1. Já não temos notícias, desde 23 de setembro de 2011, há seis anos (!), do nosso camarada Vítor Junqueira (ex-alferes miliciano da CCAÇ 2753, Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá, 1970/72), hoje médico, reformado, e a viver em Pombal. Foi o organizador do II Encontro Nacional da Tabanca Grande, em 2007, em Pombal.
Ele tem
64 referências no nosso blogue e escreveu alguns dos nossos melhores postes... Em 30 de novembro de 2010 disse-nos, numa nota deixada na caixa de comentários (*) que estava bem de saúde e "conectado"... Sabemos pelo seu gosto pelas viagens, ou não fora ele, noutras vidas, oficial da marinha mercante. É seguramente um daqueles nossos camaradas que já deu várias vezes a volta ao mundo...
Lembrei-me dele e, sem pedir-lhe licença, vou republicar aqui um dos textos mais saborosos que ele nos deixou e que os nosso "periquitos" (os membros da Tabanca Grande entrados nos anos mais recebtes) têm também o direito (e a obrigação) de conhecer...
Já na altura, considerei a história da sandocha de "cabrito pé de rocha, manga di sabe" como uma daquelas histórias dos nossos encontros e desencontros com aqueles povos amigos e hospitaleiros da Guiné, que um dia teria de figurar na antologia do nosso blogue!... (Ele não me chegou a mandar, e ainda bem, a receita do "cabrito pé de rocha, manga di sabe"). (**)
2. Cabrito pé de rocha, manga di sabe
por Vítor Junqueira
Quando a minha Companhia [, a CCAÇ 2753,] aterrou em Bissau, após uns dez dias de viagem no velho N/M T/T (era mais ou menos esta a sigla para navio motor de transporte de tropas) Carvalho Araújo (#), fomos acolhidos no cais do Pidjiguiti por malta que eu não conhecia de lado nenhum, que soltava uns piu-piu esquisitos cuja razão de ser não entendia.
Soube ali que eram os choferes, velhinhos, das camionetas que nos haveriam de conduzir ao destino. As viaturas, alinhadas em coluna ao longo do cais, estavam a ser carregadas enquanto as entidades superiores tratavam da papelada. Até ao desembaraço da Companhia, e enquanto carrega, não carrega, os piu-piu acossavam-nos de todos os lados. Comecei a ficar enervado e com apetite!
Naquela zona portuária, que se poderia chamar marginal da Amura, existiam umas tabernas semelhantes às que poderíamos encontrar em qualquer lugar do Portugal de então: um garrafão de cinco litros ou um ramo de louro pendurado na frontaria, e uma tabuleta com os dizeres "casa de pasto, vinhos e petiscos".
Seriam para aí umas quatro da tarde quando entrei numa delas. Pela primeira vez na vida dirigi-me a alguém de outra... etnia. A situação era nova para mim e um pouco estranha. Meio
tonhó, perguntei num português escorreito e pausado a uma negra, com estatura de bisonte, que se encontrava sentada num mocho do lado de dentro do balcão:
– Boa tarde, minha senhora, tem alguma coisa de que possa fazer uma sandes?
– Tem. Tem sim. Olha, tem
cabrito pé de rocha, tem...
– Cabrito?
– Sim, cabrito, é muito bom. Ainda está quente.
Virou-me as costas e dirigiu-se para um canto da baiúca de onde regressou com um pequeno tacho de barro na mão contendo uns pedacitos de carne guisada, com bom aspecto e um cheiro capaz de fazer um morto babar-se. Perguntou-me o que queria beber e falou-me em coisas estranhas, Fanta, Coca-qualquer-coisa... Pedi uma laranjada.
Ali fiquei encostado ao balcão a vê-la rasgar a carcaça e nela acomodar o conduto. Ia magicando com os meus botões o quanto as aparência iludem. Aquela mulher enorme era um monstro de simpatia, nos gestos, no brilho do olhar, na doçura da voz. Acho que começou ali a minha paixão pela Guiné. Serviu-me com delicadeza numa pequena mesa de pinho, carunchosa e coxa, que só se mantinha de pé porque estava encostada à parede.
Comi. E que bem me soube. Ao fim de tantos dias a comer a lambeta de bordo, que nem era má, mas à qual o balanço do navio retirava todo o requinte, aquele petisco caiu-me que nem ginjas. Paguei em escudos, recebi o troco em pesos e saí animado com a perspectiva das vindouras patuscadas de
cabrito pé de rocha que já se perfilavam no meu horizonte de expedicionário. Fosse parar aonde quer que fosse, não faltaria caça daquela, pois se até na cidade se encontrava ao dispor... Aquele cabrito era mesmo delicioso. E o apelido
pé de rocha? Devia estar relacionado com o habitat do animal. Altas montanhas com os picos cobertos de neve, pensei eu. O
Kilimanjaro devia ficar ali perto, provavelmente.
Juntei-me ao resto da guerra, a quem dei conta das minhas descobertas e lá vou com a tropa toda, sob um altíssimo astral, direito ao AGRBIS (eu sabia lá o que isso era!). À nossa espera estava um hangar, sem portas, sem janelas, sem luz e com milhões de mosquitos, gordos e ferozes. Nos oito dias seguintes dormimos em cima dos ferros das camas porque colchões também não havia para distribuir. E quanto à
bianda, ração de combate ao almoço, ração de combate ao jantar. Sobremesa, sempre à base de
mancarra que umas garotas apareceram por ali a vender dentro de uns penicos que transportavam à cabeça.
O problema maior era a água. Na altura grassava uma epidemia de cólera no território pelo que nos aconselharam a beber só água engarrafada. Resultado, ao terceiro dia estava não só falido, como via as dívidas a acumularem-se. É que a única água engarrafada disponível que havia era a Perrier, usada no tratamento do
whisky, que eu comprava a oitenta mil réis cada garrafa, no bar dos oficiais do Depósito de Adidos que ficava ao lado. Escusado será dizer que, por essa razão ou outra qualquer, houve caganeiras monumentais.
E eis que recebo guia de marcha para ir comandar os destacamentos de
Safim e
João Landim.
Força instalada, faço o reconhecimento da zona e concluo que no que respeita a infra-estruturas de apoio como tasca, restaurante, animação (batuque e bajudas), posso considerar-me um homem de sorte. Tenho ao dispor um fundo de maneio e o seu parente, o inevitável
saco azul. Agora sim, tinha qualidade de vida. Permitíamo-nos comer quase
à la carte. Além disso, por ali não se ouviam tiros. Perfeito...
É neste contexto que, estando um dia a bater uma galharda sesta, sou acordado subitamente por um militar que me vem perguntar se pode ir lá fora dar um tiro com a G3...
– A quem? – perguntei.
– Não sei bem de que se trata – diz ele – É um gajo da população que está ali à porta de armas a pedir que vá alguém à tabanca abater uma peça de caça.
– Alto e pára o baile – disse eu, meio desconfiado. – Quem lá vai sou eu.
Visto os calções num ápice, enfio os chinelos, pego na
canhota que tinha dependurada à cabeceira da cama e, todo nervoso, antecipando um presunto de gazela para o tacho, dirijo-me ao cavalo de frisa que servia de porta de armas.
Lá estava o homem. Pareceu-me inofensivo. Pediu-me que o seguisse, enquanto, num crioulo que eu já começava a entender, me explicava que se tratava de um
cabrito pé de rocha que andava por ali a vaguear. Nisto aponta para o cocuruto de uma árvore e diz:
– Pessoal, olha ali. Por favor mata ele...
Fiz um único disparo. Aos meus pés caiu um
bruto babuíno (macaco-cão) que devia pesar para aí uns trinta quilos.
Dispensei a minha quota-parte da caçada! (##)
Vítor Junqueira (***)
[Revisão / fixação de texto: LG]
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Notas do autor:
(#) Esta foi a última viagem do Carvalho Araújo. De Lisboa para Bissau, navegou notavelmente adornado a estibordo. No regresso, ouvi dizer que chegou pelo seu pé a Cabo Verde, tendo sido depois rebocado até ao seu destino final.
(##) Voltei a comer cabrito pé de rocha, muitos meses depois e, desconhecendo a ementa, numa acção de Psico. Outra delícia! Um dia destes mando a receita.
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Notas do editor:
(*) 30 de novembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P7363: Que é feito de ti, camarada ? (1): Prakistou, diz o Vitor Junqueira, mas não desconectado
(...) Pois, meus caros, eu
prakistou, mais ou menos bom de corpo, de cabeça, dirão vocês e, não é verdade que ande por aí, meio perdido, meio desconectado.
Estou convosco todos os dias, normalmente mais do que uma vez por dia! Aprecio a matéria dada, revejo-me nalguma prosa e, tacanho que sou, apenas pressinto na verve a corda lírica, vibrante e fácil, dom de apenas alguns tertulianos. (...)
(**) Vd. poste de 11 de novembro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): "Cabrito pé de rocha, manga di sabe" (Vitor Junqueira)
(***) Último poste da série > 24 de outubro de 2017 >
Guiné 61/74 - P17901: (De)Caras (99): o comandante do BCAV 2868 (Bula, 1969/70), o ten cor cav Carlos José Machado Alves Morgado, mais o com-chefe António Spínola, em Pete, em 9/11/1970 (Victor Garcia, ex-1º cabo at cav, CCAV 2639, Binar, Bula e Capunga, 1969/71)