Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 19 de março de 2021
Guiné 61/74 - P22018: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (44): A funda que arremessa para o fundo da memória
Queridos amigos,
Tudo leva a crer que os cinquentões enamorados tiveram umas férias da Páscoa a preceito. Houve mau tempo durante dois dias, mas não foi suficiente para os desmoralizar, foram ver exposições, andaram à cata de surpresas em alfarrabistas e adelos. Aqui não se fala numa reunião de trabalho onde houve discussão acalorada entre os diretores da associação, mais adiante se explicará porquê. Annette anda mordida pela curiosidade, pede imagens antigas, talvez seja uma forma de ela se querer identificar com coisas do passado neste amor transbordante. É ciosa em querer compreender tudo quanto está a pôr em ordem na comissão do Paulo, houve que remexer numa ferida, as dolorosas recordações de uma tragédia que ocorreu em Canturé, no regulado do Cuor, em 15 de outubro de 1969, tudo tão doloroso que ainda havia a mágoa de não ter agido com a devida solicitude em saber da sorte dos seus sinistrados depois da guerra, Paulo sente que falhou aos cânones da camaradagem, nunca nos largámos nas horas amargas, Paulo seguiu para a frente, e hoje continua a sofrer pela incúria praticada.
Um abraço do
Mário
Rua do Eclipse (44): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Annette adorée, a viagem para Lisboa correu lindamente e no horário previsto, vim diretamente para o trabalho, comi uma sopa e dois pães, não tive mãos a medir na elaboração de papelada e na organização da agenda para as próximas semanas. Por muito que te tenha agradecido as férias encantadoras que vivi a teu lado, quero deixar por escrito todo o meu sentimento de gratidão, o dia de Páscoa foi inesquecível, os teus filhos muito afáveis e adorei conhecer a tua irmã por adoção, os esclarecimentos que ela me deu sobre a tua infância e juventude enterneceram-me, bebi-lhe todas as palavras, assim se desenhou no meu espírito uma Annette voluntariosa, a lutar pela sua autonomia, conhecedora de um dom especial para as línguas e pelo gosto de viajar, algo que é obrigatório para ter sucesso na vida de intérprete internacional.
Cinjo-me, tão-só nesta carta, ao que tu me pediste quanto a fotografias espúrias do que era a minha vida profissional, que tipo de recordações te podia enviar sobre as minhas estadias em Bruxelas e mais adiante lembraste a necessidade de criar uma atmosfera para tudo quanto se passou depois da mina anticarro de Canturé, em 15 de outubro de 1969.
Vou tentar sumular os meus procedimentos de viagens a Bruxelas antes de te conhecer. Estive em Bruxelas pela primeira vez em 1978, Portugal batera à porta das Comunidades Europeias, logo estabeleceu que os diferentes ministérios enviariam peritos para ações de sensibilização. O ministro António Barreto, titular do Comércio e Turismo, que criara no ano anterior uma lei orgânica contemplando um departamento do consumidor, escolheu-me para o programa respetivo. Visitei os serviços da Comissão Europeia, então a funcionar na Rue Guimard, num local aprazível entre o Parque Real e a área do Parlamento Europeu. Depois de uma ensaboadela, fui lançado em serviços convergentes com política do consumidor, nomeadamente na área da Saúde e Ambiente. Tive reuniões de trabalho com as quatro associações europeias do tempo, e imediatamente encontrei afinidades com o dirigente das cooperativas europeias, Albrecht Schöne, e dos sindicatos socialistas, André Cornerotte, hoje uma amizade inquebrantável. Visitei igualmente organizações não-governamentais ligadas à defesa de direitos de cidadania e a vários lobbies empresariais acreditados pela Comissão Europeia, entre eles o da indústria farmacêutica.
Tive um dia de folga, de carta na mão palmilhei Bruxelas e comecei a interiorizá-la. Graças aos programas de televisão, entre 1979 e 1984, aqui vim a reuniões de autores e apresentadores de programas televisivos de consumidores, sempre à minha custa reservei um dia para curtas viagens na Flandres e na Valónia, aliás duas destas reuniões irão ocorrer em Paris e Veneza. Depois chegamos à adesão e com ela a participação em reuniões quer como funcionário público quer como membro da Confederação Europeia dos Sindicatos. Se na primeira condição a ajuda de custo era satisfatória, na segunda era quase simbólica e tive que me adaptar à escolha de modestos hotéis e mesmo de albergues, almoçava nas cantinas, havia por vezes jantares de trabalho e senti-me na obrigação de propor jantares com colegas, designadamente quando tínhamos tarefas em comum. Envio-te hoje um pequeno rol de papéis avulsos que falam de Bruxelas ou das reuniões em estações televisivas portuguesas, até descobri a imagem de um encontro internacional de educação do consumidor, que se realizou em Lisboa, meses antes de eu elaborara documentação para professores, este encontro servia igualmente para testar da validade na área de ensino, fiquei feliz com os elogios recebidos. Eu penso é que tu queres fotografias com o quarentão, encontrei uma de um colóquio em que participei com um investigador que admiro profundamente, o arquiteto paisagista Gonçalo Ribeiro Teles, o programa não era fácil nem para ele nem para mim, tínhamos que discretear sobre os imbricamentos entre as políticas ambientais e as medidas de consumo, as formas de agir comum. O trabalho que tive nessa ocasião preparou-me para uma reflexão que mantenho em continuidade: como ultrapassar os compartimentos estanques das análises de ambientalistas e defensores de consumidores, os primeiros projetam o seu trabalho na produção e param no mercado, enquanto os defensores dos consumidores começam no mercado e dissecam a problemática do consumo, desde os direitos de informar e formar até às leis de proteção nesta vertente da cidadania no consumo.
Junto duas imagens referentes a duas recrutas que dei no regresso da guerra da Guiné, em Mafra, a futuros oficiais milicianos. Antes de partir para a guerra eu tinha como profissão a mecanografia, era devoradora de tempo, não podia imaginar ter meios para tirar rapidamente primeiro o bacharelato e depois a licenciatura, encontrei um expediente que foi um contrato até cinco anos com o Ministério do Exército, teria que dar recrutas durante um período e depois seria colocado em Lisboa, tive muitíssima sorte, depois de dar instrução fui colocado numa entidade chamada Agência Militar, um autêntico banco, era o oficial que ia buscar dinheiro aos milhões ao Banco de Portugal. Passei a ter tempo para estudar na biblioteca e voltar cedo para casa para continuar a estudar. Em cerca de três anos, e tendo repetido cadeiras para melhoria de nota, estava licenciado e fui mesmo colocado como professor na variante de História de Arte, veio o 25 de Abril e a minha vida mudou de rumo, o rumo em que nos descobrimos naquele acaso feliz da reunião na Rue Froissart, que mudou as nossas vidas, por sua vez.
Vamos agora para o que me pedes sobre a tragédia da mina anticarro, procurei dar-te elementos no dia em que almoçámos em Antuérpia, tive que amenizar o discurso quando vi muita mágoa no teu rosto enquanto te contava as peripécias vividas. Depois da explosão, verifiquei o caos à volta, havia um ferido grave, o condutor, e mais seis feridos, não era fácil avaliar o que era uma mera contusão de ferimentos graves. Senti angústia e perplexidade em quase todos os meus camaradas, recorri ao que estava mais sereno, Mamadu Djau, dei-lhe a incumbência de ir procurando tratar com primeiros-socorros quem deles necessitava e havendo condições arrumar os bidons de combustível, os sacos de arroz, as caixas, tudo quanto saltara da viatura com o impacto da explosão. Retirei-me sozinho e trouxe atrás de mim três crianças, na marcha senti dores excruciantes no joelho direito e pressenti que tinha perdido a visão do olho esquerdo, levara com uma lufada de terra e ácido ou talvez mesmo de explosivo, sentia tudo em carne viva. E assim chegámos a Finete onde Bacari Soncó me ajudou a lavar o rosto e percebi que não tinha perdido a visão completa do olho esquerdo. Formou-se um contingente para ir buscar os feridos, e lá fui aos tombos pela bolanha de Finete, o canoeiro atravessou o Geba, o comerciante José Maria andava ali perto e levou-me à sede do batalhão. Jantavam e conversavam acaloradamente na messe dos oficiais, quando me viram sentiram que tinha havido uma desgraça, quando se entra chamuscado e a coxear algo de sinistro aconteceu. O segundo comandante dirigiu logo as diligências necessárias para chegar rapidamente apoio a Finete, o médico levantou-se da mesa, mandou chamar o enfermeiro e dois maqueiros, em minutos estavam todos de mochila às costas. Este mesmo segundo comandante teve com os sinistrados uma afabilidade inesquecível: mandou recolher pedaços de bifes e meter em pães, arranjou-se um saco de fruta, achocolatados e outras atenções. E regressámos a Finete, o principal desvelo foi para o condutor, de nome Manuel Guerreiro Jorge, o estado era deplorável, não eram só as fraturas expostas, entrara em falência, cerca de uma hora depois de chegarmos a Finete o médico fechou-lhe os olhos. Havia soldados marcados por estilhaços, o estado de Cherno Suane era muito grave, um duplo traumatismo craniano, ele seguia no guincho e foi disparado para cima de um morro de bagabaga. O cabo Alcino Barbosa coxeava, veio-se a apurar que era uma fratura de calcâneo. Minha adorada Annette, quando tudo isto te contei naquele pequeno restaurante não longe da Catedral de Nossa Senhora em Antuérpia, envolvidos por uma temperatura amena, procurei não te incomodar muito, voltei a Missirá, conversei com o régulo em particular, e tive a única crise de choro convulsivo, limpei ao rosto e disse ao régulo que não se atormentasse, a vida recomeçaria, houvera um revés, mas eu continuava pronto para me manter no posto, ele iria ver em breve, só precisava de ir a Bissau tratar dos olhos e comprar óculos novos, viria rapidamente, muito antes de, a contragosto, partir de Missirá para Bambadinca.
Annette, por razões de pudor eu sou muito sumário nesta descrição, podia falar-te numa emboscada que aconteceu e muito mais. Como companheira que me estás destinada até ao fim dos meus dias quero que saibas do meu remorso em não ter acompanhado, como era meu dever, quando regressei a Portugal, os meus camaradas feridos, à semelhança do que pude fazer com os guineenses mutilados. É amargor que guardo e que te confesso.
Vou ter uns dias atribulados pela frente, mas prometo continuar à noite a juntar mais papéis para te enviar rapidamente. E quero falar das férias, pois claro, e terminar dizendo-te como me sinto muitíssimo bem na tua Bruxelas, se acaso for essa a decisão que tomarmos nos próximos anos. Bien à toi, Paulo.
(continua)
Não resisti a comprar este bilhete-postal de um jovem numa banheira com desentupidor na mão, em plena Feira da Ladra, indiferente ao bulício que por ali vai. Pena de não ter ido lá neste dia para ter sido eu a tirar esta imagem…
Quando olho estas imagens pergunto-me o que a vida trouxe de muito bom às suas vidas depois das guerras em que participaram. Só muito raramente encontro um ou outro dos meus instruendos. Um deles é o Dr. João Nabais, homem de museus, outro tem o nome épico de Vasco da Gama, homem da Figueira da Foz que já visitei. É mais uma lição da vida: a muito nos aproxima e com a mesma força nos afasta.
Estava feliz neste tempo, o meu livro sobre educação do consumidor custara-me os olhos da cara, mas ainda hoje é uma referência. Annette se olhares para o ano ali está escrito 1998, conheci-te no ano seguinte, só pasmo como a fotografia esconde os já inúmeros cabelos brancos
Referências de alojamentos pobretanas que me davam condições de trazer lembranças para os filhos
Os debates televisivos sobre consumo e qualidade de vida eram então frequentes. Fiz sempre o possível para nunca dizer não a quem me convidava
Gonçalo Ribeiro Telles tinha um dom muito especial na comunicação, era um encanto poder conversar com ele em colóquios ou sessões de trabalho. Era o exemplo vivo de que os sábios são intrinsecamente simples
Annette, pode ser que aconteça na nossa vida, irmos aos Bijagós, aqui te deixo uma recordação e um bilhete-postal de um pôr-do-sol na Ilha de Bubaque, com infinito amor
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Nota do editor
Último poste da série de 12 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21997: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (43): A funda que arremessa para o fundo da memória
Guiné 61/74 - P22017: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): A “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte II: Do seminário a Mafra [EPI], Beja e Lamego [CIOE]
Ministério do Exército > Praças nas Fileiras > EPI [, Escola Prática de Infantaria, Mafra] > Bilhete de Identidade militar do João Francisco Crisóstomo, soldado cadete nº 1064/64, emitido em 20 de abril de 1964. Nº de matrícula: E-86804. O Comandante, assinatura ilegível [, Manuel Ribeiro de Faria, foi cor inf, foi o comandante da EPI, de 8/1/1963 a 25/9/1969] [Anotações: Grupo sanguíneo B].
Depois de nove anos de preparação seminarística para uma vida de “missionário" [, passando por Montariol, Varatojo e Leiria], cheguei à conclusão que não era isso o que queria para o resto da minha vida. E com 19 anos ainda resolvi sair do convento e viver o meu futuro como civil.
Nessa altura Portugal estava já há vários anos envolvido nas “guerras ultramarinas”, sendo obrigatório o serviço militar. Quando saí, a primeira coisa que experimentei foi a dificuldade de arranjar qualquer trabalho. A resposta era sempre a mesma: "Temos com certeza lugar para si, mas tem de fazer primeiro o seu serviço militar".
Eu teria que esperar para ser “chamado”, o que me diziam ia levar ainda de um a dois anos. Podia, assim me foi dito, adiantar o meu ingresso, apresentando-me como “voluntário”. Não me apetecia estar a apresentar-me como voluntário, mas a verdade é que eu "não tinha meios” de subsistência e não queria estar um ou dois anos a depender de meu pais.
Além disso, pensava eu com alguma acertada visão, da maneira como as coisas se apresentavam, quanto mais tarde eu fosse para a tropa, pior seria a situação. No quartel de Santarém, onde me fui informar quando é que seria chamado, disseram-me que se eu quisesse apresentar-me como voluntário, eu podia fazê-lo, mesmo sem a autorização escrita de meus pais. E foi então isso o que resolvi fazer, contra a vontade de meus pais que, talvez esperançados nalgum milagre que me livrasse do serviço militar, se recusaram a dar-me por escrito o seu consentimento.
Notas da agenda do soldado-instruendo João Crisóstomo [dias 26 e 27 de janeiro de 1964] |
E lembro ,vagamente já, o que foi depois durante seis meses esse período de preparação. Não me lembro bem a ordem cronológica da minha estadia na tropa antes de ir para a Madeira, mas creio que de Mafra fui para Beja onde passei uns meses, preparando um pelotão de recrutas.
Mafra > EPI > COM > 1º Turno > 3ª Companhia > 5º Pelotão > 27 de janeiro de 1964, dia de São João Crisóstomo > Cópia das notas da agenda do soldado cadete João Crisóstomo... Horário e descrição das actividades do primeiro dia onde começo por chegar atrasado ao pequeno almoço e apanhar primeiro raspanete: 6,15 - Levantar | 7.10 - Pequeno almoço (atrasado) e 1º [raspanete] | 7.35 - 1ª instrução | 12.10 - 1º almoço (ótimo) | 13.20 - Instrução da tarde | 16.20 - Fim da instrução da tarde | 19.00 - Jantar (ótimo) | 21.30 - Cama.
No final do curso, como sucedia frequentemente, também eu recebi um "presente” de despedida destes recrutas: ainda hoje conservo com muita estima um cartão assinado por todos e uma pequena salva de prata com os dizeres ” Recordação dos recrutas do ano de 1964 do 2.º pelotão, "Os Terríveis” Recordo-me tê-los deixado escolher um apelido e dentre os vários nomes propostos,— eu puxava por “Viriatos”-- foi o de “Terríveis” que se quiseram chamar.
Encontro com o Capitão Pires que viria a ser o comandante da CCaç 1439.
Não sei qual era o critério, mas sei que fui um dos escolhidos para ir fazer um chamado "curso de Ranger" em Lamego, no CIOE [, Centro de Instrução de Operações Especiais]. E aqui valeu-me o facto de na minha caderneta constar a minha situação de ingressado no serviço militar como “voluntário”.
Embora não fizesse nada por amor à causa, eu estava bem consciente que me devia preparar e estar em boa forma para o que desse e viesse a seguir, fosse na metrópole ou, quase certo, numa das nossas chamadas então províncias ultramarinas. E por isso fazia um esforço no sentido de preparação física, independentemente de os outros fazerem ou não o mesmo. E tinha satisfação em verificar que na maioria das ”provas" eu estava sempre entre os primeiros.
Excepto numa: a prova ou teste do “galho”: tínhamos de saltar de uma plataforma para um corte dum ramo duma árvore, a cerca de um metro de distância, para provar a nossa ausência de medos e coisas assim. Já me tinham falado neste "galho" e que havia muitos que tinham falhado essa prova e consequentemente tinham sido postos de lado para qualquer promoção.
Era um dos exercícios a que éramos frequentemente sujeitos. A primeira vez que me vi em cima da plataforma, tive medo, mas disse para mim mesmo que se os outros o faziam..., eu também o podia fazer. Enchi-me de “coragem” e lá me atirei para o galho e daí deixei-me escorregar devagar pelo tranco abaixo para o chão. E juntei-me aos outros que esperavam a sua vez .
Só depois de, com sucesso ou não, todos terem "feito o galho” é que prosseguiamos para o próximo teste. Mas a seguir a mim nem todos tiveram a mesma sorte ou sucesso que eu tive: houve um que não saltou o suficiente e, sem conseguir alcançar o galho, caiu no meio do chão e aí ficou como se tivesse perdido os sentidos; veio uma maca, levaram-no e nunca mais ouvi falar dele.
Um outro conseguiu agarrar-se ao galho, mas depois, ainda agarrado ao galho, começou a deitar espuma pela boca… Depois disso dois ou três recusaram-se a saltar...Mas como era a primeira vez nada lhes sucedeu, excepto de que “na próxima vez tinham de ter mais coragem”…
Na tal próxima vez eu fui um dos que se recusaram a saltar, apesar das insistências do “chefe do grupo” , tanto mais que eu já o tinha feito na primeira vez.
Nas próximas vezes sucedeu o mesmo e passadas duas ou três semanas "fui chamado”: que eu estava a dar mau exemplo aos outros e não sei que mais. Expliquei que a razão de eu me negar a saltar o galho, não era pelo medo de o fazer, mas porque achava que era um exercício que não ajudava nada o melhoramento das condições físicas de ninguém e era um grande perigo como tinha sido provado várias vezes. Mais: que se podia ver em todos os outros exercícios o meu esforço e empenho exemplar; ao fim e ao cabo, disse eu, como pode ver "eu até sou 'voluntário' quando eu podia ter fugido para a França, como muitos estão a fazer".
Na prova final, afirmei que eu "faria o galho" e, se me recusasse aceitaria as consequências. Não me chatearam mais; e parece-me que a mais ninguém quando se fazia o “galho”, deixando o saltar ou não ao alvitre de cada um; havia quem fizesse disso ocasião para mostrar o seu machismo e coragem invulgar.
No dia da prova final o alferes lá estava, papel na mão a notar e verificar quem saltava… Quando foi a minha vez saltei e, agarrado ao galho, olhei bem para ele, para que confirmasse o meu cumprimento do que eu tinha prometido fazer…
Deste curso guardei uma foto com todos os participantes. Junto-a pois talvez seja de interesse para muitos que como eu foram para a Guiné. Entre os que consigo recordar está (o primeiro da turma D) o saudoso Furriel [António dos Santos] Mano, (Post 15998 de 21 de Abril de 2016), da minha companhia CCaç 1439, que viria a ser vítima duma mina a 6 de Outubro de 1966 (**).
Nessa altura procurava-se uma foto dele que eu pude facilitar; a esta 1ª foto pode-se juntar esta 2ª foto e outra em que ele também aparece, de fácil identificação.
Madeira > Funchal > 1 de junho de 1965 > CCAÇ 1439 > Jantar de despedida na Feira do Marítimo > António Mano, no lado esquerdo , de mão no queixo; no lado direito: eu, o furriel Lopes, o furriel vagomestre, cujo nome me esqueci, e o furriel Bonifácio, meu colega de seminário, também quase vizinho, natural da Lourinhã.
O outro acontecimento, que lembro bem de Lamego foi ter aqui encontrado um tenente muito simpático com quem eu e o meu colega Ilídio (, estávamos organizados em parelhas,) falávamos de vez em quando. E lembro que num dos dias do "desenrasquem-se como melhor puderem", este tenente, também a fazer o curso de ranger, penso eu, apareceu com uma galinha, que eu não sei onde ele a arranjou... Só nos disse que a “arranjássemos” e depois seria para os três…
Foi nessa altura que
nos foi dado a possibilidade de declararmos as nossas preferências ou escolhas para
onde gostaríamos de ser colocados. Ainda
hoje não sei da importância dada à nossa
escolha. Mas sei que, passados tempos, vim a saber que tinha sido colocado na Madeira, e o
nosso comandante seria o Capitão Amândio Pires (sic), o mesmo tenente
que eu conhecia e a quem eu tinha ajudado a assar a galinha no
meio do campo , numa das nossos "exercícios de sobrevivência”.
A viagem para a Madeira foi no navio Funchal, novinho em folha, parece, com estabilizadores, assim me explicaram, para menos balanços. E foi-nos dado viajar em "primeira classe”, coisa que eu nunca tinha experimentado na vida…
Sei que apesar de toda esta última palavra em “estabilização" do navio, a maior parte de nós, eu incluído, passamos a viagem "deitados de barriga para baixo” … só me levantei já perto do Funchal.
Lamego > CIOE > 1964 > Curso de Operações Especiais C1 > Fotos do pessoal das 4 turmas (A, B, C e D). Nesta foto é fácil reconhecer alguns indivíduos que serão mais tarde camaradas da Guiné e de outros TO.
Lamego > CIOE > 1964 > Curso de Operações Especiais C1 >, CIOE > 1964 > Turma B a que pertencia o João CRISÓSTOMO (, aqui assinalado com cercadura a vermelho). O furriel Mano pertencia à turma D (o primeiro de cima, a contar da esquerda também assinado com um rectângulo a vermelho).
(*) Último poste da série > 9 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21985: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) : a “história” como eu a lembro e vivi ( João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte I: afinal, não consegui esquer...
quinta-feira, 18 de março de 2021
Guiné 61/74 - P22016: História da 3ª Companhia de Comandos (1966/68) (João Borges, 1943-2005) - Parte XIII: atividade operacional, dezembro de 1967 / janeiro de 1968, destaque para a Op Yungfrau, em Canjambari, Farim
Características desta arma segundo o nosso especialista de armamento, Luís Dias (ex-Alf Mil At Inf da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872, Dulombi e Galomaro, 1971/74):
[Em inglês, B-10 recoilless rifle]
Tipo: Canhão Sem Recuo (CSR) B-10;
Origem: Ex-União Soviética:
Ano: 1954:
Calibre: 82 mm;
Comprimento: 1,660 m;
Peso: 85,3 Kg (71,7 Kg, sem rodas):
Elevação: -20º / +35°;
Alcance máximo: 4500 m;
Alcance prático: 400 m;
Capacidade de fogo : 5 granadas por minuto;
Guarnição: 4 elementos;
Alinhamento por aparelho de pontaria: Colocado do lado esquerdo da arma e a funcionar por sistema óptico;
Funcionamento: Percussão do cartucho, após carregamento por abertura da culatra;
Munição: Vários tipos de granada explosiva: por exemplo, BK-881 HEAT FS de 3,87 kg ou BK-881M HEAT-FS 4.11 kg (, velocidade de saída: 320 metros por segundo);
Velocidade de saída: dependia do tipo de granada (que podia penetrar até 240 mm de blindagem).
Nota do editor:Último poste da série > 21 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21931: História da 3ª Companhia de Comandos (1966/68) (João Borges, 1943-2005) - Parte XII: atividade operacional, outubro/novembro de 1967, destaque para a Op Garraio, no Poindon-Ponta do Inglês, Xime
Guiné 61/74 - P22015: FAP (123): Em louvor do ex-fur mil pil av António Galinha Dias e da tenente enfermeira paraquedista Maria Zulmira André Pereira (1931-2010) que fizeram a evacuação Ypsilon do cap cubano Pedro Rodriguez Peralta, em 18 de novembro de 1969, na sequência da Op Jove (Jorge Narciso / Maria Arminda)
Abraço para o editor de serviço
Li e percebi a associação dos dois eventos relatados.
Jorge Narciso
18 de março de 2021 às 01:15
(...) Como sempre refiro: A vida São os Dias que nos Lembramos. Quando o contrário acontece, em que já não estamos cá fisicamente ou a nossa memória partiu para outros universos de pensamentos, a vida deixa de ser real.
São essas as razões porque a memória dos Homens, anda por vezes distraída mas enquanto a minha não se ausentar totalmente, quero, não só recordar mas ainda para que fique para a história, pelo menos como registo neste blogue, quem foi a Enfermeira Paraquedista que assistiu e tratou o Capitão do Exército Cubano ao serviço do PAIGC, Pedro Rodriguez Peralta, ferido e evacuado da zona do Guileje.
Quando foi solicitada, pelo Sr. Capitão Paraquedista Bessa uma evacuação urgente, foi enviada de helicóptero uma enfermeira paraquedista a quem foram dadas ordens expressas,para fazer tudo, mesmo tudo o que estava ao seu alcance, para salvar aquele ferido que se encontrava em péssimas condições físicas e em estado de choque, não podendo falhar nada para que o doente chegasse vivo ao hospital e em condições gerais estáveis para ali ser intervencionado de imediato.
A enfermeira iria fazer o que sempre fez aos feridos em situações semelhantes, mas a carga emocional foi grande pelo tom imperativo que envolveu a recomendação.
Logo que o ferido lhe foi entregue procedeu de forma adequada, estabilizando o seu estado geral, terminando com a colocação do seu casaco de camuflado para o aquecer até chegar ao hospital.
Parece que a enfermeira não teve importância nenhuma, muito menos mérito nenhum em toda esta história.
Nós éramos tão poucas, não seria difícil aos investigadores e autores dos artigos informarem-se dos nomes da enfermeira, do piloto e eventualmente do mecânico, que tal como a enfermeira passaram por níveis acrescidos de stress na missão deste acontecimento muito especial e que foi sem dúvida com grande mérito para as nossas tropas, tendo ficado por esse facto, na história da guerra da Guiné.
Para que conste, e para que pelo menos fique registado no blogue dos Especialistas da Base Aérea 12 o nome da citada enfermeira: Maria Zulmira Pereira André, tenente graduada enfermeira Paraquedista, foi a enfermeira que foi buscar nas matas do Guileje o Cubano, senhor capitão Peralta.
Não é bem assim, minha amiga, e agora que já não estás entre nós, tomo esta atitude para honrar a tua memória, pela pessoa boa que sempre foste, pelos amigos que fizeste, pelo extraordinário desempenho profissional e com espírito de missão que sempre puseste ao serviço de todos.
Grata pela oportunidade de dar a conhecer este pormenor da Operação Jove e da importância que a enfermeira Zulmira André teve na vida do Capitão Peralta e na projecção do êxito da mesma captura pelas tropas paraquedistas.
Com os meus Cumprimentos
Maria Arminda
ex-tenente enfermeira paraquedista
Notas do editor
(*) Vd. poste de 17 de março de 2021 > Guiné 61/74: P22014: Memórias cruzadas: 18 de novembro de 1969: uma dia (a)normal no HM 241, Bissau, um dia na vida do cap cubano Pedro Rodriguez Peralta, ferido em combate e helievacuado [Jorge Narciso, ex-1º cabo esp, MMA, BA, 12 (Bissalanca, 1969/71) / Jorge Teixeira 'Portojo' (1945-2017), ex-fur mil, Pel Can s/r 2054 (Catió, 1968/70 ) / Manuela Gonçalves (Nela), esposa do ex-alf mil Nelson Gonçalves, cmdt Pel Caç Nat 60 (São Domingos, 1969)]
quarta-feira, 17 de março de 2021
Guiné 61/74: P22014: Memórias cruzadas: 18 de novembro de 1969: uma dia (a)normal no HM 241, Bissau, um dia na vida do cap cubano Pedro Rodriguez Peralta, ferido em combate e helievacuado [Jorge Narciso, ex-1º cabo esp, MMA, BA, 12 (Bissalanca, 1969/71) / Jorge Teixeira 'Portojo' (1945-2017), ex-fur mil, Pel Can s/r 2054 (Catió, 1968/70 ) / Manuela Gonçalves (Nela), esposa do ex-alf mil Nelson Gonçalves, cmdt Pel Caç Nat 60 (São Domingos, 1969)]
Lisboa > Semanário "Expresso" >Edição de 15 de dezembro de 1973 >O capitão cubano Peralta no Tribunal Militar de 1º instância. Uma foto que a censura não deixou publicar. |
Caro: Ao passar hoje pelo blogue, de imediato me chamou a atenção a foto do heli aterrado no HM 2141, Bissau, contida no teu poste
E como a ti, também ela me suscitou um tal corropio de lembranças, que, acredita-me, quase me atordoam. Tentando alinhar ideias:
Como mecânico dos helis, foi exactamente
Bissau > 1969 > O Heliporto do HM 241. Foto de Jorge Teixeira (Portojo) (2010) |
Mas outra lembrança conseguiste, com o teu poste, desenterrar do fundo do meu subconsciente, a da evacuação do Capitão Peralta, a qual passo a transmitir, a quente, tal como a memória me debita.
Antes porém e à falta de outros registos, resolvi ir ao Google e digitar: Capitão Peralta.
Resultados:
(i) Ferido e capturado em 18 de novembro de 1969 durante a operação Jove, realizada pelos Páras [BCP 12] entre os dias 16 e 19, no corredor de Guileje;
(ii) A base dessa operação, a partir de onde os Paras foram heli-transportados, foi Aldeia Formosa.
Vamos agora à minha memória, que espero não me esteja a atraiçoar, sequer a iludir, e na qual (apesar da evidente redução de neurónios) quero ainda confiar.
Coloco os resultados dessa pesquisa em dois planos: das quase certeza (ou com menor grau de falibilidade) e o das incertezas associadas, que evidencio entre parêntesis.
Assim:
(1) Eu só não estava no voo em que viste o Capitão Peralta aterrar no HM 241, pelas condições extraordimárias em que decorreu essa evacuação, cujos contornos passo a descrever.
(2) Em operações como esta, em que, independemente da Tropa participante, a base se situava num aquatalamentos longe de Bissau, para aí se deslocavam normalmente: 5 helis + 1 helicanhão, transportando uma equipa de manutenção e uma enfermeira paraquedista.
Dali partiam, então, fazendo as viagens necessárias para, transportando 5 ou 6 militares por heli, os colocar, protegidos pelo canhão, na ZOPS..
Se a operação se resumia a um dia, permaneciam os helis nessa base em alerta, para: evacuações, eventuais transportes das Tropas para outras posições na mesma ZOPS e finalmente para a sua recuperação no final da Operação.
Nos casos em que a Operação fosse por mais de um dia, ficaria em todos os dias em que esse decorresse e na base da mesma, no minimo um heli de alerta (com Piloto, Mecânico e Enfermeira) para eventuais evacuações e o helicanhão para protecção destas e para intervenções de tiro, se solicitadas.
(3) Nesta operação em particular, a Op Jove, é seguro que estive presente, desde logo porque recordo perfeitamente o objectivo apontado para a mesma (nos helis e durante os voos, mesmo que não quiséssemos, ouvíamos muita informação dita classificada): captura do 'Nino'Vieira. .
(4) No dia 18 de novembro de 1969 (Precisei a data na citada consulta na Net), portanto no 3º dia da Operaçãp, voei (seguramemte de Aldeia Formosa) para essa ZOPS onde aterrei [, no corredor de Guileje], no helicóptero que fez a evacuação do Capitão Peralta, não continuando no voo para o HM de Bissau,
Porquê?
(5) Os Alouette III têm capacidade para transportar 6 passageiros, para além do piloto (este e mais dois à frente) e até 4 no banco traseiro.
Em evacuações com feridos em maca, essa capacidade ficava reduzida, pois para além dos 3 lugares à frente, normalmente ocupados pela tripulação (Piloto, Mecânico e Enfermeira, na maioria dos casos), apenas é possivel alojar 1 ou 2 macas na rectaguarda, que, por transportadas transversalemente, impedem (ou dificultam, algumas vezes me tocou vir meio sentado meio em pé, nas abas da maca) utilizar os lugares traseiros.
No caso desta evacuação (Cap Peralta), tendo sido determinado, no terreno, que o capturado devia ser acompanhado no voo por escolta armada, foi necessário ocupar, por quem a fez, um dos lugares destinados à tripulação.
Para resolver o problema e - repito - se a memória não me atraiçoa, registou-se um caso que me lembre único:
(6) O helicanhão, que fazia a protecção à evacuação, aterrou na ZOPS, nele tendo embarcado o mecânico (eu próprio) e voado (junto ao apontador) para Aldeia Formosa, donde posteriormente regressei a Bissau (outra nebulosa, é que não me recordo como - noutro heli ? de DO 27 ? ), pois no helicanhão não foi concerteza.
Como remate a estes factos, este voo no helicanhão foi para mim perturbante, pois que uns meses antes (Julho de 1969. o eu 3º mès de Guiné) estive também para voar (nesse caso por experiência passiva que, para sorte minha, não concretizei) no retorno duma outra Operação em Galomaro, voo esse com um fim trágico, traduzido no despenhmento do heli (a que assisti) ocorrido em Bafatá, com a morte do meu comandante, o maj pilav Rodrigues e dum camarada de todos os dias, o Machadinho - como lhe chamávamos - , Mecânico de Armamento/Apontador.
Um dia destes tentarei fazer o relato que me for possivel desta outra dramática ocorrência.
Voltando ao poste e à tua solicitação ao Jorge Félix (tantos Jorges), quase seguramente ele ainda estava nessa data na Guiné.
Como atrás referi, não me lembro se terá sido inclusive participante nos factos, em qualquer caso terá certamente presente memórias relacionadas e, quem sabe, como tem a sorte (que a FAP me coartou) de ter os seus registos de voo, pode buscar nos mesmos confirmações.
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Notas do editor:
(**) Vd. poste de 1 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5741: Blogoterapia (142): Aquela janela virada para o heliporto (Jorge Teixeira/Portojo)
Mas a conclusão é: Será que o Jorge Félix [, ex-alf mil pil, BA 12, Bissalanca, 1968/70] se recorda ou até terá dado a sua colaboração a esta operação?
Por casualidade, o José Manuel Cancela também estava hospedado, na mesma altura, no mesmo Hotel Militar de Bissau. Mas no terceiro apartamento. Só o soubemos há dias quando entreguei esta foto - entre outras - para o Carmelita digitalizar e ele viu. Estórias de vida." (...)
(***) Vd. postes de:
15 ede março de 2021 > Guiné 61/74 - P22008: Notas de leitura (1346): Paparratos e João Pekoff: as criaturas e o criador, J. Pardete Ferreira - Parte III: Rui Angel, aliás, Pedro Rodriguez Peralta, capitão do exército cubano, o mais famoso prisioneiro da guerra colonial... Aqui tratado com humor desconcertante (e humanidade) (Luís Graça)
Apesar de toda a dor e angústia sentidas, uma grande alegria: ele estava vivo. Os sonhos continuavam adiados, mas não jogados fora. Uma nova etapa nas nossas vidas havia começado! (...)
26 de março de 2006 > Guiné 63/74 - P634: Uma mina na estrada de São Domingos para Susana (Manuela Gonçalves)
(...) O flagelo das minas continua e não sei mesmo se muitas delas não serão ainda daquelas que foram colocadas na guerra colonial. A coincidência transportou-me até [13 de] Novembro de 69.
Foi naquela mesmo estrada - de São Domingos para Susana - numa operação de reconhecimento da via, que o Unimog em que o maridão seguia, pisou uma mina anti-carro. No Unimog, uma outra mina anti-carro, levantada cerca de 300 metros antes, era transportada atrás e, por mero acaso, não rebentou, o que teria sido catastrófico para todo o pelotão!
A mina tinha sido accionada pelo pneu do lado direito, pelo que o maridão foi atirado para fora, em estado crítico, não tendo o condutor sofrido senão pequenos ferimentos, apesar da força do embate!
Um helicópetro transportou-o para Bissau, tendo acordado uns dias mais tarde numa cama no Hospital Militar, sem uma perna e tendo por companheiro de quarto o capitão Peralta, cubano, cuja captura tão noticiada era nos media de então. (...)
(*****) Sobre o Pel Caç Nat 60 e a mina que vitimou o alf mil Nelson Gonçalves: Vd. postse:
(i) Foi formado a 7 de Maio de 1968, em S. Domingos;
(vii) o primeiro comandante foi o ex-alf mil Luís Almeida, rendido pelo ex-alf mil Nélson Gonçalves (, ao tempo do BCAV 2876, São Domibgos, 1969/71);
Guiné 61/74 - P22013: Historiografia da presença portuguesa em África (256): Libelo de António de Saldanha da Gama contra a abolição da escravatura em "Memória sobre as colónias de Portugal situadas na Costa Ocidental de África"; 1814 (2) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Julho de 2020:
Queridos amigos,
Anda por aí esse novo fenómeno social em torno de Portugal e dos escravos, falando de culpa do Ocidente cristão e do abominável negócio de escravos africanos para a Europa e América, Portugal estaria inteiramente nesse banco dos réus. O que acontece é que todo este processo embusteiro está fartamente documentado, só pode granjear adeptos entre fanáticos. Já não falo dos servos medievais, se a Igreja de Roma e os credos protestantes muitas vezes defenderam a pessoa humana, se houve o Padre António Vieira e a República Jesuíta do Paraguai, também houve cumplicidades, até padres cabo-verdianos andaram metidos no tráfico. E os árabes? Porque é que se faz tábua rasa do esclavagismo muçulmano, enquanto os árabes andaram afoitamente no Mediterrâneo, na Idade Média, não se dedicaram ao tráfico de escravos? Saquearam e piratearam e raptaram, estamos a falar de turcos. O império otomano tinha escravatura; a indústria da castração era uma especificidade do esclavagismo árabe-muçulmano. São realidades bem documentadas, e já não falo das castas indianas nem na escravatura que existiu no Império do Meio. Mas em nada desabona esta leitura do Conde de Porto Santo, terrífica e paradoxal, estamos a falar de alguém que sonha com a industrialização e com o desenvolvimento mas que trata o africano como um menor mental que está à espreita de todos os eflúvios da civilização cristã. Viram-se os resultados com as independências africanas.
Um abraço do
Mário
Libelo de António de Saldanha da Gama contra a abolição da escravatura (2)
Mário Beja Santos
António Saldanha da Gama, como dissemos anteriormente, era alguém na linhagem e na política portuguesa: Conde de Porto Santo, Par do Reino, Grã-cruz de várias Ordens, Chefe da Esquadra da Armada Real, Ministro Plenipotenciário e Embaixador em diversas Cortes. Foi ainda Governador e Capitão-General do Reino de Angola. Em 1839, consolidada a monarquia constitucional, Saldanha da Gama publica textos seus datados de 1814, Memória sobre as colónias de Portugal situadas na Costa Ocidental de África, precedida de um discurso preliminar. É um documento que provocará um certo estado de choque junto daqueles que andam nos últimos tempos a adoçar a natureza do esclavagismo à portuguesa.
No termo da exaltação que faz à valorização das colónias da África Ocidental, emite um juízo quanto ao modo como se deveria no futuro processar essa administração, como escreve:
“As possessões coloniais são geralmente consideradas entre nós como espécies de herdades que de nada valem quando directamente não rendem somas líquidas para o Tesouro. A utilidade e importância das colónias não consiste, todavia somente no rendimento que delas entra directamente nos cofres públicos, mas também nos lucros do comércio exclusivo que com elas faz a mãe-pátria, nos empregos que elas fornecem à população do país de que dependem, no alimento que dão à navegação nacional, etc. Estas vantagens são tão grandes que compensam exuberantemente a falta de rendimentos directos, e mesmo as despesas que com as colónias faça a metrópole (…) Cumpre não perder nunca de vista que as colónias concorrem eficazmente para a riqueza nacional, ainda quando não rendam coisa alguma para o Tesouro. O sistema espremê-las é não só iliberal, mas impolítico e funesto”.
Agora a nota mais curiosa deste documento é que o Sr. Conde de Porto Santo era a favor da escravatura, e escreve sem qualquer dissimulação o que pensa sobre a matéria, qualquer coisa de extraordinário e que até agora nada de parecido tive a oportunidade de ler:
“Deslumbradas pelas descrições patéticas e ardilosas dos horrores do tráfico, descrições pelo menos exageradas, e calculadas para encobrir o verdadeiro motivo delas, correram a alistar-se sob as bandeiras da filantropia inglesa grande número de pessoas de boa fé, que cuidavam fazer grande serviço à humanidade combatendo a favor dos projectos interesseiros, mas arteiramente apregoados como puramente filantrópicos da Grã-Bretanha. Por que razão não merecem à Inglaterra igual zelo os escravos cristãos das regências barbarescas, os escravos do Egipto, da Pérsia, da Turquia, os servos da Rússia, etc.? Será porventura porque a cor preta melhor excita as simpatias britânicas?
Quem viu de perto os povos negros de África, quem conhece a feroz crueza das suas leis e dos seus usos, a imensa quantidade de crimes e de contingências fortuitas que envolvem a perda da liberdade, não pôde deixar de reconhecer que o tráfico, ou como mais propriamente se dizia em outro tempo, o resgate dos negros, era um bem para a humanidade.
A escravidão em terra de cristãos, por dura que seja, é sempre muito preferível à escravidão em terra de bárbaros, e tanto é assim que havendo no Brasil grande número de negros Forros, e partindo dali frequentes navios para a costa de África, ainda não houve um daqueles negros que quisesse voltar para a sua pátria. A filantropia sensata e bem entendida deveria, portanto, começar por civilizar a África antes de se ocupar da abolição do tráfico; mas seria isso possível? Motivos bastantes há para o duvidar. Em Angola estiveram os jesuítas, a quem se não pode negar o talento de civilizadores; ali estamos nós há alguns séculos, e, todavia, os povos em trato e contacto connosco acham-se hoje com pouca diferença no mesmo estado em que se achavam quando pela primeira vez aportámos àquelas regiões. O preto não carece, a bem dizer, nem de casa nem de vestuário para se defender das inclemências da atmosfera, o seu sustento é simples e frugal, e pouco trabalho lhe basta para satisfazer a estas simples precisões. O clima que o preto habita favorece naturalmente a preguiça. Nestes termos, como trabalhará o preto além do estrito indispensável para prover à sua parca subsistência, se não tiver necessidades factícias a que queira satisfazer?
Mas a que se reduzem as necessidades factícias que até agora se tem podido introduzir entre eles? Algumas louçainhas, missangas, armas e o líquido fascinante da gerebita (cachaça brasileira), que tanto prezam os povos selvagens. Mas não se creia que para obter os objectos mesmo que lisonjeiam a sua vaidade ou o seu paladar, o preto seja capaz de se dar a grandes trabalhos, pois a estes prefere ele sempre a privação daqueles, e as doçuras da preguiça e da calaçaria. As necessidades factícias nunca para o preto se transformam em verdadeiras, e enquanto isto assim for, como poderá a civilização penetrar nos sertões africanos? Ora, enquanto a África permanecer no seu estado actual de barbárie, o resgate dos negros escravos, ou a mudança do senhor bárbaro para senhor civilizado, que vem a ser o mesmo, parecerá um acto de humanidade a todo o homem despido dos prejuízos de uma falsa filantropia, e que vir as coisas como elas são, e não como o interesse ou a paixão as pintam. Os males e inconvenientes do tráfico dos pretos, e sobretudo do tráfico enquanto foi lícito e sujeito à vigilância das autoridades, não redundavam em prejuízos dos pretos, mas sim dos povos que as admitiam em seu grémio. Considerado por este lado, o tráfico deveria certamente cessar o quanto antes, mas olhado filantropicamente, a sua cessação, em vez de ser um bem, é um mal para a humanidade. Tem-se dito e crido de leve, que o tráfico da escravatura era um incentivo, e uma causa de frequentes guerras dos pretos; como se quem move a guerra pudesse estar certo da vitória, quando aliás nada há tão incerto e dependente de contingências fortuitas, de acasos não sonhados, e dos favores da fortuna. O potentado que fizesse guerra por especulação, para colher cativos, não podia deixar de prever que, se a sorte lhe fosse avessa, cairia ele e o seu povo no cativeiro que ao inimigo preparava. Com igual lógica se poderia dizer que o tráfico da escravatura era estorvo e impedimento de guerra, pelo horror salutar do cativeiro a que ficavam indubitavelmente sujeitos os vencidos. Na verdade, com melhores intenções, nunca se propagaram tantos erros, nem se disseram tantos disparates, como nesta questão da escravatura!”.
Assim pensava o Conde de Porto Santo e escusado é dizer que deixou uma certa escola.
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Nota do editor
Último poste da série de 10 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21990: Historiografia da presença portuguesa em África (255): Libelo de António de Saldanha da Gama contra a abolição da escravatura em "Memória sobre as colónias de Portugal situadas na Costa Ocidental de África"; 1814 (1) (Mário Beja Santos)