Paulo VI em Fátima
Com a devida vénia a Renascença
1. Em mensagem do dia 6 de Julho de 2020, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66), enviou-nos um texto a que deu o título: Há 50 anos: Quando a Igreja Católica Apostólica Portuguesa abençoava Guerra do Ultramar e a Igreja Católica Apostólica Romana abençoou a Guerra Colonialal.
Há 50 anos: Quando a Igreja Católica Apostólica Portuguesa abençoava Guerra do Ultramar e a Igreja Católica Apostólica Romana abençoou a Guerra Colonial
Há 50 anos, o Papa Paulo VI tramou Marcelo Caetano, o regime e semeou os ventos da tempestade da mutação de Portugal.
Foi o primeiro Papa a visitar Portugal e Fátima, em Maio de 1967, a contragosto do Governo de então, Salazar considerava-o um “cidadão estrangeiro perigoso” e o seu ministro Franco Nogueira passou a imputar-lhe agravos gratuitos, inúteis e injustos a Portugal.
Salazar fora derrotado pela velha cadeira do Forte de Santo António da Barra e o Papa Paulo VI, tendo recebido em audiência o Ministro Rui Patrício, em 25 de Maio de 1970, que rendera Franco Nogueira, que lhe foi abordar a agenda da nossa guerra africana, no dia 1 de Julho de 1970 e, sem invocar a inspiração divina, recebeu em audiência privada (na Sala dos Paramentos?) e abençoou os três líderes da guerra colonial Amílcar Cabral (PAIGC), Agostinho Neto (MPLA) e Marcelino dos Santos (FRELIMO), este em representação do operacional Samora Machel, indisponível por estar a braços com o General Kaúlza de Arriaga e os 8000 militares portugueses, investidos na extensa e impetuosa “Operação Nó Górdio”.
Para o efeito, essa “troika” de exilados portugueses (só perderão a nacionalidade em 1975), ora líderes independentistas africanos, forjados na CEI, Casa dos Estudantes do Império e nos quartéis do Exército Português, aproveitara a dinâmica da II Conferência Internacional de Solidariedade para com os Povos das Colónias Portuguesas, convocada pelas centrais sindicais italianas CGTL, CISL e UIL em Roma, que teve o concurso de 177 organizações de 64 países, incluindo os exilados políticos de Portugal, do PCP de Álvaro Cunhal, da ASP de Mário Soares, da FPLN de Piteira Santos e Manuel Alegre, órfã de Humberto Delgado e militantes do Movimento a Favor da Paz, fórum lisboeta de católicos vanguardistas, segundo uns e de “cristãos pagãos” segundo outros, motivados pela encíclica “Pacem in Terris" do Papa João XXIII e a “Populorum Progressio” do Papa Paulo VI.
A ideia do aproveitamento dessa Conferência para uma audiência papal foi da inteligência revolucionária de Marcelino dos Santos, residente em Paris, em Janeiro desse ano encetou em Roma as diligências, mas a sua materialização será devida a Amílcar Cabral, que persuadiu o Bispo de Conacri, Raymund-Maria Tchimdibo, a negociá-la com o Vaticano e mobilizou a jornalista e militante católica progressista Marcella Glisenti, sua amiga desde 1968, Presidente da Associação Italiana dos Amigos da “Presence Africaine” (revista da negritude francófona, editada em Paris e Dacar), que, no maior segredo, se encarregou de toda a logística e de manipular com um perfil de líderes cristãos e democráticos o ex-Núncio no Senegal, Cardeal Giovanni Benelli, o segundo na hierarquia do governo do Vaticano (o Secretário de Estado, cardeal francês Jean Villot, estava ausente).
Às 12H00 foi-lhes franqueada a entrada pela Porta de Santa Ana, o Pontífice recebeu-os afectuosamente às 12H30 e mostrou-se particularmente deferente com Amílcar Cabral, que serviu de porta-voz, em francês.
A notícia correu o mundo, sem fotos, com o registo do embargo de um monsenhor português da Pontifícia Comissão para a Comunicação Social ao acesso dos jornalistas, Marcelo Caetano soube do caso logo na manhã do dia 2, informado pelo jornalista americano Dennis Redmont e a Censura congelou a notícia até ao dia 5.
A Comunicação social não teve acesso, não puderam tirar fotos, mas os audientes tiraram. No seu livro “Crónica da Libertação”, Luís Cabral reproduz a primeira página do boletim “PAIGC actualités” com uma foto dos intervenientes, no primeiro patamar da escadaria interior do Vaticano (de acesso à Sala dos Paramentos?), com a Marcella de costas e Amílcar Cabral em destaque…
Todo o mundo os conhecia como marxistas-leninistas ortodoxos e ateus confessos, do género de não olhar a meios para atingir os fins, não entraram na Santa Sé como “penetras”, o Governo protestou a ofensa da Igreja à sua “Nação Fidelíssima”, a comunicação social do Vaticano, em vez de invocar a sua “inspiração por Deus”, ridicularizou-se com a afirmação de que o Papa ignorava quem eram, a sua diplomacia a negar uma audiência no sentido do termo e a fazer passar a mensagem do carácter religioso do acontecido.
Com a devida vénia a Fundação Amílcar Cabral
Os muros de Roma e da Praça de S. Pedro apareceram pichados de “Viva il Portogallo”, o corte das relações diplomáticas esteve iminente, a diplomacia desempenhou o seu papel, as relações voltaram “à cordialidade antiga”, o evento passou a “facada pelas costas” ao Papa e Marcelo Caetano tramado.
Essa audiência papal no dia 1 e a morte de Salazar no dia 27 desse mês serão o início da contagem decrescente do fim do regime do Estado Novo. Com o “Botas”, o desfecho seria o mesmo? Em apenas 7 minutos, aqueles protagonistas da audiência papal fecharam o ciclo histórico de 545 anos de cumplicidade da Igreja com a afirmação do Portugal africano, estabelecida pela Bula “Romanus Pontifex” do Papa Nicolau V ao rei D. Afonso V, O Africano, e ao infante D. Henrique, O Navegador, – o documento de direito internacional da escravatura da raça preta pela raça branca.
Os três líderes independentistas que o Papa Paulo VI recebera e abençoara tinham a força do “espírito do tempo”, eram senhores da guerra, com as mãos manchadas de sangue dos seus próprios compatriotas. Não eram da dimensão política e humanista do bem-aventurado Nelson Mandela.
Em Fevereiro de 1964, no I Congresso de Cassacá, Amílcar Cabral introduziu a pena de morte no normativo jurídico do PAIGC, julgou sumariamente e mandou executar de imediato alguns compatriotas e correligionários (o regime de partido único e ditatorial do irmão Luís Cabral aplicá-la-á a alguns milhares, arbitrariamente, sem qualquer julgamento); montara uma cilada e em Abril de 1970 ordenara o assassinato de 4 oficiais do Exército Português e seus impedidos, que ousaram ir desarmados ao encontro do PAIGC; havia montado uma cilada e, na véspera de partir para Roma e ao encontro do Papa, ordenara a execução do seu conterrâneo bafatense, enfermeiro Paulo Gomes Dias, seu opositor anti-marxista, então presidente da FLING Progressista, um partido moderado sediado em Dacar; mandara executar imediatamente o “sniper” do PAIGC que, por rebate de consciência, não eliminou o General António Spínola de visita à sua tabanca; etc.
Marcelino dos Santos era “a FRELIMO sou eu”, segunda figura de partido único e ditatorial, pela aplicação seus pressupostos ideológicos e implementação do “socialismo científico” tornou-se responsável, no mínimo moral, da guerra civil subsequente à independência, que devastou Moçambique e dilacerou os moçambicanos durante 17 anos.
Agostinho Neto, pela recusa à coexistência e com a perseguição sanguinária aos seus adversários políticos FNLA e UNITA, tornou-se responsável pela guerra civil, subsequente à independência, que devastou Angola e dilacerou os angolanos durante 27 anos, que lhe imputam a assinatura em branco de cerca de 25 000 sentenças de morte de angolanos, no contexto da “crise fraccionista”, espoletada pelo seu opositor Nito Alves; etc.
A História reflecte o seu autor, mas não se reescreve. Alçados ao poder em Angola e Moçambique, em 1975, mandatados pelo MFA, deriva das FA Portuguesas, aqueles líderes de Angola e Moçambique, por convicção ideológica, não fizeram os caminhos da Paz na base da Verdade, Justiça, Caridade, Liberdade e do Desenvolvimento e dos Direitos Fundamentais dos dois Povos, paradigmas daquelas duas encíclicas que evocavam.
O Cardeal Benelli, que o Cardeal Villot censurara de abusador da sua ausência, notabilizar-se-á na promoção eleitoral dos Papas João Paulo I e II; o Bispo Tchimdibo, admirador de Amílcar Cabral, passou 9 anos como prisioneiro do sanguinário ditador Skou Touré; tido na consideração do mais talentoso e moderado dos “três líderes terroristas”, Amílcar Cabral morreu às mãos dos seus correligionários, diz-se que a impulso do mesmo Sekou Touré, mas o insuspeito Agostinho Neto, no seu relatório de Presidente da Comissão Internacional de Inquérito à sua morte, diz ter colhido em Conacri os depoimentos de 500 dos seus correligionários, 325 exprimiram-se abertamente contra Cabral e apenas 20 a seu favor; Marcella Glisenti continuou activista, católica progressista e livreira na sua “Paesi Nuovi”,envolvida na revista “Presence Africaine" pela negritude, émula dos textos de Albert Camus, de Jean-Paul Sartre e dos poemas de Leopold Senghor; Agostinho Neto foi morrer a Moscovo; Marcelino dos Santos morreu de velhice, na sua cama; Marcelo Caetano morreu exilado no Brasil; e o inclusivo Papa Paulo VI, pela sua áurea de anti-colonialista, de progressista, no entanto condenatório da regulação artificial da natalidade, subirá aos altares, beatificado em 2014 e canonizado em 2018, pelo Papa Francisco.
O ano português de 1970 foi tempo de mutação.
O desgaste físico e moral pelos 10 anos de luta evidenciava-se nos três teatros de guerra no Ultramar, com ambos os beligerantes a braços com a sua rejeição, a falta de recursos humanos, refractários, deserções e aquela audiência papal teve repercussões nas chancelarias internacionais e na própria Igreja portuguesa.
Os sacerdotes deixaram de invocar o auxílio do “Deus dos exércitos” e alguns sacerdotes mais corajosos falavam abertamente contra a guerra ultramarina nas suas homilias, havia excursões populares às suas missas, lembro os padres Feliciano Alves, os capelães militares Mário de Oliveira e Arsénio Puim, estes dois camaradas da Guerra Guiné, expulsos do Exército e do sacerdócio.
Nesse mesmo ano, Maurice Schumann, notável ministro francês e um dos pais da União Europeia, veio a Lisboa instar Marcelo Caetano, estava na altura da solução política, para não deitar tudo a perder, incitou-o a imitar ofereceu a ajuda da França e da CEEE, este confidenciou-lhes a sua impossibilidade, alegando o impedimento do Exército e o seu receio da separação transformar Moçambique num estado racista, apoiado pela África do Sul, sendo plausível que respaldado no facto de, em Janeiro, os USA terem reatado o fornecimento de material militar, abrindo as portas ao rearmamento tecnológico das FA Portuguesas, designadamente de aviões Mirage e da panóplia de mísseis. Havia um ano que a Força Aérea alertara o Governo da forte possibilidade de o PAIGC vir a dispor de aviões MiG e da nova geração de mísseis antiaéreos soviéticos.
Como Alto-comando funcionava e decidia em Lisboa, com o Decreto-Lei 49 170 de Junho, Marcelo Caetano cometeu a responsabilidade das operações nos três teatros de guerra ultramarina aos respectivos Comandantes-Chefes e investiu três provincianos nesses cargos, a nata do corpo de generais de Portugal – António de Spínola, Guiné; Kaúlza de Arriaga, Moçambique e Costa Gomes, Angola.
O General Costa Gomes, com a prestação do General Bethencourt Rodrigues (que virá a render Spínola na Guiné), resolveu a guerra em Angola; o General Kaúlza de Arriaga encostou a FRELIMO às cordas da derrota com a “Operação Nó Górdio” (os seus detractores dizem que não, mas o comandante seu oponente, o insuspeito Presidente Samora Machel, afirmou que sim), mas foi “derrotado” pelo massacre de Wirimau); e o General António de Spínola, o mais politizado, idealista e “romântico” dos três, não fez o caminho da derrota militar do PAIGC, antes fez o caminho da promoção social das populações e do progresso do território, falhou a manobra no Chão Manjaco (a tragédia dos 3 Majores), logrou um êxito parcial na “Operação Mar Verde” a Conacri (libertação de cerca de 3 dezenas de prisioneiros militares portugueses), mas foi “derrotado” pelo assassinato de Amílcar Cabral.
Um exército pode levantar-se contra a invasão de outro exército, mas não contra a invasão de uma ideia (Victor Hugo).
E a Guiné, calcanhar de Aquiles do Ultramar (Amílcar Cabral), passou a cancro corrosivo das FA Portuguesas (Saturnino Monteiro).
Grandezas e misérias da espécie humana.
Manuel Luís Lomba
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Nota do editor
Último poste da série 13 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21071: (In)citações (163): Sermão antirracista do Padre António Vieira: "Cada um é da cor do seu coração" (seleção: António Graça de Abreu)