifácio
Ex-Fur Mil do SAM
CCAÇ 2402/ BCAÇ 2851
, Mansabá, Olossato
1968/70


2. Comentário do Paulo Raposo:

Caro Luís: Um bom dia para ti e todos os teus. Podes passar este mail ao Bonifácio?

Meu caro Bonifácio, eu era da CCAÇ 2405, ou seja, fomos juntos no Uíge para a Guiné.

Vivemos em Sociedade, e ela tem regras. Se o bombeiro não apaga fogos, se o médico não executa a cura, se o lixo não é apanhado, mesmo que discorde do chefe então estamos a viver na selva. Na Guiné um rapaz que queria ser homem, tinha de dar provas.

Quem fugiu, foi por medo, conveniência, comodismo, etc. Uma coisa é certa, por política é que não foi. Esta de, à ultima da hora, vir dizer que se era antifacista, não cola. Se havia assim tantos, então no tempo da outra senhora onde andavam? Andavam a mamar à custa do regime e, para se branquearem, viraram resistentes para aranjarem novos tachos. Cambada de oportunistas.

Atenção, não me compete criticar ninguém, mas galos e perús não são todos uns. Bem me custou o embarque, fugir era mais fácil.

Quanto à legitimidade da guerra, a história é outra. Se a nossa não era legítima então, que andam os americanos a fazer no Iraque, os ingleses em Gibraltar, os franceses nas Iguanas, os russos na Mongólia, etc., etc.

O Alentejo e o Algarve também foram conquistados e povoados, então em que ficamos ? África era pertença de todos nós, agora vai ser dos chineses. E por cá somos invadidos por espanhois. Então, no fim tínhamos razão.

Onde está a nossa auto-estima?

Um abraço amigo

Paulo Raposo
Ex-Alf Mil CCA 2405 / BCAÇ 2852
Mansoa, Galomaro, Dulombi (1968/70)
Herdade da Ameira
Montemor-O-Novo

3. Comentário de J.L. Vacas de Carvalho


Carissímos:Tenho lido (e confesso, não muito interessado) os pontos discutidos: Membros honorários e desertores.

Sobre o 1º : O blogue é um local onde se trocam ideias, situações vividas, memórias, encontro de amizades, etc, etc. Os que por lá ficaram ou como se costumava dizer, lerparam, podemos, melhor, devemos, lembrá-los e honrá-los. Lamentamos sempre as suas ausência e somos solidários com as suas famílias. Infelizmente não estão entre nós. Não contribuem para as nossas conversas. Nem sei, como alguns que por aqui já passaram, se gostariam de pertencer à nossa família. Quando muito, e quando algum de nós partir desta para melhor ou pior (quanto mais tarde, melhor, falo por mim) podemos sim, considerá-lo Tertuliano Honorário ad eternum.

2º Ponto: Uma parte da minha consciência diz que não devemos fazer juízos de valor sobre as causas que levaram um português a desertar. Pode ter sido por razões familiares, razões de consciência ou por outras razões que não me compete a mim julgar ou criticar.Outra parte de mim diz-me que eles simplesmente fugiram, tiveram medo, acobardaram-se. Ponto final. Admiti-los no nosso blogue é uma traição a quem lá esteve e que por quem lá morreu. No entanto o nosso Presidente no seu mais alto critério assim o decidirá.
Abraços
Zé Luís

Ex-Alf Mil
Pel Rec Daimler 2206
Bambadinca (1969/71)
Lisboa

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 15 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira

(2) Vd. post de 13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1588: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (4): Torcato Mendonça / Mário Bravo

terça-feira, 13 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1591: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (6): Pedro Lauret

1. Comentário do Pedro Lauret, Capitão de Mar e Guerra, na reforma, antigo imediato do NRP Orion, Guiné (1971/73)

Caros Camaradas e Companheiros,

O problema dos desertores tem sido colocado recorrentemente na nossa tertúlia e, de forma quase unânime, a opção pela deserção tem sido condenada (1).

Nas observações que se seguem vou colocar num mesmo saco os desertores e os refractários. Sei bem que juridicamente constituem actos diferenciados e com punições distintas, no entanto no âmbito da nossa discussão penso não constituir diferença ética assinalável a não apresentação para o cumprimento do serviço militar e o acto de deixar ilegalmente o mesmo serviço militar após a incorporação. Excluo desta simplificação os desertores em teatro de operações que passam para o inimigo, situação, essa sim, de contornos claramente diferentes e que não são abrangidos pelas observações que abaixo me permito fazer.

Em primeiro lugar gostaria de afirmar que considero que o problema é complexo e que os motivos para a deserção são muito variados:

(i) Nalguns casos podem inserir-se numa lógica de medo e cobardia;

(ii) Noutros inserem-se em opções egoístas de reconstrução de vida noutros países, fugindo à guerra, normalmente com recursos financeiros de suporte apreciáveis, e fazendo-se passar, oportunisticamente, por opositores à guerra e lutadores políticos.

Claro que critico estas opções.

Analisemos agora alguns enquadramentos da nossa realidade nas décadas de 60 e 70.

Portugal nos anos 50 e 60 crescera e desenvolvera a sua indústria num modelo baseado em mão-de-obra barata e pouco qualificada, numa lógica de substituição de importações e não desenvolvendo uma estratégia exportadora.

A Europa, por seu turno, encontrava-se em pleno período de ouro de desenvolvimento necessitando de importar mão-de-obra.

A guerra vai impor um orçamento com 40% da despesa dedicada à defesa e com a necessidade de aquisições múltiplas ao estrangeiro. Havia que encontrar mecanismos de entrada de divisas para equilibrar a balança comercial. A emigração surge como solução.



Gravura (belísssima, de resto, dentro da estética do Estado Novo... ) do famoso Livro da Terceira Classe, Ed. Domingos Barreira, 4ª Ed., 1958, por onde todos estudámos e aprendemos a amar a Pátria. Era, no entanto, um manual profundamente ideológico... servindo o propósito de um Estado, sem legitimidade democrática, de educar o povo, do berço à tumba....

Foto: Luís Graça ( 2007).


O Estado Novo desenvolve uma política de difícil equilíbrio entre a necessidade de ter jovens disponíveis para o serviço militar por 4 anos, e a necessidade de exportar mão-de-obra.

Este equilíbrio vai ocasionar que 18% de mancebos faltem à incorporação, um número que no seu total oscila entre os 150 000 e 200 000.

Muitos destes jovens, do interior, em situações de extrema pobreza, acabam por ser, directa ou indirectamente aliciados para emigrarem com o beneplácito das autoridades.

Meditemos: como foi possível, num estado policial um tão elevado número de emigrantes clandestinos?

Coloco à nossa tertúlia a seguinte questão: serão estes nossos compatriotas merecedores da nossa critica e julgamento? Por mim, decididamente não.

Podemos ainda colocar o problema da deserção noutro nível. A legitimidade da guerra e a legitimidade do poder.

O problema da legitimidade do poder é um problema filosófico antigo e difícil. Não pretendo aqui teorizar sobre a matéria, até porque não é área da minha especialidade, o que não me impede de não ter dúvidas em qualificar o Estado Novo como um poder ilegítimo. Emergiu de um golpe de estado e nunca desencadeou mecanismos da sua própria legitimação. Assim se manteve durante quase cinco décadas. Para mim este é um facto evidente.

O outro problema que se coloca é o da legitimidade da guerra. Todos fomos para a guerra em nome de uma nação pluriterritorial e pluricontinental. Um povo único, do Minho a Timor, como nos ensinaram desde os bancos da escola. Esta construção é falsa e não me vou alongar na sua demonstração. Penso que basta analisar o Acto Colonial de 1933 e a sua evolução (1950-1961) para nos apercebermos da mentira e da hipocrisia que aquela formulação significava.

Por outro lado o direito internacional, através da carta das Nações Unidas reconhecia desde 1945 o direito dos povos a se autodeterminarem.

Por estes motivos para mim a guerra colonial era ilegítima e injusta, pelo que era legítima a deserção.

Quando em 1971 embarco para a Guiné já era para mim clara esta visão. Decidi ir, pois considerei que servia melhor o meu País indo que desertando.

Este é um pequeno contributo numa matéria difícil. Se a tertúlia considerar, útil poderei voltar ao tema.

Com um abraço amigo
Pedro Lauret
__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

3 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1560: Questões politicamente (in)correctas (25): O ex-fuzileiro naval António Pinto, meu camarada desertor (João Tunes)

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1585: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (1): Carlos Vinhal / Joaquim Mexia Alves

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1586: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (2): Lema Santos

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1587: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (3): Vitor Junqueira / Sousa da Castro

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1588: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (4): Torcato Mendonça / Mário Bravo

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1589: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (5): David Guimarães / António Rosinha

Guiné 63/74 - P1590: O sacrifício dos oficiais do quadro permanente (Pedro Lauret)


Guiné > Zona Leste > Estrada Xime- Bambadinca > 1969 > O Cap do QP Carlos Brito, da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71).

Era uma um homem afável e civilizado no trato, como poucos, não tendo nada a ver com a imagem (negativa) que eu tinha dos oficiais do QP que eu havia conhecido até então, na Metrópole. Com os seus 37 anos, e três comissões no Ultramar (Índia, Moçambique e Guiné), foi tão explorado pelo comando do Sector L1 (no tempo do BCAÇ 2852 e do BART 2917) como os seus milicianos e os seus soldados, da Metrópole ou do TO da Guiné.
No final da comissão, lá ganhou, com justiça, os galões de major. Em Fevereiro de 1971, se não me engano. À pala disso, também apanhei um louvor: de facto, dava jeito ao meu capitão, em vésperas de ser promovido a major, mostrar-se grato e reconhecido aos seus rapazes, incluindo este gajo porreiro, que era eu, que se dava bem com os guinéus, e que era o seu pião de nicas (substituindo todos os camaradas furriéis, com baixa, lerpados, cacimbados, em férias em Lisboa, desenfiados em Bissau), embora às vezes imprevisível e inconveniente nas suas bocas, alcunhado de Soviético pelo sargento Piça...
Devo dizer que, hoje, o louvor não me envergonha. Não o escondi mas também não o emoldurei. Nunca me serviu para nada. Mas um dia destes fui à velha caderneta militar, copiei-o e escarrapachei-o no meu currículo... É um simples louvor, não pelas qualidades bélicas que nunca tive, mas pelo meu trato humano e por ter feito a história... da unidade (que ele não aprovou).
É a ele - o bom do major Brito - que se refere o nosso camarada Jorge Cabral, ao evocar o episódio em que, sendo comandante do Pel Caç Nat 63, foi avisado pelo major Brito da chegada do novo comandante do BART 2917, com fama de militarista, e aconselhando-o a cortar as farfalhudas suíças, antirregulamentares, que trazia das férias em Lisboa...
Carlos Brito é hoje coronel e vive em Braga. Creio que passou pela GNR. Já em tempos formulei o desejo - que hoje reitero - de o voltar a ver, bem de saúde e, até por que não, como membro desta tertúlia... Revi-o apenas em 1994, em Fão, Esposende (1) (LG).
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.


1. Mensagem do Pedro Lauret:

Caros companheiros e camaradas,

Sobre a proposta do João Tunes (2) também não me parece ter muito sentido.

Ainda voltarei a escrever sobre refratários e desertores, mas hoje quero fazer um comentário sobre uma frase do David Guimarães (3) quando se referia a militares que faziam quatro comissões numa mesma colónia, apontando que a sua motivação seria apenas ganhar dinheiro.
Em minha opinião é uma afirmação perigosa, pela generalização.

Qualquer oficial saído da Academia Militar em 1961 , ou nos anos imediatamente seguintes, fizeram 4 comissões na mesma colónia ou em várias.

A vida dos meus camaradas do Exército foi de enorme esforço e sacrifício. Quem fez 4 comissões tem pelo menos um ida como subalterno e duas como capitão, eventualmente uma última como major. A vida de um oficial do QP eram dois anos em comissão, um ano no continente.

Como é sabido, o número de oficiais que entravam na Academia Militar começou a diminuir a partir de 1961. A Guerra nos três teatros de operações aumentou sempre em área operacional e em consequente número de efectivos, pelo que foi exigido um esforço muito grande aos oficiais dos QP, que a partir de certa altura já eram insuficientes, pelo que começaram a ser formadas capitães milicianos, como todos sabemos.

A tese de que havia guerra porque os oficiais dos QP a fomentavam para ganhar mais, e que praticamente a vitoória militar estava garantida, foi posta a circular pela propaganda do Estado Novo tendo tido acolhimentos diversos, nomeadamente nos colonos em Angola e Moçambique.

Não quero dizer o nosso companheiro David Guimarães tenha querido aderir a esta tese, mas considero que alguma generalização pode ser perigosa. Não quero dizer que não tenham existido casos como os que são referidos, não foram no entanto a regra, foram a execepção. A Guerra Colonial, como qualquer guerra, deu oportunidades de ganhar dinheiro a muita gente, alguns de forma legítima, outros ilegitima.

Das centenas de oficiais que fizeram várias comissões permitam-me que vos evoque dois de duas gerações: Carlos Fabião, uma comissão em Angola e, penso, quatro na Guiné; e Salgueiro Maia, que em 1974 tinha 28 anos, com uma comissão nos Comandos em Moçambique e outra na Guiné.

Caro David, estas palavras destinam-se apenas a que este tema seja abordado com alguma profundidade adicional.

Um abraço

Pedro Lauret
Capitão de Mar e Guerra, na reforma,
antigo imediato do NRP Orion, Guiné (1971/73)

2. Resposta do David Guimarães:


Nessa matéria, Pedro, peço desculpa... Efectivamente pode haver um perigo de generalização que não era a minha intenção... Perigoso, sim, quando dito alto numa caserna - muito mais quando se tratam de amigos...

Talvez que nem sempre sejamos felizes nos ditos e aí teremos que estar calados somente, ou então encobrir aqueles que o fizeram, omitindo também com receio de ferir os não culpados... Emotivamente falei... Sim, em caso conhecido. Não o deveria ter feito e, sendo certo o que penso e vi, mal é efectivamente qualquer generalização. Por aí peço desculpa... Foram palavras do entusiasmo e o sangue português que me fez falar... Desculpa então, se puderes...

Sei do esforço que todos fizemos quadros e milicianos - isso não ponho dúvidas....

Um abraço, David Guimarães

3. Comentário do Pedro Lauret:

Caro David Guimarães,

Calculei que tivesse sido o entusiasmo das palavras que provocaram o disparar daquela frase que, como todos muito bem sabemos, tem fundo de verdade. O problema único é a generalização.

Voltarei em breve ao problema das deserções e não só … ao problema dos refractários. Posso deixar este dado para a tertúlia, nos 13 anos de guerra a percentagem de refractários foi de aproximadamente de 18%, ou seja, faltaram às incorporações 18% dos mancebos convocados, não é de forma alguma um número residual.

Um grande abraço
Pedro Lauret
_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1313: Estórias cabralianas (14): Missirá: o apanhado do alferes que deitou fogo ao quartel (Jorge Cabral)

(2) Vd. post de 3 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1560: Questões politicamente (in)correctas (25): O ex-fuzileiro naval António Pinto, meu camarada desertor (João Tunes)

(3) Vd. post de 13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1589: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (5): David Guimarães / António Rosinha

Guiné 63/74 - P1589: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (5): David Guimarães / António Rosinha


1. Mensagem do David Guimarães:
Camaradas:

Li com bastante apreço este comentário de João Tunes (1) que emotivamente fala de um facto... Isso, sim, e em jeito de comentário parece-me bem. Aliás o que ele escreve, está correctíssimo e decerto que nos inclinamos sobre exemplos como esse... Mas a nível da proposta feita pelo Tunes, partilho exactamente da opinião do Vinhal - e concordo com a sua opinião pela negativa (2)...

João: O António Pinto, está no Blogue por ti e por quem o conheceu, mas que mereça estar é outra coisa... Não pelos princípios já aqui falados anteriormente - e com os quais estamos de acordo - mas pela injustiça que poderíamos eventualmente cometer para com outros que se baldaram à guerra e apareceram como heróis e alguns (heróis mesmo o foram) e outros que foram para a guerra e até foram mauzinhos...

Sabemos que nessa altura havia três hipóteses: (i) de alta voz dizer não vou - e ia ou ia preso; (ii) outra era fugir e tentar não ser apanhado; (iii) e a outra, que foi a da maioria, era ir mesmo e enfim ter sorte... (digo ter sorte porque no fim quem saiu das balas limpo, teve mesmo sorte)...

Agora havia uma subdivisão daqueles que fugiam, em duas classes: os que fugiam por convicções políticas; e os outros que fugiam porque a guerra era morte e havia medo... Não fomos nós os heróis que fomos para a guerra, não, mas decerto fomos porque muitos de nós não conseguimos fugir e outros tivemos medo das cadeias e represálias, sendo que outros foram por convicção de estarem certos e que efectivamente iam defender a Pátria...

Ainda havia outra classe que ia voluntariamente e os objectivos eram bem definidos: ganhar dinheiro. Infelizmente... Não é por acaso que se faziam quatro comissões na mesma colónia....

Entendo-te, João, mas quantos de nós não gostariam de ter amigos nossos e ex-combatentes - como tu queres colocar o Pinto - aqui junto de nós? Ai, João, vamos deixar estar tudo como está... Honrar, sim ... E se politizamos a situação, porque isso acontece, então alto, estragamos o belo que estamos a fazer... Apesar de sermos muito amigos na caserna...

Mais não sei dizer porque não necessito no momento - é a minha opinião...

Um abraço.
David Guimarães
Ex-Fur Mil At Artilharia Minas e Arm
CART 2716 / BART 2917
Xitole (Bambadinca)1970/72

Porto e Espinho

2. Mensagem do António Rosinh:
Luis Graça e tertulianos:

A rainha da Inglaterra viu um neto ir para a guerra do Iraque. Mesmo que seja um acto simbólico ainda é mais significativo.

Luis, espero que desistas de pedir um referendo.

António Rosinha

Ex-Fur Mil (Angola, 1961) / Ex-topógrafo da TECNIL (Guiné-Bissau, 1979/84)

___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 3 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1560: Questões politicamente (in)correctas (25): O ex-fuzileiro naval António Pinto, meu camarada desertor (João Tunes)

(2) Vd. posts anteriores:

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1585: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (1): Carlos Vinhal / Joaquim Mexia Alves

Guiné 63/74 - P1588: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (4): Torcato Mendonça / Mário Bravo

1. Mensagem do Torcato Mendonça (1):

Caros Tertulianos


Luís Graça: Este Blogue Luís Graça & Camaradas tem um título e normas de conduta. Dele, fazem parte pessoas que com isso se identificam. Trazer á colacção temas como o da inclusão de desertores, não é correcto ou incorrecto, não é fracturante ou não. É perca de tempo. Tem certamente lugar e merece mesmo ser discutido, noutros espaços.

O valor que mais prezo é a Liberdade. É utópico pensarmos que somos seres livres. Há sempre condicionantes que vão limitar essa nossa liberdade. Mas, se a queremos para nós, então respeitemos a liberdade dos outros. Pratico-o!

Isso não me diz, salvo melhor opinião, que inclua ou, pessoalmente, pertença a grupo de pessoas com as quais não me identifico. Entrar em explicações é, como já disse, perca de tempo. Não pretendo ser mais explícito. Respeito todos nas suas opiniões e tomadas de posição ou opções políticas, religiosas, sexuais, ou outras… Exijo que, para comigo, tenham o mesmo comportamento.

Por isso ponto final em determinados assuntos. Por respeito a todos os que comigo lá estiveram. Por respeito aos que não voltaram. Por respeito a todos – mulheres e homens – que no Ultramar, Colónias ou o que entenderem chamar – deram o melhor de si e perderam os melhores anos das suas vidas. Independentemente das suas convicções… mas sempre, ontem e hoje, em solidariedade para com os seus camaradas… até ao limite ou seja, a arriscar a própria vida. Muitos perderam-na na ajuda ao camarada…

Que perca de tempo neste final de tarde. Sejamos livres nalgumas coisas… neste caso o pertencer ou não a um determinado grupo! O aceitar ou não determinadas inclusões, mesmo respeitando a tomada de posição ou opção. A maioria decide. Eu já o fiz!

Forte, mas mesmo forte, abraço para ti do

Fá Mandinga e Mansambo (Bambadinca)
Fundão


2. Comentário do Mário Bravo:

Caríssimo Luís Graça:

Estou perfeitamente de acordo com o Torcato Mendonça. Não quero menosprezar as razões de alguns, que decidiram e com o seu direito próprio, tomar outro rumo que não o daqueles que foram para as colónias, numa guerra que era descabida ( ?!).

Sim, mas com limites. Esses, os que não estiveram no teatro de guerra, que se limitem à sua posição de anti-regime e ponto final neste tipo de observação, de conteúdo duvidoso, em termos de sacrifício pessoal e familiar. É que morreram alguns camaradas, na dita guerra colonial.

Mário Bravo Ex-Alf Mil Médico, CCAÇ 6 (Bedanda, 1971/72)
Porto


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Nota de L.G.:

(1) Vd. post anteriores:

3 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1560: Questões politicamente (in)correctas (25): O ex-fuzileiro naval António Pinto, meu camarada desertor (João Tunes)

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1585: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (1): Carlos Vinhal / Joaquim Mexia Alves

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1586: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (2): Lema Santos

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1587: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (3): Vitor Junqueira / Sousa da Castro

Guiné 63/74 - P1587: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (3): Vitor Junqueira / Sousa da Castro

1. Comentário do Vitor Junqueira (1):

Estimados amigos e camaradas,

Une-nos um laço honroso, mais forte do que o aço da metralha com que o IN tentou mandar-nos desta para melhor.

Na nossa Tertúlia, no nosso Blogue, cabem todos aqueles que, tendo integrado as Forças Armadas, se bateram em nome de Portugal. Como diz o João Tunes, de livre e expontânea vontade ou absolutamente a contra-gosto.

Conquistámos o direito indeclinável ao título de ex-combatentes. No nosso espaço cabem também os filhos, os cônjuges e os amigos dos ex-combatentes. Nesta casa que é nossa, reservemos um lugar especial para o inimigo de ontem, que nunca o foi do povo português. E que com igual dignidade se bateu pelo direito a uma Pátria.

Já não me parece legítimo, por respeito à própria carta de princípios que enforma a linha editorial do Blogue, que a nossa porta se possa abrir a desertores, fujões e traidores. No dia em que um qualquer poeta alegre viesse a fazer parte desta família, eu seria forçado a pedir a minha desvinculação.

Mantenhas para todos,
Vitor Junqueira
Ex-Alf Mil CCAÇ 2753 (Os Barões)
Bironque, K3, Mansabá (Ago 1970/ Jul 1972)
Pombal

2. Comentário do Sousa de Castro:

Caros ex-combatentes e camaradas da Guiné:

Sendo certo que muitos de nós não concordava com a guerra nas ex-colónias, por convicções politicas, havia muitos outros, por falta de informação - se calhar a maioria -, que foi para a guerra com ideia de ir cumprir o dever para com a Pátria, que era necessário o sacrifício de todos em defender aquilo que achávamos ser justo.

Não aceito que uma pessoa politicamente informada deserte para o outro lado, porque aí estava um dos nossos com arma na mão para nos abater na primeira oportunidade. Para mim a palavra desertor não faz parte do meu vocabulário. Como é que me sentiria hoje a olhar para os vários monumentos que existem por todo o País e lendo o nome daqueles que caíram em defesa daquilo que acreditavam ?! Não faz sentido.

Sousa de Castro

Ex-1º Cabo TRMS Radio

CART 3494 / BART 3873

Xime e Mansambo (Bambadinca)(Jan 72 / Abr 74)
Viana do Castelo

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post anteriores:

3 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1560: Questões politicamente (in)correctas (25): O ex-fuzileiro naval António Pinto, meu camarada desertor (João Tunes)

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1585: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (1): Carlos Vinhal / Joaquim Mexia Alves

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1586: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (2): Lema Santos

Guiné 63/74 - P1586: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (2): Lema Santos


1. Mensagem do Manuel Lema Santos. Comentário ao post de João Tunes (1) :

Caros ex-Camaradas da Guiné e Amigos Tertulianos,

Nem sempre o silêncio representa acordo e muito menos uma voz tonitroante significa razão ou peso adicional na média ponderada do resultado final.

Muito recentemente manifestei a minha clara opinião sobre o significado da palavra desertor (2), com a ideia subjacente de não voltar a desejar participar, mesmo calado, num debate que envolva um étimo desse tão negativo quilate emocional.

Exigem-mo, em consciência, o meu próprio percurso pessoal partilhado com mulher e filhos. Adicionalmente, a lembrança de um pai que eu e mais dois irmãos já não tivemos ocasião de abraçar no regresso e de uma mãe que para lá disponibilizou simultaneamente 3 filhos, reforça atitude e solidifica o conceito. Um na Marinha, eu próprio, outro no Exército, meu irmão e médico do Batalhão 1933, ambos simultaneamente na Guiné e ainda uma irmã, em Angola, por via de ter casado com um oficial da FAP. Participação tripartida nas Forças Armadas, a que apenas escapou, na razia e casualmente, um quarto irmão mais novo.

Não terá sido uma heroína a minha Mãe, mas prestigiou o exemplo de muitos milhares de Mães, Mulheres, Noivas, Namoradas, Madrinhas, Amigas ou mesmo simples Conhecidas que, num amargurado silêncio pela conivência imposta, ainda recorreram a insuspeitas reservas de coragem para manterem a regularidade dos aerogramas, das cartas, do contacto possível, transmitindo alegria e coragem onde já não havia muito de ambas para partilhar.

Ainda, em jeito de conclusão, permitam-me acrescentar à lista o meu sogro, coronel do quadro do exército, reformado, oriundo do Colégio Militar, que ao longo do percurso militar que escolheu foi premiado com prisão na Índia em 1961 - esteve em frente de um pelotão de fuzilamento -, duas comissões de serviço como comandante de companhias em Angola (ferido em combate) e Moçambique (mais tarde). Posteriormente, para fechar e já como major, adjunto no EM de um dos sectores na Guiné nos anos 70 de onde foi evacuado com úlcera gástrica. Notável foi o simples regresso e apenas uma úlcera. Aparentemente, claro. Sossobrou a pessoa, fechada para a vida que nós ainda vamos conseguindo viver.

Não me recordo de alguém me ter falado em emigrar, fugir, dar o salto, em português muito claro, desertar, nem ser aconselhado a tal por algum familiar ou amigo.

Tenho a firme ideia de que não conseguiria conviver hoje com essa ideia e de ter de passar a evitar o memorial junto à Torre de Belém que visito com frequência mas nunca como culto. Antes sim, num misto de Homenagem e Paz, de consciência tranquila.

Quando solicitei ao Luis Graça a minha admissão num blogue de ex-combatentes da Guiné, com este nome, foi exactamente isso que fiz.

Se o deixar de ser, deixará de ter sentido a minha permanência no blogue, ainda que com a salvaguarda da admiração e respeito que ganhei por alguns camaradas que aqui já tive o prazer de conhecer.

Um abraço para todos,

Manuel Lema Santos
ex-1º tenente da reserva naval (1965-1972)
ex-Imediato no NRP Orion (Guiné, 1966/68)

Guiné 63/74 - P1585: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (1): Carlos Vinhal / Joaquim Mexia Alves

1. Comentário do Carlos Vinhal ao post do João Tunes (1):


Caro Luís, caro João Tunes e Camaradas:

Pelos seus escritos e pelo modo como expõe os seu pontos de vista, sou admirador do nosso camarada João Tunes.

É, portanto, pelo respeito e frontalidade que ele me merece, que venho dar a minha opinião negativa, sobre considerar, a título póstumo, membro da nossa tertúlia o Fuzileiro António Pinto.

Passo a apresentar as minhas razões:

(i) Já em tempos se chegou à conclusão que incluir alguém como membro honorário do nosso blogue, que por estar morto, não pode exprimir a sua concordância, estava fora de discussão. Caso do Embaixador Álvaro Guerra proposto pelo nosso camarada Beja Santos (2).

(ii) Parece-me, neste caso, estarmos em presença de uma acção que premeia uma posição política. Política não se faz nem se discute no nosso blogue. Assim me disseram.

(iii) Este é um blogue de antigos combatentes (3), que o foram desde a mobilização até à desmobilização ou morte em combate, não cabendo nele pessoas que por convicção política, objecção de consciência e outros motivos, o não foram. Aceitamos no nosso seio amigos da Guiné, familiares dos nossos camaradas já falecidos e outras pessoas que com o seu contributo possam engrandecer o fabuloso conteúdo histórico do nosso blogue.

À consideração dos demais companheiros.

Carlos Esteves Vinhal
Ex-Fur Mil Art MA
CART 2732/CTIG 1970/72
Mansabá
SPM1388

Leça da Palmeira

2. Comentário do Joaquim Mexia Alves:


Caros Camaradas da Guiné:

Faço minhas as palavras do Carlos Vinhal, que vão na linha do que escrevi quando do assunto do Embaixador Alvaro Guerra.

Abraço amigo do
Joaquim Mexia Alves
Ex-Alf Mil Op Esp
CART 3492 / Pel Caç Nat 52 /CCAÇ 15
Xitole / Bambadinca / Mansoa (1971/73)


Termas de Monte Real - Leiria

________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 3 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1560: Questões politicamente (in)correctas (25): O ex-fuzileiro naval António Pinto, meu camarada desertor (João Tunes)

(...) O camarada, fuzileiro naval e alentejano, António Pinto desertou para o PAIGC por convicção política de repulsa para com a guerra colonial. Entendeu prosseguir a sua aversão pelo fascismo e pelo colonialismo, integrando a luta armada contra a ditadura portuguesa nas fileiras da LUAR, liderada por Palma Inácio. Tendo entrado clandestinamente em Portugal, foi preso pela PIDE, sendo prisioneiro na Prisão de Caxias quando do 25 de Abril. Libertado, integrou-se na revolução e foi segurança do General Vasco Gonçalves. Após o 25 de Novembro de 1975, temendo voltar à prisão, foi viver para a Holanda, onde ganhou a vida como cobrador dos transportes colectivos. Faleceu há 4 anos (...).

"Pela minha parte, eu que fiz uma guerra por obrigação mas absoluta e resolutamente contrariado, não atirando pedras a quem fez a guerra com afinco e convicção nem a quem escolheu outros caminhos, incluindo a sua recusa, e porque o meu modelo de vida e de valores são do meu foro e unipessoais, que servem muito bem a minha consciência mas não estão à venda para consumo alheio nem lhe permitindo uso prosélito, proponho que a nossa generosidade camarada promova, a título póstumo, o fuzileiro naval António Pinto a membro da nossa tertúlia" (...).

Comentário de L. G.:

"Não sou dono do blogue. Gostaria que os membros da nossa tertúlia se pronunciassem sobre esta proposta do camarada João Tunes, a quem saúdo. Trinta e três anos depois do fim da guerra colonial/guerra do Ultramar, não há mais tabus. De qualquer modo, não escondo que esta é uma questão fracturante . Por muito generosos que sejam, haverá sempre camaradas nossos, que vestiram a farda do exército português e fizeram a guerra, com ou sem convicção, que têm dificuldades em olhar de frente os seus ex-camaradas desertores...

"Era bom que discutíssemos aqui a proposta do João Tunes de promover a membro da nossa tertúlia, a título póstumo, o ex-fuzileiro naval António Pinto. O João tem a qualidade, rara neste país, de ser um homem que dá a cara pelas suas convicções.

"Acrescento, a título de curiosidade, que um dos três fuzileiros navais aqui mencionados, o Alfaiate, acabou por colaborar com o comandante Alpoim Galvão na Op Mar Verde (invasão de Conacri, em 22 de Novembro de 1970). Acompanhou a força invasora e o seu conhecimento da prisão do PAIGC, em Conacri, foi decisivo para o sucesso da libertação dos prisioneiros portugueses" (...).

(2) Vd. post de 28 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1323: Bibliografia de uma guerra (15): Os Mastins e o Disfarce, de Alvaro Guerra (Beja Santos)

(3) Vd. post de 12 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1363: Questões politicamente (in)correctas (13): Combatentes e desertores não cabem no mesmo saco (Amaral Bernardo)

segunda-feira, 12 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1584: Um choro no mato e as (des)venturas de um futuro comando em Bissorã (João Parreira)


Guiné > Região do Oio > Bissorã > 1965 > CART 703 > João Parreira, um cavaleiro à maneira, embora fosse de artilharia e tivesse mais tarde trocada a dama pelos comandos...

Fotos: © João S. Parreira (2007). Direitos reservados.

Texto enviado em 22 de Fevereiro de 2007, pelo João S.Parreira (ex-furriel miliciano comando, Brá, 1965/66)(1).

Caro Luís Graça,

Nos primeiros dias de Janeiro de 1965 estava em Bissorã (2) e, sem que o previsse ou tivesse pedido, recebi uma carta do Subdirector da delegação do Ministério das Finanças junto do Ministério onde ingressei com 19 anos (aqui abro um parêntesis para dizer que fiquei espantado pois puseram-me a trabalhar numa sala com cinco solteironas de meia-idade) e que tinha sido meu explicador, com a indicação de que deveria entrar em contacto com a esposa do Governador Schultz.

Nunca o fiz por não saber bem o que iria escrever. No mês seguinte, alguém de Lisboa, não me recordo quem, disse-me para entrar em contacto com o Major Semedo de Albuquerque que se encontrava no Quartel-General.

Quando saí de Bissorã, fui informado pelo meu Comandante de Companhia, o Capitão Amaro Rodrigues Garcia, que quando chegasse a Brá iria frequentar o curso [de comandos] e por isso foi com surpresa que durante a entrevista com o Major comando António Dias Machado Correia Dinis, Comandante do C.I.C., este me esclareceu que o mesmo só se iria realizar dentro de alguns meses, não sabia ainda quando, mas que ia ser aceite e que, como tal, deveria regressar na próxima coluna para Bissorã, a fim de resolver a minha situação e apressar o meu regresso com vista a recompletar um Grupo que se encontrava reduzido a 12 elementos, e com a mesma finalidade outro furriel e alguns praças de outras Companhias chegariam também dentro de pouco tempo.

Um breve passagem por Bissau

Durante a minha breve estadia [,em Bissau], além de ir dormir a Brá pouco tempo passei no aquartelamento pois andei atarefado a tratar de assuntos e de compras que vários camaradas me encarregaram de fazer, não deixando todavia de gozar os prazeres que a cidade me podia oferecer, indo à UDIB ver uns filmes, observando os seus edifícios, passeando ao longo do Rio, ficando várias horas nos cafés, e, claro, bebendo umas cervejas na então famosa esplanada do Bento.

Aproveitei também a minha estadia em Bissau para ir bater à porta de casa do Major Albuquerque, tendo conhecido a sua esposa que se encontrava presente na altura. Foram de uma simpatia extrema, tendo-me ele pedido o meu SPM. Quando me despedi, disse-me que se precisasse de alguma coisa que lhe ligasse.

Nunca mais o vi ou falei com ele, mas quando acabei a comissão sem levar nenhuma porrada e com a caderneta limpa, não exclui a hipótese, quem sabe, se nos bastidores ele não terá deixado uma palavra a meu favor.

Para o nosso transporte para Bissau e regresso estava assegurado um serviço de viaturas militares, Unimog ou Mercedes que com horários determinados e partindo do Q.G. e da Amura faziam trajectos diários para Brá.

Partidas da Amura: 12h30, 13h30, 18h00, 19h00.
Partidas do Q.G.: 13h15, 14h30, 19h20, 20h15, 22h00.

Caso se perdesse o transporte ou o regresso fosse mais tarde, havia sempre a possibilidade de nos darem uma boleia de jipe.

Quando regressei de uma dessas ausências disseram-me que o Alferes comando Maurício
Saraiva, que era o comandante do Grupo Fantasmas a que iria pertencer tinha andado à minha procura pelo que fui imediatamente falar com ele.

Coronel comando Saraiva, antigo comandante do Grupo de Comandos Fantasmas.

Foto: Associação de Comandos (com a devida vénia ...)


O Coronel comando Maurício Leonel de Sousa Saraiva faleceu em 16 de Março de 2002. Durante a vigência do Grupo com a patente de alferes , foi agraciado em 1964 com a medalha de Valor Militar e como tenente em 1965 também com Valor Militar.

Chegou o Domingo, dia de regresso, e ao subir para uma das camionetas da coluna encontrei o Alf Adalberto dos Santos Seco (Cmdt Pel Acomp da Companhia) que me apresentou o Fur Fernando Pereira Gomes que vinha sentado a seu lado e que iria ser o meu substituto.

Por não me interessar, nunca soube quem activou o processo de transferência, mas
creio que para os meios militares mais rápido não podia ser.

Regresso a Bissorã

Chegámos [, a Bissorã,]às 14h00 e ficámos a saber que a Companhia estava há vários dias no Olossato onde tinha montado novamente estacionamento com a finalidade de levantar abatizes na estrada Olossato-Farim, e que só deveria regressar a Bissorã na quarta-feira.

Conforme as instruções recebidas de não ficar muito tempo em Bissorã, e apressar o
meu regresso a Brá, fui da parte da tarde do dia seguinte falar com o Encarregado da Secretaria, o 1º Sgto Maurício Martins Clemente, sobre a alimentação, tendo ele feito as contas e dito que, como eu recebia mensalmente para alimentação 827$00, ia dar-me 216$00 referente a 8 dias.

Terça-feira, ainda com o Capitão Amaro Garcia e a Companhia fora - era como se fosse
dia santo no aquartelamento –, para matar o tempo entreti-me a arranjar matéria para tirar fotografias e assim durante o dia pedi ao Nelson Borges (vaguemestre)
que andava também por ali vagueando para mas tirar, e numa delas apanhou-me de lado,
e sem eu ter dado por isso, a olhar para uma bajuda. O Nelson é hoje professor de arqueologia e história na Universidade de Coimbra.

Guiné > Região do Oio > Bissorã > 1965 > O Parreira e as bajudas

Fotos: © João S.Parreira (2007). Direitos reservados.


Depois de almoço, como estava cansado (!), fui deitar-me, tendo sido acordado pela Danfa que foi ao meu quarto buscar roupa, tendo lhe eu pedido, ainda sem lhe dizer que ia sair de Bissorã, para ma devolver antes do dia estabelecido.

A seguir ao jantar e sem qualquer motivo aparente comecei a sentir-me inconfortável
e irritado pelo que, para espairecer e acalmar, resolvi sair do Aquartelamento e comecei a andar pela estrada absorvido com vários pensamentos supérfluos que me estavam a acalmar, pensamentos esses que de repente derivaram para o apreensivo e que se centraram no que iria ser o meu destino e a minha nova vida em Brá, quando no silêncio da noite, ouvi ténues vozes que me pareciam serem cantos ou lamentos que vinham do mato. Parei, e só naquela altura realizei que sem ter dado por isso já me encontrava muito afastado do Aquartelamento.

Convidado inesperado num choro balanta

Entre regressar ou avançar para o local onde tinha ouvido as vozes, optei por continuar a andar mais algum tempo na estrada para pensar na situação. Tendo avaliado os prós e os contras cheguei à conclusão que se por ali houvesse alguns elementos IN por certo me teriam já raptado ou morto, já que não me podia defender mesmo que tivesse tempo para reagir, pois ia desarmado.

Se isso acontecesse ninguém teria conhecimento e seria mais um militar cujo paradeiro ficaria por desvendar. Com um “que se lixe” inicial, e movido pela curiosidade, resolvi saber o que se passava pelo que saí então da estrada e embrenhei-me no mato e aí, agora com um seja o que Deus quizer, dirigi-me na direcção de onde tinha ouvido as vozes.

A certa altura vejo um africano já perto de mim, pois tinha vindo ao meu encontro pelo que deduzi que devem ter dado pela minha presença quer na estrada quer já no mato. Sem me fazer qualquer pergunta disse-me que estavam num Choro, que eu não fazia nenhuma ideia do que era, e apontou para um ponto do mato.

Acompanhei-o em silêncio, e depois de algum tempo deparei-me com muitos africanos ao relento, alguns sentados em semicirculo, junto a umas palhotas que eu desconhecia que ali existissem. Felizmente que me receberam bem pois ele levou-me à presença do homem grande que se encontrava sentado e, depois de trocarem umas breves palavras no dialecto local, percebi pela deferência com que o tratavam que devia estar a presidir à cerimónia fúnebre.

Depois de ouvir o que o jovem africano lhe tinha dito, o ancião estendou o braço e apontou para o seu lado esquerdo, que eu tomei como se fosse para me sentar a seu lado se não estivesse ocupado, e de facto assim foi pois mandou saír o africano que ali estava.

Apesar de ser o único branco no meio de muitos africanos de ambos os sexos, todos eles meus desconhecidos, em nenhuma altura me senti mal ou ameaçado. Passado algum tempo vieram trazer ao homem grande uma malga enorme cheia de líquido.

Sem beber, e sem me dizer o que era, entregou-ma e disse para ser o primeiro a beber uma vez que, segundo disse, eu era o convidado. Ora fosse o que fosse que estivesse na malga eu não podia recusar pois para além de estar a ser observado, seria uma ofensa.

Quando pus à malga à boca e toquei ao de leve com a língua no seu conteúdo, não sem certo receio, fiquei a saber que era vinho de cajú. Assim, e como gostava bastante daquela bebida, estava a satisfazer-me, pois pensava que era só para mim, quando ainda com ela na boca ele estendeu os braços e eu então entreguei-a, pelo que bebeu um trago, tendo-a depois passado ao próximo e assim sucessivamente.

Estando com os sentidos mais concentrados no circuito que a malga ia percorrer, do que observar o que se passava ao meu redor, não pude deixar de reparar que todos eles tiveram a malga na boca muito menos tempo do que eu, pelo que cheguei à conclusão que sem ter dado por isso tinha abusado.

Como pensei que também seria uma ofensa levantar-me e sair dali, e como de vez em quando vinham trazer mais vinho de cajú, por lá fiquei muitas horas, tendo regressado ao aquartelamento já de madrugada, pelo que deitei-me e dormi lindamente.

Uma última operação, à base de Biambe

Só acordei com o barulho resultante do regresso da Companhia que, como o previsto,
tinha chegado naquela quarta-feira.

Segundo consta no relatório, durante esta curta estadia o aquartelamento no Olossato
foi atacado com Morteiro, LGF e armas automáticas. Ao amanhecer foi batido o local e encontraram 1 GM-F1, 3 carregadores, 3 embalagens de morteiro, vários cartuchos e munições

A CART 730 e o Gr Comb da CART 566 que trabalharam em conjunto no levantamento das
32 abatizes que encontraram durante o tempo de estadia, foram uma vez flagelados
e depois emboscados durante 38 minutos, tendo sofrido 5 feridos, e noutra sofreram
uma emboscada durante uma hora que originaram às NT 1 morto e 4 feridos.

Nessa mesma quarta-feira aguardei que o pessoal voltasse à calma e normalidade do aquartelamento e pelas 16,30h fui falar com o Capitão Garcia e disse-lhe que o Major Dinis me tinha dito para regressar a Brá na primeira coluna, e informei-o que o meu substituto já tinha chegado pelo que lhe perguntei se já podia entregar o material de guerra e aquartelamento ao Gomes tendo ele dito para o fazer na quinta-feira, uma vez que no dia seguinte sexta-feira estava prevista uma coluna para Bissau.

Assim no dia seguinte vi-me livre daquele material, e por se encontrarem em falta tive que comprar lençóis e fronhas.

A Binto, conforme lhe tinha pedido, foi certinha a entregar-me a roupa, tendo-lhe eu pago os 60$00 e dito que ia sair de Bissorã.

Guiné > Região do Oio > Bissorã > 1965 > O Parreira e a Binto Danfa, a sua lavadeira.

Foto: João S.Parreira (2006). Direitos reservados.


Aqui aproveito para mencionar que, numa das visitas que fiz à Binto, ela contou-me sobre o Fanado dos homens (nome para circuncisão) em que, após este acto, os homens andam pelo menos uma semana a baixar os olhos quando passam por mulheres.

Preparei-me para ir na coluna, mas das duas uma, ou ela saiu mais cedo do que o previsto ou eu atrasei-me alguns minutos porque quando me ia dirigir para o local da concentração, já ela se via ao longe.

Passou-se Sábado, e no Domingo o Capitão, apesar de eu já ter ter um substituto, achou que devia fazer parte da operação desse dia, assim tive que ir pedir ao Gomes que me devolvesse a G3 e o restante material.

Desde modo, e apesar de estar com um pé fora e outro dentro, o ter perdido a coluna fez com que levasse com a operação à Base de Biambe, em que se capturou pela primeira
vez material, tendo a Companhia, devido à minha ausência, que esperar várias horas
para poder regressar.

Até breve.
João Parreira

__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post anteriores do (ou referentes ao) João Parreira:

3 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74- CCCXXX: Velhos comandos de Brá: Parreira, o últimos dos três mosqueteiros

6 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXLI: O 'puto' Parreira, do grupo de comandos Apaches (1965/66)

20 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXLIII: Com a CART 730 em Bissorã e Olossato (1965) (João Parreira)

13 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXIII: O baile dos finalistas do Liceu de Bissau de 1965 (João Parreira)

23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

(2) Vd. post de 3 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74- CCCXXX: Velhos comandos de Brá: Parreira, o últimos dos três mosqueteiros

(...) "Algumas semanas em Bolama com a minha Companhia, a [CART] 730, cerca de um mês no K-3 e ainda em Bissorã, com nomadizações e operações com algumas peripécias, apesar de tudo achei que não foram maus. O pior veio depois.

"Em 6 de Janeiro 1965, cerca das 03H00, numa operação em Catancó (Olossato), fui ferido com estilhaços de granada, bem assim como três outros camaradas, entre eles um praça e o meu Comandante de Pelotão que devido à gravidade tiveram que ser evacuados.

"Na presença do Capitão, que tinha ficado com 3 pelotões em Cancongo a aguardar o nosso regresso, atribui-lhe as culpas, pois antes tinha discordado com a ordem que nos tinha dado, mas não quis ver a imprudência e puxou pelos galões.

"Assim, rodeado por labaredas às quais fui alheio, decidi que devia sair da Companhia e, sem olhar a possíveis consequências, comuniquei-lhe de imediato que ia tomar as devidas providências para ir para Brá, para os Comandos.

"Tinha já tomado conhecimento que em 28 de Novembro de 1964 no regresso de uma operação uma viatura do Grupo Fantasmas tinha sofrido o rebentamento de uma engenho explosivo na estrada de Madina do Boé – Contabane, perto do pontão do Rio Gogibe, tendo-se incendiado, o que originou a morte de oito Comandos, entre eles o Furriel Artur Pereira Pires (a quem fui substituir) e dois feridos graves.

"Tal como era a minha intenção, e com a devida autorização segui em Fevereiro para Brá, onde me apresentei ao respectivo Comandante, Major Inf Cmd António Dias Machado Correia Dinis que me comunicou que ia ser desde logo integrado no Grupo Fantasmas, que se encontrava reduzido, e nele participei em todas as operações até à sua extinção.

"No mesmo Grupo fui ferido em mais duas operações, uma em 20 de Abril [de 1965], cerca da 01h00 após o regresso de uma operação na zona de Incassol. O Grupo encontrava-se estacionado junto à CCAV 703 que se encontrava a guardar o perímetro, quando repentinamente fomos atacados. Deste ataque a Companhia sofreu oito feridos (três deles graves) e os Comandos quatro feridos sem gravidade.

"Noutra operação, a 6 de Maio, efectuada a um acampamento situado na mata a SW de Catungo (Cacine), em que foi capturado grande quantidade de material de guerra e sanitário, o Grupo (reduzido a 22 homens) teve 10 feridos, entre eles o Capitão de Artilharia Nuno José Varela Rubim que mais tarde ficou a comandar a Companhia de Comandos.

"Em virtude de ter sido ferido com alguma gravidade fui evacuado de heli para o Hospital Militar em Bissau, bem assim como um grande amigo e camarada, o Furriel Joaquim Carlos Ferreira Morais, que, infelizmente, faleceu a meu lado e do qual ouvi a última palavra. Como era amparo de mãe, e não tinha meios financeiros, teve que ser feita uma subscrição a fim de se angariar fundos para que o corpo pudesse regressar a Portugal.

"Com a extinção do meu Grupo, que estava reduzido a pouco mais do que meia dúzia de homens fui integrado num dos dois restantes, os Camaleões, os quais também acabaram por desaparecer, tal como o outro, os Panteras, devido a muitos dos seus elementos terem terminado a comissão e estarem a aguardar o embarque.

"Deste modo deixaram de existir os três primeiros Grupos de Comandos formados no 1º Curso e tornou-se necessário criar o 2º. Curso, no qual participei. Tendo terminado o Curso deslocou-se a Brá o Governador da Guiné, o Comandante-Chefe General Arnaldo Schultz, a fim de, em cerimónia oficial, nos colocar no peito os respectivos crachás. Na mesma altura foram-nos entregues os restantes distintivos. Fui integrado então num dos quatro novos Grupos, os Apaches.

"Com o regresso a Portugal do Capitão Rubim, em Fevereiro 1966, ficou a Comandar a Companhia de Comandos o Capitão de Artilharia José Eduardo Martinho Garcia Leandro, que até à data estava a comandar a Companhia 640, estacionada em Sangonhã.

"Em Março de 1966 deu-se ainda início ao 3º. Curso, destinado a completar os Grupos existentes que já se encontravam desfalcados. Para este Curso apresentaram-se um 2º Sargento, um Furriel e 18 praças. Fiquei nos Apaches também até à sua extinção, uma vez que chegaram a Brá, em 30 de Junho de 1966, os primeiros Comandos formados em Portugal, comandados pelo Capitão de Infantaria Comando Álvaro Manuel Alves Cardoso.

"Apesar de todas as vicissitudes por que passei, em 19 de Agosto de 1966, pisei finalmente o solo da nossa Pátria. Muitas vezes dou por mim a pensar se teria valido a pena o sacrifício e o sangue derramado, e se não teria sido melhor ter aceite a oferta e ter ficado na Secretaria, em Lisboa.

"João Parreira (ex-Furriel Miliciano Comando) (Sassoeiros-Carcavelos) (...)