1. Mensagem do nosso camarada Daniel Matos* (ex-Fur Mil da CCaç 3518, Gadamael, 1972/74), enviada ao nosso Blogue:
Camarada Carlos Vinhal
Envio um texto de homenagem a um camarada já falecido, (furriel miliciano Vicente) membro da CCAÇ 3520 (Cacine), cujo pessoal se reune no próximo fim de semana para o respectivo convívio anual.
Escrevi o texto na sequência de um outro oportunamente publicado na Tabanca Grande pelo Juvenal Candeias, a quem dou conhecimento do mesmo, por cópia.
Deixo à V/consideração a sua eventual publicação no blogue, nesta altura.
Um abraço do
Daniel de Matos
Pequena Homenagem ao Piu, da CCaç 3520/Cacine
por Daniel de Matos
No ano passado, aquando da trasladação dos corpos do “cemitério” de Guidaje para Portugal dos meus camaradas de companhia José Carlos Machado e Gabriel Telo (d’Os Marados de Gadamael) e do soldado Manuel Geraldes (da 2.ª CCaç do BCaç 4512), e da homenagem que lhes foi devidamente prestada no Monumento Nacional aos Combatentes, junto ao Forte do Bom Sucesso, em Lisboa, tive o gosto de me encontrar com o ex-alferes miliciano Juvenal Candeias, da CCaç 3520 – Cacine/Cameconde 1971/74, que já não via desde os tempos da Guiné.
Foi muito fácil reconhecê-lo (ele não dirá o mesmo): está igualzinho ao que era quando nos encontrámos no BII19, na Madeira, há mais de 38 anos, só o bigode e alguns cabelos se esbranquiçaram. Trocámos breves impressões e fiquei a saber que estava a enviar histórias desses velhos tempos para a Tabanca Grande. Histórias que vim ler na primeira oportunidade.
Deparei-me logo com a intitulada Vicente, o Piu (Post 5113**, de 16 de Outubro de 2009). “Piu”, não me dizia nada e não associei imediatamente a alcunha ao camarada Vicente que tão bem conhecera. Embora o José Vermelho (tal como o Vicente, ex-furriel miliciano da CCaç 3520), nos tenha lembrado no seu comentário um dos tiques que lhe conhecia – o de apontar a diversos alvos com os braços a fazer de espingarda e…”pum”, – nunca relacionei o Vicente com um efectivo e, soube-o agora, tão eficaz caçador. (O outro tique era o de percutir dedos e palmas da mão, transformando em bombos, tarolas e pratos os joelhos, tampos de mesa, ferros da cama, etc.). Quanto a “Piu”, de pássaro: só ao ver as fotografias que ilustram o interessante e bem escrito relato do Juvenal Candeias compreendi haver analogia com o “meu” camarada Vicente. Fiquei naturalmente chocado ao tomar então conhecimento, de súbito e por esta via, da perda de mais um grande Amigo, vergado por um estúpido cancro e do qual guardo gratas e muitíssimo bem-dispostas recordações.
Tive o prazer de ser convidado para comparecer no convívio da 3520, que este ano se realiza em Lisboa (dia 24 de Abril) e se prolonga no dia seguinte, aniversário da Liberdade, na Ericeira. Como costumo estar perto dali nos fins-de-semana, prometi aparecer no dia 25, mas creio que, lamentavelmente, a calendarização de uns tratamentos que ando a fazer me vai impedir de poder abraçar tantos Amigos que não encontro há longos anos… Logo veremos. Para já, encontrei esta forma de enviar um abraço a todos, escrevendo estas notas de singela homenagem ao Piu, homenagem que é extensiva a todas as “Estrelas de Cacine”.
Cameconde > Alcino Sá, Piu, Costa Pereira, um djubi, Carlos Alves, Juvenal Candeias.
O Max Roach do Entroncamento!
Convivi bastante com o Vicente – e de que maneira! – em Tavira, durante a “especialidade” de atiradores; mais tarde estivemos na Escola Prática de Engenharia, em Tancos, onde tirámos o Curso de Minas e Armadilhas, que ambos concluímos a 11 de Setembro de 1971; durante o último trimestre desse ano, estivemos igualmente juntos no Funchal, na formação das nossas companhias madeirenses, – eu na 3518, ele na 3520, que rumariam à Guiné no final do ano para fazerem o IAO nas proximidades do Cumeré e partirem, respectivamente, para Gadamael (futuros Marados) e Cacine (futura Estrelas).
Não sei exactamente se não nos conhecemos anteriormente, isto é, a minha memória já não me garante se ambos frequentámos ou não a recruta em Santarém, na Escola Prática de Cavalaria. Creio que sim, mas a relativa proximidade da capital ribatejana com o Entroncamento – terra natal do Vicente – pode estar a induzir-me em erro. Brincalhão como era, retenho a sua imagem a fazer camas à espanhola para apanhar os mais incautos, e quase juraria que isso começou no velho quartel (hoje já desactivado) de Santarém.
Como toda a gente sabe, havia o hábito de apadrinhar o pessoal com os nomes das terras de proveniência, salvo se a origem fosse das grandes cidades, pois seria confuso tratar por “Lisboa” ou “Porto” um punhado de homens ao mesmo tempo. Na circunstância, não deveria existir, pelo menos na caserna, mais nenhum “Entroncamento”, e foi assim que ele passou a ser conhecido, orgulhosamente, aliás, pois não escondia o amor pela sua terra. Eu próprio o tratei muitas vezes dessa forma, até para lhe afirmar que ele era um “fenómeno”, – e passo a explicar porquê.
A pequena história que quero contar começa em Tavira e alastra-se a grande parte do Algarve. Nos primeiros dias da Especialidade os instruendos são mandados sentar-se no refeitório para ouvirem uma palestra do Tenente Capelão. Tudo decorreu num tom coloquial, terminando a aula com boa interacção de perguntas e respostas sobre coisas do espírito. Porém, antes de nos mandar sair, o nosso Capelão informou o pessoal que em cada curso era hábito formar-se um conjunto musical para abrilhantar certos eventos e cantar numa ou noutra missa. E começou por perguntar se entre os presentes alguém sabia tocar instrumentos musicais e se era voluntário para a tarefa.
Ergueram-se alguns braços: havia um organista, três ou quatro guitarristas, o Vicente era bom na bateria, o suficiente para formar a banda de acordo com os instrumentos que havia disponíveis no quartel. Eu tinha a mania das músicas – mais ao nível da audição, recolha de informação discográfica e divulgação via rádio – mas, para grande desgosto meu, não tocava rigorosamente instrumento nenhum. Ainda imaginei que o nosso Tenente Capelão perguntasse por percussionistas, talvez aí o meu sentido rítmico me desenrascasse… Mas o que ele quis saber em seguida foi quem sabia cantar! Houve dois prontos voluntários: o Joaquim Catana (que julgo já estar reformado da banca onde, por coincidência, viria a ser colega da Fernanda Simões, uma grande amiga que conservo desde os tempos da juventude), e, ficando eu próprio surpreendido ao ver-me de braço no ar, esta vossa praça! Um fio de suor deve ter-me percorrido a testa quando me lembrei que o capelão iria pedir o curriculum de cada um, em que conjuntos cantaste, etc.. A verdade é que a minha experiência se limitava a microfones de autocarros de excursão e algumas serenatas ao luar em encontros de amigos. Nesse tempo, acho que nem cantava mal. Bem, e tinha pertencido ao orfeão do Liceu Nacional de Gil Vicente (Graça, Lisboa) enquanto por lá andei. Quanto a missas, sim, se ele me perguntasse invocava a minha experiência a cantar na igreja de Vila Maior (São Pedro do Sul) quando fiz as comunhões, infantil e solene, mais a profissão de fé, mas com os meus 8 a 10 anos! Foi uma experiência improdutiva, esta, pois já chegaria agnóstico ao serviço militar…
O Vicente, eu e os demais “artistas” fomos convidados para no dia seguinte tomar contacto com os instrumentos e visitar o local de ensaios que, se não estou em erro, era na própria sacristia. Os instrumentos lá estavam: teclado de órgão, bateria ainda em razoável estado (as baguetes pareciam por estrear), violas eléctricas (baixo, ritmo e solo). Afinal, havia também uma pandeireta e um chocalho, óptimos auxiliares para os vocalistas que, regra geral, nunca sabem onde colocar as mãos enquanto cantam (muita sorte têm o fadistas ao metê-las nos bolsos!). Para o Catana e para mim estava reservado um único “instrumento”: o microfone, ligado a um pequeno amplificador, que no entanto veio a revelar-se potente para as necessidades.
O Capelão explicou-nos que a “banda” deveria ensaiar um conjunto de músicas destinadas a “ajudar à missa” e que, como ninguém saberia ler pautas – creio que todos tocavam de ouvido – ele próprio nos viria ensiná-las, para fixarmos os acordes. Aos vocalistas forneceu uns pequenos folhetos com as letras, para que começássemos a decorá-las. Lendo nas nossas caras algum desconforto com o reportório, o Tenente disse-nos que poderíamos seleccionar também músicas “de baile”, música pop “sem grande chinfrineira”, pois também actuaríamos em festas, era mesmo costume sermos convidados para tocar em igrejas por esse Algarve fora, actuando de manhã nas missas e à tarde nos bailaricos dos salões de festas.
Fomos dando palpites sobre as canções que deveríamos adoptar, de acordo com o gosto e a experiência musical de cada um. Alguns desacordos iniciais: “isso é foleiro”, “nunca toquei essa nem sei como fazê-lo”, “e a letra, alguém sabe a letra toda?”, “escreve lá isso em inglês!”… Enquanto discutíamos o habilidoso teclista exercitava os dedos, os guitarristas mostravam o que sabiam fazer, cada um tocando para seu lado coisas muito diferentes (espero que eles me perdoem não citar os seus nomes mas a idade coloca muitas incertezas na nossa memória), e o Vicente tirava o lustro às baguetes, puxando estridentes solos que davam a ideia de que, doravante, o rock iria ganhar o seu espaço na programação musical do quartel, à revelia das orientações do capelão, ou seja, não evitando uma certa “chinfrineira”.
Os ensaios ficaram desde logo agendados, de início eram quase diários e foram extremamente divertidos. Até porque, é claro, como não tínhamos o dom da ubiquidade, estávamos dispensados da instrução enquanto durassem. Tanto, que fazíamos coincidir os horários com os exercícios que os nossos pelotões iam fazer para as salinas da cidade! O pessoal que vinha da recruta das Caldas da Rainha detestava esses exercícios, mas para quem vinha de Santarém (de cavalaria) e conhecia o que eram fogos reais no respectivo Vale, quem submergira o corpinho no Tejo, em pleno Inverno, ou fez a travessia dos esgotos da cidade com toda a espécie de merdelim pelo peito, mergulhar no lodo das salinas de Tavira era pura brincadeira.
Eu tive um outro quinhão para me baldar a mais algumas horas de instrução militar: por ter tido algumas experiências radiofónicas anteriores fui convidado a participar nalgumas emissões de “rádio” que emitiam para a enorme parada logo após o toque de despertar, o que me obrigava a levantar às 6 horas, com todos os inconvenientes de quem estava desarranchado e alugara um quarto fora do quartel. Lembro-me que um grande “radialista” foi responsável por essas emissões matinais num curso (turno) anterior ao nosso: José Manuel Nunes, realizador e apresentador – com Luís Paixão Martins – do programa saudoso Página Um (Rádio Renascença, onda média), cuja primeira emissão datava de 2 de Janeiro de 1968 e que constituiu uma grande pedrada no charco da rádio que se fazia em Portugal na transição dos anos 60/70. Fez uma outra abordagem das questões sociais e políticas e chegou a encerrar “para obras” durante um mês e tal, por ordem do Governo, dito da “primavera” marcelista. O programa tinha um indicativo (Page One) que começava com uns rufos de bateria difíceis de executar, mas que serviam para o “Entroncamento” aquecer as mãos no início dos ensaios. E aquilo soava tão bem que foi daí que comecei a rotulá-lo de autêntico “fenómeno” do… Entroncamento!
No que concerne ao pop-rock as nossas preferências coincidiram muitas vezes: ambos ouvíamos muita música (da que chegava pelas ondas hertezianas, mas sobretudo da que possuíamos em cassettes gravadas); e acompanhávamos a imprensa especializada desses anos, como o Musicalíssimo ou o Mundo da Canção, de que fui assinante do primeiro ao último número; e ambos conhecíamos pormenores das novidades divulgadas pela Rock & Folk, que à data nem sempre chegavam às discotecas portuguesas.
As nossas digressões
As digressões fizeram-nos lerpar alguns “sagrados” fins-de-semana, mas valeram a pena: pelo convívio e diversão, por enriquecermos a nossa formação como homens em múltiplos aspectos e por termos poupado umas quantas horas da sempre aborrecida travessia da Serra do Caldeirão… A actuação de um grupo instrumental de tipo “roqueiro”, com violas eléctricas e bateria e canções ligeiras em missas católicas era uma situação muito avançada para a época, pelo menos em Portugal. Embora, ao que parece, nenhum de nós fosse católico praticante, certamente que não haveria muitas igrejas que consentissem experiências similares.
Já havíamos actuado em Lagoa, chegara a vez de prolongarmos a digressão algarvia e “ajudarmos à missa” em Lagos. Está uma boa casa, comentámos entre-dentes: a igreja estava quase repleta, mulheres sentadas mais à frente e homens mais nos bancos de trás. Nós, perfilávamo-nos junto a instrumentos e microfones (que o capelão conseguira arranjar mais um), de farda número dois, boina dobrada e enfiada na presilha esquerda do blusão; e íamos aguardando pelos sinais do prior, para arrancarmos com cada uma das canções do alinhamento. Só o Vicente, devido à sua função, tinha banco para se sentar. Nos intervalos das músicas chamava-nos parolos, aprendêssemos a tocar bateria e teríamos outro conforto! Entrámos timidamente, mas com o decorrer da missa sempre se foram trocando uns sorrisos com as “garinas”, em plenas canções e fora delas…
Sem se perder totalmente o respeito pelo local e pela cerimónia em que nos encontrávamos, a verdade é que o ambiente se foi descontraindo. Das mãos do Vicente, as baguetes, já cheias de mossas, saltavam e giravam no ar em acrobáticas piruetas, contagiando todo o grupo que, em plena canção “Avé Mariápolis”, meneava as ancas como uma orquestra de salsa latina e provocava idênticas reacções nas miúdas que atulhavam as primeiras filas da igreja. Alguns dos temas que aprendemos a interpretar prestavam-se a arranjos rítmicos mais fortes e eram pintados com todo o fervor das cadências do Vicente – um autêntico Max Roach – e do não menos virtuoso e ágil viola-baixo. Um dos temas que me calhou interpretar foi “O Sol Já Raiou”, que ainda recentemente, quase quatro décadas depois, foi êxito comercial de top, gravado em CD pelo Padre Borga…
Terminada a missa, até houve distribuição de autógrafos e, como é óbvio, aproveitámos para fazer a nossa publicidade à actuação que teríamos durante a tarde, no salão da colectividade (de cujo nome não me recordo, seria paroquial?). A organização ofereceu-nos almoço, fomos montar os equipamentos no novo palco e, por fim, a juventude da terra lá começou a comparecer, elas quase sempre de mãe à ilharga, como era de uso. Começámos o espectáculo. Nós, os vocalistas, fomo-nos alternando, umas vezes cantando a solo, outras fazendo coro, por vezes descansando ou fingindo fazer percussões com a pandeireta e o chocalho da bateria. Disfarçávamos as nossas insuficiências no domínio das letras, quase todas em inglês, regurgitando uns sons onomatopaicos em que praticamente só acertávamos com as últimas sílabas de cada verso… Mas se havia quem o fizesse na televisão (e ainda hoje), quem é que ligava a esses pormenores?
A pouco e pouco a assistência foi afastando cadeiras e houve uns quantos pares que se aventuraram à dança. Até que o Catana, de olhos semi-cerrados, começou a cantar uma lânguida Unchained Melody, que faria roer de inveja The Righteous Brothers e demais românticos à face da Terra! O Vicente disse que era um slow tão lento que dispensava bem o baterista e, como eu estava livre no palco, pediu que me sentasse no seu lugar e fosse dando umas roçadelas nos pratos com uma vassoura de aço, que ele iria ao meio da sala para avaliar o som, parecia-lhe roufenho. E lá abalou, não para qualquer gesto técnico mas para se atracar ao melhor “naco”, sentado ao canto da sala, e desatar a dançar bem agarradinho…
Como escreveu o Juvenal Candeias, o Piu era de uma “boa disposição permanente e contagiante”. Que bom é recordá-lo e sentir a sua presença entre nós, para sempre.
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Notas de CV:
(*) Vd. último poste da Danuel Matos de 21 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6201: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (10): Os dias da batalha de Guidaje, 29 e 30 de Maio de 1973
(**) Vd. poste de 16 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5113: Histórias de Juvenal Candeias (5): Vicente, o Piu
Vd. último poste da série de 17 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6174: In Memoriam (39): Baixa na CCS/BCAÇ 2845 - morreu no dia 21 de Março de 2010 o ex-1.º Cabo Cardoso (Albino Silva)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 22 de abril de 2010
Guiné 63/74 - P6210: Os gloriosos malucos das máquinas voadoras (21): Meu tenente, eu e o Tomás Camará não vamos com o Honório! (Amadu Djaló)
Guiné > Brá > Comandos do CTIG > Junho de 1965 > Cap Mil Comando Maurício Saraiva > Idolatrado por uns, odiado por outros, foi um mal amado, diz o Virgínio Briote... O Amadu Djaló, por sua vez, foi um dos oito "negros" (sic) - a par do Marcelino da Mata, do Tomás Camará e outros - a participar "no 1º curso de quadros para os Comandos do CTIG", que teve início em 3 de Agosto de 1964 (Amadu Bailo Djaló - Guineense, Comando, Português. Lisboa: Associação de Comandos, 2010, p. 82). O seu primeiro comandante, no Grupo Fantasmas, foi o Alferes Saraiva (entretanto promovido a tenente e depois capitão).
Foto: © Virgínio Briote (2006). Direitos reservados
1. A leitura do livro de memórias do Amadu Djaló tem sido, para mim, uma verdadeira surpresa. Mesmo já conhecendo, superficialmente, o autor, e sabendo, por alto, algumas das peripécias da sua vida como pessoal e militar (tem "treze anos de serviço militar"), através do Virgínio Briote, dou-me agora conta de que é um testemunho humano, singelo, mas de valor, com bastante interesse, do ponto de vista sócio-antropológico, para um melhor conhecimento do passado da Guiné-Bissau e em especial do período da guerra colonial, como para a construção do presente e até do futuro.
O título do livro pouco tem a ver com o conteúdo. É claramente um título, forçado pelo marketing, com o objectivo de vender, o que no caso do Amadu até é um objectivo relevante, sabendo-se que ele tem 10% sobre o preço de capa e é um homem pobre e doente. Guineense, comando, português é claramente uma concessão aos brancos ou europeus (como ele nos chama, quase sempre) e, muito naturalmente, ao gosto da Associação dos Comandos que editou o livro, na colecção Mama Sume (é o 2º título, depois de 25 de Novembro de 1975: Os comandos e o combate pela liberdade, de Manuel Amaro Bernardo, Francisco Proença Garcia e Rui Domingues da Fonseca).
Se um homem é sempre ele próprio mais as suas circunstâncias (, logo determinado pela historicidade), o Amadú é uma espécie de Sancho Pança guineense, servindo diversos Dom Quixotes, do Saraiva ao Spínola, mas também poderia ter sido o Nino Vieira ou o Amílcar Cabral, como ele próprio admite, quando a páginas 30/31 evoca a tentativa de aliciamento, para ingressar nas hostes do PAIGC, em Julho de 1961, por parte de Adulai Djá, "un colega meu de Bissau" (que, tendo militado nas fileiras do PAIGC, chegaria a ser 2º comandante da base principal do Morés; mais trade morto num ataque de Comandos helitransportados, em data não especificada pelo Amadu, p. 30, nota de rodapé).
Nessa altura, o Amadu ouvia, em Catió, na casa de um cipaio, a rádio de Conacri e confessa que chegou a estar "hesitante" (sic) (p. 31), entre aderir ou não aderir ao PAIGC, numa altura em que "toda a gente falava de um tal Nino Vieira que tinha fugido da prisão da administração de Catió", ajudado por um cabo cipaio, por sinal cunhado do João Bacar Jaló) (p. 30)...
O Amadú acabou por ir para a tropa portuguesa ("tropa era uma obrigação"), depois de um série de peripécias que meteram o pai, os primos do Senegal (militares do Exército francês), o administrador de Bafatá, o tenente Carrasquinha, do BCAÇ 238 (que tinha um fraquinho pela prima, bonita, Aua Djaló)... Em suma, o Amadú poderia estar hoje no Senegal ou até em França, como poderia ser hoje um grande Combatente da Liberdade da Pátria, vivo ou morto. É um ponto (controverso) da vida do Amadú, a que poderemos voltar em breve. (De resto, ele confessa como, naqueles tempos, "era difícil ser bom português", p. 14; "nós, Povo da Guiné, antes da guerra, mal conhecíamos o Povo Português", p. 15)...
O que eu agora quero sobretudo sublinhar é o talento narrativo do Amadu. Como bom africano, ele é um homem da cultura oral e, logo, um grande contador de histórias. E essa oralidade, espontânea (mesmo em português que não é a sua língua materna...), perpassa por todo o livro, graças ao talento de outro homem, o Virgínio Briote, à sua paciência, perserverança, bom senso, bom gosto, sentido de ética e camaradagem.
Há, ao longo do livro, uma mão cheia de boas histórias: umas dramáticas, pungentes e reveladores da grande nobreza humana do Amadu, das suas crenças, superstições e valores morais (como a cena, passada em Gundagé Beafada, no Xime, em que ele salva o menino turra, Malan Nanque, leva-o às costas para Bambadinca e adopta-o como filho: vd. pp. 91/93); outras, cómicas, burlescas e divertidas, como esta que aqui se reproduz... (com a devida vénia, e como aperitivo para os que ainda não compraram ou não leram o livro).
2. O meu adeus à guerra dos Fantasmas
por Amadu Bailo Djaló
Em [6] de Maio de 1965 fomos para Cacine com o objectivo de executar um golpe de mão a um acampamento em Catunco. Era a última operação do grupo Fantasmas e, por isso, o tenente [Maurício Saraiva, comandante do grupo] pôs-lhe o nome de Ciao.
Em Brá tivemos a manhã para preparar tudo. Depois, fomos em viaturas para o aeroporto de Bissalanca, onde estavam quatro avionetas à nossa espera. O tenente dirigiu-se ao Furriel Morais, que já tinha acabado o tempo de comissão [, e que haveria de morrer umas horas depois, na madrugada do dia seguinte, no ataque ao acampamento de Catunco, e onde o próprio Amadú seria ferido], e disse-lhe:
– Vocês esperam pelo Honório, que parece que ainda não está pronto.
– Meu tenente, eu não vou no avião do Honório! Custa-me muito faltar à operação, mas eu não vou! – disse eu.
O Tomás Camará [, futuro tenente comando graduado, da 1ª CCmds, do Batalhão de Comandos, mais tarde fuzilado pelo PAIG, ] disse também que, com o Honório, não ia. Então o tenente [ Saraiva] disse que as avionetas que os iam levar, regressavam para depois levar o resto do grupo. Visto que um dos pilotos concordou, eu e o Tomás Camará ficámos a aguardar. As três avionetas levantaram com o pessoal e, passados dez minutos, vimos o Furriel Honório a dirigir-se para a sua Dornier. Virou-se para nós e disse:
– Vamos ?
O Furriel Morais e um soldado europeu foram ter com ele.
– Só vão vocês os dois ?
– É, eles dizem que não vão na sua avioneta!
– Mas, porque não ?
Saiu da avioneta e dirigiu-se para nós. Cumprimentou-nos e perguntou:
– Por que é que vocês não querem ir comigo ?
Olhámos para o lado, nenhum de nós deu resposta. Ele disse:
– É, pá, isso é uma grande vergonha para nós! Eu sou preto. Levo brancos, que têm confiança em mim e vocês, que são meus patrícios, não querem ir na minha avioneta ? Vamos embora, pá, não há problemas!
– Eu não gosto de manobras no ar e o Tomás também não !
– Eu não faço nenhum tipo de manobras!
Depois pegou nos nossos equipamentos e disse:
– Vamos embora!
Não havia outra maneira! Muito contrariados, embarcámos na avioneta. Tomou altura, virou para o sul e o voo correu muito bem até ao campo de Cufar. Aí o Honório viu um homem a andar sozinho, apontou o dedo e disse alto:
–Vou assustá-lo.
Eu já não sabia onde me meter. Ele baixou a avioneta e passou por cima do homem, que continuou a andar com calma.
– Ai, ele não fugiu ? Então, vou acertar-lhe com a asa da avioneta!
E baixou outra vez e ainda mais, parecia que ia atrerrar ali. O homem viu aquilo, que não era nada normal, e saltou para junto de uma árvore. Mas agora, para retomar altura, é que me parecia mesmo muito difícil. Ao homem, a árvore tinha-lhe salvo a vida e a nós, pouco faltou para perdermos as nossas.
A partir deste incidente, nenhum de nós abriu mais a boca, até chegarmos a Cacine. Esta pequena vila fica junto ao rio. O piloto parou o motor e mergulhou, mergulhou. Só víamos água à nossa frente. Naquela altura, eu disse para comigo, até aqui foi brincadeira, mas agora ele não vai poder controlar a avioneta e vamos morrer todos. Era só água que eu estava a ver, tapei a cara para não ver mais nada e gritei com força. Ouvi o Tomás também aos gritos. De um momento para o outro, senti o estômago na boa, o avião estava a levantar, outra vez, a pique. Mesmo assim vi os morangueiros bem perto e, logo depois, entrou directo na pista e aterrou.
Saltou cá para fora, abriu a porta a cada um de nós e, quando sem qualquer tipo de fala, lhe virámos as costas, ele apalpou-me o rabo, para saber se eu tinha borrado as calças (…).
___________________
Nota de L.G.:
(*) Vd. último poste da série > 4 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5935: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (20): O Honório e o 2º Sarg que dizia que se aguentava (Vítor Oliveira)
Guiné 63/74 - P6209: Eu, capitão miliciano, me confesso (3): Falando de patacão... (Jorge Picado)
1. Comentário, de 21 do corrente, assinado pelo Jorge Picado, ao poste P6177 (*)
Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6177: Adiantamentos e Prestações O.G.F.E. (António Tavares)
28 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3248: Eu, capitão miliciano, me confesso (1): Engenheiro agrónomo, ilhavense, 32 anos, casado, pai de 4 filhos... (Jorge Picado)
17 de Dezembro de 2008 > P3581: Guiné 63/74 - P3581: Eu, capitão miliciano, me confesso (2): Vasco da Gama, CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74
Camaradas:
Por motivos vários só hoje cheguei aqui, mas mais vale tarde do que nunca.
Por motivos vários só hoje cheguei aqui, mas mais vale tarde do que nunca.
Também eu andei pelos "Casões Militares, de Lisboa e Porto", a comprar o enxoval, desde Agosto de 1969, por causa da chamada para o CPC e depois a completá-lo nos finais de Janeiro de 1970, quando já tinha o Bilhete para as "férias" marcado.
Não sei se comprei a pronto, se a prestações.
Agora aí vai um apontamento que resistiu ao tempo, referente ao mês de Junho [de 1970]:
Total Abonos 13900$00
Total descontos 8967$00
A receber 4932$00.
Nos abonos estão incluidos 4000$00, relativos aos abonos de família (já tinha os 4 filhos), de Março, Abril, Maio e Junho.
Vencimentos a receber em Agosto em virtude do aumento:
Março-Julho [1970] 10500$00
Fev 1326$00
-----------------------
Total 11826$00
Desc. Cx Geral Aposentações -710$00
I. Selo -12$00
-----------------------
A receber (líquido) 11104$00
Recordo-me que devo ter guardado "religiosamente" os recibos, porque se regressasse, como felizmente regressei, tinha depois de estar documentado para se algo de anormal acontecesse nos meus descontos para a Caixa Geral de Aposentações, como realmente aconteceu.
Quando esse problema ficou resolvido, então sim, destrui-os.
Abraços
Jorge Picado
ex-Cap Mil
Não sei se comprei a pronto, se a prestações.
Agora aí vai um apontamento que resistiu ao tempo, referente ao mês de Junho [de 1970]:
Total Abonos 13900$00
Total descontos 8967$00
A receber 4932$00.
Nos abonos estão incluidos 4000$00, relativos aos abonos de família (já tinha os 4 filhos), de Março, Abril, Maio e Junho.
Vencimentos a receber em Agosto em virtude do aumento:
Março-Julho [1970] 10500$00
Fev 1326$00
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Total 11826$00
Desc. Cx Geral Aposentações -710$00
I. Selo -12$00
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A receber (líquido) 11104$00
Recordo-me que devo ter guardado "religiosamente" os recibos, porque se regressasse, como felizmente regressei, tinha depois de estar documentado para se algo de anormal acontecesse nos meus descontos para a Caixa Geral de Aposentações, como realmente aconteceu.
Quando esse problema ficou resolvido, então sim, destrui-os.
Abraços
Jorge Picado
ex-Cap Mil
(Hoje faço este aditamento para calcularem os proventos dos 3 galões estreitos) (**)
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Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6177: Adiantamentos e Prestações O.G.F.E. (António Tavares)
(**) Vd. postes da série:
28 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3248: Eu, capitão miliciano, me confesso (1): Engenheiro agrónomo, ilhavense, 32 anos, casado, pai de 4 filhos... (Jorge Picado)
17 de Dezembro de 2008 > P3581: Guiné 63/74 - P3581: Eu, capitão miliciano, me confesso (2): Vasco da Gama, CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74
Guiné 63/74 - P6208: Blogpoesia (70): Poemas de José Orlando Bretão escritos na Guiné (Cristóvão de Aguiar)
1. Mensagem de Cristóvão de Aguiar endereçada ao nosso camarada Mário Beja Santos:
Meu Caro Beja Santos,
O José Orlando Bretão foi meu companheiro de República, em Coimbra, nos anos sessenta, antes de irmos para a Guerra Colonial.
Ele pertencia ao Batalhão de Henrique Calado e estava sediado em Farim.
Foi camarada do Armor Pires Mota. Ora, o Bretão, escreveu umn folheto a que deu o título de Três / Tristes/ Tempos, e O Regresso do Melro Preto (folhinhas do esquecimento), só para oferecer aos amigos. O folheto tem apenas oito páginas, mas tem dois poemas escritos na Guiné.
Vou transcrevê-los:
Em redor do silêncio
um imenso vazio
para onde
verso a verso
fatalmente crescerei
Oásis derramado
à volta de uma fonte
-----------------------
Triste
Primeiro / Tempo
EMBOSCADA
Esperávamos em silêncio
mastigando a memória das coisas
e a Morte claramente apercebida
aguardava confiante o seu quinhão
Pensávamos:
- "Cada coice de Mauser no ombro
é uma carícia da Pátria agradecida" (*)
Mastigávamos a memória
esperando das coisas o silêncio
e a Morte claramente apercebida
recolhia confiante o seu quinhão
- Puta de Pátria que agradece aos coices.
Canjambari Morucunda /1964
(*) José Rodrigues Miguéis, É proibido apontar.
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 22 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6037: Blogpoesia (69): O Dia Mundial da Poesia, da Falagueira a Buruntuma (Luís Graça)
Meu Caro Beja Santos,
O José Orlando Bretão foi meu companheiro de República, em Coimbra, nos anos sessenta, antes de irmos para a Guerra Colonial.
Ele pertencia ao Batalhão de Henrique Calado e estava sediado em Farim.
Foi camarada do Armor Pires Mota. Ora, o Bretão, escreveu umn folheto a que deu o título de Três / Tristes/ Tempos, e O Regresso do Melro Preto (folhinhas do esquecimento), só para oferecer aos amigos. O folheto tem apenas oito páginas, mas tem dois poemas escritos na Guiné.
Vou transcrevê-los:
Em redor do silêncio
um imenso vazio
para onde
verso a verso
fatalmente crescerei
Oásis derramado
à volta de uma fonte
-----------------------
Triste
Primeiro / Tempo
EMBOSCADA
Esperávamos em silêncio
mastigando a memória das coisas
e a Morte claramente apercebida
aguardava confiante o seu quinhão
Pensávamos:
- "Cada coice de Mauser no ombro
é uma carícia da Pátria agradecida" (*)
Mastigávamos a memória
esperando das coisas o silêncio
e a Morte claramente apercebida
recolhia confiante o seu quinhão
- Puta de Pátria que agradece aos coices.
Canjambari Morucunda /1964
(*) José Rodrigues Miguéis, É proibido apontar.
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 22 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6037: Blogpoesia (69): O Dia Mundial da Poesia, da Falagueira a Buruntuma (Luís Graça)
quarta-feira, 21 de abril de 2010
Guiné 63/74 - P6207: Convívios (221): Almoço de Confraternização do BART 733, dia 15 de Maio em Cuba (João Parreira)
1. O nosso Camarada João Parreira, ex-Fur Mil Op Esp / RANGER / COMANDO da CART 730 / BART 733 e do Grupo “Fantasmas”, Bissourã e Brá, 1964/66, enviou-nos uma mensagem, solicitando-nos a divulgação da notícia da próxima festa do BART 733:
BART 733
Almoço de Confraternização
Camaradas,
Vai-se efectuar no próximo dia 15 de Maio vai-se celebrar mais um Almoço de Confraternização do BART 733.
Segue-se o Convite, para conhecimento e efeitos a todos eventuais interessados.
Vai-se efectuar no próximo dia 15 de Maio vai-se celebrar mais um Almoço de Confraternização do BART 733.
Segue-se o Convite, para conhecimento e efeitos a todos eventuais interessados.
Abraço amigo,
João Parreira
Fur Mil Op Esp/RANGER/COMANDO da CART 730 /BART 733 e do Grupo “Fantasmas”
_________
Nota de MR:
Vd. último poste da série em:
Guiné 63/74 – P6206: Banalidades da Foz do Mondego (Vasco da Gama) (IX): Coincidências de Aniversários ou algo mais?
1. O nosso camarada Vasco da Gama, ex-Cap Mil da CCAV 8351, Os Tigres de Cumbijã, Cumbijã, 1972/74, enviou-nos, em 20 de Abril de 2010, a seguinte mensagem:
Camaradas e Amigos,
Mais liberto dos meus compromissos teatrais, eventualmente espicaçado pelo nosso camarada Alberto Branquinho, eis-me a enviar um texto desde o meu Buarcos lindo...
BANALIDADES DA FOZ DO MONDEGO - IX
Coincidências de Aniversários ou algo mais?
Li há dias que o nosso Blogue, a nossa querida Tabanca Grande, vai completar seis anos nos finais do corrente mês de Abril e alguns camaradas nossos têm-se referido de forma elogiosa, atribuindo com toda a justiça, ao nosso Comandante Luís Graça e aos seus co-editores, o êxito deste espaço magnífico de diálogo e de discussão, que eu leio diariamente e onde aprendo sempre qualquer coisa.
Deixarei para os mais talentosos de escrita os elogios rasgados, os louvores e os aplausos públicos que o Luís merece, encómios esses aos quais eu me junto, por antecipação, sem qualquer rebuço.
Decidi então contribuir para o aniversário do nosso Blogue com uma história passada em Mafra em finais de Abril de 1971, para mim de enorme importância e altamente marcante para toda a minha vida.
Demorei todo este tempo a trazê-la a público pois tinha a necessidade absoluta de conhecer alguém que também a tivesse vivido para poder, em quaisquer circunstâncias, testemunhar o ocorrido.
Fui incorporado em Mafra no dia 11 de Janeiro de 1971, tendo feito a recruta no quarto pelotão da 1ª Companhia, pelotão comandado por um homem de elevada educação e cultura, sempre preocupado em transmitir aos instruendos o que a sua experiência de combatente na Guiné lhe ensinara: o então Alferes Mário Beja Santos, que hoje faz o favor de ser meu amigo.
O segundo ciclo, julgo que se estendeu de Abril a Junho, cumpri-o no primeiro pelotão da 4ª Companhia, pelotão constituído por elementos escolhidos para o curso de capitães milicianos, também chamados “capitães de proveta” e não me recordo do nome do comandante desse pelotão.
Os meus camaradas que passaram por Mafra, terra a que nunca mais voltei, mas que espero visitar quando a reforma da minha mulher lhe bater à porta, lembram-se da foz do Lisandro, recordam-se do Vale Escuro, da Aldeia dos Macacos e da travessia da lagoa que existia na Tapada e do rigor muitas vezes descomedido da revista às botas, às armas e à barba que nos permitia, ou não, sair daquele convento para petiscar aqui ou acolá, beber um fininho ver um pouco de televisão ou conversar, em grupos de dois três elementos, sempre em andamento por causa das “escutas”.
Estaria Abril, particularmente chuvoso nesse ano, já na parte final quando uma desgraça aconteceu na travessia da lagoa.
Deixarei para os mais talentosos de escrita os elogios rasgados, os louvores e os aplausos públicos que o Luís merece, encómios esses aos quais eu me junto, por antecipação, sem qualquer rebuço.
Decidi então contribuir para o aniversário do nosso Blogue com uma história passada em Mafra em finais de Abril de 1971, para mim de enorme importância e altamente marcante para toda a minha vida.
Demorei todo este tempo a trazê-la a público pois tinha a necessidade absoluta de conhecer alguém que também a tivesse vivido para poder, em quaisquer circunstâncias, testemunhar o ocorrido.
Fui incorporado em Mafra no dia 11 de Janeiro de 1971, tendo feito a recruta no quarto pelotão da 1ª Companhia, pelotão comandado por um homem de elevada educação e cultura, sempre preocupado em transmitir aos instruendos o que a sua experiência de combatente na Guiné lhe ensinara: o então Alferes Mário Beja Santos, que hoje faz o favor de ser meu amigo.
O segundo ciclo, julgo que se estendeu de Abril a Junho, cumpri-o no primeiro pelotão da 4ª Companhia, pelotão constituído por elementos escolhidos para o curso de capitães milicianos, também chamados “capitães de proveta” e não me recordo do nome do comandante desse pelotão.
Os meus camaradas que passaram por Mafra, terra a que nunca mais voltei, mas que espero visitar quando a reforma da minha mulher lhe bater à porta, lembram-se da foz do Lisandro, recordam-se do Vale Escuro, da Aldeia dos Macacos e da travessia da lagoa que existia na Tapada e do rigor muitas vezes descomedido da revista às botas, às armas e à barba que nos permitia, ou não, sair daquele convento para petiscar aqui ou acolá, beber um fininho ver um pouco de televisão ou conversar, em grupos de dois três elementos, sempre em andamento por causa das “escutas”.
Estaria Abril, particularmente chuvoso nesse ano, já na parte final quando uma desgraça aconteceu na travessia da lagoa.
O exercício não seria mais difícil do que por exemplo o andar no pórtico, ainda hoje abomino essa palavra, ou saltar para o galho, mas as chuvas tornaram a lagoa num charco barrento que tornava a travessia mais difícil, sobretudo para os últimos elementos desse pelotão, pois a lama já revolvida, o ter de manter a G3 acima da cabeça e o peso da mochila, tudo isso provocava nos mais temerosos um receio a roçar o medo.
Um cadete atrapalha-se a meio da travessia, um camarada vai em seu auxílio e é puxado para o fundo, um terceiro volta para trás tentando socorrer os outros dois que, na sua aflição o arrastam também para a morte.
Penso que os corpos só foram encontrados por mergulhadores da Marinha.
Mas a minha história não termina aqui e o que se passou a seguir constitui na minha opinião, a maior homenagem que poderíamos prestar aos nossos camaradas mortos; nós cadetes, simples soldados cadetes, homens arrancados aos estudos, outros com os cursos já feitos, que de um momento para o outro passam a ser números de uma máquina sem coração, não fomos cadetes, fomos Homens.
Com o refeitório cheio de algumas centenas de nós preparados para o almoço, em sentido obrigatório como era da praxe, recebemos a ordem talvez do oficial de dia:
- SENTAR!
Como fez barulho o silêncio que se seguiu!
Ninguém, ninguém se mexeu!
Impávidos, serenos, comovidos, com os olhos brilhantes, ninguém, ninguém obedeceu!
Músculos retesados, firmes no nosso querer e na nossa razão, pêlos eriçados, ninguém, ninguém, nem os “engraxadores” hesitaram.
Foi chamado o Comandante Maior.
- SENTAR!
Trovejou uma voz ainda mais potente, como se a estridência do grito fosse directamente proporcional ao número de riscos amarelos que o ombro suportava.
Ninguém, ninguém cumpriu a ordem.
- DESTROÇAR!
E lá foram os cadetes, olhando-se com respeito, olhos nos olhos.
Não me apercebi de medo em nenhum rosto.
O meu íntimo regozijava.
Fomos para a sala nº 10, todos, sem excepção para uma reunião espontânea que foi interrompida quando recebemos ordem para ir de fim-de-semana.
Seria quarta ou quinta, não me recordo, sei apenas que o rigor muitas vezes despropositado da revista às armas, foi substituído pelo deixa andar.
Era preciso mandar estes gajos para fim-de-semana em passo de corrida.
Como foi isto possível?
Afinal… era possível.
Um abraço de parabéns para toda a Tabanca Grande.
Vasco Augusto Rodrigues da Gama
Cap Mil da CCAV 8351
___________
Nota de M.R.:
Vd. último poste da série em:
28 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 – P5370: Banalidades da Foz do Mondego (Vasco da Gama) (VIII): As “licenciaturas” dos tigres do Cumbijã.
Um cadete atrapalha-se a meio da travessia, um camarada vai em seu auxílio e é puxado para o fundo, um terceiro volta para trás tentando socorrer os outros dois que, na sua aflição o arrastam também para a morte.
Penso que os corpos só foram encontrados por mergulhadores da Marinha.
Mas a minha história não termina aqui e o que se passou a seguir constitui na minha opinião, a maior homenagem que poderíamos prestar aos nossos camaradas mortos; nós cadetes, simples soldados cadetes, homens arrancados aos estudos, outros com os cursos já feitos, que de um momento para o outro passam a ser números de uma máquina sem coração, não fomos cadetes, fomos Homens.
Com o refeitório cheio de algumas centenas de nós preparados para o almoço, em sentido obrigatório como era da praxe, recebemos a ordem talvez do oficial de dia:
- SENTAR!
Como fez barulho o silêncio que se seguiu!
Ninguém, ninguém se mexeu!
Impávidos, serenos, comovidos, com os olhos brilhantes, ninguém, ninguém obedeceu!
Músculos retesados, firmes no nosso querer e na nossa razão, pêlos eriçados, ninguém, ninguém, nem os “engraxadores” hesitaram.
Foi chamado o Comandante Maior.
- SENTAR!
Trovejou uma voz ainda mais potente, como se a estridência do grito fosse directamente proporcional ao número de riscos amarelos que o ombro suportava.
Ninguém, ninguém cumpriu a ordem.
- DESTROÇAR!
E lá foram os cadetes, olhando-se com respeito, olhos nos olhos.
Não me apercebi de medo em nenhum rosto.
O meu íntimo regozijava.
Fomos para a sala nº 10, todos, sem excepção para uma reunião espontânea que foi interrompida quando recebemos ordem para ir de fim-de-semana.
Seria quarta ou quinta, não me recordo, sei apenas que o rigor muitas vezes despropositado da revista às armas, foi substituído pelo deixa andar.
Era preciso mandar estes gajos para fim-de-semana em passo de corrida.
Como foi isto possível?
Afinal… era possível.
Um abraço de parabéns para toda a Tabanca Grande.
Vasco Augusto Rodrigues da Gama
Cap Mil da CCAV 8351
___________
Nota de M.R.:
Vd. último poste da série em:
28 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 – P5370: Banalidades da Foz do Mondego (Vasco da Gama) (VIII): As “licenciaturas” dos tigres do Cumbijã.
Guiné 63/74 - P6205: V Convívio da Tabanca Grande (4): Ponto da situação das inscrições em Abril (A Organização)
Caros camaradas e amigos tertulianos
Como podem constatar, temos neste momento 82 inscrições para o nosso Encontro em Monte Real.
Estamos convencidos que há muitos camaradas que compareceram aos Convívios anteriores que ainda não se inscreveram neste.
Lembramos que a inscrição atempada facilita a tarefa do Mexia Alves, logo, os camaradas que tencionam estar presentes, deverão contactar-nos o mais brevemente que lhes for possível para o efeito.
Por outro lado, o camarada Mexia Alves faz saber que no dia do nosso Encontro vai haver outro evento no Palace Hotel de Monte Real, pelo que as pessoas interessadas em pernoitar lá, deverão fazer as suas reservas, porque caso deixem para a última hora o seu pedido de estadia, poderão encontrá-lo esgotado.
Vamos tentar bater o máximo atingido o ano passado que foram 132 presenças.
Pela Organização
CV
__________
Nota de CV:
Sobre o V Convívio da Tabanca Grande, vd. postes de:
20 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6025: V Convívio da Tabanca Grande (2): Escolhida a data de 19 de Junho de 2010 e o local, o Palace Hotel Monte Real (A Organização)
e
24 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6043: V Convívio da Tabanca Grande (3): Justificação para a segunda mudança de data (Joaquim Mexia Alves)
Guiné 63/74 - P6204: Agenda cultural (72): Documentário, de Diana Andringa, Tarrafal: Memórias do Campo da Morte Lenta, no IndieLisboa '10, na Culturgest, a 23 (Grande Auditório, 21h30) e 25 (Pequeno Auditório, 18h30)
Sítio do IndieLisboa '10 - 7º Festival Internacional de Cinema Independente, Lisboa, 22 de Abril a 2 de Maio de 2010
Tarrafal: Memórias do Campo da Morte, documentário de Diana Andringa: "Longas horas de pé sobre um banco, espancado se tentasse apoiar-se na parede, foram uma das torturas sofridas por Arlindo Borges, de Cabo Verde".
Tarrafal: Memórias do Campo da Morte Lenta, documentário de Diana Andringa: "lanta do campo gravada num osso de vaca cuidadosamente preservado"
1. Mensagem enviada pela nossa amiga Diana Andringa, realizadora, no passado dia 19:
Assunto - Tarrafal: Memórias do Campo da Morte Lenta no IndieLisboa '10
Ficha técnica:
Olá!
Às 21H30 do dia 23 de Abril passa no Grande Auditório da Culturgest (Caixa Geral de Depósitos, Campo Pequeno), o documentário que fiz sobre o Campo de Concentração do Tarrafal – "Tarrafal: Memórias do Campo da Morte Lenta".
Teria muito gosto em que fosse visto por muita gente nessa noite. A imagem do João Ribeiro e o som da Armanda Carvalho são ainda melhores naquelas condições. Tenho alguns convites para oferecer aos que o desejem.
O filme repete no Pequeno Auditório da Culturgest no dia 25, às 18H30.
Diana Andringa
Tarrafal: Memórias do
Campo da Morte Lenta.
Chamavam-lhe "o Campo da Morte Lenta". Os críticos, naturalmente. Que as autoridades, essas, chamaram-lhe primeiro, entre 1936 e 1954, quando os presos eram portugueses, "Colónia Penal de Cabo Verde" e, depois, quando reabriu em 1961 para nele serem internados os militantes anticolonialistas de Angola, Cabo Verde e Guiné, "Campo de Trabalho de Chão Bom".
Trinta e dois portugueses, dois angolanos, dois guineenses perderam ali a vida. Outros morreram já depois de libertados, mas ainda em consequência do que ali tinham passado. Famílias houve que, sem nada saberem do destino dos presos, os deram como mortos e chegaram a celebrar cerimónias funebres.
"Ali é só deixar de pensar. Porque se não morre aqui de pensamentos. É só deixar, pronto. Os que têm vida ficam com vida. Nós aqui estamos já quase mortos." A frase é do angolano Joel Pessoa, preso em 1969 e libertado, com todos os outros presos do campo, em 1 de Maio de 1974.
No 35º aniversário desse dia, a convite do presidente da República de Cabo Verde, Pedro Verona Pires, os sobreviventes reencontraram-se para um Simpósio Internacional sobre o Campo de Concentração do Tarrafal.
"Tarrafal: memórias do Campo da Morte Lenta" resultou desse reencontro. Durante os dias em que os antigos presos voltaram ao Tarrafal, gravámos entrevista após entrevista, registando as suas recordações. Trinta e dois presos, desde o português Edmundo Pedro, um dos que o estreou, em 1936, aos angolanos e cabo-verdianos que foram os últimos a deixá-lo, no 1º de Maio de 1974, passando pelos guineenses que, ali chegados em Setembro de 62, saíram em 64 uns, em 69 os restantes. Um guarda, Joaquim Lopes, cabo-verdiano e convertido ao PAIGC. Uma das raras pessoas que testemunhou a vida no Tarrafal desde a sua abertura ao seu encerramento, Eulália Fernandes de Andrade, mais conhecida por D. Beba.
É um documentário feito à base de depoimentos e filmado quase sempre no interior do campo, afinal, o espaço em que os presos se moviam. Entre as raríssimas excepções, o cemitério, onde acompanhamos a homenagem dos sobreviventes aos que ali ficaram. Vozes, caras expressivas contra fundo de cela. Alguns objectos surpreendentes: as calças rasgadas pelo chicote e puída pelo chão prisional, a planta do campo desenhada num osso de vaca, a bengala que testemunha o resultado da tortura. A alegria de se verem lembrados em duas exposições nas celas que tinham ocupado.
A alegria: palavra estranha num filme sobre o Tarrafal. Mas essa é a grande lição destes homens: porque, como diz um deles, o caboverdiano Jaime Scofield, "o mais importante não é que eles nos tenham querido matar lentamente. O mais importante é que nós resistimos."
Esta é a história de homens a quem quiseram destruir toda a esperança e que souberam resistir até à vitória: "Porque no Tarrafal nós inventámos a vida, sempre!"
TESTEMUNHOS
- por ordem de entrada no filme -
Edmundo Pedro (Portugal)
Eulália de Andrade, D. Beba (Cabo Verde)
Joaquim Lopes, guarda (Cabo Verde)
Cândido Joaquim da Costa (Guiné)
Caramó Sanhá (Guiné)
Francisco Mendes Vieira (Guiné)
Manuel Neves Trindade (Guiné)
Carlos Sambu (Guiné)
Augusto Pereira da Graça (Guiné)
Macário Freire Monteiro (Guiné)
Nobre Pereira Dias (Angola)
Amadeu Amorim (Angola)
Fernando Correia (Guiné)
Mário Soares (Guiné)
Jorge da Silva (Guiné)
Agnelo Lourenço Fernandes (Guiné)
Lote Sachicuenda (Angola)
Augusto Kiala Bengue (Angola)
Evaristo "Miúdo" (Angola)
Silva e Sousa (Angola)
Joel Pessoa (Angola)
Lote Soares Sanguia (Angola)
Jaime Cohen (Angola)
Alberto Correia Neto (Angola)
Vicente Pinto de Andrade (Angola)
Justino Pinto de Andrade (Angola)
Carlos Tavares (Cabo Verde)
Luis Fonseca (Cabo Verde)
Jaime Scofield (Cabo Verde)
Luís Mendonça (Cabo Verde)
Arlindo Borges (Cabo Verde)
António Pedro Rosa (Cabo Verde)
Pedro Martins (Cabo Verde)
Imagem: João Ribeiro
Som: Armanda Carvalho
Montagem: Cláudia Silvestre
Música; "Abandono" ("Fado Peniche") Poema: David Mourão-Ferreira Música: Alain Oulman Voz: Amália Rodrigues
Assobio: Bruno Morgado
Voz off: Jorge Sequerra
Misturas: João Ganho
Produção e Realização: Diana Andringa [, 2009]
Tempo: 1H 30'
2. Comentário de L.G.:
Além deste trabalho da Dina Andringa, que que eu recomendo vivamente e vou ver, espero que não percam também o filme de Rui Simões, de 2010, com a duração de 95', Ilha da Cova da Moura, um bairro do Concelho da Amadora, injustamente estigmatizado e mal amado, que pode ser visto, simbolicamente, como a última ilha que nos restou do arquipélago a que um dia chamámos Império Colonial... Parafraseando uma jovem moradora local, "português preto não existe" (sic)... A frase, na sua ambiguidade, pode também querer sugerir duas coisas: que há, entre nós um velho racismo subliminar nunca resolvido, e que a exclusão social e o racismo andam quase sempre de mãos dadas...
Um trailer do filme, com a duração de 1' 45'', pode ser visto aqui.
Exibições: 28 Abril, 19:00, Culturgest, Grande Auditório
30 Abril, 18:30, Culturgest, Pequeno Auditório
Sinopse:
Na área da Grande Lisboa, o nome Cova da Moura nunca foi sinónimo de bem-estar, educação ou prosperidade. Pelo contrário, esteve sempre associado à ideia de violência, insegurança, perigo, ou, na melhor das hipóteses, de falta de instrução ou simplesmente pobreza. O documentário de Rui Simões não pretende apenas procurar o outro lado do bairro e fazer um retrato positivo da sua comunidade. O objectivo deste projecto não é o de apagar uma série de ideias feitas mas procurar as causas e efeitos desses preconceitos. Assim, o realizador seguiu o quotidiano deste bairro, descobrindo nele reflexos de Cabo Verde e procurando os modos como a exclusão social se combate ou perpetua nas vidas dos seus moradores.
Guiné 63/74 - P6203: Blogues da nossa blogosfera (35): Tabanca dos Melros, com sede no Choupal dos Melros, em Fânzeres, Gondomar, aberta a todos os ECUS, ex-combatentes do ultramar...
Sábado, 12 de Dezembro de 2009 > Poste 1 - Comecemos pelo princípio - A Ideia
E a ideia era juntar em franco convívio camaradas do concelho de Gondomar, que tivessem passado pela Guiné. Email vai, palavra vem e a coisa fez-se.
No Choupal dos Melros - a casa grande do nosso camarada Gil [Moutinho] - juntaram-se pela primeira vez nestas andanças, uma vintena de camaradas. A ideia teve pernas para andar e não só juntámos camaradas da Guiné e do concelho, como de outros concelhos e de outras guerras. A Índia e Moçambique estiveram muito bem representadas. Como o Porto e Gaia.
Para passar a palavra, criamos este blogue, ponto de encontro entre dois convívios. Que passarão a ser aos segundos sábados de cada mês, no Choupal dos Melros, a nossa sede.
E agora, ditem as vossas leis, porque não vamos parar. Escrevam, dêem opiniões, passem a palavra.
Nós somos os ECU (ex-combatentes do ultramar).
O anfitrião, o Melro do Choupal, é o Gil Moutinho que foi Piloto de T6 e D0 27. Esteve em Bissalanca, na BA 12, de 6 Abril de 1972 a 28 de Dezembro de 1973. No TO da Guiné executou 497 missões em T6 e DO, o que é obra. ("Bem, uma boa vintena delas foi em lazer, para a praia de Bubaque" - confessou ele, no blogue...).
A primeira (e, por isso, histórica) reunião dos Melros foi em 5 de Dezembro de 2009 e está amplamente documentada no blogue. O quartel-general é o Choupal dos Melros (um conmhecido restaurante típico) que o Gil Moutinho pôs à disposição dos seus camaradas de Gondomar & Arredores...
O e-mail é o seguinte: choupal@quintadoschoupos.com ... A localização pode ser vista aqui.
Ficam também aqui os contactos telefónicos: Tm 919677859-Gil / Tel. 224 890 622 - Choupal. Não se esqueçam: todos os segundos sábados de cada mês há actividade operacional na Tabanca dos Melros.
A Tabanca dos Melros (que está aberta a todos os ECUS, leia-se: ex-Combatentes do Ultramar, da Guiné à Índia), vem atraindo as mais desvairadas gentes como o António Pimentel ou o Fernando Gouveia que nem sequer são gondomarenses. Além destes dois membros da nossa Tabanca Grande Grande, bem como do Jorge Portojo e do Carlos Silva (que vive no sul), já lá vi (e li) mensagens de outros nossos amigos e camaradas: o Jorge Félix, o David Guimarães, o Santos Oliveira e outros. E reconheci nas fotos outros camaradas como o A. Marques Lopes, o J. Casimiro Carvalho, o Santos Oliveira, o Manuel Carmelita (o fotógrafo) e outras caras já conhecidas da Tabanca de Matosinhos.
O David Guimarães, por exemplo, escreveu o seguinte, em jeito de saudação aos novos tabanqueiros:
Amigos e camaradas de GONDOMAR, da linda nova "tabanca", claro...
Vejo com agrado a criação de novos espaços oriundas da grande Tabanca, Luís Graça e Camaradas da Guiné, onde eu nasci e aprendi as regras do atabancamento. (...)
Que raio, eu que já conheço essa 'cubata', o Choupal dos Melros, na minha vida artística - junto com o Carlos Costa estivemos lá a tocar. Achei mesmo lindo o espaço para um 'atabancamento' que nunca se confunda com 'atrabancamento'....
Como na tropa, alguém me disse fez dias: em Gondomar está lá uma tabanca a formar-se para o pessoal do Concelho que andou na Guiné...
Gondomar > Tabanca dos Melros > 3º Convívio > 13 de Fevereiro de 2010 > O Gil Moutinho, à direita, recebendo das mãos do Coutinho e Lima um exemplar do seu livro A retirada de Guileje: a verdade dos factos, exempltar que será destinado ao "futuro museu da Tabanca dos Melros, os ECUS". Ao Gil Moutinho já tinham tido o prazer o conhecer pessoalmente, em Monte Real, no 2º almoço-convívio da Tabanca do Centro, em 26 de Fevereiro último.
Fonte: Tabanca dos Melros (2010) (Com a devida vénia...)
Conforme explicação dada pelo Armando Martins, o fado Emboscado (paródia do fado Embuçado, letra e música de João Ferreira Rosa) "era cantado por um camarada do BCP 12, desconheço o autor. Acho que havia mais uma quintilha, mas já não me lembro".
A letra do Emboscado é uma preciosidade que deve ser preservada e divulgada, devendo nomeadamente chegar ao conhecimento de mais gente através do nosso blogue.
O EMBOSCADO
Noutros tempos a macacada
Que havia no CTIG,
P´ra nos correr à facada,
Ao tiro e à morteirada,
Formou o PAIGC.
A história que vou contar,
Contou-ma um camarada meu,
Certa vez que foi atacar
O Exército Popular,
Lá para as bandas do Cacheu.
Vem de lá o Zé do Caco (1),
É tamanha a confusão,
Cale-se lá, seu macaco,
Que se me abres mais um buraco,
Eu chamo a aviação.
Ante a admiração geral,
Descobriu-se o emboscado,
Era o Amílcar Cabral,
Houve tiroteio geral
E depois cantou-se o fado.
Recolha: Armando Martins
Revisão e fixação de texto / Nota: L.G.
(1) Zé do Caco = Spínola
Aos nossos sempre bem-humorados Melros, só posso desejar as maiores (a)venturas e prometer que um dia destes, nas minhas idas ao Norte, também lá passarei, pela Tabanca, sentindo-me honrado com a sua hospitalidade e irmanado no seu projecto de dar mais anos, com qualidade, aos anos de vida que restam aos ECUS.
Bom, e quero ouvir o Armando Martins a cantar o Emboscado, acompanhado à guitarra pelo mano Quim e, à viola, pelo velhinho Guimarães (cujo pai andou na 1ª Grande Guerra!!!)... (A propósito, camaradas e amigos, o nosso David - que é um senador do nosso blogue - faz anos no dia 24 deste mês!).
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Nota de L.G.:
(*) Poste anterior desta série > 19 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6192: Blogues da nossa blogosfera (34): Comandos-Guine 1964 a 1996, de Luís Raínha, o centurião-mor
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Guiné 63/74 - P6202: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (6): Quem ficou com a minha G3
1. Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69), gostava de saber por onde pára a sua G3. É o que ele pergunta ao correr da bolha, em mensagem com data de 10 de Abril de 2010:
AO CORRER DA BOLHA - VI
QUEM FICOU COM A MINHA G3
Quem ficou com a minha G3?
Gostava dela. Coronha de madeira com um ronco ou amuleto na parte mais estreita, o fuste igualmente em madeira luzidia, tratada, toda ela, com carinho e, por isso mesmo, sempre pronta a trabalhar.
Quem teria ficado com aquela beleza?
Era muda, felizmente, e um pouco surda ou muito mesmo. Falava com ela e nada me dizia claro, se era muda só me ouvia, penso eu.
Nunca me deixou envergonhado, a minha G3 de coronha de madeira. O ronco ou amuleto, impensável tirá-lo sem o danificar, dava-lhe um ar africano. Talvez tenha sido herdada de um africano. Quem sabe.
Tive vários objectos herdados. Um cinturão, um bornal com divisórias interiores e um ou outro mais. Não herdados mas oferecidos, mais trocados talvez, dois ou três roncos de cintura e um de peito, pulseira e anéis. Estes e o cinturão ainda estão comigo. O bornal talvez o tenha oferecido. Houve ainda uma pulseira de prata e, em ouro, um anel de sete “escravas”. Trabalho excelente de um ourives de Bafatá. Objectos que se foram em braço e dedo de duas mulheres.
Há tempo, não muito, vi o cinturão e rodeei a cintura com ele. Espanto meu, espanto meu, para o fechar precisava mais um palmo de cinturão.
Rápido, mas cuidadosamente, enrolei-o lendo os nomes dos lugares nele escritos. Tantos? Não me lembro de alguns. Se lá estão escritos é porque por lá andei.
Voltando ao assunto principal, porque falo saudosamente da minha antiga G3?
Olhei, em leitura mais de folhear, para uma revista e vi dois militares, de hoje, em preparação para partida para terras distantes, outras guerras e outras vidas, só que nas mãos tinham G3. Ainda? Ainda duram as velhas G3 de meu tempo e os senhores das guerras, de hoje, não encontraram melhor? Será que algumas fizeram as guerras do meu tempo? Será que a minha G3 andou mundo fora, tiro aqui e rajada acolá? Não. Certamente já não teria os “roletes” funcionais. Daí talvez ainda esteja funcional e em boas mãos.
Se foi bem tratada, como no meu tempo, talvez. Limpa e oleada, culatra e eteceteras tratados e a até a alma brilhava. Sim porque as armas têm alma, neste caso a minha G3. O dono é que ainda hoje a procura. A alma claro.
Era companheirona a G3 e atirava tão bem bala 7,62 ou dilagrama com granada M/62.
Por onde andará?
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 20 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6197: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (5): Mentes com dúvidas
AO CORRER DA BOLHA - VI
QUEM FICOU COM A MINHA G3
Quem ficou com a minha G3?
Gostava dela. Coronha de madeira com um ronco ou amuleto na parte mais estreita, o fuste igualmente em madeira luzidia, tratada, toda ela, com carinho e, por isso mesmo, sempre pronta a trabalhar.
Quem teria ficado com aquela beleza?
Era muda, felizmente, e um pouco surda ou muito mesmo. Falava com ela e nada me dizia claro, se era muda só me ouvia, penso eu.
Nunca me deixou envergonhado, a minha G3 de coronha de madeira. O ronco ou amuleto, impensável tirá-lo sem o danificar, dava-lhe um ar africano. Talvez tenha sido herdada de um africano. Quem sabe.
Tive vários objectos herdados. Um cinturão, um bornal com divisórias interiores e um ou outro mais. Não herdados mas oferecidos, mais trocados talvez, dois ou três roncos de cintura e um de peito, pulseira e anéis. Estes e o cinturão ainda estão comigo. O bornal talvez o tenha oferecido. Houve ainda uma pulseira de prata e, em ouro, um anel de sete “escravas”. Trabalho excelente de um ourives de Bafatá. Objectos que se foram em braço e dedo de duas mulheres.
Há tempo, não muito, vi o cinturão e rodeei a cintura com ele. Espanto meu, espanto meu, para o fechar precisava mais um palmo de cinturão.
Rápido, mas cuidadosamente, enrolei-o lendo os nomes dos lugares nele escritos. Tantos? Não me lembro de alguns. Se lá estão escritos é porque por lá andei.
Voltando ao assunto principal, porque falo saudosamente da minha antiga G3?
Olhei, em leitura mais de folhear, para uma revista e vi dois militares, de hoje, em preparação para partida para terras distantes, outras guerras e outras vidas, só que nas mãos tinham G3. Ainda? Ainda duram as velhas G3 de meu tempo e os senhores das guerras, de hoje, não encontraram melhor? Será que algumas fizeram as guerras do meu tempo? Será que a minha G3 andou mundo fora, tiro aqui e rajada acolá? Não. Certamente já não teria os “roletes” funcionais. Daí talvez ainda esteja funcional e em boas mãos.
Se foi bem tratada, como no meu tempo, talvez. Limpa e oleada, culatra e eteceteras tratados e a até a alma brilhava. Sim porque as armas têm alma, neste caso a minha G3. O dono é que ainda hoje a procura. A alma claro.
Era companheirona a G3 e atirava tão bem bala 7,62 ou dilagrama com granada M/62.
Por onde andará?
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 20 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6197: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (5): Mentes com dúvidas
Guiné 63/74 - P6201: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (10): Os dias da batalha de Guidaje, 29 e 30 de Maio de 1973
1. Continuação da apresentação deste documento pormenorizado dos trágicos acontecimentos de Guidaje em Maio de 1973, de autoria do nosso camarada Daniel Matos (ex-Fur Mil da CCaç 3518, Gadamael, 1972/74), enviado ao nosso Blogue em 6 de Março de 2010:
29 de Maio
Pelo menos um héli-canhão e logo a seguir dois Allouette III surgem de supetão sobre as casas e, perante o espanto geral, aterram no largo a que chamamos parada. É uma surpresa para nós, obviamente que não para o tenente-coronel, que antes colocara de prevenção o pessoal de armas pesadas, perspectivando-se, assim, que algo estivesse para acontecer. E aconteceu: as aeronaves trazem a bordo o comandante-chefe, – General António de Spínola. Vêm, por certo, em voo rasante à copa das árvores, que a baixa altitude foi o modo encontrado pela FAP para reduzir o risco de se fragilizar perante o moderno equipamento antiaéreo da guerrilha.
O General teria vindo certificar-se das condições operacionais, do estado psicológico do pessoal e, sobretudo, controlar a execução das directivas traçadas para outra grande operação que vise pôr fim ao isolamento de Guidaje, que permita evacuar feridos e tratar do reabastecimento de géneros, medicamentos, até mesmo de urnas, para o que der e vier!... E essa operação, cuja parte principal pode iniciar-se hoje, há alguns dias que estará a ser preparada a partir de Farim/Nema e Binta, onde uma concentração imensa das NT se iniciou no dia 26: aí estão a 38.ª Companhia de Comandos (“Os Leopardos”, novamente), um grupo especial de Milícias, quatro Grupos de Combate do BCaç 4512, uma Companhia africana e mais duas Companhias inteiras, uma de Infantaria e outra de Cavalaria (a CCav 3420, – "Os Progressistas" – comandada pelo Capitão Salgueiro Maia, que foi enviada para este tormento já depois de ter a comissão cumprida em Bula e em Mansoa e de estar a aguardar embarque para regressar à metrópole; em vez de seguir para o Cumeré, foi para os Adidos requisitar novas armas).
Não me recordo quanto tempo se deteve o General Spínola nesta passagem por Guidaje. Não deverá ter sido muito, até porque a presença dos helicópteros estaria, decerto, a ser notada do lado de lá da fronteira, as próprias condições do terreno deixavam-nos demasiado expostos no caso de o IN arriscar qualquer investida. Isto, embora ouvíssemos o roncar constante da aviação, lá nas alturas, sobre as nuvens, a impor o seu respeito. Mas recordo-me que todos fomos a correr sacar aerogramas à Secretaria, (conhecidos por “bate-estradas”), pois estava ali uma possibilidade de enviarmos correio às famílias, mentiras escritas à pressa, do tipo “espero que te encontres de boa saúde que eu fico… bem”, quer-se dizer, alvoroçar pais e namoradas com desgraças para quê?!! Para muitos, eram expedidas as primeiras cartas após várias semanas sem receber ou enviar mensagens de e para o exterior. A falta de notícias e de comunicações foi terreno fértil para a propagação do boato. Na parte que me toca, vim a apurar depois do regresso ao COMBIS que na própria Companhia havia quem já me tivesse dado como morto; ao invés, em Lisboa, perante o meu prolongado e inabitual silêncio, o meu pai e a minha mulher (casara-me, nem havia dois meses) andam de repartição em repartição tentando saber se algo me terá acontecido. Cedo desistem, mal um primeiro-sargento anafado lhes garantiu que eu não consto na listagem mecanográfica dos óbitos, que sou obrigado pelas NEP a enviar notícias à família e que, se não o fizer, ainda “leva mas é uma porrada”! – Quer que participe? – perguntou a criatura… à vez, esperando pela disponibilidade da esferográfica do cabo artilheiro que foi circulando de mão em mão, lá gatafunhámos meia dúzia de linhas com o remetente SPM 2158 (era o número do Serviço Postal Militar, espécie de código postal da companhia)…
Os Allouette III levantam voo e levam Spínola e comitiva de volta para Bissau. Transportam para o HMB os feridos que mais necessitam de evacuação. “Nossos”, seguem o Igreja e o Bernardo Monteiro, cujo ferimento no joelho não é de grande gravidade, mas faz-se à boleia com um choradinho bem urdido e consegue o lugar.
Por volta das cinco da madrugada os muitos militares concentrados em Binta tinham começado a percorrer o itinerário para Guidaje. A progressão no terreno, como sempre é extremamente cuidadosa e lenta. Ainda assim, às dez horas é accionada pelo soldado-condutor auto rodas António Luís do Couto Toste Parreira (CCaç 3414) uma anticarro armadilhada que o desfaz, cega um furriel e provoca dois feridos ligeiros. O pessoal do Batalhão de Farim mostra-se particularmente abatido, é também reincidente naquele percurso, onde já muitos camaradas caíram por terra nos combates de 9 deste mês.
O estado de espírito está de tal maneira que um pelotão, que foi incumbido de transportar para Binta (para posterior evacuação) os feridos e o morto na mina anticarro, devendo depois regressar ao local de partida, já não está para isso e os trinta homens entram em desobediência, ficam-se por Binta com os dois Unimog, à espera do desfecho da crise…
Quem comanda, procurando evitar novas minas, decide-se a avançar em corta-mato, rasgando outros trilhos e outra picada, por onde o arvoredo permita a passagem das viaturas. À frente vai o “caterpillar” D6, pronto para derrubar capinzal, árvores e o que apareça pela frente. A grande distância umas das outras, seguem as Berliet só com os condutores a bordo, sempre protegidos por sacos de areia.
Entretanto, a Companhia de Pára-quedistas que chegou no dia 23 (CCP 121) tinha partido de Guidaje no encalço da coluna, levando consigo os comandos (chefiados pelo Capitão Raul Folques, ainda a braços com ferimentos sofridos na investida contra a base de Koumbamory, no Senegal). Para não variar, detectam minas. No entanto, optam por não provocar o rebentamento, preferindo deixá-las balizadas. Ouvem duas rajadas, todavia o som vem de longe e ficou-se por aí, nem se deu por que alguém tenha ripostado. Já perto de atingirem o Cufeu, então sim, rebenta uma emboscada do lado oposto da bolanha, contra o pessoal da coluna que progride no terreno de Binta para cima (as Companhias que atrás citei). Um grupo que foi calculado em 120 guerrilheiros desferiu de rompante um ataque impetuoso, batendo a zona da retaguarda da coluna com Morteiros 82. Os combatentes do PAIGC fizeram várias investidas durante mais de uma hora. Alguns homens vergados pelo cansaço, pela insolação e pela sede, (desde madrugada que mais não ingeriram do que um cantil de água,) desmaiaram e geraram obstáculos de novo tipo à progressão.
A longuíssima coluna cruza-se com os pára-quedistas da CCP 121 que já irão pernoitar a Farim (e que amanhã partirão de regresso a Bissau); e encontra-se com os fuzileiros que estavam retidos há dias e que vieram ao encontro da coluna para reforçar as hostes.
Na região de Ujeque o pessoal ainda veria rebentar outra mina debaixo dum Unimog 404. Um soldado milícia, ao saltar para o lado, ficou sem uma perna por pisar outra mina antipessoal. Sofreram mais um curto ataque às dezoito horas, sem consequências, chegando exaustos a Guidaje, cerca das dezanove, quando anoitecia. A extensa coluna atingiu o objectivo mas o preço foi alto: dois mortos (o referido condutor e o soldado atirador Domingos Martins da Silva Lopes, do BCaç 4512), e ainda vários feridos.
Temos entretanto a notícia da morte do soldado Jorge Gonçalves, que agonizava na enfermaria e não resistiu aos ferimentos. É o quarto morto da Companhia nesta operação e a sexta vítima mortal dos camaradas que a morteirada surpreendeu no abrigo do obus.
Ainda o funesto abrigo do obus, que ficou para sempre nas nossas retinas e cuja memória só desaparecerá quando chegar a vez de nós nos apagarmos. Na sua “Crónica dos Feitos por Guidaje” (publicada no livro “Capitão de Abril – Histórias da Guerra do Ultramar e do 25 de Abril – Depoimentos” (Editorial Notícias) o capitão Salgueiro Maia referiu-se também a esse abrigo (página 71), descrevendo-o da seguinte maneira:
“Nas minhas visitas pelos escombros, desci ao abrigo de artilharia, onde houvera quatro mortos e três feridos graves. O abrigo fora atingido em cheio por uma granada de Morteiro 82 com retardamento; a granada rebentou a meio de uma placa feita com sibes; o resto do abrigo ficou totalmente destruído; o chão tinha um revestimento insólito – consistia numa poça de sangue seco, de cor castanha, com 2 a 3 mm de espessura, rachada como barro ressequido. O odor envolvente era um pouco azedo, mas sem referência possível; o sangue empastava os colchões e as paredes. A minha preocupação era encontrar um colchão. Depois de dar a volta aos oito que lá se encontravam, escolhi o que estava menos sujo. Tirei-lhe a capa, mas o cheiro que emanava de dentro era insuportável; mesmo assim, consegui trazê-lo para a superfície, onde ficou a secar debaixo da minha vigilância, para não ser capturado por outro. Depois de bem seco e com os odores atenuados, levei a minha conquista para a vala onde, para caber, tive de o cortar ao meio, fazendo bem feliz o meu companheiro do lado, que, sem esforço, ganhou um colchão, e sem saber de onde tinha vindo”.
Recorde-se, a propósito dos odores, que entre a noite da destruição do abrigo e a chegada do capitão Salgueiro Maia a Guidaje decorreram pelo menos quatro a cinco dias, até porque não deve ter ido direito ao abrigo logo no primeiro dia… No seu texto ou no meu relato há pequenas contradições, traições da memória que pouco interessam hoje em dia. Contudo, referencio-as: pelo que me recordo de ouvir (todos temos uma costela de perito), e pelo que já li algures, terá sido uma granada de Morteiro 120 a perfurar os troncos de sibe que cobriam o tecto e a destruir o abrigo, e não de Morteiro 82; dificilmente haveria 8 colchões dentro do abrigo, pois mal cabiam as 4 camas existentes (sobrepostas duas a duas, em camarata); o número de mortes que é referido (4) é o dos que tiveram morte imediata (Machado, Telo, Ferreira e um soldado africano, havendo a acrescentar o Fernandes e o Talibó Baio, que faleceriam poucas horas depois (mas já no dia 26) e o soldado Gonçalves (a 29); nunca consegui apurar quem era nem como foi enterrado o segundo soldado africano que se tinha refugiado no abrigo. Com efeito, na altura da exumação dos corpos, em 2009, apareceram onze ossadas no “cemitério” cujo croquis só indicava dez, sendo que o décimo-primeiro (identidade desconhecida), segundo os arqueólogos pertenceria a um indivíduo “africano”. Mas a dedução de poder tratar-se do mesmo indivíduo pode ser precipitada.
Pela quantidade de homens recém-chegados, e com a “fomeca” que traziam, foi grande a azáfama em torno do refeitório, onde não cabiam todos ao mesmo tempo, para que lhes fossem servidas as tradicionais salsichas. Aquela grande concentração é um risco enorme, já que uma simples granada que caia no local, pela certa causará uma mortandade! São mandados dispersar pelos quatro cantos de Guidaje onde devem aguardar que alguém os chame. Não têm tecto onde dormir, os edifícios estão deveras danificados ou completamente destruídos, e os camaradas “residentes” (sitiados) já transformaram a generalidade das valas em dormitórios. Porém, aqui a solidariedade não é palavra vã e para todos se inventará um cantinho onde repousem. Toda a gente se “encolhe” por forma a arranjar novos espaços. Não restam colchões disponíveis para ninguém, cada qual desenrasca-se consoante a imaginação.
Cerca das 21 horas, às cinco de cada vez, começam a cair morteiradas bem no centro do quartel. E não parecem umas granadas quaisquer aquelas que se abatem sobre as nossas cabeças: são de Morteiro 81, isto é, das que o IN conseguira sacar das viaturas de reabastecimento que se imobilizaram e perderam na picada de Binta, (sacadas antes do Fiat do capitão José Manuel Pinto Ferreira arrasar o que restava delas e da carga, no passado dia 9)…
30 de Maio
Ou vai ou racha! Se não for desta, quando será? Somos uma multidão autêntica neste quartel sobrelotado. Fazem-se os preparos para a partida, sacode-se alguma poeira das armas, espreitam-se os canos para ver se têm sujidade, distribuem-se bolachas e latas de sumo que devem ter sido trazidas pelo pessoal chegado ontem, à noitinha. Caramba, com tanta gente não há motivo para descrenças e ansiedades, vamos a eles! Apesar da partida dos “páras” rumo a Farim, entrou aqui o equivalente a quatro companhias… Com Guidaje a abarrotar, a anarquia é total, ninguém sabe quem manda em quê e até para fazerem as suas necessidades há homens a recorrer às proximidades da rede de arame, ignorando quem passa e, do lado da tabanca, ainda passam mulheres e crianças que nunca tiveram a oportunidade de fugir. Contas redondas, deverão estar no interior do aquartelamento entre oitocentos e cinquenta e mil homens. Muitos ficarão em reforço do quartel, mas a maioria esmagadora vai participar na operação.
Há mais de meia hora que arrancaram os homens e viaturas da frente e parece que está tudo na mesma, centenas de outros em espera. Nós e os companheiros da tão afortunada coluna chegada no dia 15, havemos de partir enquadrados com fuzileiros. Para mim é bom sinal, gosto de os ver na mata, inspiram confiança e é disso que precisamos, em primeiro lugar. Sou chamado por um capitão (pela idade e rosto carregado tem ar de ser capitão e do quadro) que me vem apontar o nosso posicionamento na coluna e lembrar da necessidade de haver grande disciplina, manter as distâncias e uma atenção redobrada mal saiamos a porta de armas. Diz-me também que o nosso homem das Transmissões deve ser a minha sombra, ande eu por onde andar e que não devo hesitar em informar o Comando se detectar qualquer anormalidade. Informa-me ainda que iremos utilizar o percurso que eles rasgaram ontem à vinda, talvez o IN não tivesse tempo de miná-lo durante a noite. Certificamo-nos que o corpo do camarada Jorge Gonçalves está sobre uma viatura, queremos levá-lo connosco para Bissau.
Passa provavelmente outra meia hora aborrecida e lá chega a nossa vez de nos deitarmos ao caminho. A marcha, como seria de prever, é extremamente lenta e verificam-se muitas paragens. Até parece milagre não se ter esgotado o combustível das viaturas durante estes dias e agora, com tanto pára/arranca, horas a fio. Embora por vezes se apeiem com mil cuidados nos sítios que vão pisar, mas provavelmente para desentorpecer as pernas, seguem nas Berliet o alferes Cruz, o furriel Ângelo Silva, o soldado Vieira mais os que foram feridos nas emboscadas (Abreu e Gomes dos Santos,) e ainda duas outras praças desfeitas em suor e febre.
Há um fuzileiro que tira do bolso do dólmen uma embalagem de Coramina e, como quem oferece um cigarro, pergunta-me se quero uma. Aceito e agradeço. Nunca percebi muito bem para o que serviam mas sempre cravei muitas das enfermarias, gostava de ir chupando aquelas pastilhas quadradas quando andava no mato, dizia-se que eram estimulantes… Mais do que elas, só as castanhas de cola, que muitos soldados milícias mascavam “para dar força”, como um estupefaciente, e cujo sabor acre eu também gostava de ruminar, aquilo partia-se, triturava-se, mas nunca chegava a desfazer-se na boca, uma castanha dava para a viagem toda e só se cuspia no fim.
Já nem faço ideia de há quantas horas estamos no mato, felizmente que sem novidade, até que nos deparamos outra vez com o cenário dantesco dos mortos espalhados pelo caminho, em diferentes estados de decomposição. O mais próximo de mim já nem deita cheiro (ou terei eu perdido o olfacto?), é só um esqueleto com cinturão, botas e uns poucos farrapos pretos que restam da farda. Por que será que nunca foram removidos? Será por já nem se reconhecer a identidade, ou pelo grande risco de poderem estar armadilhados?
O pessoal do BCaç 4512, levando consigo uma equipa de sapadores, acabaria por ir ao local muito mais tarde, em Agosto de 1973, quando a zona já não oferecia os mesmos perigos. Procedeu à remoção de três desse corpos.
Com efeito, a coluna é muito extensa, não consigo avaliar a dimensão. Prolonga-se certamente por mais de dois quilómetros, tal é o número de tropas e as distâncias que nos separam uns dos outros. Não é fácil avançar-se assim pelo mato fora, muito menos com celeridade. Há uma paragem prolongada, excessivamente prolongada, que nos põe no pensamento a ideia de que uma emboscada estará para chegar… Ou então, surgiram problemas lá na frente, encontrados pelos picadores. Desesperamos de tanta espera, aumenta o stress. Ninguém dá explicações. Sabe-se, finalmente, que um dos homens da cauda da coluna (presumo, sem ter a certeza, que da Companhia do capitão Salgueiro Maia) teve a infelicidade de ser atacado por um enxame de abelhas e, bastante mordido no peito (levaria o dólmen aberto), com a avidez da fuga deixou ficar para trás a G3.
Uma solução para afugentar os insectos seria lançar granadas de fumo, mas com o peso do armamento ninguém estava para as carregar. E mesmo que as levassem, um fumozinho que fosse deitado ali denunciaria a nossa localização e seria a “morte do artista”!... Bem, a nossa presença no mato já o IN conheceria há uma infinidade de tempo, mas não havia necessidade de lha indicarmos com tanta precisão…
O Comandante da coluna, ao ter conhecimento do sucedido fez enviar uma equipa lá atrás para recuperar a arma, só que os insectos voltaram à carga e estabeleceu-se confusão e revolta, opiniões de que mais valia perder a G3 do que sujeitar tantos homens a arcar com outra emboscada “nos cornos”, ainda por cima na zona que nos causava uma carga psicológica acrescida devido aos insucessos passados. O soldado da espingarda perdida ficou com um número significativo de inchaços no corpo. Caiu na asneira de despir o dólmen e tentar afugentar ou esmagar as abelhas que se infiltraram por dentro e foi pior a emenda que o soneto. Estas mordeduras em quantidade têm efeitos idênticos aos das queimaduras na pele, geram a sua asfixia, pode ser fatais. Por fim, recuperou-se a arma depois de angustiante seca, ali nas barbas do Cufeu, e lá prosseguimos lentamente a nossa marcha. O inimigo a causar-nos baixas, desta vez, nem é o PAIGC, é a própria natureza a molestar-nos, parece que até os insectos repudiam a nossa presença…
A bolanha e a casa amarela ficam para trás. Começamos a respirar de alívio ao avistarmos Binta, ao entrar-nos nos ouvidos os ruídos da água do Cacheu. Há agora que esperar por viaturas vagas que nos transportem até Farim. Chega a vez dos nossos pelotões subirem para as Berliet. Ao vermos as casas da vila e a jangada que no dia seguinte nos poria na outra margem, rumo a Bissau, soubemos o que é um sonho transformado em realidade. Já tínhamos desacreditado que este cenário fosse possível.
Os populares olham desconfiados para o nosso aspecto miserável, mas nesta região já não deve ser nada a que não estejam habituados. Rumamos directamente aos balneários e sanitas, fazemos filas para nos dessedentarmos e para um retemperador duche e, claro está, voltamos a vestir a mesma roupa imunda, o mesmo calçado. A seguir, o pessoal vai direito ao rancho, nem que fosse um chispe enlatado viria mesmo a calhar, nem sei como conseguimos evitar os suicídios quando, cúmulo dos azares, servem aos soldados arroz com… salsichas (embora aqui fossem grelhadas)! Na messe temos melhor sorte, mas não me recordo da ementa do dia. O que nos apetece mesmo é sair do quartel e dar um giro à volta das casas civis, ver pessoas diferentes, não fardadas, desanuviar, procurar um bar, uma tasca, mas nestas figuras e sem dinheiro para nada, não iremos longe.
Empanturramo-nos de cerveja e mancarra, tudo à conta dos vales que mais tarde aparecerão na nossa Companhia para nos serem descontados no vencimento. Se bem me lembro, o salário de um furriel miliciano não atingia os seis contos. Em geral, e por opção, a parte maior era enviada para nossas casas ao cuidado de familiares, em escudos portugueses, e a outra era o que recebíamos em escudos guineenses (pesos). Julgo que, em geral, ficávamos na Guiné com cerca de dois mil pesos que, estando-se no mato, davam para o tabaco, despesas de bar e pagar à lavadeira. Bem, em Bissau, umas refeições fora e qualquer compra extraordinária, já justificavam o recurso aos “valores declarados” que mandávamos vir da metrópole (envelopes azuis, com notas lá dentro, que depois cambiávamos aos que tinham a habilidade e o “savoir-faire” para negociar com isso).
*
Nestes dezasseis ou dezassete dias em Farim e Guidaje (aqui, com o bar à míngua de produtos, excepto cigarros), a cada um de nós (sargentos, oficiais) foi descontado em média o equivalente ao nosso salário “guineense” de um mês, embora na secretaria tenham dividido os descontos por duas ou três mensalidades! O que seria se comêssemos!?
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 18 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6178: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (9): Os dias da batalha de Guidaje, 27 e 28 de Maio de 1973
Os Marados de Gadamael
e os dias da Batalha de Guidaje
Parte X
Daniel de Matos
Os Dias da Batalha
e os dias da Batalha de Guidaje
Parte X
Daniel de Matos
Os Dias da Batalha
29 de Maio
Pelo menos um héli-canhão e logo a seguir dois Allouette III surgem de supetão sobre as casas e, perante o espanto geral, aterram no largo a que chamamos parada. É uma surpresa para nós, obviamente que não para o tenente-coronel, que antes colocara de prevenção o pessoal de armas pesadas, perspectivando-se, assim, que algo estivesse para acontecer. E aconteceu: as aeronaves trazem a bordo o comandante-chefe, – General António de Spínola. Vêm, por certo, em voo rasante à copa das árvores, que a baixa altitude foi o modo encontrado pela FAP para reduzir o risco de se fragilizar perante o moderno equipamento antiaéreo da guerrilha.
O General teria vindo certificar-se das condições operacionais, do estado psicológico do pessoal e, sobretudo, controlar a execução das directivas traçadas para outra grande operação que vise pôr fim ao isolamento de Guidaje, que permita evacuar feridos e tratar do reabastecimento de géneros, medicamentos, até mesmo de urnas, para o que der e vier!... E essa operação, cuja parte principal pode iniciar-se hoje, há alguns dias que estará a ser preparada a partir de Farim/Nema e Binta, onde uma concentração imensa das NT se iniciou no dia 26: aí estão a 38.ª Companhia de Comandos (“Os Leopardos”, novamente), um grupo especial de Milícias, quatro Grupos de Combate do BCaç 4512, uma Companhia africana e mais duas Companhias inteiras, uma de Infantaria e outra de Cavalaria (a CCav 3420, – "Os Progressistas" – comandada pelo Capitão Salgueiro Maia, que foi enviada para este tormento já depois de ter a comissão cumprida em Bula e em Mansoa e de estar a aguardar embarque para regressar à metrópole; em vez de seguir para o Cumeré, foi para os Adidos requisitar novas armas).
Não me recordo quanto tempo se deteve o General Spínola nesta passagem por Guidaje. Não deverá ter sido muito, até porque a presença dos helicópteros estaria, decerto, a ser notada do lado de lá da fronteira, as próprias condições do terreno deixavam-nos demasiado expostos no caso de o IN arriscar qualquer investida. Isto, embora ouvíssemos o roncar constante da aviação, lá nas alturas, sobre as nuvens, a impor o seu respeito. Mas recordo-me que todos fomos a correr sacar aerogramas à Secretaria, (conhecidos por “bate-estradas”), pois estava ali uma possibilidade de enviarmos correio às famílias, mentiras escritas à pressa, do tipo “espero que te encontres de boa saúde que eu fico… bem”, quer-se dizer, alvoroçar pais e namoradas com desgraças para quê?!! Para muitos, eram expedidas as primeiras cartas após várias semanas sem receber ou enviar mensagens de e para o exterior. A falta de notícias e de comunicações foi terreno fértil para a propagação do boato. Na parte que me toca, vim a apurar depois do regresso ao COMBIS que na própria Companhia havia quem já me tivesse dado como morto; ao invés, em Lisboa, perante o meu prolongado e inabitual silêncio, o meu pai e a minha mulher (casara-me, nem havia dois meses) andam de repartição em repartição tentando saber se algo me terá acontecido. Cedo desistem, mal um primeiro-sargento anafado lhes garantiu que eu não consto na listagem mecanográfica dos óbitos, que sou obrigado pelas NEP a enviar notícias à família e que, se não o fizer, ainda “leva mas é uma porrada”! – Quer que participe? – perguntou a criatura… à vez, esperando pela disponibilidade da esferográfica do cabo artilheiro que foi circulando de mão em mão, lá gatafunhámos meia dúzia de linhas com o remetente SPM 2158 (era o número do Serviço Postal Militar, espécie de código postal da companhia)…
Os Allouette III levantam voo e levam Spínola e comitiva de volta para Bissau. Transportam para o HMB os feridos que mais necessitam de evacuação. “Nossos”, seguem o Igreja e o Bernardo Monteiro, cujo ferimento no joelho não é de grande gravidade, mas faz-se à boleia com um choradinho bem urdido e consegue o lugar.
Por volta das cinco da madrugada os muitos militares concentrados em Binta tinham começado a percorrer o itinerário para Guidaje. A progressão no terreno, como sempre é extremamente cuidadosa e lenta. Ainda assim, às dez horas é accionada pelo soldado-condutor auto rodas António Luís do Couto Toste Parreira (CCaç 3414) uma anticarro armadilhada que o desfaz, cega um furriel e provoca dois feridos ligeiros. O pessoal do Batalhão de Farim mostra-se particularmente abatido, é também reincidente naquele percurso, onde já muitos camaradas caíram por terra nos combates de 9 deste mês.
O estado de espírito está de tal maneira que um pelotão, que foi incumbido de transportar para Binta (para posterior evacuação) os feridos e o morto na mina anticarro, devendo depois regressar ao local de partida, já não está para isso e os trinta homens entram em desobediência, ficam-se por Binta com os dois Unimog, à espera do desfecho da crise…
Quem comanda, procurando evitar novas minas, decide-se a avançar em corta-mato, rasgando outros trilhos e outra picada, por onde o arvoredo permita a passagem das viaturas. À frente vai o “caterpillar” D6, pronto para derrubar capinzal, árvores e o que apareça pela frente. A grande distância umas das outras, seguem as Berliet só com os condutores a bordo, sempre protegidos por sacos de areia.
Entretanto, a Companhia de Pára-quedistas que chegou no dia 23 (CCP 121) tinha partido de Guidaje no encalço da coluna, levando consigo os comandos (chefiados pelo Capitão Raul Folques, ainda a braços com ferimentos sofridos na investida contra a base de Koumbamory, no Senegal). Para não variar, detectam minas. No entanto, optam por não provocar o rebentamento, preferindo deixá-las balizadas. Ouvem duas rajadas, todavia o som vem de longe e ficou-se por aí, nem se deu por que alguém tenha ripostado. Já perto de atingirem o Cufeu, então sim, rebenta uma emboscada do lado oposto da bolanha, contra o pessoal da coluna que progride no terreno de Binta para cima (as Companhias que atrás citei). Um grupo que foi calculado em 120 guerrilheiros desferiu de rompante um ataque impetuoso, batendo a zona da retaguarda da coluna com Morteiros 82. Os combatentes do PAIGC fizeram várias investidas durante mais de uma hora. Alguns homens vergados pelo cansaço, pela insolação e pela sede, (desde madrugada que mais não ingeriram do que um cantil de água,) desmaiaram e geraram obstáculos de novo tipo à progressão.
A longuíssima coluna cruza-se com os pára-quedistas da CCP 121 que já irão pernoitar a Farim (e que amanhã partirão de regresso a Bissau); e encontra-se com os fuzileiros que estavam retidos há dias e que vieram ao encontro da coluna para reforçar as hostes.
Na região de Ujeque o pessoal ainda veria rebentar outra mina debaixo dum Unimog 404. Um soldado milícia, ao saltar para o lado, ficou sem uma perna por pisar outra mina antipessoal. Sofreram mais um curto ataque às dezoito horas, sem consequências, chegando exaustos a Guidaje, cerca das dezanove, quando anoitecia. A extensa coluna atingiu o objectivo mas o preço foi alto: dois mortos (o referido condutor e o soldado atirador Domingos Martins da Silva Lopes, do BCaç 4512), e ainda vários feridos.
Temos entretanto a notícia da morte do soldado Jorge Gonçalves, que agonizava na enfermaria e não resistiu aos ferimentos. É o quarto morto da Companhia nesta operação e a sexta vítima mortal dos camaradas que a morteirada surpreendeu no abrigo do obus.
Ainda o funesto abrigo do obus, que ficou para sempre nas nossas retinas e cuja memória só desaparecerá quando chegar a vez de nós nos apagarmos. Na sua “Crónica dos Feitos por Guidaje” (publicada no livro “Capitão de Abril – Histórias da Guerra do Ultramar e do 25 de Abril – Depoimentos” (Editorial Notícias) o capitão Salgueiro Maia referiu-se também a esse abrigo (página 71), descrevendo-o da seguinte maneira:
“Nas minhas visitas pelos escombros, desci ao abrigo de artilharia, onde houvera quatro mortos e três feridos graves. O abrigo fora atingido em cheio por uma granada de Morteiro 82 com retardamento; a granada rebentou a meio de uma placa feita com sibes; o resto do abrigo ficou totalmente destruído; o chão tinha um revestimento insólito – consistia numa poça de sangue seco, de cor castanha, com 2 a 3 mm de espessura, rachada como barro ressequido. O odor envolvente era um pouco azedo, mas sem referência possível; o sangue empastava os colchões e as paredes. A minha preocupação era encontrar um colchão. Depois de dar a volta aos oito que lá se encontravam, escolhi o que estava menos sujo. Tirei-lhe a capa, mas o cheiro que emanava de dentro era insuportável; mesmo assim, consegui trazê-lo para a superfície, onde ficou a secar debaixo da minha vigilância, para não ser capturado por outro. Depois de bem seco e com os odores atenuados, levei a minha conquista para a vala onde, para caber, tive de o cortar ao meio, fazendo bem feliz o meu companheiro do lado, que, sem esforço, ganhou um colchão, e sem saber de onde tinha vindo”.
Recorde-se, a propósito dos odores, que entre a noite da destruição do abrigo e a chegada do capitão Salgueiro Maia a Guidaje decorreram pelo menos quatro a cinco dias, até porque não deve ter ido direito ao abrigo logo no primeiro dia… No seu texto ou no meu relato há pequenas contradições, traições da memória que pouco interessam hoje em dia. Contudo, referencio-as: pelo que me recordo de ouvir (todos temos uma costela de perito), e pelo que já li algures, terá sido uma granada de Morteiro 120 a perfurar os troncos de sibe que cobriam o tecto e a destruir o abrigo, e não de Morteiro 82; dificilmente haveria 8 colchões dentro do abrigo, pois mal cabiam as 4 camas existentes (sobrepostas duas a duas, em camarata); o número de mortes que é referido (4) é o dos que tiveram morte imediata (Machado, Telo, Ferreira e um soldado africano, havendo a acrescentar o Fernandes e o Talibó Baio, que faleceriam poucas horas depois (mas já no dia 26) e o soldado Gonçalves (a 29); nunca consegui apurar quem era nem como foi enterrado o segundo soldado africano que se tinha refugiado no abrigo. Com efeito, na altura da exumação dos corpos, em 2009, apareceram onze ossadas no “cemitério” cujo croquis só indicava dez, sendo que o décimo-primeiro (identidade desconhecida), segundo os arqueólogos pertenceria a um indivíduo “africano”. Mas a dedução de poder tratar-se do mesmo indivíduo pode ser precipitada.
Pela quantidade de homens recém-chegados, e com a “fomeca” que traziam, foi grande a azáfama em torno do refeitório, onde não cabiam todos ao mesmo tempo, para que lhes fossem servidas as tradicionais salsichas. Aquela grande concentração é um risco enorme, já que uma simples granada que caia no local, pela certa causará uma mortandade! São mandados dispersar pelos quatro cantos de Guidaje onde devem aguardar que alguém os chame. Não têm tecto onde dormir, os edifícios estão deveras danificados ou completamente destruídos, e os camaradas “residentes” (sitiados) já transformaram a generalidade das valas em dormitórios. Porém, aqui a solidariedade não é palavra vã e para todos se inventará um cantinho onde repousem. Toda a gente se “encolhe” por forma a arranjar novos espaços. Não restam colchões disponíveis para ninguém, cada qual desenrasca-se consoante a imaginação.
Cerca das 21 horas, às cinco de cada vez, começam a cair morteiradas bem no centro do quartel. E não parecem umas granadas quaisquer aquelas que se abatem sobre as nossas cabeças: são de Morteiro 81, isto é, das que o IN conseguira sacar das viaturas de reabastecimento que se imobilizaram e perderam na picada de Binta, (sacadas antes do Fiat do capitão José Manuel Pinto Ferreira arrasar o que restava delas e da carga, no passado dia 9)…
30 de Maio
Ou vai ou racha! Se não for desta, quando será? Somos uma multidão autêntica neste quartel sobrelotado. Fazem-se os preparos para a partida, sacode-se alguma poeira das armas, espreitam-se os canos para ver se têm sujidade, distribuem-se bolachas e latas de sumo que devem ter sido trazidas pelo pessoal chegado ontem, à noitinha. Caramba, com tanta gente não há motivo para descrenças e ansiedades, vamos a eles! Apesar da partida dos “páras” rumo a Farim, entrou aqui o equivalente a quatro companhias… Com Guidaje a abarrotar, a anarquia é total, ninguém sabe quem manda em quê e até para fazerem as suas necessidades há homens a recorrer às proximidades da rede de arame, ignorando quem passa e, do lado da tabanca, ainda passam mulheres e crianças que nunca tiveram a oportunidade de fugir. Contas redondas, deverão estar no interior do aquartelamento entre oitocentos e cinquenta e mil homens. Muitos ficarão em reforço do quartel, mas a maioria esmagadora vai participar na operação.
Há mais de meia hora que arrancaram os homens e viaturas da frente e parece que está tudo na mesma, centenas de outros em espera. Nós e os companheiros da tão afortunada coluna chegada no dia 15, havemos de partir enquadrados com fuzileiros. Para mim é bom sinal, gosto de os ver na mata, inspiram confiança e é disso que precisamos, em primeiro lugar. Sou chamado por um capitão (pela idade e rosto carregado tem ar de ser capitão e do quadro) que me vem apontar o nosso posicionamento na coluna e lembrar da necessidade de haver grande disciplina, manter as distâncias e uma atenção redobrada mal saiamos a porta de armas. Diz-me também que o nosso homem das Transmissões deve ser a minha sombra, ande eu por onde andar e que não devo hesitar em informar o Comando se detectar qualquer anormalidade. Informa-me ainda que iremos utilizar o percurso que eles rasgaram ontem à vinda, talvez o IN não tivesse tempo de miná-lo durante a noite. Certificamo-nos que o corpo do camarada Jorge Gonçalves está sobre uma viatura, queremos levá-lo connosco para Bissau.
Passa provavelmente outra meia hora aborrecida e lá chega a nossa vez de nos deitarmos ao caminho. A marcha, como seria de prever, é extremamente lenta e verificam-se muitas paragens. Até parece milagre não se ter esgotado o combustível das viaturas durante estes dias e agora, com tanto pára/arranca, horas a fio. Embora por vezes se apeiem com mil cuidados nos sítios que vão pisar, mas provavelmente para desentorpecer as pernas, seguem nas Berliet o alferes Cruz, o furriel Ângelo Silva, o soldado Vieira mais os que foram feridos nas emboscadas (Abreu e Gomes dos Santos,) e ainda duas outras praças desfeitas em suor e febre.
Há um fuzileiro que tira do bolso do dólmen uma embalagem de Coramina e, como quem oferece um cigarro, pergunta-me se quero uma. Aceito e agradeço. Nunca percebi muito bem para o que serviam mas sempre cravei muitas das enfermarias, gostava de ir chupando aquelas pastilhas quadradas quando andava no mato, dizia-se que eram estimulantes… Mais do que elas, só as castanhas de cola, que muitos soldados milícias mascavam “para dar força”, como um estupefaciente, e cujo sabor acre eu também gostava de ruminar, aquilo partia-se, triturava-se, mas nunca chegava a desfazer-se na boca, uma castanha dava para a viagem toda e só se cuspia no fim.
Já nem faço ideia de há quantas horas estamos no mato, felizmente que sem novidade, até que nos deparamos outra vez com o cenário dantesco dos mortos espalhados pelo caminho, em diferentes estados de decomposição. O mais próximo de mim já nem deita cheiro (ou terei eu perdido o olfacto?), é só um esqueleto com cinturão, botas e uns poucos farrapos pretos que restam da farda. Por que será que nunca foram removidos? Será por já nem se reconhecer a identidade, ou pelo grande risco de poderem estar armadilhados?
O pessoal do BCaç 4512, levando consigo uma equipa de sapadores, acabaria por ir ao local muito mais tarde, em Agosto de 1973, quando a zona já não oferecia os mesmos perigos. Procedeu à remoção de três desse corpos.
Com efeito, a coluna é muito extensa, não consigo avaliar a dimensão. Prolonga-se certamente por mais de dois quilómetros, tal é o número de tropas e as distâncias que nos separam uns dos outros. Não é fácil avançar-se assim pelo mato fora, muito menos com celeridade. Há uma paragem prolongada, excessivamente prolongada, que nos põe no pensamento a ideia de que uma emboscada estará para chegar… Ou então, surgiram problemas lá na frente, encontrados pelos picadores. Desesperamos de tanta espera, aumenta o stress. Ninguém dá explicações. Sabe-se, finalmente, que um dos homens da cauda da coluna (presumo, sem ter a certeza, que da Companhia do capitão Salgueiro Maia) teve a infelicidade de ser atacado por um enxame de abelhas e, bastante mordido no peito (levaria o dólmen aberto), com a avidez da fuga deixou ficar para trás a G3.
Uma solução para afugentar os insectos seria lançar granadas de fumo, mas com o peso do armamento ninguém estava para as carregar. E mesmo que as levassem, um fumozinho que fosse deitado ali denunciaria a nossa localização e seria a “morte do artista”!... Bem, a nossa presença no mato já o IN conheceria há uma infinidade de tempo, mas não havia necessidade de lha indicarmos com tanta precisão…
O Comandante da coluna, ao ter conhecimento do sucedido fez enviar uma equipa lá atrás para recuperar a arma, só que os insectos voltaram à carga e estabeleceu-se confusão e revolta, opiniões de que mais valia perder a G3 do que sujeitar tantos homens a arcar com outra emboscada “nos cornos”, ainda por cima na zona que nos causava uma carga psicológica acrescida devido aos insucessos passados. O soldado da espingarda perdida ficou com um número significativo de inchaços no corpo. Caiu na asneira de despir o dólmen e tentar afugentar ou esmagar as abelhas que se infiltraram por dentro e foi pior a emenda que o soneto. Estas mordeduras em quantidade têm efeitos idênticos aos das queimaduras na pele, geram a sua asfixia, pode ser fatais. Por fim, recuperou-se a arma depois de angustiante seca, ali nas barbas do Cufeu, e lá prosseguimos lentamente a nossa marcha. O inimigo a causar-nos baixas, desta vez, nem é o PAIGC, é a própria natureza a molestar-nos, parece que até os insectos repudiam a nossa presença…
A bolanha e a casa amarela ficam para trás. Começamos a respirar de alívio ao avistarmos Binta, ao entrar-nos nos ouvidos os ruídos da água do Cacheu. Há agora que esperar por viaturas vagas que nos transportem até Farim. Chega a vez dos nossos pelotões subirem para as Berliet. Ao vermos as casas da vila e a jangada que no dia seguinte nos poria na outra margem, rumo a Bissau, soubemos o que é um sonho transformado em realidade. Já tínhamos desacreditado que este cenário fosse possível.
Os populares olham desconfiados para o nosso aspecto miserável, mas nesta região já não deve ser nada a que não estejam habituados. Rumamos directamente aos balneários e sanitas, fazemos filas para nos dessedentarmos e para um retemperador duche e, claro está, voltamos a vestir a mesma roupa imunda, o mesmo calçado. A seguir, o pessoal vai direito ao rancho, nem que fosse um chispe enlatado viria mesmo a calhar, nem sei como conseguimos evitar os suicídios quando, cúmulo dos azares, servem aos soldados arroz com… salsichas (embora aqui fossem grelhadas)! Na messe temos melhor sorte, mas não me recordo da ementa do dia. O que nos apetece mesmo é sair do quartel e dar um giro à volta das casas civis, ver pessoas diferentes, não fardadas, desanuviar, procurar um bar, uma tasca, mas nestas figuras e sem dinheiro para nada, não iremos longe.
Empanturramo-nos de cerveja e mancarra, tudo à conta dos vales que mais tarde aparecerão na nossa Companhia para nos serem descontados no vencimento. Se bem me lembro, o salário de um furriel miliciano não atingia os seis contos. Em geral, e por opção, a parte maior era enviada para nossas casas ao cuidado de familiares, em escudos portugueses, e a outra era o que recebíamos em escudos guineenses (pesos). Julgo que, em geral, ficávamos na Guiné com cerca de dois mil pesos que, estando-se no mato, davam para o tabaco, despesas de bar e pagar à lavadeira. Bem, em Bissau, umas refeições fora e qualquer compra extraordinária, já justificavam o recurso aos “valores declarados” que mandávamos vir da metrópole (envelopes azuis, com notas lá dentro, que depois cambiávamos aos que tinham a habilidade e o “savoir-faire” para negociar com isso).
*
Nestes dezasseis ou dezassete dias em Farim e Guidaje (aqui, com o bar à míngua de produtos, excepto cigarros), a cada um de nós (sargentos, oficiais) foi descontado em média o equivalente ao nosso salário “guineense” de um mês, embora na secretaria tenham dividido os descontos por duas ou três mensalidades! O que seria se comêssemos!?
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 18 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6178: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (9): Os dias da batalha de Guidaje, 27 e 28 de Maio de 1973
Guiné 63/74 - P6200: Convívios (220): 27º Almoço da CCAÇ 2317, dia 5 de Junho em Paredes (Joaquim Gomes Soares)
1. O nosso Camarada Joaquim Gomes Soares, ex-1.º Cabo da CCAÇ 2317 / BCAÇ2835, Gandembel / Ponte Balana, 1968/70, enviou-nos, com data de 18 de Abril de 2010, uma mensagem solicitando a divulgação da festa da sua CCAÇ 2317:
Um Abraço,
Joaquim Gomes Soares
1º Cabo da CCAÇ 2317/BCAÇ2835
_________
Nota de MR:
Vd. último poste da série em:
20 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6194: Convívios (133): Encontro comemorativo da ida da CART 2732 para a Guiné, Funchal 10 de Abril de 2010 (Inácio Silva/Carlos Vinhal)
Guiné 63/74 - P6199: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (17): Velha bajuda para fazer conversa gira
1. Mensagem do nosso camarada Rogério Cardoso* (ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66), enviada em 11 de Abri de 2010:
NOTAS SOLTAS DA CART 643 (17)
A velha bajuda
Decorria o ano de 1964, Bissorã cada vez tinha mais movimento de tropas, zona bem perto da mata de Morés, ponto de passagem para diversos destinos, enfim havia um constante vai-vem de pessoal, o que fazia que o trabalho do vague-mestre e seus acólitos da cozinha fosse mais pesado, diga-se de passagem que de cozinha só tinha o nome, era simplesmente um telheiro que cobria as mesas, e dois caldeiros de ferro alimentados a lenha, tudo com uma higiene exemplar.
Se a ASAE ou outra instituição semelhante existisse na altura, era-nos concedido a medalha de "LIMPEZA EM TERRAS DISTANTES" cena digna de ser registada para ensinamento nas Escolas de Hotelaria.
Mas voltando ao trabalho da Companhia 643, para que houvesse um bom funcionamento do que atrás referi, as Companhias de Transporte afluiam a Bissorã com maior frequência, eram colunas de 10 a 15 Mercedes 322, que quqndo chegavam necessitavam de ser descarregadas.
O pessoal da cozinha era escasso e os operacionais andavam demasiadamente cansados, então havia que recorrer aos civis, normalmente eram recrutados a "gancho" nas populações que cruzavam a povoação.
Eles, os civis não gostavam muito de ajudar na descarga, porque pouco lhes davam, eles propositadamente deixavam cair uma ou outra caixa de batata, cebola, etc., para que no rescaldo apanhassem alguma coisa.
Entretanto o Vague-Mestre foi ligeiramente ferido num rebentamento de mina (Notas soltas da Cart 643 - P6034), sendo evacuado para Bissau, tendo o Cap. Silveira, Comandante da Companhia, ordenado para que eu tomasse o seu lugar por acomulação, temporáriamente.
Por coincidência chegava mais uma grande coluna de géneros, juntei alguns civis, tendo dito antes da descarga que se fosse rápida e sem malandrices, era-lhes distribuido arroz, farinha, batatas e conservas, como forma de pagamento.
De facto tudo correu com rapidez e eficiência, como antes nunca tinha acontecido, cumprindo eu o prometido, claro que fui logo alvo de grandes salamaleques, ficando eu tranquilo, o seu a seu dono.
Mas o melhor estava para aconteçer, um deles, salvo erro de etnia Manjaco, apareceu junto ao nosso alojamento e pediu para falar comigo.
Quando o vi julguei que ia pedir algo mais, mas enganei-me, era o contrário, ele abordou-me e falou-me deste modo:
- Ó meu Furrié, eu tem ronco para o Furrié - tendo eu agradecido sem saber o que era, julgando tratar-se talvez de uma peça de madeira, uma garrafa forrada a couro, ou outra peça regional.
Qual o meu espanto, quando ele me diz, tem aqui a minha irmã, julgando eu de repente ser sua mãe, ela vai tratar do Furrié, lavar roupa, fazer bianda com galina e também fazer conversa gira, vir para a tabanca aqui na outra banda, que era passando a ponte do Rio Armada.
Não esperava tamanha oferta de tais "serviços", a irmã no fim não era bajuda nenhuma, era sim a chamada "noiva", rapariga de mais idade, mas ainda sem homem, não sendo portanto "mulher grande".
E vá lá convencer o rapaz, eu disse-lhe que tinha já mulher na metrópole, respondendo ele que não fazia mal, podia ter mais como eles na Guiné, enfim foi o cabo dos trabalhos por não aceitar tal oferta.
Alguns camaradas assistiram à cena e passaram a dizer, este gajo tem cá uma sorte, a bajuda tem cá uns bacalhaus.
Rogério Cardoso
__________
Nota de CV:
(*) Vd. poste de 21 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6034: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (13): Perigo, mina na estrada Bissorã-Olossato
Vd. último poste da série de 16 de Abril de 2010
Guiné 63/74 - P6163: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (16): Comemorações do dia 10 de Junho de 1966 no Terreiro do Paço
NOTAS SOLTAS DA CART 643 (17)
A velha bajuda
Decorria o ano de 1964, Bissorã cada vez tinha mais movimento de tropas, zona bem perto da mata de Morés, ponto de passagem para diversos destinos, enfim havia um constante vai-vem de pessoal, o que fazia que o trabalho do vague-mestre e seus acólitos da cozinha fosse mais pesado, diga-se de passagem que de cozinha só tinha o nome, era simplesmente um telheiro que cobria as mesas, e dois caldeiros de ferro alimentados a lenha, tudo com uma higiene exemplar.
Se a ASAE ou outra instituição semelhante existisse na altura, era-nos concedido a medalha de "LIMPEZA EM TERRAS DISTANTES" cena digna de ser registada para ensinamento nas Escolas de Hotelaria.
Mas voltando ao trabalho da Companhia 643, para que houvesse um bom funcionamento do que atrás referi, as Companhias de Transporte afluiam a Bissorã com maior frequência, eram colunas de 10 a 15 Mercedes 322, que quqndo chegavam necessitavam de ser descarregadas.
O pessoal da cozinha era escasso e os operacionais andavam demasiadamente cansados, então havia que recorrer aos civis, normalmente eram recrutados a "gancho" nas populações que cruzavam a povoação.
Eles, os civis não gostavam muito de ajudar na descarga, porque pouco lhes davam, eles propositadamente deixavam cair uma ou outra caixa de batata, cebola, etc., para que no rescaldo apanhassem alguma coisa.
Entretanto o Vague-Mestre foi ligeiramente ferido num rebentamento de mina (Notas soltas da Cart 643 - P6034), sendo evacuado para Bissau, tendo o Cap. Silveira, Comandante da Companhia, ordenado para que eu tomasse o seu lugar por acomulação, temporáriamente.
Por coincidência chegava mais uma grande coluna de géneros, juntei alguns civis, tendo dito antes da descarga que se fosse rápida e sem malandrices, era-lhes distribuido arroz, farinha, batatas e conservas, como forma de pagamento.
De facto tudo correu com rapidez e eficiência, como antes nunca tinha acontecido, cumprindo eu o prometido, claro que fui logo alvo de grandes salamaleques, ficando eu tranquilo, o seu a seu dono.
Mas o melhor estava para aconteçer, um deles, salvo erro de etnia Manjaco, apareceu junto ao nosso alojamento e pediu para falar comigo.
Quando o vi julguei que ia pedir algo mais, mas enganei-me, era o contrário, ele abordou-me e falou-me deste modo:
- Ó meu Furrié, eu tem ronco para o Furrié - tendo eu agradecido sem saber o que era, julgando tratar-se talvez de uma peça de madeira, uma garrafa forrada a couro, ou outra peça regional.
Qual o meu espanto, quando ele me diz, tem aqui a minha irmã, julgando eu de repente ser sua mãe, ela vai tratar do Furrié, lavar roupa, fazer bianda com galina e também fazer conversa gira, vir para a tabanca aqui na outra banda, que era passando a ponte do Rio Armada.
Não esperava tamanha oferta de tais "serviços", a irmã no fim não era bajuda nenhuma, era sim a chamada "noiva", rapariga de mais idade, mas ainda sem homem, não sendo portanto "mulher grande".
E vá lá convencer o rapaz, eu disse-lhe que tinha já mulher na metrópole, respondendo ele que não fazia mal, podia ter mais como eles na Guiné, enfim foi o cabo dos trabalhos por não aceitar tal oferta.
Alguns camaradas assistiram à cena e passaram a dizer, este gajo tem cá uma sorte, a bajuda tem cá uns bacalhaus.
Rogério Cardoso
__________
Nota de CV:
(*) Vd. poste de 21 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6034: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (13): Perigo, mina na estrada Bissorã-Olossato
Vd. último poste da série de 16 de Abril de 2010
Guiné 63/74 - P6163: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (16): Comemorações do dia 10 de Junho de 1966 no Terreiro do Paço
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