Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 21 de agosto de 2008
Guiné 63/74 - P3143: Blogoterapia (62): A minha vida morreu; morreram os meus amigos (Santos Oliveira)
1. O nosso camarada Santos Oliveira, ex-2.º Sarg Mil Armas Pesadas Inf.ª, Como, Cufar e Tite, 1964/66 (*), mandou-nos esta mensagem em 1 de Agosto de 2008.
Vinhal
Quero dizer-te que tentei alisar, com o ferro de engomar, o documento que pretendia digitalizar, mas ele transformou-se em fragmentos de pó.
Entretanto, lembrava-me das fotos daqueles dias negros em que, exposto ao fogo, de costas para a Mata do Cachil, chorava, sentado sobre a paliçada.
Foram alguns dias assim…
Junto as fotos referidas.
Abraço, do
Santos Oliveira
2. Hesitei entre duas séries, Blogoterapia ou Blogpoesia, para publicar este trabalho.
Optei pela Blogoterapia, porque aqui se reproduz um grito de dor pela perda de dois amigos de infância. Nesta fase da vida, a amizade verdadeira se funde e mantém-se para sempre. A distância e o tempo não as apaga. Como podemos ver, nem a morte.
Quando se está longe, carente de todos os afectos, a perda de dois amigos é ainda mais sentida, mais violenta.
CV
Cachil > De costas para a mata
3. Encontrei um fragmento, quase ilegível (também pode ser por causa das lágrimas), decerto devido ao papel onde foi escrito (papel de seda) donde se consegui coligir o seguinte:
A minha vida morreu; morreram os meus amigos.
Quando empalideci, quando chorei após a notícia tão atroz, acabada de chegar, de que os meus dois únicos amigos de infância e juventude morreram num curto espaço de tempo, julguei não aguentar mais.
Ao Manuel Couto Ferreira dos Santos e ao José Nuno Guimarães dos Santos, a minha Homenagem possível, de profunda e imensa saudade.
O primeiro foi levado por um acidente e ao segundo levou-o o cancro.
Foram companheiros até a morte nos separar.
Nada mais resta, irmãos.
Jamais encontrarei amigos assim e mesmo que os encontre, jamais serão iguais a Vós.
Cachil – Ilha do Como (Guiné)
1964/65
Num escasso tempo, somente,
Amigos de toda a Vida
Partiram, sem despedida…
E a minha Alma dormente
Sentiu-se só e perdida.
A Guerra nos separou
No tempo ou no viver
E para, assim, nos perder
...E o Guerreiro chorou
Até ao amanhecer.
Quisera ter um abraço,
Sussurro ou peito amigo,
Mas só silêncio restava.
O Grupo, deu-me o espaço
De Filhos. Mas não consigo
Esquecer a quem amava
Santos Oliveira
Fur Mil AP Inf.ª/Ranger
_____________
(*) - Vd. poste de 15 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2352: Ilha do Como: os bravos de um Pelotão de Morteiros, o 912, que nunca existiu... (Santos Oliveira)
quarta-feira, 20 de agosto de 2008
Guiné 63/74 - P3142: História de Vida (15): Para que se faça história (Jorge Fontinha)
1. Em 19 de Agosto, chegou até nos esta História de Vida do nosso camarada Jorge Fontinha, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2791, (Bula e Teixeira Pinto, 1970/72) (*).
Este é um relato do início da guerra colonial em Angola, em que as primeiras vítimas foram civis indefesos, que apenas tinham cometido o crime de ir para aquelas paragens em busca de um futuro melhor.
Seriam estas pessoas os verdadeiros ocupantes e opressores? Ou seriam também elas vítimas de um regime que não olhava a meios para conseguir os seus fins?
Podemos perdoar a quem com armas na mão combateu o inimigo armado. Não podemos nunca esquecer e perdoar o inimigo que a sangue frio assasssinou pessoas indefesas.
CV
2. PARA QUE SE FAÇA HISTÓRIA
Por Jorge Fontinha
Iniciei a minha participação no Blog como deveria. Fui militar na Guiné e não faria sentido iniciar a série Estórias de Jorge Fontinha (**), que não fosse começando por contar o meu baptismo de fogo, como tal.
Permitam-me agora e por uma só vez, voltar alguns anos atrás e contar a verdadeira história que me levaria a constituir-me voluntário para o curso de Operações Especiais que frequentei em Lamego, no 1.º Turno de 1970, com o saudoso Capitão Valente, então Comandante daquela Unidade em Penude.
Os factos que vou relatar vão por ventura fazer pensar muito boa gente, todavia eu não poderia deixá-los no esquecimento da História e sobretudo por respeito à memória do meu único irmão o FERNANDO ALEXANDRE VENTURA FONTINHA…
Assassinado em Nambuangongo em 15 de Março de 1961. Tinha dezoito anos de idade e era paralítico dos membros inferiores
A minha história sobre a Guerra do Ultramar é iniciada precisamente no início do ano de 1961.
Tinha eu 12 anos. Havia nascido no Ambriz (Angola) em 28 de Outubro de 1948. O meu pai era Guarda-Fiscal naquela vila piscatória e, no início dos anos 50, adquiriu uma fazenda que viria a explorar até ao dia 15 de Março de 1961, durante cerca de 10 anos.
Era situada no centro do triângulo formado por Zala, Quipedro e Nambuangongo, fazendo parte do Posto Administrativo desta última.
Nos primeiros meses de 1961, encontrava-me em Luanda frequentando o Colégio dos Padres da Missão de S. Paulo, bairro onde sempre residi, quando não estava na fazenda com o meu pai e o meu irmão, 6 anos mais velho que eu. A minha mãe havia morrido em 1953, vítima de biliosa, tendo sido sepultada no cemitério de Nambuangongo.
Família em Nambuangongo por volta de 1952. Os meus pais nos extremos, eu sentado no capô da viatura. O meu irmão de pé vestido de branco.
Fotos e legendas: © Jorge Fonti (2008). Direitos reservados.
Naqueles dias do início do ano de 1961, lembro-me de ouvir na rádio e opinião pública, o ataque ao Santa Maria (1) e mais próximo, o ataque às cadeias de Luanda. Lembro-me da perseguição a fugitivos da mesma e de andar, juntamente com outros miúdos, nas Barrocas do Miramar, que nós conhecíamos muito bem, a pesquisar os esgotos que ali desaguavam!... No início, para nós miúdos do Bairro, era apenas uma aventura inocente e do conhecimento de longas brincadeiras nas redondezas do Cinema Miramar, na busca constante de furar o sistema para irmos vendo os filmes por entre as árvores e arbustos.
Até que se dá o 15 de Março. Sem saber nada do que tinha acontecido na fazenda. Só lá para o dia 20 é que tive notícias. As piores.
Chegam os primeiros sobreviventes e entre eles o meu pai, meio despido e descalço, na altura com 51 anos de idade, desfigurado e desfeito no seu íntimo. Pegou em mim e esteve uma eternidade, agarrado a chorar...
Os acontecimentos
Eram cerca das 4 horas da tarde do dia 15 de Março de 1961. A essa hora o meu pai encontrava-se a descansar no quarto, quando se apercebeu que algo se está a passar lá fora. Levanta-se, vem em direcção à porta e verifica que praticamente todos os empregados europeus, nos quais se encontrava uma senhora que desempenhava as funções de governanta e seu filho de 8 a 9 anos, juntamente com o marido, motorista do camião, se encontram barricados atrás da porta que está a ser violentamente empurrada e cortada à catanada. Logo o meu pai constata a ausência do filho Fernando...
De repente, a porta desaba e por milagre ou não, um dos empregados barricados surge de catana em punho e decepa um dos assaltantes, que apenas temiam morrer dessa forma e não a tiro, que não era considerada morte... De imediato, o grupo assaltante recua assustado, dando tempo a que todos fujam em direcção à camioneta, que previamente tinha sido preparada para transportar uma carrada de madeira para a Serração que servia de apoio àquela fazenda. É quando o meu pai dá com o meu irmão a agonizar na cabine da camioneta, com uma catanada na testa e outra no peito!...
Algum tempo antes destes acontecimentos, enquanto se tratava dos preparativos do transporte de madeira, o meu irmão que era paralítico dos membros inferiores, juntamente com o motorista e outros empregados, estavam em volta do camião. A senhora governanta que era esposa do motorista, também assistia, quando se apercebe duma certa movimentação junto ao capim. Julgando tratar-se de algumas galinhas que para ai tenham ido, começa a deslocar-se para a zona. De imediato um grupo compacto de guerrilheiros da UPA, de catana em punho, se desloca em direcção ao grupo, pondo naturalmente este em fuga para o interior da casa, aí se barricando atrás da porta de madeira.
Havia todavia quem não podia locomover-se com tamanha rapidez... restou ao meu irmão tentar proteger-se no interior da cabina da camioneta. Foi a sua última morada enquanto vivo...
Naquele momento, o mais urgente seria fugir de camioneta, mesmo carregada de madeira, que apesar de tudo, andava mais rápido que os guerrilheiros!
Seguiram para Nambuangongo que distava cerca de 20Km da Fazenda, com a intenção de pedir ajuda. Nada feito, esta já estava ocupada. Restava a saída para o Onzo, tendo sido inviável lá chegar. A meio do percurso, árvores abatidas na estrada barraram o caminho. A única saída seria largar a camioneta e fugir para a mata. Foi o que fizeram. Por lá andaram 3 dias e 3 noites, até que se aperceberam da ajuda militar que se aproximava e aí saíram da mata e foram recolhidos. De imediato se dirigiram à camioneta para recolha do corpo do meu irmão. Esta estava incendiada e o corpo tinha desaparecido. Terão sido recolhidos restos mortais meses mais tarde, pelo Batalhão do Coronel Maçanita.
Refúgio em Portugal
Após estes factos, o meu pai e eu fomos para um centro de refugiados, situado na redacção dum Jornal, cujo nome me não recorda, próximo da Casa Mortuária de Luanda e refiro isto, porque em vez dos actuais apoios psicológicos, eu com 12 anos, fui convidado a ir reconhecer corpos esquartejados conforme estes iam chegando do mato...
Finalmente, nos primeiros dias de Maio chego a Lisboa, numa ponte aérea para senhoras e crianças que fizeram um percurso de 3 dias com escalas, em avião da Força Aérea.
Um abraço para a Tertúlia
Camarada
jorge Fontina
OBS:-Subtítulos da responsabilidade do editor
(1) - O ASSALTO AO "SANTA MARIA"
... Em Janeiro de 1961 deu-se o assalto ao paquete "Santa Maria", incidente que na época notabilizou a contestação ao Governo de Oliveira Salazar, e introduziu a prática, depois muito difundida internacionalmente, de sequestrar navios e aviões com fins políticos.
O "Santa Maria" havia largado de Lisboa a 9 de Janeiro de 1961 em mais uma das suas viagens regulares à América Central, fazendo escala no porto venezuelano de La Guaira no dia 20. Entre os passageiros embarcados neste porto, contava-se um grupo de 20 membros da DRIL - Direcção Revolucionária Ibérica de Libertação, organismo constituido por opositores aos regimes de Franco e Salazar, cujo comandante era o capitão Henrique Galvão, que embarcou clandestinamente no "Santa Maria" um dia depois, em Curaçau, com mais três elementos da DRIL. Galvão estava exilado na Venezuela desde Novembro de 1959, e em Julho de 1961 havia concluído os planos de assalto ao "Santa Maria". Fora escolhido este paquete por ser muito superior aos diversos navios de passageiros espanhóis que na altura faziam a carreira da América Central. O capitão Galvão pretendia deslocar-se no "Santa Maria" até à colónia espanhola de Fernando Pó, no golfo da Guiné, cuja tomada permitiria em seguida efectuar um ataque a Luanda e iniciar, a partir de Angola, o derrube dos Governos de Lisboa e de Madrid.
Horas depois da largada de Curaçau, o "Santa Maria" navegava rumo a Port Everglades, na Florida, com 612 passageiros e 350 tripulantes, sob o comando do capitão da Marinha Mercante Mário Simões da Maia, quando, precisamente à 1 hora e 45 minutos da madrugada de 22 de Janeiro de1961, os 24 homens de Henrique Galvão tomaram conta da ponte de comando e da cabine de TSF, dominando os oficiais do navio. O terceiro piloto João José Nascimento Costa ofereceu resistência aos assaltantes e foi morto a tiro. Pouco depois, o "Santa Maria" alterou o rumo para leste, procurando alcançar rapidamente o Atlântico. A 23 de Janeiro, o navio aproximou-se da ilha de Santa Lúcia e desembarcou, numa das lanchas a motor, 2 feridos graves com 5 tripulantes, comprometendo a possibilidade de atingir a costa de Africa sem ser detectado. No dia 25, o paquete cruzou-se com um cargueiro dinamarquês, traindo a sua posição, o que permitiu a um avião norte-americano localizar o "Santa Maria" horas depois. Finalmente a 2 de Fevereiro o "Santa Maria" fundeou no porto brasileiro do Recife, procedendo ao desembarque dos passageiros e tripulantes. Chegou a ser considerado o afundamento do paquete, mas no dia seguinte os rebeldes entregaram-se às autoridades brasileiras, obtendo asilo político, ao mesmo tempo que o "Santa Maria" voltava à posse da Companhia Colonial de Navegação.
Os passageiros do paquete assaltado foram transferidos para o "Vera Cruz", que saiu do Recife a 5 de Fevereiro, chegando a Lisboa a 14 do mesmo mês, após escalar Tenerife, Funchal e Vigo. Por sua vez o "Santa Maria" largou do Recife a 7 de Fevereiro, entrando no Tejo, embandeirado em arco, a 16 e atracando a Alcântara...
... Independentemente dos aspectos políticos que na altura rodearam o caso "Santa Maria", este incidente acabou por fazer do navio o mais famoso dos paquetes portugueses. Embora o "Infante Dom Henrique" e o "Príncipe Perfeito" fossem mais recentes, o "Santa Maria" era um navio de prestígio por excelência, situação a que não era estranho o facto de ser o único navio de passageiros português a manter uma ligação regular entre Portugal e os Estados Unidos da América.
Coincidindo com o desvio do "Santa Maria", deflagraram a 4 de Fevereiro, em Luanda, incidentes graves, seguidos, em Março, do começo da guerra no Norte de Angola. O Governo de Lisboa decidiu enfrentar a situação, enviando a partir de Abril ràpidamente e em força importantes reforços militares. Esta decisão implicou, de imediato, a requisição de diversos paquetes e navios de carga afretados pelo Ministério do Exército para efectuarem o transporte de tropas e material de guerra. A utilização esporádica para este fim de navios de passageiros portugueses vinha já do século XIX, passando a partir de 1961 a constituir uma das principais ocupações permanentes dos paquetes portugueses...
in Paquetes Portugueses de Luis Miguel Correia, com a devida vénia
______________
Notas de CV:
(*) - Vd. poste de 11 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3129: Tabanca Grande (82): Jorge Fontinha, Fur Mil Inf da CCAÇ 2791 (Bula e Teixeira Pinto, 1970/72)
(**) - Vd. poste de 18 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3139: Estórias do Jorge Fontinha (1): O meu batismo de fogo e da CCAÇ 2791 (Jorge Fontinha)
Este é um relato do início da guerra colonial em Angola, em que as primeiras vítimas foram civis indefesos, que apenas tinham cometido o crime de ir para aquelas paragens em busca de um futuro melhor.
Seriam estas pessoas os verdadeiros ocupantes e opressores? Ou seriam também elas vítimas de um regime que não olhava a meios para conseguir os seus fins?
Podemos perdoar a quem com armas na mão combateu o inimigo armado. Não podemos nunca esquecer e perdoar o inimigo que a sangue frio assasssinou pessoas indefesas.
CV
2. PARA QUE SE FAÇA HISTÓRIA
Por Jorge Fontinha
Iniciei a minha participação no Blog como deveria. Fui militar na Guiné e não faria sentido iniciar a série Estórias de Jorge Fontinha (**), que não fosse começando por contar o meu baptismo de fogo, como tal.
Permitam-me agora e por uma só vez, voltar alguns anos atrás e contar a verdadeira história que me levaria a constituir-me voluntário para o curso de Operações Especiais que frequentei em Lamego, no 1.º Turno de 1970, com o saudoso Capitão Valente, então Comandante daquela Unidade em Penude.
Os factos que vou relatar vão por ventura fazer pensar muito boa gente, todavia eu não poderia deixá-los no esquecimento da História e sobretudo por respeito à memória do meu único irmão o FERNANDO ALEXANDRE VENTURA FONTINHA…
Assassinado em Nambuangongo em 15 de Março de 1961. Tinha dezoito anos de idade e era paralítico dos membros inferiores
A minha história sobre a Guerra do Ultramar é iniciada precisamente no início do ano de 1961.
Tinha eu 12 anos. Havia nascido no Ambriz (Angola) em 28 de Outubro de 1948. O meu pai era Guarda-Fiscal naquela vila piscatória e, no início dos anos 50, adquiriu uma fazenda que viria a explorar até ao dia 15 de Março de 1961, durante cerca de 10 anos.
Era situada no centro do triângulo formado por Zala, Quipedro e Nambuangongo, fazendo parte do Posto Administrativo desta última.
Nos primeiros meses de 1961, encontrava-me em Luanda frequentando o Colégio dos Padres da Missão de S. Paulo, bairro onde sempre residi, quando não estava na fazenda com o meu pai e o meu irmão, 6 anos mais velho que eu. A minha mãe havia morrido em 1953, vítima de biliosa, tendo sido sepultada no cemitério de Nambuangongo.
Família em Nambuangongo por volta de 1952. Os meus pais nos extremos, eu sentado no capô da viatura. O meu irmão de pé vestido de branco.
Fotos e legendas: © Jorge Fonti (2008). Direitos reservados.
Naqueles dias do início do ano de 1961, lembro-me de ouvir na rádio e opinião pública, o ataque ao Santa Maria (1) e mais próximo, o ataque às cadeias de Luanda. Lembro-me da perseguição a fugitivos da mesma e de andar, juntamente com outros miúdos, nas Barrocas do Miramar, que nós conhecíamos muito bem, a pesquisar os esgotos que ali desaguavam!... No início, para nós miúdos do Bairro, era apenas uma aventura inocente e do conhecimento de longas brincadeiras nas redondezas do Cinema Miramar, na busca constante de furar o sistema para irmos vendo os filmes por entre as árvores e arbustos.
Até que se dá o 15 de Março. Sem saber nada do que tinha acontecido na fazenda. Só lá para o dia 20 é que tive notícias. As piores.
Chegam os primeiros sobreviventes e entre eles o meu pai, meio despido e descalço, na altura com 51 anos de idade, desfigurado e desfeito no seu íntimo. Pegou em mim e esteve uma eternidade, agarrado a chorar...
Os acontecimentos
Eram cerca das 4 horas da tarde do dia 15 de Março de 1961. A essa hora o meu pai encontrava-se a descansar no quarto, quando se apercebeu que algo se está a passar lá fora. Levanta-se, vem em direcção à porta e verifica que praticamente todos os empregados europeus, nos quais se encontrava uma senhora que desempenhava as funções de governanta e seu filho de 8 a 9 anos, juntamente com o marido, motorista do camião, se encontram barricados atrás da porta que está a ser violentamente empurrada e cortada à catanada. Logo o meu pai constata a ausência do filho Fernando...
De repente, a porta desaba e por milagre ou não, um dos empregados barricados surge de catana em punho e decepa um dos assaltantes, que apenas temiam morrer dessa forma e não a tiro, que não era considerada morte... De imediato, o grupo assaltante recua assustado, dando tempo a que todos fujam em direcção à camioneta, que previamente tinha sido preparada para transportar uma carrada de madeira para a Serração que servia de apoio àquela fazenda. É quando o meu pai dá com o meu irmão a agonizar na cabine da camioneta, com uma catanada na testa e outra no peito!...
Algum tempo antes destes acontecimentos, enquanto se tratava dos preparativos do transporte de madeira, o meu irmão que era paralítico dos membros inferiores, juntamente com o motorista e outros empregados, estavam em volta do camião. A senhora governanta que era esposa do motorista, também assistia, quando se apercebe duma certa movimentação junto ao capim. Julgando tratar-se de algumas galinhas que para ai tenham ido, começa a deslocar-se para a zona. De imediato um grupo compacto de guerrilheiros da UPA, de catana em punho, se desloca em direcção ao grupo, pondo naturalmente este em fuga para o interior da casa, aí se barricando atrás da porta de madeira.
Havia todavia quem não podia locomover-se com tamanha rapidez... restou ao meu irmão tentar proteger-se no interior da cabina da camioneta. Foi a sua última morada enquanto vivo...
Naquele momento, o mais urgente seria fugir de camioneta, mesmo carregada de madeira, que apesar de tudo, andava mais rápido que os guerrilheiros!
Seguiram para Nambuangongo que distava cerca de 20Km da Fazenda, com a intenção de pedir ajuda. Nada feito, esta já estava ocupada. Restava a saída para o Onzo, tendo sido inviável lá chegar. A meio do percurso, árvores abatidas na estrada barraram o caminho. A única saída seria largar a camioneta e fugir para a mata. Foi o que fizeram. Por lá andaram 3 dias e 3 noites, até que se aperceberam da ajuda militar que se aproximava e aí saíram da mata e foram recolhidos. De imediato se dirigiram à camioneta para recolha do corpo do meu irmão. Esta estava incendiada e o corpo tinha desaparecido. Terão sido recolhidos restos mortais meses mais tarde, pelo Batalhão do Coronel Maçanita.
Refúgio em Portugal
Após estes factos, o meu pai e eu fomos para um centro de refugiados, situado na redacção dum Jornal, cujo nome me não recorda, próximo da Casa Mortuária de Luanda e refiro isto, porque em vez dos actuais apoios psicológicos, eu com 12 anos, fui convidado a ir reconhecer corpos esquartejados conforme estes iam chegando do mato...
Finalmente, nos primeiros dias de Maio chego a Lisboa, numa ponte aérea para senhoras e crianças que fizeram um percurso de 3 dias com escalas, em avião da Força Aérea.
Um abraço para a Tertúlia
Camarada
jorge Fontina
OBS:-Subtítulos da responsabilidade do editor
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(1) - O ASSALTO AO "SANTA MARIA"
... Em Janeiro de 1961 deu-se o assalto ao paquete "Santa Maria", incidente que na época notabilizou a contestação ao Governo de Oliveira Salazar, e introduziu a prática, depois muito difundida internacionalmente, de sequestrar navios e aviões com fins políticos.
O "Santa Maria" havia largado de Lisboa a 9 de Janeiro de 1961 em mais uma das suas viagens regulares à América Central, fazendo escala no porto venezuelano de La Guaira no dia 20. Entre os passageiros embarcados neste porto, contava-se um grupo de 20 membros da DRIL - Direcção Revolucionária Ibérica de Libertação, organismo constituido por opositores aos regimes de Franco e Salazar, cujo comandante era o capitão Henrique Galvão, que embarcou clandestinamente no "Santa Maria" um dia depois, em Curaçau, com mais três elementos da DRIL. Galvão estava exilado na Venezuela desde Novembro de 1959, e em Julho de 1961 havia concluído os planos de assalto ao "Santa Maria". Fora escolhido este paquete por ser muito superior aos diversos navios de passageiros espanhóis que na altura faziam a carreira da América Central. O capitão Galvão pretendia deslocar-se no "Santa Maria" até à colónia espanhola de Fernando Pó, no golfo da Guiné, cuja tomada permitiria em seguida efectuar um ataque a Luanda e iniciar, a partir de Angola, o derrube dos Governos de Lisboa e de Madrid.
Horas depois da largada de Curaçau, o "Santa Maria" navegava rumo a Port Everglades, na Florida, com 612 passageiros e 350 tripulantes, sob o comando do capitão da Marinha Mercante Mário Simões da Maia, quando, precisamente à 1 hora e 45 minutos da madrugada de 22 de Janeiro de1961, os 24 homens de Henrique Galvão tomaram conta da ponte de comando e da cabine de TSF, dominando os oficiais do navio. O terceiro piloto João José Nascimento Costa ofereceu resistência aos assaltantes e foi morto a tiro. Pouco depois, o "Santa Maria" alterou o rumo para leste, procurando alcançar rapidamente o Atlântico. A 23 de Janeiro, o navio aproximou-se da ilha de Santa Lúcia e desembarcou, numa das lanchas a motor, 2 feridos graves com 5 tripulantes, comprometendo a possibilidade de atingir a costa de Africa sem ser detectado. No dia 25, o paquete cruzou-se com um cargueiro dinamarquês, traindo a sua posição, o que permitiu a um avião norte-americano localizar o "Santa Maria" horas depois. Finalmente a 2 de Fevereiro o "Santa Maria" fundeou no porto brasileiro do Recife, procedendo ao desembarque dos passageiros e tripulantes. Chegou a ser considerado o afundamento do paquete, mas no dia seguinte os rebeldes entregaram-se às autoridades brasileiras, obtendo asilo político, ao mesmo tempo que o "Santa Maria" voltava à posse da Companhia Colonial de Navegação.
Navio Santa Maria > Foto retirada do site Navios no Sapo, com a devida vénia
Os passageiros do paquete assaltado foram transferidos para o "Vera Cruz", que saiu do Recife a 5 de Fevereiro, chegando a Lisboa a 14 do mesmo mês, após escalar Tenerife, Funchal e Vigo. Por sua vez o "Santa Maria" largou do Recife a 7 de Fevereiro, entrando no Tejo, embandeirado em arco, a 16 e atracando a Alcântara...
... Independentemente dos aspectos políticos que na altura rodearam o caso "Santa Maria", este incidente acabou por fazer do navio o mais famoso dos paquetes portugueses. Embora o "Infante Dom Henrique" e o "Príncipe Perfeito" fossem mais recentes, o "Santa Maria" era um navio de prestígio por excelência, situação a que não era estranho o facto de ser o único navio de passageiros português a manter uma ligação regular entre Portugal e os Estados Unidos da América.
Coincidindo com o desvio do "Santa Maria", deflagraram a 4 de Fevereiro, em Luanda, incidentes graves, seguidos, em Março, do começo da guerra no Norte de Angola. O Governo de Lisboa decidiu enfrentar a situação, enviando a partir de Abril ràpidamente e em força importantes reforços militares. Esta decisão implicou, de imediato, a requisição de diversos paquetes e navios de carga afretados pelo Ministério do Exército para efectuarem o transporte de tropas e material de guerra. A utilização esporádica para este fim de navios de passageiros portugueses vinha já do século XIX, passando a partir de 1961 a constituir uma das principais ocupações permanentes dos paquetes portugueses...
in Paquetes Portugueses de Luis Miguel Correia, com a devida vénia
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Notas de CV:
(*) - Vd. poste de 11 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3129: Tabanca Grande (82): Jorge Fontinha, Fur Mil Inf da CCAÇ 2791 (Bula e Teixeira Pinto, 1970/72)
(**) - Vd. poste de 18 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3139: Estórias do Jorge Fontinha (1): O meu batismo de fogo e da CCAÇ 2791 (Jorge Fontinha)
terça-feira, 19 de agosto de 2008
Guiné 63/74 - P3141: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (Manuel Traquina) (2): O ataque de 22 de Junho de 1968 a Contabane
1. No dia 5 de Julho de 2008, o nosso camarada Manuel Traquina, ex-Fur Mil da CCAÇ 2382, Buba, 1968/70, enviou-nos, para publicação, este relato do ataque à povoação de Contabane, ocorrido em 22 de Junho de 1968.
Companhia de Caçadores 2382 (1968/70) (*)
O Ataque a Contabane
Era o dia 22 de Junho daquele ano de 1968, a Companhia estava na Guiné havia pouco mais de um mês e, ao ser deslocada para a região de Aldeia Formosa, (Quebo) dois pelotões fixaram-se em Mampatá, os restantes bem como o Comando foram deslocados para a aldeia de Contabane. Ali parecia respirar-se a paz, a população era numerosa e bastante acolhedora, e como habitual faziam-se alguns patrulhamentos na região, que ficava a poucos quilómetros da fronteira com a Guiné-Conákri.
Naquela aldeia os militares acomodavam-se nas próprias moranças cedidas pelo chefe da Tabanca, à volta da aldeia tinham sido abertos no terreno algumas valas e abrigos, além de duas fiadas de arame farpado. Tudo parecia correr dentro da normalidade, naquela tarde eu próprio com mais quatro militares saímos no Unimog a buscar água do poço que se localizava a curta distância.
Porém já próximo do anoitecer, um dos elementos nativos que connosco efectuavam um patrulhamento, pisou um engenho explosivo, que lhe deixou um pé seriamente afectado. Este foi o primeiro sinal de que toda aquela paz não era real, o grupo recolheu à aldeia/aquartelamento, era a hora de jantar e na improvisada enfermaria o Furriel Enfermeiro Chambel com grande dificuldade, tentava encontrar uma veia onde pudesse administrar algum soro ao militar milícia, que com um pé decepado tinha perdido muito sangue.
Entretanto o Sargento João Boiça apercebendo-se da situação, corria de uma ponta à outra da aldeia, não parava de alertar todos para que de imediato se deslocassem para os abrigos, talvez ao tomar esta medida tenha evitado algumas mortes.
Tinha anoitecido e, de repente algumas explosões deram inicio a um ataque que se ia prolongar por cerca de três horas, as balas incendiarias atravessavam a palha que servia de cobertura à tabanca onde o ferido começava a receber o soro. Disse ao Chambel e ao Coelho que tínhamos que sair daqui imediatamente com o ferido, porém ele, já mais endurecido pela guerra, reunindo as suas débeis forças arrastou-se até á porta e, no escuro sem que nos apercebesse-mos desapareceu rastejando, só na manhã seguinte o voltámos a ver, quando da chegada do helicóptero que o evacuou bem como a outros feridos.
Foram cerca de três horas de bombardeamentos em que a aldeia reduzida a cinzas mais parecia um inferno, no final foi uma forte trovoada que, transformou a cinza em lama, onde quase não havia onde nos abrigar. Não tenho dúvidas de que nós os militares que naquela tarde fomos à água, passamos muito perto do local onde o inimigo preparava o ataque e, só não fomos feitos prisioneiros porque o objectivo era o ataque. Apesar do grande aparato e grande potencial de fogo, sofremos apenas três feridos dois dos quais de maior gravidade. Porém, quase todo o património da companhia ali ficou reduzido a cinza, os rádios, os géneros alimentícios, o equipamento de enfermagem, tudo ali ficou carbonizado, grande parte dos militares ficaram apenas com a roupa que tinham vestida. Na manhã seguinte um helicóptero evacuou os feridos, alguns militares apressaram-se a escrever um ou outro aerograma meio queimado e enlameado que foi entregue ao piloto do helicóptero, era a parte psicológica a funcionar, pretendiam partilhar aquele momento de desânimo com alguém do coração.
Contabane foi totalmente evacuada de população e militares, saímos dali moralmente destroçados, alguns apenas de calções, sapatilhas e a sua G3, mas vivos para suportar muitos outros ataques e emboscadas durante os vinte e dois meses que se seguiram. Já no termo da comissão viemos encontrar na cidade de Bissau o milícia que ao pisar a armadilha foi amputado de um pé, e que naquela cidade tentava sobrevier como engraxador de sapatos.
Neste agora passado dia 22 de Junho ao completarem-se quarenta anos sobre este ataque, quero homenagear os dois camaradas mortos não neste ataque, mas noutros que se seguiram, Furriel Ramiro de Sousa Duarte e o Soldado Elidio Fidalgo Rodrigues, pertencentes a esta Companhia, quero também saudar todos os militares da 2382, estou convencido que todos os que viveram este acontecimento o recordam e jamais esquecerão aquelas horas difíceis ali vividas.
Manuel Batista Traquina
Ex-Fur Mil
________________
Notas de CV:
Vd. postes de:
2 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2399: Tabanca Grande (47): Manuel Traquina, ex-Fur Mil, CCAÇ 2382 (Buba, 1970/72)
2 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2500: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (1): CCAÇ 2382 - A hora da partida
13 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2533: O cruzeiro das nossas vidas (10): Fui e vim no velho e saudoso Niassa (Manuel Traquina)
Guiné 63/74 - P3140: Os nossos regressos (14): O meu regresso e o 25 de Abril (Juvenal Amado)
1. Mensagem de Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, (Galomaro, 1972/74) com data de 9 de Agosto de 2008
Caros camaradas Carlos, Virgilio, Luis Graça e toda a Tabanca Grande
Integrado em Os Nossos Regressos, cá vai a minha visão pessoal sobre o meu próprio regresso.
As fotos da despedida do Batalhão não são muito boas mas não tenho outras. Na verdade os meus apelos aos meus camaradas para me enviarem fotos originais não tem na maioria dos casos tido muitos bons resultados. Dizem que não sabem onde isso pára, ou safam-se dizendo que a mulher é que guardou isso. Mas eles não se livram de mim assim facilmente, pois agora peço às suas esposas.
Um abraço e bom fim de semana é o que eu desejo para toda a Tabanca.
Juvenal Amado
Foto 1 > Ainda no Xime
Foto 2 > De regresso a Bissau numa LDG, sob protecção aérea
Foto 3 > Regresso a Bissau, a bordo da LDG
Foto 4 > Ainda bordo da LDG
Foto 5 > Cumeré > Despedida do BCAÇ 3872
Foto 6 > Cumeré > Despedida
Foto 7 > Cumeré > despedida das tropas
Foto 8 > Ainda a cerimónia de despedida do BCAÇ 3872
Foto 9 > Ilha da Madeira à vista
2. O meu regresso
Ppor Juvenal Amado
Na euforia da partida, quase não me lembro de entrar no Niassa.
Lembro-me de descer para os porões, onde os beliches chegavam aos quatro andares e de tão chegados uns aos outros, deram-me uma sensação de claustrofobia. Escolhi um de cima, para não ter que ficar com o nariz quase enfiado, no colchão do beliche superior. Dormíamos vestidos e calçados. A humidade era extrema. Pegava-se a nós e tudo ficava pegajoso.
Triste tratamento para quem dias antes na parada do Cumeré, tinha recebido os mais rasgados elogios, pela a nossa entrega na defesa do famoso Portugal, indivisível do Minho a Timor. (Não esquecer a passagem pelo Pilão).
Da cerimónia da despedida, recordo-me do chamamento dos mortos da 3489, (Cancolim) 3490 (Saltinho) e da CCS, uma vez que a 3491 (Dulombi) não teve mortos a lamentar felizmente. Esse momento foi sentido por todos camaradas, pois os mortos embora sendo respeitante a cada Companhia, eram também do 3872 e diziam respeito a todos nós. (A leitura do nome dos nossos mortos, é repetida num momento de profunda emoção todos os anos, quando nos juntamos e confraternizamos).
A minha bagagem era pouca. A mala dei-a ao meu camarada Aljustrel. Assim para além dos sacos com a farda, que ia entregar em Lisboa, os meus pertences resumiam-se a um pequeno saco de viagem, com uma garrafa de whisky, uma manta e uma espada Fula que ainda hoje tenho.
O cruzeiro
Para quem teve a sorte de viajar no Niassa, sabe a que me refiro. As escadarias para os porões tinham vomitado que, praticamente, não havia onde pôr as botas. O cheiro era nauseabundo.
O nosso amigo Alfredo Chapinhas enjoou praticamente desde que pôs os pés no barco. Era acarretado todos os dias, por mim e pelo Ivo, até cá cima. Embrulhávamo-lo numa manta e comprávamos-lhe batatas fritas salgadas e sumos, pois diziam que fazia bem. Ele bem se esforçava por comer, mas era difícil.
Eu e o Ivo felizmente não enjoamos e bebíamos cerveja de manhã à noite. Ficávamos praticamente todo o dia aconchegados, no lado do convés protegido do vento.
O mar esteve sempre muito agitado. Nós apreciávamos o navio de guerra que nos fazia escolta a partir de certa altura da viagem. Este estava hermeticamente fechado e as vagas varriam-no da proa à popa. Furava as ondas na vez de as subir e descer, como acontecia com o nosso.
Poucos se arriscavam a ir tomar o pequeno almoço ao refeitório, na proa do Niassa. Um dia o Ivo eu e o Aljustrel teimamos. Vamos lá ver quanto tempo aguentamos. Ao descermos as escadas, para além de nos desviarmos do vomitado, tivemos também que nos desviar dos que vomitavam, nesse preciso momento. Os lavatórios das mãos estavam indescritíveis. Por fim chegamos à mesa, nem me arrisquei a sentar no banco corrido. Estar ali, era como subir e descer três andares constantemente, num elevador completamente doido.
Não sei quem é que fugiu primeiro, mas a verdade ninguém lá ficava muito tempo. A partir daí, ia um à vez buscar as sandes à entrada e fugia logo dali.
Entretanto chegamos à Madeira, onde saíram os homens das companhias independentes, que viajaram connosco. Uma das Companhias levava uma Nossa Senhora de Fátima num andor. Já tinha despertado a nossa atenção, quando embarcaram para a Guiné.
Os oficiais e sargentos desembarcaram para visitar a ilha, mas nós não. Servimos para a tal defesa da Pátria, mas uns mais que os outros. Fomos transportados como gado e também desrespeitados como indivíduos, sem qualquer direitos.
A viagem com mais vomitado, menos vomitado decorreu calma. Dois dias antes de chegarmos a Lisboa, as gaivotas apareceram de volta do Niassa e nunca mais nos largaram. Foi uma enorme alegria.
Dia 4 de Abril de 1974
O Niassa está parado, para nosso desgosto, à entrada da barra. O amanhecer limpo mostra a beleza dos arredores de Lisboa. Lá estava a ponte que dentro de bem pouco tempo mudaria de nome felizmente.
O sol, sobre a cidade branca, dá-nos as boas vindas. Enquanto a partida foi a preto e branco, a chegada é a cores, tal é a luz que se abate sobre nós.
O barco leva uma eternidade a atracar. À medida que os rebocadores o fazem chegar ao cais, vamos tentando freneticamente ver onde estão os nossos familiares.
Os meus lá estavam. Um enorme chapéu de praia multicolor era o sinal. Tinha uma tarja escrita Alcobaça. Já tinha sido esse o mesmo sinal para o desembarque do meu irmão uns anos antes, quando este regressou de Moçambique.
O Comandante manda desembarcar. Abraço os meus pais irmãos, sei lá já quem lá estava. Quase não conheço a minha irmã mais nova que estava uma mulher. A felicidade é tal que salto de uns para os outros. Ainda tenho tempo para os apresentar a alguns camaradas.
Dali é direito ao RALIS. Temos que entregar os fardamentos. Os nossos trastes eram cuidadosamente inspeccionados e eu ainda estava a ver que tinha que ir à Feira da Ladra, comprar algumas peças de fardamento que me faltavam. O assunto foi resolvido com cinco escudos dados ao 1.º sargento (também eram muito bons nisto). Os sacos desapareceram como por magia e o meu número mecanográfico riscado da lista.
A 4L verde escuro, só de três velocidades, é a mesma que 27 meses me tinha levado a Abrantes, naquela triste madrugada.
Vou ao lado do meu pai. Já não sou um civil fardado, mas por impossível que pareça, não estou confortável na minha nova roupa. Os meus olhos enchem-se de paisagem verde e fresca. Quem entra em Alcobaça, vindo de Lisboa pela n.º 1, passa a Benedita, Évora e a partir de Capuchos, têm uma vista panorâmica sobre a vila, (hoje cidade) onde sobressai o Mosteiro com a sua imponência.
Alcobaça está praticamente na mesma. Os sons e cheiros, vejo de passagem algumas pessoas que conheço. Mais tarde vou cumprimentar o resto dos familiares e pessoas amigas.
Nessa noite, vou ter dificuldade em adormecer e quando acordar, não saberei bem onde estou.
Na esplanada do café Trindade, local de encontro dos jovens, recebo a primeira certeza. Já não tinha ali amigos, mas sim conhecidos, os meus amigos, tinha-me despedido deles à saída do Niassa. Ainda hoje os mantenho.
- Olha o Juvenal já cá está. Não nos vais contar estórias da Guiné pois não?
Em resultado do meu silêncio ainda acrescentou:
- Ainda bem, estava a ver que tinha que gramar com mais um herói.
Quem falava assim, nem militar tinha sido ainda. O trabalho de desinformação tinha sido competente. Aquele jovem que não sabia o que era andar debaixo de calor atroz, que quando tinha sede abria a torneira e bebia, não tinha que afastar merda de macaco e beber através de um lenço, o paludismo era-lhe vagamente familiar, que não tinha sofrido ataques nem tinham morrido camaradas ao pé dele, dava-se ao luxo de duvidar da veracidade dos meus testemunhos.
Era mais um candidato a ir bater com os costados em África e estava completamente convencido que aquilo eram só tangas. Este episódio fez-me calar muitos anos. (Ainda hoje não vou a festas onde se lancem foguetes).
Tinha um mês de férias para gozar. A seguir o meu lugar na Fábrica de Vidros Crisal de Alcobaça esperava por mim. A pouco e pouco a vida foi retomando o seu caminho.
O meu irmão mais novo seria o próximo.
... e o sonho tornou-se realidade
Eram talvez sete horas da manhã e sou acordado pela minha mãe que tinha ido ao pão:
- Filho, há uma revolução em Lisboa, a rádio está transmitir apelos à calma e só dá música Militar.
O meu pai no corredor dava pulos de contentamento. Era o 25 de Abril. Depois do Adeus... Grândola Vila Morena.
Muito honra Alcobaça, ter tido pelo o menos três jovens soldados na coluna do Salgueiro Maia. Já no 16 de Março vários jovens desta bela cidade estiveram envolvidos no levantamento.
A partir daí foi a festa de uma vida.
Uma flor em cada arma. Fim da guerra já. Nem mais um soldado para as colónias.
Quem nada tinha, tudo passou a querer. Assistiu-se ao aparecimento de democratas de longa data por todos os lados. Os mais interessantes eram os da União Nacional. Diziam que tinha sido obrigados, muitos deles a denunciar os vizinhos, colegas de trabalho etc. Fraquezas que nós percebemos.
Formam-se partidos por todo o lado e de todas as formas. Há alguns que têm tantas siglas, como tem o nosso NIB bancário hoje. Aliás as siglas passam a fazer parte do nosso dia a dia, RGE (reunião geral de estudantes), RGT (reunião geral de trabalhadores), MRPP-PCPTML, OCMLDP, MDP-CDE, PCP, LCI, LUAR, PS, PPD, CDS, os Estanilistas, Maoistas e os da 4.ª Internacional, etc. Havia para todos os gostos e ocasiões, mas nenhum se assumia de direita, não fosse ser conotado com o anterior regime. Peço desculpa aos que não são mencionados e são muitos.
As rádios transmitiam os cantores, poetas e músicas que antes só ouvíamos às escondidas, muitas delas em estações de rádio clandestinas. Todos sentiam obrigação de se envolverem. Os plenários sucediam-se uns aos outros, marchas onde o Povo estava sempre ao lado do MFA.
Talvez pela primeira vez na minha vida de adulto, tive verdadeiro orgulho naquela farda que também eu tinha envergado quase 3 anos. Os novos heróis eram humildes capitães, (os generais apareceram depois). Todos formados nas agruras da guerra colonial. Na maioria ganharam a ânsia de liberdade nos duros combates nas matas da Guiné, onde os soldados portugueses se bateram com bravura.
Dois Povos a Mesma Luta. A nossa Bandeira já não era a da opressão, mas da festa e da liberdade.
A famosa aliança POVO-MFA. A libertação dos prisioneiros políticos. O regresso dos exilados.
Importou-se palavras de ordem do Chile de Salvador Allende e Victor Jara, O Povo Unido Jamais será Vencido.
O antigamente espreitava, mascarado de democrata. A Espanha Franquista arreganhava os dentes para a nossa democracia emergente. Cá dentro tinha os seus apoiantes. Que mau exemplo que nós éramos
O 28 de Setembro 1974, Maioria silenciosa
Nas primeiras eleições fui delegado de um partido à secção de voto numa aldeia chamada Vimeiro. Lá ia levando uma carga de pancada por ter denunciado que os indivíduos da mesa de voto estavam a favorecer uns certos partidos. Para além disso as pessoas levavam folhetos com os emblemas, em quem tinham sido instruídas para votar. Começava bem a democracia.
Nas eleições seguintes aconteceu-me o mesmo em Turquel, onde era mais uma vez delegado. Fugi deitado no fundo de um carro. Companheiros que estavam noutras secções de voto foram barbaramente espancados.
O 11 de Março 1975, as nacionalizações, Reforma Agrária e o Verão Quente ... Os governos sucediam-se, o espectro do sangrento golpe fascista no Chile em 11 de Setembro de 1973 pesava sobre a nossa nova democracia.
Também eu fui candidato, delegado sindical e membro de comissão de trabalhadores. Vivi 48 horas em cada 24, tal era a rapidez em que tudo mudava.
O 25 de Novembro de 1975. Disseram, que foi para pôr Portugal novamente nos carris. Como se vê não conseguiram, a não ser para alguns. A cauda da Europa continua a ser a nossa posição, ultrapassados que fomos até pelos países de Leste da finada URSS.
Primeiros lugares talvez em Festivais de Verão, custo de vida sempre a subir, desemprego, desaparecimento da classe média, etc.
A Festa durou até às tantas e foi bonita a festa pá.
Juvenal Amado
06.08.008
segunda-feira, 18 de agosto de 2008
Guiné 63/74 - P3139: Estórias do Jorge Fontinha (1): O meu batismo de fogo e da CCAÇ 2791 (Jorge Fontinha)
1. Mensagem do dia 16 de Agosto de 2008, do nosso novo camarada Jorge Fontinha*, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2791 (Bula e Teixeira Pinto, 1970/72).
Conforme prometido, venho com a minha primeira contribuição, para o Blogue.
E como não poderia deixar de ser, vamos começar com o Baptismo de Fogo.
Junto o texto com duas fotografias tiradas antes e no decurso da Operação, a última já durante a manhã, no regresso.
Um grande abraço para a Tertúlia,
do Camarada:
Jorge Fontinha
CCAÇ 2791
2. O meu batismo de fogo e da CCAÇ 2791
Por Jorge Fontinha
O Capitão Comandante da CCAÇ chama-me ao seu gabinete:
- Meu caro, sabe que chegou hoje o Oficial que comandará o seu Pelotão. Como porém, esta noite teremos que sair para o mato e o nosso Alferes não conhece o pessoal e dando-se ainda a circunstância de você ser o Furriel mais antigo do Pelotão, encarrego-o de o conduzir, sem contudo se fazer notar, uma vez que o senhor oficial também vai. A missão é arriscada e o pessoal terá de ser conduzido com serenidade e pulso. Vamos para o Choquemone e partimos às 2 da manhã. A missão consta de...
Foto 1 > De saída para a Operação
Duas horas da manhã de 17 de Novembro de 1970. A noite é suave e corre uma agradável brisa. O luar, na parada do quartel de Bula, faz com que as sombras do pessoal nos dêem a impressão de fantasmas movediços.
A Companhia está formada e o Alferes Miliciano, Comandante interino da Companhia de Cavalaria que iria ser rendida pela nossa, depois de a ter apresentado ao Senhor Capitão, da Companhia que iria fazer a sua 1.ª operação militar no terreno, e que por motivos de saúde não pôde ir comandá-la, mandou-a avançar em bicha. Vão saindo os pelotões: em 1.º lugar o Segundo, comandado pelo respectivo Alferes; em 2.º o Primeiro, seguindo-se um grupo de Milícias Africanos no qual vai integrado uma Secção do Batalhão que viemos render e na qual se integra o Alferes Comandante da Operação. Depois segue o nosso 3.º pelotão e, por último, o 4.º no qual eu me integro, como Furriel Miliciano.
A coluna perde-se ao longo do alto capim, que devido ao cacimbo está molhado e nos encharca a todos. O pessoal vai atento e bem disposto, embora cuidadoso e bem consciente do perigo.
A minha Secção vai completa: na 1.ª equipa, o Celestino, o Azevedo e o Monteiro olham de vez em quando para trás na esperança de ver um sinal meu. Os restantes, que estão atrás de mim, o Romão, o Cavaco, o Matos, o Pinto e o Nunes seguem-me como uma sombra a uma considerável distância. Verifico com agrado que todos vão compenetrados do seu papel. Só um problema me atormentava: antes de partirmos, o Nunes havia-me pedido que o desenfiasse porque pressentia que lhe ia acontecer qualquer coisa. Fiz-lhe ver que isso não passava duma mania e agora seguia satisfeito. No meu lugar (o 5.º na progressão em relação ao GCOMB) ia pensando em tudo isso ao mesmo tempo que não desviava os olhos do denso capim que se via em redor.
Foto 2 > No decurso da Operação
Seriam umas 3 e meia da madrugada e eu seguia embebido nos meus pensamentos, um pouco distantes dali, talvez na Metrópole, talvez em Angola, (outros temas de Guerra…), pensando em muitas coisas. De súbito ouve-se um estrondo e uma chuva de estilhaços cai em redor dos que iam naquela zona. Depois silêncio total. Ao ouvir o estrondo, pensei logo que seria uma mina e, era aconselhável que ninguém se movesse sob pena de se fazer explodir mais alguma. Olhei para trás e vi todo o pessoal abrigado, à excepção de um soldado que, no caminho, gemia e se rebolava pelo chão. Corri para ele que de barriga para baixo e a mão esquerda tentado procurar na perna do mesmo lado o pé perdido, suplicava para mim:
- Meu Furriel, mate-me, acabe comigo! Meu furriel tenha dó de mim!...
Olhei para ele emocionado mas já o homem de transmissões e o enfermeiro corriam para o local. Virei as costas. Para que me não vissem chorar. Chorei, sim, de raiva, de impotência e de ódio. Senti-me incapaz de valer àquele homem, e ele era um homem da minha Companhia, um homem do meu Pelotão, um homem da minha Secção. O Nunes! E porquê ele, meu Deus? Não me tinha dito ele, antes de sairmos do quartel, que lhe iria acontecer qualquer coisa? Por que não o desenfiei eu? Tinha feito o meu dever, bem o sei, mas se não o tivesse trazido, não estaria agora naquele estado.
Não fora ataque, não fora uma mina, não fora um turra. O que seria? Como acontece bastantes vezes, apenas um acidente. O Nunes, que era o apontador da bazuca, deixou cair uma granada desta ao chão e, ao rebentar, ceifara-lhe um pé e parte da perna. Outros soldados e o Alferes Comandante, ficaram com ferimentos menos graves e tiveram de ser evacuados.
A coluna pôs-se novamente em marcha e caminhou para a conclusão da Operação que viria a culminar com grande sucesso, e na qual o nosso pessoal se bateu com galhardia. No fim, mais alguns soldados com ferimentos ligeiros.
O meu baptismo de fogo… com aquela baixa a lamentar: o Nunes que ficou sem o pé esquerdo.
Jorge Fontinha
__________
Nota de CV:
(*) Vd. poste de 11 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3129: Tabanca Grande (82): Jorge Fontinha, Fur Mil Inf da CCAÇ 2791 (Bula e Teixeira Pinto, 1970/72)
Conforme prometido, venho com a minha primeira contribuição, para o Blogue.
E como não poderia deixar de ser, vamos começar com o Baptismo de Fogo.
Junto o texto com duas fotografias tiradas antes e no decurso da Operação, a última já durante a manhã, no regresso.
Um grande abraço para a Tertúlia,
do Camarada:
Jorge Fontinha
CCAÇ 2791
2. O meu batismo de fogo e da CCAÇ 2791
Por Jorge Fontinha
O Capitão Comandante da CCAÇ chama-me ao seu gabinete:
- Meu caro, sabe que chegou hoje o Oficial que comandará o seu Pelotão. Como porém, esta noite teremos que sair para o mato e o nosso Alferes não conhece o pessoal e dando-se ainda a circunstância de você ser o Furriel mais antigo do Pelotão, encarrego-o de o conduzir, sem contudo se fazer notar, uma vez que o senhor oficial também vai. A missão é arriscada e o pessoal terá de ser conduzido com serenidade e pulso. Vamos para o Choquemone e partimos às 2 da manhã. A missão consta de...
Foto 1 > De saída para a Operação
Duas horas da manhã de 17 de Novembro de 1970. A noite é suave e corre uma agradável brisa. O luar, na parada do quartel de Bula, faz com que as sombras do pessoal nos dêem a impressão de fantasmas movediços.
A Companhia está formada e o Alferes Miliciano, Comandante interino da Companhia de Cavalaria que iria ser rendida pela nossa, depois de a ter apresentado ao Senhor Capitão, da Companhia que iria fazer a sua 1.ª operação militar no terreno, e que por motivos de saúde não pôde ir comandá-la, mandou-a avançar em bicha. Vão saindo os pelotões: em 1.º lugar o Segundo, comandado pelo respectivo Alferes; em 2.º o Primeiro, seguindo-se um grupo de Milícias Africanos no qual vai integrado uma Secção do Batalhão que viemos render e na qual se integra o Alferes Comandante da Operação. Depois segue o nosso 3.º pelotão e, por último, o 4.º no qual eu me integro, como Furriel Miliciano.
A coluna perde-se ao longo do alto capim, que devido ao cacimbo está molhado e nos encharca a todos. O pessoal vai atento e bem disposto, embora cuidadoso e bem consciente do perigo.
A minha Secção vai completa: na 1.ª equipa, o Celestino, o Azevedo e o Monteiro olham de vez em quando para trás na esperança de ver um sinal meu. Os restantes, que estão atrás de mim, o Romão, o Cavaco, o Matos, o Pinto e o Nunes seguem-me como uma sombra a uma considerável distância. Verifico com agrado que todos vão compenetrados do seu papel. Só um problema me atormentava: antes de partirmos, o Nunes havia-me pedido que o desenfiasse porque pressentia que lhe ia acontecer qualquer coisa. Fiz-lhe ver que isso não passava duma mania e agora seguia satisfeito. No meu lugar (o 5.º na progressão em relação ao GCOMB) ia pensando em tudo isso ao mesmo tempo que não desviava os olhos do denso capim que se via em redor.
Foto 2 > No decurso da Operação
Seriam umas 3 e meia da madrugada e eu seguia embebido nos meus pensamentos, um pouco distantes dali, talvez na Metrópole, talvez em Angola, (outros temas de Guerra…), pensando em muitas coisas. De súbito ouve-se um estrondo e uma chuva de estilhaços cai em redor dos que iam naquela zona. Depois silêncio total. Ao ouvir o estrondo, pensei logo que seria uma mina e, era aconselhável que ninguém se movesse sob pena de se fazer explodir mais alguma. Olhei para trás e vi todo o pessoal abrigado, à excepção de um soldado que, no caminho, gemia e se rebolava pelo chão. Corri para ele que de barriga para baixo e a mão esquerda tentado procurar na perna do mesmo lado o pé perdido, suplicava para mim:
- Meu Furriel, mate-me, acabe comigo! Meu furriel tenha dó de mim!...
Olhei para ele emocionado mas já o homem de transmissões e o enfermeiro corriam para o local. Virei as costas. Para que me não vissem chorar. Chorei, sim, de raiva, de impotência e de ódio. Senti-me incapaz de valer àquele homem, e ele era um homem da minha Companhia, um homem do meu Pelotão, um homem da minha Secção. O Nunes! E porquê ele, meu Deus? Não me tinha dito ele, antes de sairmos do quartel, que lhe iria acontecer qualquer coisa? Por que não o desenfiei eu? Tinha feito o meu dever, bem o sei, mas se não o tivesse trazido, não estaria agora naquele estado.
Não fora ataque, não fora uma mina, não fora um turra. O que seria? Como acontece bastantes vezes, apenas um acidente. O Nunes, que era o apontador da bazuca, deixou cair uma granada desta ao chão e, ao rebentar, ceifara-lhe um pé e parte da perna. Outros soldados e o Alferes Comandante, ficaram com ferimentos menos graves e tiveram de ser evacuados.
A coluna pôs-se novamente em marcha e caminhou para a conclusão da Operação que viria a culminar com grande sucesso, e na qual o nosso pessoal se bateu com galhardia. No fim, mais alguns soldados com ferimentos ligeiros.
O meu baptismo de fogo… com aquela baixa a lamentar: o Nunes que ficou sem o pé esquerdo.
Jorge Fontinha
__________
Nota de CV:
(*) Vd. poste de 11 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3129: Tabanca Grande (82): Jorge Fontinha, Fur Mil Inf da CCAÇ 2791 (Bula e Teixeira Pinto, 1970/72)
Guiné 63/74 - P3138: Em busca de... (35): Camaradas da 1.ª COMP/BCAÇ 4815 (Fernando Barata)
1. No dia 17 de Agosto de 2008, recebemos esta mensagem do nosso camarada Fernando Barata, ex-Alf Mil da CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72),
Assunto: Encontro simultâneo de todas as Companhias que passaram por Dulombi
Caro Luís
Um ex-Furriel da Companhia que nos foi render, em Dulombi, acedeu ao Blog da minha Companhia e como reside perto de Coimbra mostrou interesse em conhecer-me.
Encontro marcado para a Esplanada do Dolce Vitta e entre dois fininhos houve lugar para trocar vivências e também para me colocar um desafio ATERRADOR:
- Vamos lá organizar um Encontro simultâneo das Companhias que estiveram sediadas em Dulombi.
E é por esta razão que estou a pedir a tua ajuda no sentido conseguirmos um elo de ligação com qualquer elemento da 1.ª Companhia do BCAÇ 4815.
Pedia-te pois, que fizesses o favor de colocar um Post na Tabanca Grande de molde a conseguirmos localizar alguém da Companhia em questão a fim de tentarmos dar asas a este sonho.
Grato.
Aceita um abraço do
Fernando Barata
2. No dia 17 de Agosto foi enviada a seguinte mensagem à tertúlia
Caros Camaradas
Aqui está uma empresa verdadeiramente gigantesca.
Quem pode ajudar o nosso companheiro de tertúlia Fernando Barata?
Aqui deixo o seu apelo e o meu agradecimento pela ajuda que lhe puder ser prestada.
É fácil, é só conhecer alguém da 1.ª Companhia do BCAÇ 4815 e dizer ao Fernando Barata (fmbarata@gmail.com).
Um abraço e continuação de boas férias se for caso disso.
Carlos Vinhal
3. Agora um apelo a todos os nossos leitores. Quem conhecer alguém que tenha pertencido a 1.ª Companhia do BCAÇ 4815, faça o favor de dar notícia ao nosso camarada ou a nós (luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com).
Vai ser bonito se eles conseguirem juntar a malta toda que passou por Dulombi.
Assunto: Encontro simultâneo de todas as Companhias que passaram por Dulombi
Caro Luís
Um ex-Furriel da Companhia que nos foi render, em Dulombi, acedeu ao Blog da minha Companhia e como reside perto de Coimbra mostrou interesse em conhecer-me.
Encontro marcado para a Esplanada do Dolce Vitta e entre dois fininhos houve lugar para trocar vivências e também para me colocar um desafio ATERRADOR:
- Vamos lá organizar um Encontro simultâneo das Companhias que estiveram sediadas em Dulombi.
E é por esta razão que estou a pedir a tua ajuda no sentido conseguirmos um elo de ligação com qualquer elemento da 1.ª Companhia do BCAÇ 4815.
Pedia-te pois, que fizesses o favor de colocar um Post na Tabanca Grande de molde a conseguirmos localizar alguém da Companhia em questão a fim de tentarmos dar asas a este sonho.
Grato.
Aceita um abraço do
Fernando Barata
2. No dia 17 de Agosto foi enviada a seguinte mensagem à tertúlia
Caros Camaradas
Aqui está uma empresa verdadeiramente gigantesca.
Quem pode ajudar o nosso companheiro de tertúlia Fernando Barata?
Aqui deixo o seu apelo e o meu agradecimento pela ajuda que lhe puder ser prestada.
É fácil, é só conhecer alguém da 1.ª Companhia do BCAÇ 4815 e dizer ao Fernando Barata (fmbarata@gmail.com).
Um abraço e continuação de boas férias se for caso disso.
Carlos Vinhal
3. Agora um apelo a todos os nossos leitores. Quem conhecer alguém que tenha pertencido a 1.ª Companhia do BCAÇ 4815, faça o favor de dar notícia ao nosso camarada ou a nós (luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com).
Vai ser bonito se eles conseguirem juntar a malta toda que passou por Dulombi.
domingo, 17 de agosto de 2008
Guiné 63/74 - P3137: Em busca de... (34): Camaradas da CAÇ 726 (Aurélia de Fátima)
1. Mensagem do dia 13 de Agosto de 2008, de uma nossa leitora de nome Aurélia de Fátima, filha de Henrique Duarte, ex-combatente da Guiné da CCAÇ 726 (1).
Olá Luis
Estou a precisar de ajuda, o meu pai é ex-combatente da Guiné e precisa de encontrar, amigos da sua Companhia.
Eu sou Aurélia de Fátima Repolho Duarte, filha de Henrique Almeida Duarte que partiu para a Guiné em 29 de Dezembro de 1964 e regressou a Portugal em 1966.
O meu pai era Atirador e pertencia à Companhia 726 de Infantaria. Saiu para a Guiné do Quartel de Évora e é residente em Casebres, concelho de Alcácer do Sal, distrito de Setúbal.
Sofre da doença de stress traumático.
Fugiu ao embarque uma vez e teve 16 dias preso na prisão de Caxias e foi libertado, depois de ter sido detectada a doença. Então partiu para a Guiné como eu já referi.
Está um pouco esquecido, mas lembra-se do Furriel Padilha que era de Vila Real, e de quatro colegas, mas não se lembra os nomes deles, apenas se lembra onde viviam. Eram dois colegas de Vendas Novas, um de Pias e um de Castro Verde.
Aguardo resposta se possível, e desde já muito obrigada pela atenção.
Sem mais assunto de momento, me despeço com ansiedade, aguardando uma resposta. Muito obrigada.
Até breve. Cumprimentos.
Aurélia Duarte
2. Em 14 de agosto de 2008 foi enviada esta resposta
Cara senhora
Obrigado pelo seu contacto.
Por motivos de férias, estou a responder em nome do nosso editor Luís Graça.
No nosso Blogue há algumas publicaçôes sobre a CCAÇ 726 a que pertenceu o seu pai.
Se quiser aceder a estas postagens, basta escrever na janela superior esquerda da nossa página (Pesquisar no Blogue) ccaç 726 e fazer enter.
Se o seu pai não está a tratar o grave problema do stress pós-traumático de guerra, de que sofre, pode fazer uma abordagem junto da Associação dos Deficientes das Forças Armadas, em Lisboa, para pedir ajuda. Se quiser, para primeiro passo, envio-lhe o endereço do nosso camarada Luís Nabais, a fim de obter informações de a quem se deve dirigir junto daquela associação.
Com respeito a contactos com camaradas da CCAÇ 726, envio-lhe dois que para começo podem ser muito importantes. São eles:
Estevão Lopes e Tavares (*)
Estes contactos foram obtidos na página do nosso camarada Jorge Santos em http://www.guerracolonial.home.sapo.pt/
Se precisar de mais esclarecimentos, disponha.
Enregue ao seu pai um abraço de toda a tertúlia do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
Com os nossos cumprimentos
Pelos editores do Blogue
Carlos Vinhal
(*) - Números de telefones não apresentados na edição, mas que serão fornecidos a quem os solicitar.
________________
Nota de CV:
(1) - Sobre a CCAÇ 726 ver postes de:
17 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2360: A CCAÇ 726, a primeira Companhia a ocupar Guileje (2): 10 mortos e mais de metade do pessoal ferido em combate (Virgínio Briote)
14 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3060: Convívios (74): CCAÇ 726 (Guileje, 1964/66), em 24 de Maio de 2008, Arados, Benavente (Nuno Rubim)
22 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3082: Convívios (76): Ainda o 18º encontro dos bravos da CCAÇ 726 (Nuno Rubim)
Guiné 63/74 - P3136: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (15): À noite...
Mensagem de Torcato Mendonça, ex-Alf Mil, CART 2339 (Mansambo, 1968/69), de 3 de Agosto de 2008, dirigida a Luís Graça
Caro Camarada
Tenho a informática avariada ou em férias. Mas vai um escrito. Se receberes diz-me por favor. Texto simples, de noite de ontem que se mantém hoje em abandono de sono. Vidas.
Roubo-te tempo e disso me penitencio.
Perdi todos os endereços que estavam no outlook. Sobram poucos no gmail.
O informático formatou e apagou... é obra... DIZ-ME ENTÃO.
Um abraço do
Torcato Mendonça
PENSAR EM VOZ ALTA – H (*)
Por Torcato Mendonça
1 - À noite, quando o silêncio melhor se instala, para não nos sentirmos tão sós, pomos a tocar, em fundo, música suave e, a partir daí instalamo-nos, pensamos, lemos, escrevemos ou, simplesmente, vamos trilhando caminhos num doce embalar, sonhando ou pensando – num por vezes; pensar em voz alta – permanecendo mais, ali ou além, num ou noutro ponto, esquecendo o tempo, o avançar da noite.
Aconteceu hoje, sentindo assim mais o que acabamos de ler. Tínhamo-lo feito no ecrã, ao correr do cursor. Preferimos imprimir e ler atentamente no papel. Já não se usa dizes-me tu Camarada. Talvez tenhas certa razão. Mas texto de importância, escritos que envias para quem gostas ou recebes, diz-me se não preferes o papel. Claro que sim.
Por isso li pausadamente, apreendendo e aprendendo, confirmando e questionando-me, anotando e, já numa das notas finais deste texto de vida dizem-me que: um Homem nasceu numa ilha de poetas, de flores e de mulheres bonitas. Diz-me tu se a beleza desta trilogia não te levava a querer ter nascido e a viver em semelhante lugar? Não sentes o peso forte e indissociável desta trilogia? Sentes. Eu sabia que sim. Olha eu parei e pelo silêncio da noite, pela suavidade da música, pelo teor tão diverso do texto anteriormente lido, ou, talvez, isso sim pelo somatório de tudo e porque sou assim, sonhei acordado, viajando não sei para onde, viajei e, mesmo neste primeiro dia de Agosto, quase que senti o frio de Inverno, o silêncio da neve ao cair, o caminhar na noite braço com braço, com uma mulher e sentia, ao andar, o calor dela vindo, atravessando pele de casacos, a voz, a voz dela a entrar doce neste caos de ideias, de sonhos, ia, íamos caminhando, contando confidências, alheios a tudo rumo ao desconhecido. Sim porque era um sonho de pessoas e lugares. Um sonho só de alguns. Só que a realidade é outra, quer a do texto lido quer o voltar lá sempre. Hoje, nesta data sofri, há muitos anos atrás, um ataque em Cansamba. Estava a trabalhar para a 2405 de Galomaro e para o COP7. Parou o sonho e veio, como sempre à memória. Não queria falar de guerra, nem pensar nessa brutalidade agora. Mas vem sempre, por ler textos assim, por pertencer ainda, em parte, a esse passado, àquela terra, as suas gentes e sinto e gosto mesmo sabendo não terem ainda direito a serem felizes.
Dizes-me: - Mas que sabes tu daquele terra se nela só fizeste guerra?
Certo. Estás certo. Mas talvez por isso a sinta, os sinta mais fortemente. Talvez por isso, tudo com eles relacionado é, em intensidade, por mim vivido. Que queres Camarada?! Sou assim.
- Assim como? Bem, que queres que te responda? Que queres que te diga? Foi há tanto tempo o meu regresso, foi tanto o deambular perdido ou convencido por tanto lado. Mas aquele tempo, aquela guerra é que para mim conta. É como uma segunda terra, como uma gente que sinto de forma diferente. Sabes, sei que sabes, mas repito-me: tenho dificuldade de ser de algum lugar. Dizia-te: depois de regressar ia tendo conhecimento do que se passava, ia sentindo, ia apertando os dentes, anotando mas, incompreensivelmente, anotando e guardando no fundo da memória. Era tempo de outras vidas, de outras vivências e prioridades. Por isso quis ler atentamente aquele belo escrito de vida ou vidas. Sentimos algo misto de carinho e fraternidade. Sentimos também, por fraqueza nossa, certa revolta. Muito nós sabíamos. Não sentimos ódios pois não entram na nossa vida, no modo como a atravessamos. Sentimos, isso sim, revolta connosco, com outros, poucos por nem isso talvez mereçam. São pequenas peças de um sistema abjecto da vida real. Sim Camarada lá existe mas diz-me só lá? Calas-te. Certo. Não só e muitos sistemas bem piores até são tolerados e aplaudidos.
És português como eu e por isso respondes: que havemos de fazer? Paciência, é a vida!
2 - Não te quero roubar mais tempo, menos ainda inquietar em tempo de agostos, mês de paragem de trabalho em países de primeiro mundo, como é o nosso. Só que li uma notícia a invalidar talvez sermos do primeiro mundo. Cortamos na pensão anual dos antigos combatentes e poupamos milhões. Ou seja, passa-se a pensão de 150, para 100, ou 75 Euros, em corte a 290 mil e poupa-se 13 milhões. É obra. Não ficam, alguns, tão à vontade no pagamento da factura da farmácia ou em beberem mais um copo para terem melhor sono… mas poupa-se. Os tipos já estão a ir… calma camarada não apertes os dentes. Não pedimos nada mas exigimos respeito. Começa a aborrecer Camarada, começa a aborrecer. Que dirão certos homens de muitas estrelas e galões desta poupança de tostões? Ajuda alguma missão de auxílio a povo aflito, ou à prestação de um pandur, ou lá o que é, ou F16, submarino ou eteceteras… mas... olha não te chateies Camarada… vai-se resolver pois cada vez somos menos…
3 – Estás a pensar que estou a ficar desequilibrado ou a não ter paciência por não calar. Nada disso. Não te preocupes. Agradeço a tua preocupação pela minha sanidade mental.
Digo-te que ainda hoje tenho orgulho de ter pertencido ao Exército do meu País.
Agradou-me ouvir um Militar, a sério, dizer que pertencia a seu Exército ou pensar como eu que: - Em cada dia que passa e nada de novo aprendemos é um dia perdido.
Hoje apreendi e aprendi muito com aquele texto de um Homem e uma Mulher que me deram uma lição de vida. Espero que amanhã ou nos dias seguintes não sejam dias perdidos…
Não te aborreço mais.
Deixa-me voltar a sonhar com a neve a cair e sentir o calor e afecto de quem ao meu lado caminha…lentamente vai o sonho e entra, de mansinho, o sono…
____________
Nota de CV
(*) - Vd. último poste da série de 21 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3080: Blogoterapia (58): Pensar em voz alta... Que vidas, que merda! (Torcato Mendonça)
Caro Camarada
Tenho a informática avariada ou em férias. Mas vai um escrito. Se receberes diz-me por favor. Texto simples, de noite de ontem que se mantém hoje em abandono de sono. Vidas.
Roubo-te tempo e disso me penitencio.
Perdi todos os endereços que estavam no outlook. Sobram poucos no gmail.
O informático formatou e apagou... é obra... DIZ-ME ENTÃO.
Um abraço do
Torcato Mendonça
PENSAR EM VOZ ALTA – H (*)
Por Torcato Mendonça
1 - À noite, quando o silêncio melhor se instala, para não nos sentirmos tão sós, pomos a tocar, em fundo, música suave e, a partir daí instalamo-nos, pensamos, lemos, escrevemos ou, simplesmente, vamos trilhando caminhos num doce embalar, sonhando ou pensando – num por vezes; pensar em voz alta – permanecendo mais, ali ou além, num ou noutro ponto, esquecendo o tempo, o avançar da noite.
Aconteceu hoje, sentindo assim mais o que acabamos de ler. Tínhamo-lo feito no ecrã, ao correr do cursor. Preferimos imprimir e ler atentamente no papel. Já não se usa dizes-me tu Camarada. Talvez tenhas certa razão. Mas texto de importância, escritos que envias para quem gostas ou recebes, diz-me se não preferes o papel. Claro que sim.
Por isso li pausadamente, apreendendo e aprendendo, confirmando e questionando-me, anotando e, já numa das notas finais deste texto de vida dizem-me que: um Homem nasceu numa ilha de poetas, de flores e de mulheres bonitas. Diz-me tu se a beleza desta trilogia não te levava a querer ter nascido e a viver em semelhante lugar? Não sentes o peso forte e indissociável desta trilogia? Sentes. Eu sabia que sim. Olha eu parei e pelo silêncio da noite, pela suavidade da música, pelo teor tão diverso do texto anteriormente lido, ou, talvez, isso sim pelo somatório de tudo e porque sou assim, sonhei acordado, viajando não sei para onde, viajei e, mesmo neste primeiro dia de Agosto, quase que senti o frio de Inverno, o silêncio da neve ao cair, o caminhar na noite braço com braço, com uma mulher e sentia, ao andar, o calor dela vindo, atravessando pele de casacos, a voz, a voz dela a entrar doce neste caos de ideias, de sonhos, ia, íamos caminhando, contando confidências, alheios a tudo rumo ao desconhecido. Sim porque era um sonho de pessoas e lugares. Um sonho só de alguns. Só que a realidade é outra, quer a do texto lido quer o voltar lá sempre. Hoje, nesta data sofri, há muitos anos atrás, um ataque em Cansamba. Estava a trabalhar para a 2405 de Galomaro e para o COP7. Parou o sonho e veio, como sempre à memória. Não queria falar de guerra, nem pensar nessa brutalidade agora. Mas vem sempre, por ler textos assim, por pertencer ainda, em parte, a esse passado, àquela terra, as suas gentes e sinto e gosto mesmo sabendo não terem ainda direito a serem felizes.
Dizes-me: - Mas que sabes tu daquele terra se nela só fizeste guerra?
Certo. Estás certo. Mas talvez por isso a sinta, os sinta mais fortemente. Talvez por isso, tudo com eles relacionado é, em intensidade, por mim vivido. Que queres Camarada?! Sou assim.
- Assim como? Bem, que queres que te responda? Que queres que te diga? Foi há tanto tempo o meu regresso, foi tanto o deambular perdido ou convencido por tanto lado. Mas aquele tempo, aquela guerra é que para mim conta. É como uma segunda terra, como uma gente que sinto de forma diferente. Sabes, sei que sabes, mas repito-me: tenho dificuldade de ser de algum lugar. Dizia-te: depois de regressar ia tendo conhecimento do que se passava, ia sentindo, ia apertando os dentes, anotando mas, incompreensivelmente, anotando e guardando no fundo da memória. Era tempo de outras vidas, de outras vivências e prioridades. Por isso quis ler atentamente aquele belo escrito de vida ou vidas. Sentimos algo misto de carinho e fraternidade. Sentimos também, por fraqueza nossa, certa revolta. Muito nós sabíamos. Não sentimos ódios pois não entram na nossa vida, no modo como a atravessamos. Sentimos, isso sim, revolta connosco, com outros, poucos por nem isso talvez mereçam. São pequenas peças de um sistema abjecto da vida real. Sim Camarada lá existe mas diz-me só lá? Calas-te. Certo. Não só e muitos sistemas bem piores até são tolerados e aplaudidos.
És português como eu e por isso respondes: que havemos de fazer? Paciência, é a vida!
2 - Não te quero roubar mais tempo, menos ainda inquietar em tempo de agostos, mês de paragem de trabalho em países de primeiro mundo, como é o nosso. Só que li uma notícia a invalidar talvez sermos do primeiro mundo. Cortamos na pensão anual dos antigos combatentes e poupamos milhões. Ou seja, passa-se a pensão de 150, para 100, ou 75 Euros, em corte a 290 mil e poupa-se 13 milhões. É obra. Não ficam, alguns, tão à vontade no pagamento da factura da farmácia ou em beberem mais um copo para terem melhor sono… mas poupa-se. Os tipos já estão a ir… calma camarada não apertes os dentes. Não pedimos nada mas exigimos respeito. Começa a aborrecer Camarada, começa a aborrecer. Que dirão certos homens de muitas estrelas e galões desta poupança de tostões? Ajuda alguma missão de auxílio a povo aflito, ou à prestação de um pandur, ou lá o que é, ou F16, submarino ou eteceteras… mas... olha não te chateies Camarada… vai-se resolver pois cada vez somos menos…
3 – Estás a pensar que estou a ficar desequilibrado ou a não ter paciência por não calar. Nada disso. Não te preocupes. Agradeço a tua preocupação pela minha sanidade mental.
Digo-te que ainda hoje tenho orgulho de ter pertencido ao Exército do meu País.
Agradou-me ouvir um Militar, a sério, dizer que pertencia a seu Exército ou pensar como eu que: - Em cada dia que passa e nada de novo aprendemos é um dia perdido.
Hoje apreendi e aprendi muito com aquele texto de um Homem e uma Mulher que me deram uma lição de vida. Espero que amanhã ou nos dias seguintes não sejam dias perdidos…
Não te aborreço mais.
Deixa-me voltar a sonhar com a neve a cair e sentir o calor e afecto de quem ao meu lado caminha…lentamente vai o sonho e entra, de mansinho, o sono…
____________
Nota de CV
(*) - Vd. último poste da série de 21 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3080: Blogoterapia (58): Pensar em voz alta... Que vidas, que merda! (Torcato Mendonça)
sábado, 16 de agosto de 2008
Guiné 63/74 - P3135: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (11): Partida de Có para Mansabá
1. Mensagem de 5 de Agosto de 2008 do nosso camarada Raul Albino, ex-Alf Mil, CCAÇ 2402/BCAÇ 2851 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70).
Caros amigos editores,
Faz cerca de um ano que vos enviei o último texto das memórias da CCaç 2402. Lembro-me bem porque os últimos relatos foram enviados no período morto das férias, um optimo periodo para voltar ao vosso convívio.
Se ainda estiverem recordados, informei-os que a razão desta ausência se relacionava com o esforço que estava a desenvolver para concluir o Volume II destas memórias, que neste momento já está editado. Não se trata de um volume de continuação de memórias como o do nosso amigo comum Beja Santos, mas sim o permitir registar em livro as memórias e opiniões de outros protagonistas da Companhia, entre elas as do nosso comandante Vargas Cardoso (Coronel na reforma) e do nosso vagomestre João Bonifácio (Ex-Fur Mil e pertencente ao nosso blogue), além de muitos outros. O meu contributo como narrador neste volume foi diminuto para dar a oportunidade a outros de se exprimirem. Na verdade, se eles tivessem participado a tempo e horas, o livro seria só um e não dois volumes. Tenho contribuido para o blogue com alguns excertos dos acontecimentos principais, mas os livros foram concebidos unicamente para os militares desta Companhia e seus familiares e é dessa maneira que os textos devem ser encarados em toda a sua organização e estrutura. Se eu tivesse de definir a obra, diria que se trata duma espécie de blogue/livro de sentido único onde todos puderam participar com os seus próprios pontos de vista. Sem a preciosa ferramenta informática que é a internete e a sua insubstituível interactividade, podem imaginar a carga de trabalho em que me meti, do qual não estou arrependido e muito prazer me proporcionou. Mas, convenhamos, é como tentar fazer uma omoleta sem ovos...
O último texto que enviei no ano passado foi também o útimo seleccionado da permanência da CCaç 2402 em Có. Hoje envio anexo um pequeno texto com fotos da nossa deslocação para Mansabá. Este foi um período curto em relação aos outros locais de permanência, mas bastante intenso em termos de acontecimentos militares.
Um abraço a todos e um pedido de desculpas por esta indesculpável ausência.
Raul Albino
2. Partida de Có para Mansabá
Por Raul Albino
A 19 de Março de 1969, a CCaç 2402 (-) a dois GCOMB (1.º e 4.º), iniciou o deslocamento para Mansabá, ficando em Có os restantes dois GCOMB (2.º e 3.º) a acompanhar a CCaç 2312 que assumiu o comando deste sub-sector, em termos de reforço operacional até à sua plena integração.
A 1 de Abril de 1969, os 2.º e 3.º GCOMB chegaram a Mansabá para se juntarem à restante Companhia.
As fotografias que se seguem, referem-se à deslocação para Mansabá da primeira metade da Companhia.
Foto 1 > Partida das viaturas de Có para Mansabá
Foto 2 > Passagem da coluna por João Landim
Foto 3 > Passagem da coluna por Safim-Mansoa
Fotos e legendas: © Raul Albino (2008). Direitos reservados.
3. Comentário de CV
Caro Raúl Albino
Já estávamos com saudades de receber os episódios da História da CCAÇ 2402. Ainda bem que voltas a ter disponibilidade para colaborar no Blogue.
Como julgo que sabes, Mansabá toca-me de muito perto, pois permaneci ali com a minha Companhia 22 meses.
Fomos render a CCAÇ 2403 em Fevereiro de 1970 e fomos rendidos pela CCAÇ 2753, do camarada Vitor Junqueira, em Fevereiro de 1972.
Fico à espera dos teus relatos e fotos referentes a Mansabá, embora julgue que a tua Companhia permanecesse lá pouco tempo.
Um abraço
_______________
Nota de CV
Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2085: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (10): Enfermeiro em apuros
Guiné 63/74 - P3134: Blogoterapia (60): Memórias da CCAÇ 555, Cabedu, 1963/65 (Norberto Costa)
1. Mensagem, com data de ontem, do Norberto Gomes da Costa, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 555, Cabedu (1963/65) (*):
Meu caro Carlos Vinhal,
Começo por te cumprimentar pessoalmente, já que é a primeira vez que a ti me dirijo. Ao mesmo tempo que te agradeço a disponibilidade e o modo como lidaste com o meu texto, bastante extenso, dividindo-o em três partes (**), dando-lhe títulos sujestivos e muito a propósito, revelando, da tua parte, talento na edição de textos. Foi um excelente trabalho da equipa editorial, que, neste momento, parece ser da tua responsabilidade.
Aproveito ainda a oportunidade para agradecer a todos que se me dirigiram, comentando, de algum modo, o que foi escrito sobre Cabedú dos anos 1963, 64 e 65, em particular ao meu amigo Mendes Gomes, colega de Empresa e parceiro de trabalho durante alguns anos e que já não vejo há uns tempos (***).
Um abraço
para ele que é extensivo a todos os animadores do blogue.
Saudações,
Norberto Gomes da Costa
_________
Notas de L.G.(ainda em férias):
(*) 16 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3063: Notícias da CCAÇ 555 (Cabedu, Out 1963/ Out 1965) (Norberto Gomes da Costa)
(**) Vd. postes de:
11 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3127: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú 1963/65 - I Parte: Baptismo de fogo junto à Ilha do Como (Norberto Costa)
12 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3130: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65 - II Parte: O nosso quotidiano em Cabedú (Norberto Costa)
13 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3131: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65 - III Parte: Cabedú... até ao nosso regresso (Norberto Costa)
(***) Comentário de Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes:
Ó seu pirata Gomes da Costa! Foste um óptimo programador da CGD em Lisboa. Trabalhei contigo, lado a lado, durante anos. E foste meu antecessor na guerra do Como. E nunca disseste nada!...Agora apareces-me aqui com a toga de Historiador!...Fico à espera de mais...
Recebe um grande abraço
Joaquim Mendes Gomes ( o Gómes...como tu dizias)
Recorde-se que o nosso amigo e camarada Joaquim Mendes Gomes foi Alf Mil CCAÇ 728. Sobre a história desta unidade, vd. os seguintes posts:
20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo
2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo
20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia
1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG
11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar
8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo
22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjolá, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira
8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha
11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)
29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez
5 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1646: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (11): Não foi a mesma Pátria que nos acolheu
Meu caro Carlos Vinhal,
Começo por te cumprimentar pessoalmente, já que é a primeira vez que a ti me dirijo. Ao mesmo tempo que te agradeço a disponibilidade e o modo como lidaste com o meu texto, bastante extenso, dividindo-o em três partes (**), dando-lhe títulos sujestivos e muito a propósito, revelando, da tua parte, talento na edição de textos. Foi um excelente trabalho da equipa editorial, que, neste momento, parece ser da tua responsabilidade.
Aproveito ainda a oportunidade para agradecer a todos que se me dirigiram, comentando, de algum modo, o que foi escrito sobre Cabedú dos anos 1963, 64 e 65, em particular ao meu amigo Mendes Gomes, colega de Empresa e parceiro de trabalho durante alguns anos e que já não vejo há uns tempos (***).
Um abraço
para ele que é extensivo a todos os animadores do blogue.
Saudações,
Norberto Gomes da Costa
_________
Notas de L.G.(ainda em férias):
(*) 16 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3063: Notícias da CCAÇ 555 (Cabedu, Out 1963/ Out 1965) (Norberto Gomes da Costa)
(**) Vd. postes de:
11 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3127: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú 1963/65 - I Parte: Baptismo de fogo junto à Ilha do Como (Norberto Costa)
12 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3130: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65 - II Parte: O nosso quotidiano em Cabedú (Norberto Costa)
13 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3131: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65 - III Parte: Cabedú... até ao nosso regresso (Norberto Costa)
(***) Comentário de Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes:
Ó seu pirata Gomes da Costa! Foste um óptimo programador da CGD em Lisboa. Trabalhei contigo, lado a lado, durante anos. E foste meu antecessor na guerra do Como. E nunca disseste nada!...Agora apareces-me aqui com a toga de Historiador!...Fico à espera de mais...
Recebe um grande abraço
Joaquim Mendes Gomes ( o Gómes...como tu dizias)
Recorde-se que o nosso amigo e camarada Joaquim Mendes Gomes foi Alf Mil CCAÇ 728. Sobre a história desta unidade, vd. os seguintes posts:
20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo
2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo
20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia
1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG
11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar
8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo
22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjolá, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira
8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha
11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)
29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez
5 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1646: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (11): Não foi a mesma Pátria que nos acolheu
sexta-feira, 15 de agosto de 2008
Guiné 63/74 - P3133: Notas de leitura (11): A Guiné do século XVII ao século XIX (Mário Beja Santos)
1. Mensagem de Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), enviado em 4 de Agosto de 2008
Carlos,
Aqui vai a capa e um curto comentário, o texto segue em separado, parece que és tu quem está no piquete.
Aproveito para te dizer que conto contigo em 11 de Novembro, no lançamento do segundo livro do meu diário da Guiné.
Um abraço do
Mário
A Guiné do século XVII ao século XIX: O testemunho dos manuscritos, por Fernando Amaro Monteiro e Teresa Vasquez Rocha, Prefácio, 2004. Trata-se de uma importante colectânea de ensaios sobre a História da Guiné, com a consulta de importantes manuscritos. Torna-se mais fácil perceber onde e porquê falhou a nossa aculturação/colonização, depois desta leitura. (BS)
A GUINÉ DOS GRUMETES, DOS ESCRAVOS E DOS PRESÍDIOS
Por Beja Santos
Ninguém ignora que se publica muito pouco sobre a História da Guiné, quer em Portugal quer em Bissau. Pela pouco importância que teve no período colonial, sobretudo até à pacificação de 1936, os relatos existentes, sempre invocados da a exiguidade de testemunhos, tem a ver com clássicos do tipo “Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde”, de André Álvares de Almada, “Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné”, de Senna Barcellos, mas também relatórios de governadores, relatórios de comandantes de campanha, notas oficiais, etc. Em 1938, um facultativo, João Barreto, publica a “História da Guiné, 1418-1918”, que até à “A Guiné Portuguesa” de Avelino Teixeira da Mota, de 1954, foi a única obra de conjunto disponível para o público não iniciado. Deve-se igualmente a Teixeira da Mota, nos anos 40, o grande impulso para os estudos históricos com base científica, com a criação do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, era aqui que se publicava o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, obra incontornável para o conhecimento da Guiné nas suas múltiplas vertentes. Nos anos 80, René Pélissier escreve “História da Guiné – Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936”, a única obra que podemos agora adquirir (Editorial Estampa, 1989).
Felizmente que as melhores bibliotecas proporcionam acesso a alguns dos títulos indispensáveis, afortunadamente que a investigação contínua, lá e cá, e por isso se saúda “A Guiné, do século XVII ao século XIX, O testemunho dos manuscritos”, por Fernando Amaro Monteiro e Teresa Vázquez Rocha (Prefácio, 2004). Os autores optaram por analisar as seguintes áreas de investigação: os grandes impérios subsaharianos que precederam a chegada dos portugueses no século XV; a Guiné vista por escritores no período em apreço e também à luz de muitos manuscritos compulsados no Arquivo Histórico Ultramarino; a problemática da crença religiosa e a tensão entre o Islão, as crenças tradicionais e o cristianismo; por último, os problemas da missionação na Guiné, antes e depois do liberalismo.
Qual o significado para estudar o período anterior à nossa chegada à Guiné? A presença portuguesa na região foi sempre muito diluída, sujeita à pressão de outras potências coloniais, por isso optou-se por uma fixação em duas feitorias-praças (Cachéu e Bissau) e depois presídios (caso de Fá), ao sabor dos meios financeiros e militares. A aculturação fez-se graças ao “grumete”, o negro periférico das praças e presídios, em muitas casos de apelido português. Fazia-se comércio na ampla Senegâmbia, mas no território que virá a ser hoje a Guiné-Bissau o colonizador encontrou resistências quer dos mandingas quer de outras etnias que se revelaram hostis à progressão do colonizador no território, isto sem falar no clima devastador. O quadro e o papel desempenhado por estes impérios subsaharianos é de grande utilidade para compreender como é que eles actuaram como contra-poder e qual foi a interlocução possível com o colonizador e como este aproveitou as frestas possíveis para aprofundar mais as cisões interétnicas.
De igual modo, é incompreensível a história da Guiné sem conhecer o mosaico humano que os portugueses encontraram, ouvir os testemunhos do viajante ou do cronista, perceber como é que se estabeleceram zonas de influência, como é que as lideranças nativas reconheciam, duradoira ou episodicamente o poder político dos portugueses, fazendo ouvir ao mesmo tempo os interesses económicos e a ligação de interesses entre o arquipélago de Cabo Verde e esta região. Convém observar que a fixação dos portugueses só passou a ser uma realidade nos finais do século XVII, sobretudo numa tentativa de salvaguardar os interesses nacionais face às intenções dos franceses. Os autores habilitam o leitor com a evolução do poder político e económico, citando documentos de incontestável importância como cartas de capitães-mores que dão conta da debilidade militar para suster a hostilidade das populações locais ou o importante significado das incursões de franceses, ingleses e espanhóis.
A questão religiosa é de análise indispensável para se perceber o grau de islamização estruturante e a incapacidade de aprofundar a cristianização, que teve sempre uma acção pouco ou nada eficaz, o que é surpreendente se se pensar no sucesso de Cabo Verde. Os autores descrevem as queixas sobre a presença missionária, os litígios nas praças da Guiné à volta da cristianização dos escravos, facto que não agradava aos contratadores. O acervo de manuscritos citados é de primordial importância para se perceber a natureza dos obstáculos postos é missionação, mesmos nos períodos áureos da acção missionária e o relativo sucesso da islamização que soube acolher e aculturar as sociedades negras tradicionais.
A Igreja no século XIX é também uma Igreja que falhou neste ponto de África e por diferentes razões: o período posterior à Guerra da Restauração (1640-1668) foi desgastante pelos conflitos dentro da própria Igreja e a partir de 1834, com a extinção das ordens religiosas, assiste-se ao culminar da decadência já perceptível ao longo de todo o século XVIII; o despotismo esclarecido introduz um novo enfraquecimento com tensões permanentes dentro do poder político e a perseguição ao Clero, sendo a Companhia de Jesus o seu principal alvo. De novo os autores citam inúmera documentação que dão conta desta realidade, seja na Guiné de Cabo Verde seja no Distrito Autónomo da Guiné. Também aqui é incontornável a figura de Honório Pereira Barreto, procurando contrariar as sistemáticas tentativas de usurpação dos nossos territórios por estrangeiros, em particular pelos franceses, num tempo em que se desfez a autoridade e a presença cristã é praticamente nula. Como escrevem os autores nas conclusões: “A implantação do liberalismo, para além da grande instabilidade interna, provocou na relação Metrópole/Ultramar e, logo, na Guiné, todo um processo de vaivém de medidas, sobretudo quanto ao Clero e á própria Igreja, com as lógicas consequências da catolicidade no território”. A seguir, África irá ser sujeita a uma grande pressão internacional, acelera-se a ocupação, terminará o confinamento do colonizador às feitorias e presídios. Irá começar a época imperial até 1936, as lutas sangrentas pela ocupação do território, obrigando todos à obediência à bandeira portuguesa.
É neste sentido que esta obra se revela esclarecedora sobre as diferentes debilidades da colonização portuguesa na Guiné.
____________________
Nota de CV:
(1) - Vd. último poste da série de 14 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3132: Notas de leitura (10): A minha Jornada em África (Beja Santos)
Carlos,
Aqui vai a capa e um curto comentário, o texto segue em separado, parece que és tu quem está no piquete.
Aproveito para te dizer que conto contigo em 11 de Novembro, no lançamento do segundo livro do meu diário da Guiné.
Um abraço do
Mário
A Guiné do século XVII ao século XIX: O testemunho dos manuscritos, por Fernando Amaro Monteiro e Teresa Vasquez Rocha, Prefácio, 2004. Trata-se de uma importante colectânea de ensaios sobre a História da Guiné, com a consulta de importantes manuscritos. Torna-se mais fácil perceber onde e porquê falhou a nossa aculturação/colonização, depois desta leitura. (BS)
A GUINÉ DOS GRUMETES, DOS ESCRAVOS E DOS PRESÍDIOS
Por Beja Santos
Ninguém ignora que se publica muito pouco sobre a História da Guiné, quer em Portugal quer em Bissau. Pela pouco importância que teve no período colonial, sobretudo até à pacificação de 1936, os relatos existentes, sempre invocados da a exiguidade de testemunhos, tem a ver com clássicos do tipo “Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde”, de André Álvares de Almada, “Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné”, de Senna Barcellos, mas também relatórios de governadores, relatórios de comandantes de campanha, notas oficiais, etc. Em 1938, um facultativo, João Barreto, publica a “História da Guiné, 1418-1918”, que até à “A Guiné Portuguesa” de Avelino Teixeira da Mota, de 1954, foi a única obra de conjunto disponível para o público não iniciado. Deve-se igualmente a Teixeira da Mota, nos anos 40, o grande impulso para os estudos históricos com base científica, com a criação do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, era aqui que se publicava o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, obra incontornável para o conhecimento da Guiné nas suas múltiplas vertentes. Nos anos 80, René Pélissier escreve “História da Guiné – Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936”, a única obra que podemos agora adquirir (Editorial Estampa, 1989).
Felizmente que as melhores bibliotecas proporcionam acesso a alguns dos títulos indispensáveis, afortunadamente que a investigação contínua, lá e cá, e por isso se saúda “A Guiné, do século XVII ao século XIX, O testemunho dos manuscritos”, por Fernando Amaro Monteiro e Teresa Vázquez Rocha (Prefácio, 2004). Os autores optaram por analisar as seguintes áreas de investigação: os grandes impérios subsaharianos que precederam a chegada dos portugueses no século XV; a Guiné vista por escritores no período em apreço e também à luz de muitos manuscritos compulsados no Arquivo Histórico Ultramarino; a problemática da crença religiosa e a tensão entre o Islão, as crenças tradicionais e o cristianismo; por último, os problemas da missionação na Guiné, antes e depois do liberalismo.
Qual o significado para estudar o período anterior à nossa chegada à Guiné? A presença portuguesa na região foi sempre muito diluída, sujeita à pressão de outras potências coloniais, por isso optou-se por uma fixação em duas feitorias-praças (Cachéu e Bissau) e depois presídios (caso de Fá), ao sabor dos meios financeiros e militares. A aculturação fez-se graças ao “grumete”, o negro periférico das praças e presídios, em muitas casos de apelido português. Fazia-se comércio na ampla Senegâmbia, mas no território que virá a ser hoje a Guiné-Bissau o colonizador encontrou resistências quer dos mandingas quer de outras etnias que se revelaram hostis à progressão do colonizador no território, isto sem falar no clima devastador. O quadro e o papel desempenhado por estes impérios subsaharianos é de grande utilidade para compreender como é que eles actuaram como contra-poder e qual foi a interlocução possível com o colonizador e como este aproveitou as frestas possíveis para aprofundar mais as cisões interétnicas.
De igual modo, é incompreensível a história da Guiné sem conhecer o mosaico humano que os portugueses encontraram, ouvir os testemunhos do viajante ou do cronista, perceber como é que se estabeleceram zonas de influência, como é que as lideranças nativas reconheciam, duradoira ou episodicamente o poder político dos portugueses, fazendo ouvir ao mesmo tempo os interesses económicos e a ligação de interesses entre o arquipélago de Cabo Verde e esta região. Convém observar que a fixação dos portugueses só passou a ser uma realidade nos finais do século XVII, sobretudo numa tentativa de salvaguardar os interesses nacionais face às intenções dos franceses. Os autores habilitam o leitor com a evolução do poder político e económico, citando documentos de incontestável importância como cartas de capitães-mores que dão conta da debilidade militar para suster a hostilidade das populações locais ou o importante significado das incursões de franceses, ingleses e espanhóis.
A questão religiosa é de análise indispensável para se perceber o grau de islamização estruturante e a incapacidade de aprofundar a cristianização, que teve sempre uma acção pouco ou nada eficaz, o que é surpreendente se se pensar no sucesso de Cabo Verde. Os autores descrevem as queixas sobre a presença missionária, os litígios nas praças da Guiné à volta da cristianização dos escravos, facto que não agradava aos contratadores. O acervo de manuscritos citados é de primordial importância para se perceber a natureza dos obstáculos postos é missionação, mesmos nos períodos áureos da acção missionária e o relativo sucesso da islamização que soube acolher e aculturar as sociedades negras tradicionais.
A Igreja no século XIX é também uma Igreja que falhou neste ponto de África e por diferentes razões: o período posterior à Guerra da Restauração (1640-1668) foi desgastante pelos conflitos dentro da própria Igreja e a partir de 1834, com a extinção das ordens religiosas, assiste-se ao culminar da decadência já perceptível ao longo de todo o século XVIII; o despotismo esclarecido introduz um novo enfraquecimento com tensões permanentes dentro do poder político e a perseguição ao Clero, sendo a Companhia de Jesus o seu principal alvo. De novo os autores citam inúmera documentação que dão conta desta realidade, seja na Guiné de Cabo Verde seja no Distrito Autónomo da Guiné. Também aqui é incontornável a figura de Honório Pereira Barreto, procurando contrariar as sistemáticas tentativas de usurpação dos nossos territórios por estrangeiros, em particular pelos franceses, num tempo em que se desfez a autoridade e a presença cristã é praticamente nula. Como escrevem os autores nas conclusões: “A implantação do liberalismo, para além da grande instabilidade interna, provocou na relação Metrópole/Ultramar e, logo, na Guiné, todo um processo de vaivém de medidas, sobretudo quanto ao Clero e á própria Igreja, com as lógicas consequências da catolicidade no território”. A seguir, África irá ser sujeita a uma grande pressão internacional, acelera-se a ocupação, terminará o confinamento do colonizador às feitorias e presídios. Irá começar a época imperial até 1936, as lutas sangrentas pela ocupação do território, obrigando todos à obediência à bandeira portuguesa.
É neste sentido que esta obra se revela esclarecedora sobre as diferentes debilidades da colonização portuguesa na Guiné.
____________________
Nota de CV:
(1) - Vd. último poste da série de 14 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3132: Notas de leitura (10): A minha Jornada em África (Beja Santos)
quinta-feira, 14 de agosto de 2008
Guiné 63/74 - P3132: Notas de leitura (10): A minha Jornada em África (Beja Santos)
1. Mensagem do Beja Santos, com data de 8 do corrente:
Carlos e Virgínio,
Fui aos saldos de livros e discos e encontrei duas obras de camaradas da Guiné. O primeiro relato segue agora, tenho a seguir que ler a história do tenente Lobato, um piloto da Força Aérea, capturado no Tombali, em 1965, resgatado na operação Mar Verde. Parece-me um relato pungente, nada sabia sobre este sofredor. A imagem de “A Minha Jornada em África” segue em email separado. Um abraço do Mário
A Minha Jornada em África
António Reis
Editora Ausência
FUI ENFERMEIRO NO HM 241
Por Beja Santos
António Ramalho da Silva Reis, nascido em Avintes, em 1944, embarcou em Março de 1966 no “Rita Maria” e foi colocado no HM 241. A sua experiência ao longo de dois anos na Guiné constitui o relato comovente “A Minha Jornada em África” (por António Reis, Editora Ausência, 1999).
Relato na primeira pessoa do singular, toca-nos pela simplicidade e ausência de pretensões:
“Vi talvez centenas de moços da minha idade morrerem ou chegarem mortos. Vi milhares de feridos entrarem por aquele hospital dentro. A tudo isto assisti, pois passei a minha comissão dividido entre o Posto de Socorros, a sala de observações e a Cirurgia 1, onde ficavam os casos mais graves. Os outros, de menos gravidade, eram distribuídos por outras enfermarias”.
Assentou praça no RI 7, em Leiria, confessa que procurou todos os pretextos para se safar, ser mobilizado para a guerra, já que tinha um braço arqueado, mas ninguém se apiedou:
“Filho de pobre só não ia para a tropa o cego, o coxo ou o maneta. Filho de rico ainda se safavam alguns, arranjando falsos exames médicos onde apareciam com cavernas nos pulmões ou úlceras no estômago”.
Embarcou num barco de carga, carga bruta e carga humana, a Ritinha “desencostou ao som da grafonola que tocava o hino nacional”. O António Reis fala das suas motivações para aquela guerra:
“Não sentia que ia defender nada que fosse meu. Nada me tinha motivado, ao longo dos meus vinte anos, para arriscar a vida. Para quem foi habituado a comer a sopa dos pobres na escola, para quem sempre teve, até aos doze anos, a sola dos pés como calçado, para quem foi posto a trabalhar com apenas doze anos de idade, após ter terminado a quarta classe, e tendo de percorrer vinte e quatro quilómetros sempre com as soletas enfiadas na cintura para que pudesse caminhar mais depressa e calçando-as, só após ter atravessado a ponte, para que a polícia não me multasse por andar descalço. A pé e sempre a pé porque eu ganhava de segunda a sábado, a moço de chapeiro na Avenida Camilo, apenas cinco escudos por dia e o transporte era seis escudos e sessenta centavos. Por quem tudo isto e muito mais tinha passado, como correr os quatro cantos de uma gaveta à procura de uma côdea e nada encontrar, nada devia à sociedade. A sociedade é que já me devia a mim”.
Desembarca em Bissau, assustou-se com os primeiros feridos que viu chegar ao hospital, foi com o 27 (condutor do carro fúnebre) levar umas urnas à capela de Bissau:
“Estes mortos não eram uns mortos quaisquer, eram moços com vinte anos, com direito à vida e não me canso de o repetir porque há coisas que devem ser ditas muitas vezes”.
Descreve a chegada dos feridos ao HM 241, o helicóptero a aterrar e a abordagem de um piquete constituído por quatro soldados e um cabo. Ao princípio o António ainda lhes perguntava o que é que tinha acontecido, depois limitava-se a fazer o seu trabalho. Havia dias especiais como o 5 de Outubro de 1967 em que chegaram quarenta corpos, todos a cheirar a carne humana queimada, todos transformados em múmias, quem estava vivo foi transferido para Lisboa. E confessa:
“Era duro trabalhar naquela enfermaria. Ainda recordo o cabo Silvino ter-me dito que tinha de arranjar formar de fugir daquela enfermaria se não morria ou ficava louco, mas muito mais duro era ficar destacado no mato e aparecer lá num estado como chegaram aqueles e outros desgraçados”.
Há sofrimento inesquecível: o ferido que parecia nada haver a fazer para o salvar e que irá recuperar, tratado com desvelo por aquela malta toda; o camarada que esteve com ele na recruta em Leiria e que chegou num estado lastimável a perder todo o sangue das transfusões pelos orifícios que tinha nos pulmões. Depois a camaradagem, levara soldados à mortuária para os convencer que o camarada de pelotão não estava entre os mortos. E a rotina, sempre a rotina que nada tinha a ver com o sofrimento e as situações excepcionais vividas no HM 241:
“As refeições para os internados eram pedidas de um dia para o outro às 11 horas da manhã. De modo quem desse entrada após essa hora, só teria comida dois dias depois. Entretanto tinham sumos e leite, mas muito estavam ansiosos por uma refeição de quente porque fartos de ração de combate estavam eles. Pois, nenhum dos que me procuraram ficou sem uma refeição”.
As histórias que ele conta referem camaradas pícaros, bebedeiras, o tratamento de prisioneiros, a chegada da malta lá da terra internada no hospital, as recordações do Dr. Fernando Garcia, a sua referência profissional, as vicissitudes da única gorjeta que recebeu, as visitas das senhoras da Cruz Vermelha e do Movimento Nacional Feminino. Há recordações dolorosas como a chegada daquele alferes que vinha paralisado que ele calçou com almofadas, friccionou com álcool e empoou com Lauroderme para que não ganhasse escaras. Prometeu visitá-lo quando viesse para Portugal, encontraram-se. Anos mais tarde, voltou a procurá-lo, o alferes não o reconheceu, talvez tivesse subido muito na vida e não quisesse ser visto com aquele homem com cara de jardineiro ou cantoneiro...
Regressou a metrópole em 1968, aqui está agora o seu relato que finda assim:
“Exteriorizei aquilo que me ia na alma, se alguém me quiser julgar que o faça, mas que esse juiz tenha vivido no mínimo aquilo que eu vivi”.
Carlos e Virgínio,
Fui aos saldos de livros e discos e encontrei duas obras de camaradas da Guiné. O primeiro relato segue agora, tenho a seguir que ler a história do tenente Lobato, um piloto da Força Aérea, capturado no Tombali, em 1965, resgatado na operação Mar Verde. Parece-me um relato pungente, nada sabia sobre este sofredor. A imagem de “A Minha Jornada em África” segue em email separado. Um abraço do Mário
A Minha Jornada em África
António Reis
Editora Ausência
FUI ENFERMEIRO NO HM 241
Por Beja Santos
António Ramalho da Silva Reis, nascido em Avintes, em 1944, embarcou em Março de 1966 no “Rita Maria” e foi colocado no HM 241. A sua experiência ao longo de dois anos na Guiné constitui o relato comovente “A Minha Jornada em África” (por António Reis, Editora Ausência, 1999).
Relato na primeira pessoa do singular, toca-nos pela simplicidade e ausência de pretensões:
“Vi talvez centenas de moços da minha idade morrerem ou chegarem mortos. Vi milhares de feridos entrarem por aquele hospital dentro. A tudo isto assisti, pois passei a minha comissão dividido entre o Posto de Socorros, a sala de observações e a Cirurgia 1, onde ficavam os casos mais graves. Os outros, de menos gravidade, eram distribuídos por outras enfermarias”.
Assentou praça no RI 7, em Leiria, confessa que procurou todos os pretextos para se safar, ser mobilizado para a guerra, já que tinha um braço arqueado, mas ninguém se apiedou:
“Filho de pobre só não ia para a tropa o cego, o coxo ou o maneta. Filho de rico ainda se safavam alguns, arranjando falsos exames médicos onde apareciam com cavernas nos pulmões ou úlceras no estômago”.
Embarcou num barco de carga, carga bruta e carga humana, a Ritinha “desencostou ao som da grafonola que tocava o hino nacional”. O António Reis fala das suas motivações para aquela guerra:
“Não sentia que ia defender nada que fosse meu. Nada me tinha motivado, ao longo dos meus vinte anos, para arriscar a vida. Para quem foi habituado a comer a sopa dos pobres na escola, para quem sempre teve, até aos doze anos, a sola dos pés como calçado, para quem foi posto a trabalhar com apenas doze anos de idade, após ter terminado a quarta classe, e tendo de percorrer vinte e quatro quilómetros sempre com as soletas enfiadas na cintura para que pudesse caminhar mais depressa e calçando-as, só após ter atravessado a ponte, para que a polícia não me multasse por andar descalço. A pé e sempre a pé porque eu ganhava de segunda a sábado, a moço de chapeiro na Avenida Camilo, apenas cinco escudos por dia e o transporte era seis escudos e sessenta centavos. Por quem tudo isto e muito mais tinha passado, como correr os quatro cantos de uma gaveta à procura de uma côdea e nada encontrar, nada devia à sociedade. A sociedade é que já me devia a mim”.
Desembarca em Bissau, assustou-se com os primeiros feridos que viu chegar ao hospital, foi com o 27 (condutor do carro fúnebre) levar umas urnas à capela de Bissau:
“Estes mortos não eram uns mortos quaisquer, eram moços com vinte anos, com direito à vida e não me canso de o repetir porque há coisas que devem ser ditas muitas vezes”.
Descreve a chegada dos feridos ao HM 241, o helicóptero a aterrar e a abordagem de um piquete constituído por quatro soldados e um cabo. Ao princípio o António ainda lhes perguntava o que é que tinha acontecido, depois limitava-se a fazer o seu trabalho. Havia dias especiais como o 5 de Outubro de 1967 em que chegaram quarenta corpos, todos a cheirar a carne humana queimada, todos transformados em múmias, quem estava vivo foi transferido para Lisboa. E confessa:
“Era duro trabalhar naquela enfermaria. Ainda recordo o cabo Silvino ter-me dito que tinha de arranjar formar de fugir daquela enfermaria se não morria ou ficava louco, mas muito mais duro era ficar destacado no mato e aparecer lá num estado como chegaram aqueles e outros desgraçados”.
Há sofrimento inesquecível: o ferido que parecia nada haver a fazer para o salvar e que irá recuperar, tratado com desvelo por aquela malta toda; o camarada que esteve com ele na recruta em Leiria e que chegou num estado lastimável a perder todo o sangue das transfusões pelos orifícios que tinha nos pulmões. Depois a camaradagem, levara soldados à mortuária para os convencer que o camarada de pelotão não estava entre os mortos. E a rotina, sempre a rotina que nada tinha a ver com o sofrimento e as situações excepcionais vividas no HM 241:
“As refeições para os internados eram pedidas de um dia para o outro às 11 horas da manhã. De modo quem desse entrada após essa hora, só teria comida dois dias depois. Entretanto tinham sumos e leite, mas muito estavam ansiosos por uma refeição de quente porque fartos de ração de combate estavam eles. Pois, nenhum dos que me procuraram ficou sem uma refeição”.
As histórias que ele conta referem camaradas pícaros, bebedeiras, o tratamento de prisioneiros, a chegada da malta lá da terra internada no hospital, as recordações do Dr. Fernando Garcia, a sua referência profissional, as vicissitudes da única gorjeta que recebeu, as visitas das senhoras da Cruz Vermelha e do Movimento Nacional Feminino. Há recordações dolorosas como a chegada daquele alferes que vinha paralisado que ele calçou com almofadas, friccionou com álcool e empoou com Lauroderme para que não ganhasse escaras. Prometeu visitá-lo quando viesse para Portugal, encontraram-se. Anos mais tarde, voltou a procurá-lo, o alferes não o reconheceu, talvez tivesse subido muito na vida e não quisesse ser visto com aquele homem com cara de jardineiro ou cantoneiro...
Regressou a metrópole em 1968, aqui está agora o seu relato que finda assim:
“Exteriorizei aquilo que me ia na alma, se alguém me quiser julgar que o faça, mas que esse juiz tenha vivido no mínimo aquilo que eu vivi”.
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