Estação de Mogadouro
1. Em mensagem do dia 31 de Janeiro de 2018, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos mais um texto sobre Brunhoso, desta vez lembrando as viagens de comboio até ao Porto nos anos 60 e 70.
Brunhoso há 50 anos
13 - Viagens de comboio ao Porto
Vamo-nos entretendo com histórias, como os meninos que já fomos há muitos anos, e gostamos delas com muitos feitios gostos e temperos: suaves, doces, avinagradas, românticas, de viagens, eróticas, guerreiras, dramáticas, trágicas, apimentadas ou humorísticas.
Esta é uma estória que pretende falar das grandes viagens de comboio que eu e os meus conterrâneos fazíamos desde Brunhoso, essa aldeia perdida entre as dobras da paisagem transmontana do nordeste, até ao Porto, seguindo o percurso dos rios Sabor e Douro, sobretudo nas décadas de 60 e 70, quando para além dos emigrantes as pessoas se começavam a deslocar mais para estudar nos seminários ou colégios distantes, para cumprir o serviço militar, outros por alguma diversão, outros por negócios, outros porque tinham conseguido trabalho na cidade grande.
Da aldeia à estação de caminhos de ferro de Mogadouro que ficava num descampado, eram catorze quilómetros, que tinham que ser feitos num carro de praça. Lá apanhávamos um comboio pequeno e antigo, puxado por uma locomotiva a vapor, com carruagens em madeira, incluindo os assentos, lento nas curvas, nas descidas e nas subidas. Mais tarde automotoras um pouco mais rápidas, mais cómodas, mas mais pequenas, substituíram o velho comboio. Da estação de Mogadouro até ao Pocinho a viagem na linha do Sabor fazia-se por encostas e montes a alguma distância do rio e longe da sua vista. O rio só se tornava visível já depois de Moncorvo, na foz, quando alargava o leito ao encontrar-se com as águas do Douro e o comboio ia estabilizando a sua marcha ao atravessar a ponte perto da estação do Pocinho. Depois a confusão e a pressa habitual para mudar as malas de cartão, os sacos de batatas e de hortaliças, as galinhas, os presuntos, salpicões, linguiças, os garrafões de vinho e outros bens que muitos levavam para si próprios ou para os filhos e parentes, para o comboio maior da linha do Douro que nos levaria até à estação de S. Bento no centro do Porto.
O comboio da linha do Douro somente era maior porque a falta de comodidade era a mesma, do comboio da linha do Sabor, quente ou frio conforme as estações do ano, muito frio no Inverno, muito quente no Verão. Nas estações da CP seguintes, entrariam mais passageiros igualmente carregados de bagagens e sobretudo no tempo das festas do Natal, da Páscoa, no principio e fim das férias, esses comboios ficavam a abarrotar, sendo muitos deles obrigados a fazer toda a viagem de pé.
Linha do Sabor
O comboio segue pelo vale do Douro, bem próximo do percurso do rio, no meio dessa paisagem sublime, que para nós habituados a viver no meio da natureza eram caminhos da vida, bem difíceis de andar e trabalhar como os dos nossos montes e vales, que percorríamos sem lhes exaltar a beleza. Somente ao entrar em terrenos do distrito do Porto, no concelho de Marco de Canaveses, o comboio abandona as margens do rio.
Linha do Douro
No Tua recebia muitos passageiras da linha com o mesmo nome e na Régua recebia também muitos passageiros da linha do Corgo.
Linha do Tua
A Régua era a maior cidade da linha do Douro e tinha a maior estação de comboios de Trás-Os-Montes, terra com muito movimento, capital do Vinho Fino, como os velhos lavradores do Douro designavam o vinho que produziam nos socalcos das suas encostas e que os comerciantes do Porto e os ingleses baptizaram impropriamente de Vinho do Porto. Entre a Régua e o Porto existiam ainda algumas estações de caminhos de ferro com bastante movimento e o grande nó ferroviário de Ermesinde, onde as linhas do Douro e do Minho confluem para seguir a mesma rota até ao Porto que se aproxima. A Estação de S. Bento no terminus da viagem onde os viajantes depois de saírem dos comboios são recebidos com fidalguia no grande salão nobre da cidade, imponente com o seu tecto alto e trabalhado, as janelas grandes e artísticas e as paredes enormes decoradas com azulejos, que reproduzem belos quadros históricos da Cidade e da Nação. A Estação de S. Bento ergue-se em beleza e grandiosidade como símbolo da hospitalidade, dos comerciantes, dos artistas e dos burgueses da cidade do Porto, a todos os viajantes nacionais ou estrangeiros.
Estação da Régua
Todos os transmontanos das terras grandes e mais pequenas sentiam uma grande atracção pela cidade do Porto, onde gostavam vir pela sua grandeza, pela sua beleza, pelos seus limites fluviais e marítimos, pelo contacto com outras gentes, pela variedade de produtos comerciais disponíveis para a lavoura e outros actividades. Também pelo prazer de se sentirem a viver e a fazer parte duma grande comunidade de homens e mulheres e experimentarem essa envolvência, no meio da azáfama e do movimento que se sentia nas suas praças, ruas e avenidas, como algo novo e raro.
Estação de S. Bento
Próximo da estação de S. Bento, situada bem no centro da cidade, para comer havia bons restaurantes que alguns entre eles frequentavam: a Regaleira, a Abadia, o Onix, a Flor dos Congregados, o Girassol, o Leal, o Palmeira, a Viúva, o Romão e outros. Para conviver e beber um copo com os amigos havia os cafés Imperial, O Guarany, o Embaixador e a cervejaria Sá Reis.
Para outro tipo de vivências que alguns gostavam de experimentar havia outros cafés, bares, casas de "passe" nas ruas Cimo de Vila, Banharia, dos Caldeireiros, Escura, Bonjardim, etc.
Na Rua do Almada havia a boite e casa de fados Candeia muito frequentada por soldados, marinheiros, rufias, estudantes, doutores, comerciantes e burgueses. Ao tempo era a casa de diversão nocturna mais importante da cidade.
O comércio, tal como hoje, espalhava-se por estas ruas já referidas e outras tais como Rua de Santa Catarina, Sá da Bandeira, Santo António, Rua do Bonjardim, Rua de Cedofeita e muitas outras.
Nesses anos era frequente encontrar na Sá Reis ou no Imperial, o Dr. António, um advogado bom bebedor de cerveja, simpático e conversador, grande proprietário de Mogadouro, com casas também no Porto, que gostava de esperar a chegada dos comboios de Mogadouro, para falar com os conterrâneos.
Nos anos próximos do 25 de Abril, antes e depois, recordo-me que havia muitos estudantes e alguns, poucos funcionários bancários e públicos, de Brunhoso no Porto, que se juntavam inicialmente no café Bissau, na rua de Cedofeita, mais tarde no café Encontro na rua do Rosário.
No bar do Hotel Paris, na rua da Fábrica, sobretudo à noite e também por vezes à tarde, nos fins de semana, juntavam-se muitos transmontanos, alguns de passagem e lá hospedados e muitos outros a viver na cidade, Eram transmontanos sobretudo do Nordeste: Bragança, Miranda, Mogadouro, Moncorvo, Vila Flor. Havia alguns, poucos, beirões, minhotos e galegos. O Hotel era propriedade de três galegos. O Constante o mais novo e mais simpático, por vezes atendia no bar, sendo o homem do bar mais habitual o Mota, um minhoto sempre bem disposto de Cabeceiras de Basto, que também tinha uma pequena quota na sociedade. Tomava-se café, bebiam-se algumas cervejas, discutiam-se as últimas novidades politicas e futebolísticas, jogava-se a sueca e por vezes comiam-se alguns petiscos que o Mota cozinhava.
Recordo-me das viagens de regresso a casa como sendo mais agradáveis, comboios mais livres com menos gente e menos confusão de bagagens. Mas feitas geralmente mais tarde no dia, no Verão o vale do Douro era um inferno e pelas janelas abertas entravam golfadas de ar quente.
Na estação de Valongo havia mulheres a vender regueifa, na estação da Pala vendiam pequenas bilhas de barro com água duma fonte fresca e na estação da Régua vendiam os rebuçados da Régua. Essas mulheres com os seus pregões e os seus produtos davam mais colorido e animação à viagem.
Praça da Liberdade - Porto - Homenagem a D. Pedro IV e aos Mártires da Liberdade, entre os quais o ilustre matosinhense António Bernardo de Brito e Cunha (1782-1829), condenados à forca pelo regime Miguelista e enforcados nesta mesma Praça em 7 de Maio de 1829 (CV)
Nos dias e meses após a Revolução de Abril de 1974, os moradores do Porto tinham por hábito juntarem-se em grupos na Praça da Liberdade, de volta da estátua de D. Pedro IV a falarem, uns talvez a tentar compreender a politica e os acontecimentos políticos que corriam a muita velocidade, outros a procurar doutrinar os menos informados. Eu que não tenho muito gosto nem jeito para falar em público, um dia resolvi entrar numa discussão com outro cidadão e logo alguns fizeram uma roda como era habitual. A discussão mais ou menos política já decorria há algum tempo quando ao deitar um olhar pela assistência vejo o meu pai e o meu tio Aragão, que teriam desembarcado há pouco na Estação de S. Bento, muito atentos e interessados. Quando acabei, e os fui cumprimentar, embora ciente que as minhas ideias politicas eram diferentes das deles, não me fizeram criticas desfavoráveis. Pela atenção deles fiquei convencido que o principal motivo que os tinha trazido ao Porto tinha sido tentar compreender a situação política. Ao encontrarem logo o filho e sobrinho a arengar na praça pública, terão pensado que tinham ali um politico e futuro deputado para os defender no futuro. Para possível desilusão deles, esta minha intervenção pública terá sido talvez a última, e a minha carreira política acabou aí.
Brunhoso era afinal ali ao lado, tão perto do Porto, somente a seis ou sete horas de comboio, que os homens, apesar da pouca comodidade, faziam com mais prazer do que ir à azeitona ou fazer a sementeira
A linha do Sabor já foi abandonada há mais de trinta anos. A linha do Douro acaba no Pocinho, tendo sido abandonado o troço até Barca de Alva na fronteira com Espanha. Políticas, ao tempo indiscutíveis, segundo os governantes que tomaram essas medidas.
Sem o som do comboio a subir a serra e do apito que o anunciava, o Nordeste Transmontano foi ficando mais abandonado e silencioso. Faz-me lembrar a beleza triste do olhar duma pauliteira jovem que ficou tal como uma moura encantada (que também lá as houve) por terras de Mogadouro e Miranda.
Comboios do Sabor e do Douro que ainda me transportam ao passado, e trazem tantas recordações!
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Nota do editor
Último poste da série de 2 de março de 2017 >
Guiné 61/74 - P17097: Brunhoso há 50 anos (12): As casas e as gentes (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)