Capa do livro "Nós, enfermeiras paraquedistas", org. Rosa Serra, prefácio do Prof. Adriano Moreira, 2ª ed. Porto: Fronteira do Caos, 2014 439 pp.
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Fevereiro de 2015:
Queridos amigos,
Está aqui o melhor do que até hoje se publicou sobre as nossas extremosas enfermeiras.
Depõem na primeira pessoa do singular, vão cativar-nos. Obviamente que nem tudo é inesperado, esta bibliografia já não é tão pequena quanto isso, mas o arco histórico aparece totalmente preenchido, a Guiné tem páginas desenvoltas, histórias assombrosas, há episódios em que acompanhamos as lágrimas das narradoras, são coisas muito nossas, estão ali bem impressivos códigos de sofrimento que sabemos entender.
Este livro é de leitura obrigatória e é um documento imorredoiro, obrigatório, do que elas sofreram e viram sofrer.
Honra às enfermeiras paraquedistas portuguesas!
Um abraço do
Mário
Nós, enfermeiras paraquedistas
Beja Santos
“Nós, Enfermeiras Paraquedistas”, coordenação de Rosa Serra, Fronteira do Caos, 2014, é seguramente, entre a bibliografia já publicada sobre as extremosas mulheres que acudiam aos militares em sofrimento na guerra que travámos em África, a obra mais abrangente, mais exaustiva e mais terna. Temos aqui as enfermeiras na primeira pessoa, com os seus registos de compaixão e brandura. Homenageando os socorristas das unidades de combate, logo no pórtico da narrativa, dizendo:
“Eles acompanhavam os combatentes pelas picadas, apeados ou em viaturas, em colunas de todos os tipos ou em operações penosas ou arriscadas. Na sua quase totalidade tinham escassos conhecimentos de enfermagem e dispunham de meios materiais reduzidíssimos para prestarem os primeiros-socorros aos seus camaradas feridos ou doentes. Atuavam sempre em estado de tensão nervosa. Eram geralmente os primeiros a chegar junto dos seus companheiros feridos, prestando-lhes o primeiro auxílio, tantas vezes debaixo de fogo intenso! Em algumas ocasiões, os socorristas também eram o seu único resguardo, protegendo-os, em prejuízo da sua própria segurança”.
Só gente de qualidade se lembraria desta homenagem, porque a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam.
Este livro é um extraordinário compêndio da ética do cuidado, neste caso nos afãs da guerra. Elas contam como foi, as suas origens, o que as levou a decidir uma profissão na saúde, como se processou a preparação militar, como se adaptaram aos serviços de saúde militares e depois como rumaram para África. Decidiram pôr por escrito experiências inolvidáveis, tantas vezes dolorosas, descrevem o trágico e o profundamente íntimo, entre sorrisos e lágrimas: os primeiros dias em África, as primeiras missões de serviço, as primeiras comissões, preponderam as narrativas a partir de Bissau e de Mueda, fala-se do apoio às populações e os episódios ficam mais acalorados com as evacuações, saltar do helicóptero e presenciar a tragédia, confortar um soldado com o pé esfacelado que responde com sentida emoção: “Senhora enfermeira, com pé ou sem pé, estou vivo. O que me preocupa é a dor da minha mãe”; e há as evacuações de longo curso, conferidos em delírio, outros absortos, em estado de choque, porque perderam as pernas ou as mãos; e há a consciências nos riscos que viveram; aterragens forçadas no meio do inimigo e até a visão da morte de uma outra enfermeira como foi o caso da Celeste, em plena base de Bissalanca, uma enfermeira depõe:
“A pouco mais de um metro de um DO-27, corpo brutalmente danificado, reconhecemos ser a Celeste, já cadáver. Olhámos para ela, e tinha um corte profundo desde o queixo, passando pelo meio da cabeça, e terminava na parte posterior da omoplata; o braço estava preso por alguns tendões, ou nervos. Olhámos para o lado e vimos a massa encefálica espalhada por ali. A Eugénia e eu sem abrirmos a boca, e mesmo em choque, reagimos de imediato e começamos a apanhar a massa encefálica…”.
Estes depoimentos são um presente valiosíssimo para a história da guerra, um trabalho muito bem sistematizado onde não faltam os aspetos humanos, os episódios mais rocambolescos, a presença do feminino num espaço tipicamente masculino. E há o jeito de contar, envolvente, como se estivéssemos todos à volta de uma lareira e se desfiassem aquelas histórias que já conhecemos por outras bocas mas que aqui riscam como diamante. É o caso da narrativa e que se parte para uma evacuação em Gadamael-Porto, após a aterragem a enfermeira vê aproximar-se um militar, é um alferes que comunica que o capitão morreu, a enfermeira com a ajuda dois ou três militares prepararam o corpo. Quando a maca é levada até ao avião, levanta-se um tumulto, um protesto: “O nosso comandante não sai daqui sem um velório digno, feito por nós!”.
O alferes soluça, debulha-se em lágrimas: “…Desculpe, senhora enfermeira, desculpe…”.
E as lágrimas continuavam correndo livremente pelo seu rosto. E a narradora despe a alma, sente-se tocada pelos militares de Gadamael terem visto que ela também sentira um profundo desgosto pela morte do seu capitão:
“E reparei que houve neles um sentimento de gratidão, não apenas por ter ajudado a compor e a dar dignidade ao cadáver, mas também por me ter disposto a assumir a responsabilidade de fazer aquilo que, e eles sabiam-no, as normas não permitiam. Naqueles momentos em que percorremos a distância entre a improvisada morgue e a pista, todos os militares e eu própria nos sentimos envolvidos pela mesma emoção, como se um invisível abraço de partilha e aconchego nos unisse nesse pesado episódio. Depois descolámos em direção à nossa Base, informando o piloto que o ferido tinha morrido. Tocou-me e comoveu-me muito a admirável atitude da guarnição de Gadamael-Porto. Foi tal o apreço por aquele gesto que ainda hoje, ao descrevê-lo me comovo ao lembrar tão elevados sentimentos que aqueles militares demonstraram em relação ao seu comandante”.
De tudo encontramos nestes relatos: guerrilheiros agradecidos, reconhecimentos de civis, alguém que pede o último cigarro, enfermeiras feitas madrinhas de guerra.
O prefácio do professor Adriano Moreira vem à altura deste monumental trabalho sobre as enfermeiras paraquedistas:
“No caso português, esta iniciativa levou à criação das Enfermeiras Paraquedistas, devida ao general Kaúlza de Arrigada, ainda teve que vencer a resistência cultural que se traduzia em que nem Jefferson, na Declaração de Filadélfia, conseguiu eliminar, que era a condição separada, jurídica e socialmente inferior, das mulheres. A sua persistência conseguiu vencer, e certamente foi uma iluminação coletiva da Nação em armas, verificar a resposta decidida, corajosa, exemplar, das voluntárias que entraram na história por direito, não apenas pelo contingente, mas individualizadas, orientadas pelo saber de que cada ser socorrido, em condições inesperadas de risco e de também escassos recursos, é um fenómeno que não se repete na história da humanidade”.
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Notas o editor
(*) Vd. poste de 23 de Fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14287: Agenda cultural (381): Está de novo à venda o livro "Nós Enfermeiras Paraquedistas", que tem apresentações marcadas em Aveiro, no dia 26 de Março, e no Porto, no dia 9 de Abril
Último poste da série de 27 de Fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14306: Notas de leitura (685): “Crónica do descobrimento e conquista da Guiné”, por Gomes Eanes da Zurara, adaptação de Frederico Alves, edição da Agência Geral das Colónias (2) (Mário Beja Santos)