
Queridos amigos,
Quem, como eu tantas vezes ouviu falar em Infali Soncó, fica desvanecido pelas recordações de Juvenal Cabral. O pai do mais renomado dos fundadores do PAIGC guardou um sem número de memórias dos seus tempos de Bafatá, ao tempo em que Amílcar Cabral aqui nasceu.
Como já observou o nosso confrade Leopoldo Amado, é indispensável ter em conta os valores por que se regiam homens como Juvenal Cabral, crédulos da sua civilização e até da sua superioridade cultural.
Um abraço do
Mário
Juvenal Cabral e as suas memórias de Bafatá (2)
Beja Santos


Já se escreveu como ele apareceu na Guiné, um quase adolescente, se atirou ao trabalho no funcionalismo em Bolama e depois como professor primário, percorrendo Cacine, Buba, Bambadinca e Bafatá. É aqui que vai nascer Amílcar Cabral. Desse período, Juvenal Cabral oferece-nos alguns dos seus melhores textos antes de regressar à ilha de Santiago. Oiçamo-lo a descrever a vila de Bafatá: “Centro comercial de primeira ordem, ergue-se em anfiteatro, risonha e próspera, no ponto em que o pequeno rio Colufi junta as suas águas às do volumoso Geba, cujas sinuosas margens foram testemunhas de interessantes acontecimentos históricos. Foi nas margens do imponente rio Geba que Infali Soncó mandou colocar arame farpado, na tentativa de impedir a passagem de embarcações e cortar todas as comunicações comerciais entre Bissau e Bafatá. Foi nas pitorescas margens desse caudaloso rio que filhos de Geba se reuniram em 1852 para planearem a revolta por meio da qual manifestaram o seu descontentamento e o seu protesto contra os prejuízos resultantes do privilégio concedido a Nicolau Monteiro de Macedo de, em exclusivo, explorar todo o comércio e navegação do rio Corubal. Foi ainda naquelas aprazíveis margens, à sombra de frondosas árvores, que a Fidalga de Fá – negra biafada, sedenta de civilização e doidamente apaixonada – se lançou nos braços do cabo-verdiano José Valério com quem, num idílio verdadeiramente rústico, celebrou o seu romance de namoro, cujo interessante epílogo foi a cedência aos portugueses de todo o território de Fá!”
A admiração de Juvenal Cabral pelo administrador Calvet de Magalhães era quase ilimitada. Exalta-o nas suas memórias como trabalhador incasável, homem de sociedade e acção que sobrepunha o interesse do serviço público ao seu próprio bem-estar. Calvet lançou-se em obras de fomento como a construção da ponte sobre o rio Colufi, e depois o mercado em estilo árabe, ao gosto dos muçulmanos. Juvenal Cabral confessa que Bafatá foi uma verdadeira escola para ele. Era professor oficial e subdelegado do Procurador da República. Recorda ainda outros administradores como Alberto Pimentel e mesmo João Barreto, autor da primeira história de Guiné. Depois espraia-se em histórias da sua vivência. É o caso de um homem que teria sido assassinado para as bandas de Selho, hoje em território do Casamansa. O administrador Saavedra Temes dirigiu-se ao local acompanhado por Juvenal, o chefe de posto aduaneiro, um amanuense e um escrivão foram de cavalo e seguiu também a filha de um régulo que vivia com o administrador. Lá foram à frente numa grande comitiva, com muitos fulas a pé, passaram por Contubo-El até chegarem a Sama Irondim. Ele escreve: não me cansei de admirar a paradisíaca beleza de alguns pontos do território da Guiné, onde jamais entrou uma enxada de lavrador para explorar, pela agricultura, as riquezas que o seu solo abençoado promete. Se toda a Guiné fosse cultivada, produziria géneros alimentícios excedentes das necessidades da metrópole, com a óptima vantagem de que Cabo Verde não teria necessidade de recorrer a Angola, quando acossados pela crise”. A chegada a Sama Irondim foi uma verdadeira apoteose. O cozinheiro levado de Bafatá preparou uma canja deliciosa. Bebido o primeiro garrafão de cinco litros, a comitiva mostrou-se ruidosa e festiva, com algumas imprecações de permeio, com os fulas a escutar tudo em silêncio. Depois o régulo pediu licença para fazer a sua festa, começou um batuque infernal. Seguiram-se alguns episódios brejeiros, como o súbito desaparecimento do administrador na companhia da filha do régulo. No dia seguinte, procedeu-se à identificação do corpo e o administrador mandou enterrar o cadáver.
O relato de uma batucada é feito com todo o fulgor: “Chegam os homens do tambor e, atrás deles, o dançarino, rapaz negro mas de formas correctas e gentis. Vem quase completamente nu mas no pescoço e nos braços ostenta argolas de metal; nos tornozelos, além de argolas, qualquer coisa de madeira cujo som, semelhando castanholas, nitidamente sobressai, a cada passo da dança, a cada passada do dançarino. Centenas de raparigas formam uma espécie de circunferência, cujo centro é o palco, onde o esbelto mancebo, num ritmo que seduz, numa agilidade que assombra, vai conquistar ovações estrondosas da plateia… ao matraquear ensurdecedor do tambor, das tábuas e das palmas, o dançarino, sobre quem incidem todos os olhares, salta de um lado para o outro, dá voltas ao recinto e baila sapateando com rapidez e perfeição… entretanto, um grupo de raparigas, num gesto que não pode dizer-se selvagem, porque foi realmente sublime e encantador, aproximam-se do seu Adónis, rodeiam-no como a um ídolo e ao mesmo tempo que dão palmas entoam uma canção, um hino de mística harmonia. Arte indígena? – Arte primitiva? Arte oriunda dos primeiros habitantes do Egipto? – Da Arábia? – Do Industão? Eu não sei…”. Esta colectânea de memórias termina com uma exaltação dos heróis da Guiné, onde aparecem nomes como Teixeira Pinto e Júdice Bicker.
As recordações cabo-verdianas são igualmente palpitantes, fazem hoje o deleite de qualquer etnógrafo ou etnólogo. Como nos parecem igualmente tocantes todos os seus textos sobre as crises e as fomes e os seus apelos para que o povo flagelado visse mitigado todo o sofrimento.
Também por isso se compreende o orgulho dos cabo-verdianos que reeditaram Juvenal Cabral para o mostrar como exemplo às gerações mais jovens, exibindo textos com importantes informações socioculturais e políticas que têm de ser lidas à luz do contexto em que foram formuladas.
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 1 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7064: Notas de leitura (152): Memórias e Reflexões, de Juvenal Cabral (Mário Beja Santos)