Fui ver quem era, mas ele não queria que eu lhe tocasse. Chamei mais alguns camaradas e levamo-lo, entre gritos de dor, pois tinha o corpo todo estilhaçado.
O fogo inimigo continuava.
O meu comandante de grupo mandou avançar a secção da retaguarda, para que nos viesse reforçar e retirasse o ferido que gemia em resultado das dores.
Só às 07H00 da manhã é que se começou a ver qualquer coisa.
Nós continuávamos sem apoio e tentamos retirar, com granadas de fumo.
Quando podemos retirar, trazíamos connosco 16 homens feridos e um morto. Havia ainda um desaparecido.
Quando eu regressei com o ferido ao comando do quartel onde se encontravam os enfermeiros, voltamos a ser atacadas fortemente.
Deitei-me, fazendo fogo com a minha arma automática, que entretanto desencravara. A certo momento esta foi atingida com uma bala no ponto de mira, cuja protecção desapareceu, ficando ainda pequenos bocados de metal por onde a bala tinha passado.
Felizmente voltei a salvar-me.
Os primeiros tiros do inimigo foram efectuados com uma arma pesada, com balas tracejantes, para melhor orientarem o tiro.
Antes de sofrermos esta emboscada, tínhamos passado por uma estrada toda armadilhada cerca de 300 homens e, por sorte, nenhuma das minas e armadilhas rebentou.
Como já disse, o primeiro morto que tivemos, logo no início do combate, foi um furriel que, logo nos primeiros tiros, um acertou-lhe na cabeça, tendo-lhe varado o capacete.
Quanto ao desaparecido, só demos por falta dele quando chegamos ao quartel. Como as evacuações dos feridos foram feitas de helicóptero, próximo do local da emboscada, pensamos nós que também tivesse sido evacuado.
Por fim, constatou-se que este tinha ficado por lá, no terreno da emboscada, ferido ou morto.
O corpo do Furriel Miliciano Vaz, foi colocado numa urna de chumbo comprada por nós, que foi chumbada em Cufar, seguiu para Catió, Bissau e dali para a Metrópole.
Obrigado pela atenção prestada, e as minhas desculpas se vos recordei tempos dolorosos.
3. Palavras do ex-furriel miliciano de Operações Especiais Mário Fitas:
“Caros camaradas! Queridos amigos! Companheiros da aventura que foi a participação na Guerra em terras da Guiné.
Estimadas senhoras esposas, filhos, netos e amigos destes nobres homens que, aos vinte anos, souberam cumprir a missão que a Pátria lhes exigiu.
Peço compreensão e entendimento para aquilo que vou dizer e que é de minha inteira e única responsabilidade.
Fiz a guerra com os meus companheiros na, à altura, Província Portuguesa da Guiné, internacionalmente reconhecida como tal, como parte do Estado Português.
Uma época mundialmente muito difícil.
A Guerra-fria estava no seu auge, as grandes potências digladiavam-se pelo controlo do mundo.
Em África nascia o movimento apelidado de Negritude, iniciando-se o aparecimento dos movimentos independentistas, com as potências Europeias a abandonarem de qualquer maneira África, que ficava à mercê de disputas étnicas e de que resultaram os graves problemas ainda hoje vividos.
Julgo ter cumprido o compromisso de cidadania, totalmente consciente, sem ter em consideração qual o poder político vigente na altura.
Resumi-me como disse a cumprir um dever, independentemente das minhas ideias.
Hoje passados que são 46 anos, com conhecimentos muito mais completos de toda a situação da guerra e os motivos a que a levaram, posso afirmar com firmeza que todos perdemos.
A guerra é a invenção mais estúpida da humanidade. Mas estivemos nela. Estando nela tivemos de a fazer. Opção zero: Ou matávamos ou deixavam-nos matar!
Esta preliminar explicação tem razão de ser derivado às várias situações que hoje nos são postas:
Nós soldados combatentes fomos sempre ignorados! Fomos e somos hoje achincalhados por senhores generais que estiveram na mesma guerra na Guiné, enchendo o peito de condecorações à custa do valoroso soldado Português e acusando-os de serem bandos dentro do arame farpado.
Por militares, políticos, pseudo-escritores analistas de profissão (treinadores de bancada), mas com eco em alguma comunicação social, a quem muitos de nós ajudámos a dar a liberdade de poderem falar. Somos hoje alcunhados de ter feito parte de um exército fascista.
Sobre nós são lançados labéus acusadores de termos deixado na Guiné uma miserável herança ao General Spínola.
Ignorantes do passado, ou não, dizendo a verdade: Enganam-se!
O contrário pode ser confirmado a partir da página 175 do livro: “O meu testemunho” de Aristides Pereira - Secretário-geral adjunto do PAIGC e mais tarde Presidente da Republica de Cabo Verde -, sobre a situação do PAIGC, de 1966 a 1968.
Toda essa situação foi resultante de quem actuou na Guerra antes de Spínola.
Quanto a nós! Os últimos homens de farda amarela, mas de camuflado, basta referir o descrito no prefácio de “Pami na Dondo A Guerrilheira”, página 10, cito:
“O Governador e comandante-chefe na altura, chegou a confidenciar a alguém que se tivesse seis (6) Companhias como a CCAÇ 763 o problema da guerrilha estaria resolvido.”
Quem foi alcunhado de “LASSAS” pelo próprio chefe da guerrilha no Cantanhês, Zona 11, e mais tarde Presidente da Guiné-Bissau João Bernardo Vieira (Nino)?
Cumprimos aquilo que a Pátria nos pediu e os políticos não souberam resolver. Não deitámos para o caixote do lixo quinhentos anos de História.
Só estes homens que aqui estão, poderão contar o que foi a sua juventude com uma G3 na mão, construindo um aquartelamento de raiz, porque os primeiros três meses em Cufar, foram vividos nos buracos como toupeiras.
Só quem viveu os dolorosos momentos da C.CAÇ. 763, tem autoridade para falar do que é: “Ser nobre na Paz e na Guerra” e a forma como irmãmente por nós foi tratado todo o povo da Guiné.
A História um dia mostrará toda a verdade e compreenderá os caminhos das margens do Cumbijã, das matas de Cufar Nalu, Camaiupa, Àfiá, Cachaque, Cantumane, Cabolol, Flaque Injã, Caboxanque, Cadique, Cafal, Darsalame e Cachanga.
Foram os nossos caminhos queridos camaradas! As nossas pegadas marcaram indelevelmente todos estes trajectos.
Há quinze dias estive com homens que a determinada altura nos acompanharam nos citados caminhos e que mandam um grande abraço de saudade para todos nós. São os homens da C.CAV. 1484.
Agora:
Para vós! Esposas, companheiras amantes e amigas!
Para vós! Filhos, netos e amigos adorados, destes “Cotas” combatentes.
Estes homens são dignos de respeito. Se a Pátria e aqueles que a não quiseram servir os tem ignorado e abandonado, aceitai-os vós pelo seu sangue suor e lágrimas com que regaram a terra vermelha, a lama dos pântanos e rios, e as águas das bolanhas da Guiné.
Viva a C.CAÇ. 763!
Vivam os LASSAS de Cufar!
4. Palavras do ex-alferes miliciano Jorge Paulos:
Caros Companheiros, Amigos e Familiares,
Mais um ano se passou sobre a última vez que nos juntámos para almoçar, confraternizar e relembrar os momentos que, em conjunto, andámos pelas terras da Guiné vivendo aquela aventura de uma guerra, rastejando nas matas e atravessando linhas de água, tarrafos e bolanhas, com água e lodo pelos pés, pela cintura ou mesmo pelo peito, em que, a todo o momento, sentíamos a presença de um “inimigo numeroso, aguerrido e bem armado”, que, naturalmente, nos causava angústias e sobressaltos que era preciso vencer.
Guerra que nunca desejámos mas que enfrentámos com determinação e coragem porque, enquanto portugueses, o país assim nos exigia. E digo exigia porque, quer quiséssemos quer não, tínhamos de ir arriscar as nossas vidas, sem que nunca nos tivessem dito bem para quê.
Porque a verdade, companheiros, é que muitos lá morreram e muitos outros ficaram afectados para toda a vida, sem que jamais o país tenha verdadeiramente reconhecido e compensado esses enormes sacrifícios.
Pelo contrário, as gerações seguintes, que tem estado de uma forma ou doutra no poder e por ele continuam a lutar, querem lá saber que a vida que hoje têm e que é incomparavelmente melhor do que foi a nossa, tenha resultado, em grande parte, do nosso sacrifício e do nosso árduo trabalho. Hoje, o que conta, é o interesse pessoal, como se pode ver pelas medidas cegas que vão ser tomadas e que afectam, entre outras coisas, as reformas, tornando a vida dos mais idosos muito mais difícil.
Quando vemos a juventude actual, que só tem tido facilidades, vir para a rua gritar que estão “à rasca”, temos de sorrir e pensar que, de facto, eles não sabem nem sonham o que é estar “à rasca”.
Mas Companheiros, não vale a pena lamentar a escuridão; o que é preciso é acender o fósforo para podermos ver de novo.
Como dizia um político francês “os pessimistas são meros espectadores, os optimistas são quem transforma este mundo”.
Habituados, como fomos, a lutar contra a adversidade, lembremos os momentos difíceis porque passámos, mas tenhamos também a satisfação de, apesar de tudo, podermos estar aqui e agora, de novo, a festejar a vida com a família e os amigos.
É bom aproveitarmos, ao máximo, estes pequenos momentos, porque também a abelha é pequena e, todavia, produz o que de mais doce existe.
Até para o ano Companheiros e felicidades para vós e para as vossas Famílias.
Viva a Companhia de caçadores 763 !!!
Jorge Paulos
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Nota de M.R.: