sexta-feira, 22 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23186: Manuscrito(s) (Luís Graça (212): Em memória de Maria Irene Martins (Lisboa, 1944 - Grenoble, França), assistente social, imigrante, católica progressista, ativista política contra a guerra colonial e o Estado Novo, amiga e colega da Alice Carneiro, assistiu semi-clandestinamente em Lisboa ao 25 de Abril de 1974

 


Lisboa >Parque das Nações > 22 de setembro de 2011 > A Alice Carneiro e a Irene Martins



Lourinhã > Moledo > 24 de junho de 2012 > "Por terras de Pedro e Inês"... Irene Martins e Alice Carneiro


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Maria Irene Martins
(Lisboa, 1944 – Grenoble, França, 2022) foi uma querida amiga e colega de trabalho da Alice Carneiro. Deixou-nos muito recentemente, aos 77 anos, vítima de ataque cardíaco, na véspera  de partir com a neta para uma viagem de turismo à Madeira. Vivia em Grenoble, desde o início dos anos 70. Tem dois filhos. Era uma pessoa muito estimada entre a comunidade francesa e portuguesa. 

Conhecia-a pessoalmente em 2011, em Lisboa, no Parque das Nações. E no ano seguinte foi nossa anfitriã na Lourinhã. Voltámos a encontrarmo-nos, no Norte, em Candoz e em Tormes, em 2015. Juntou-se aqui com a Alice e várias antigas colegas de trabalho da Junta de Colonização Interna.

Assistente social, católica progressita, formou-se no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, o mesmo onde o nosso saudoso Jorge Cabral será depois professor a seguir ao 25 de Abril de 1974. Não sei se alguma vez se conheceram.

Trabalhou, com a Alice, na antiga Junta de Colonização Interna. Casou-depois com um francês, e emigrou para Grenoble. Aqui desenvolveu um notável trabalho, solidário, de apoio não só aos jovens que fugiam à guerra colonial (faltosos, refractários, desertores e exilados políticos) mas também simples trabalhadores, imigrantes. Pela sua casa também passaram cantores de intervenção como Zeca Afonso, Zé Mário Branco, Fanhais, Tino Flores e outros.

Aos filhos e netos, eu e a Alice já  endereçamos os nossos mais profundos votos de pesar pela brutal notícia da sua morte. Já seguiu também, para um dos filhos, uma seleção de fotos, de 2011 e 2012,  que fizemos, do nosso álbum. Temos mais, de 2015, tiradas no Marco de Canaveses e em Baião,  não disponíveis de momento.

2. Tomo, entretanto,  a liberdade de reproduzir aqui um excerto do livro "Exílios: testemunhos de exilados e desertores portugueses na Europa (1961-1974)", Carcavelos, Associação de Exilados Políticos Portugueses (AEP61-74), 2017, 160 pp.  Um dos 21 autores deste volume  I de "Exilios"  é a Maria Irene Martins.

O seu testemunho ("Desertores e refractários, pp. 53-58) pode ter um interesse adicional para os leitores do nosso blogue, ao dar uma ideia, mais aproximada, dos caminhos do exílio e da emigração que muitos portugueses da nossa geração percorreram.  E é também revelador da personalidade, da generosidade,  da solidariedade e da alegria de viver da Irene Martins, de quem também guardo saudades, e de quem fiquei amigo, mesmo só  tendo privado com ela em três curtos momentos das nossas vidas. A amizade, de resto, não tem barreiras nem preconceitos nem bandeiras. Até sempre, Irene!


Capa do livro "Exílios" (1º volume, 2016), de que a Maria Irene Martins é coautora (conforme nosso sublinhado a vermelho).


Maria Irene Martins, Grenoble,  França - Desertores e refractários (pp. 53-38) (com a devida vénia ao editor e aos herdeiros da autora...)




(…) A primeira acção de ajuda a desertores do serviço militar e refractários à Guerra Colonial [sic], surgiu logo no início da minha formação no Instituto Superior de Serviço Social (ISSS) [em Lisboa] quando a nossa colega e amiga Gabriela nos pediu, à Isabel e a mim, para levar o seu namorado e dois outros amigos para França, de onde eles partiriam para outros destinos. [Este episódio deve ter-se passado em meados de 60, a autora em 1962 já tinha 18 anos, já seria emancipada e teria passaporte, e deve ter sido o ano em que entrou no ISSS].

Lá fomos, eu e a Isabel, amiga desde os anos do liceu [Rainha Dona Leonor]. Ela conseguiu um carro emprestado pela família. Um Diane azul.

Partimos as duas de Lisboa, dormimos perto de Leiria, na casa de férias da família da Isabel. Na manhã seguinte, sem querer dar nas vistas, pusemos tudo em ordem de marcha, os sacos dos rapazes atrás, os nossos bem à vista e a merenda para a viagem. Logo aconteceu que a Isabel, ao sair, fez resvalar o carro que ficou prisioneiro numa vala da estrada. Lá foi chamar o caseiro que veio com o tractor para tirar o Diane, mais a aldeia em peso, para ajudar a “menina”...

Passado o acontecimento fomos até à Guarda onde dormimos numa pensão. A cama cheirava a “ pés sujos “ que se fartava ... Tínhamos encontro de manhã cedo em Espanha, numa estrada secundária. Passámos a fronteira 
[em Vilar Formoso ] sem dificuldade e lá os encontrámos. Partimos numa alegria contagiante que nos apanhava as entranhas.

Os rapazes atrás, as raparigas à frente, mapa de Espanha na mão. Quando chegámos à fronteira Espanha/França, em São Sebastião, os rapazes deixaram as roupas e subiram ao longo do rio para o passarem a vau.

Deixámos decorrer algum tempo e passámos a fronteira sem incidentes. Gritámos uf! E lá seguimos para o sítio do encontro em França.

Ao fim de uma grande subida, um carro da polícia francesa manda-nos parar. Garganta seca, fizemos como se não soubéssemos falar francês, não respondemos às perguntas que nos fizeram, mas falávamos muito em português. Eles queriam saber aonde íamos e porque tínhamos roupa que não era nossa no carro, a quem pertenciam aquelas calças e aqueles sapatos. Depois de revistarem tudo, foram-se embora.

Arrumámos o carro como pudemos e partimos rumo a uma estrada secundária na direcção de um ribeiro que faz a fronteira. Lá esperámos. Ao fim de um certo tempo, vimos surgir os nossos amigos. Chegaram todos molhados e sujos do “rio da merda”, como eles lhe chamaram. Sentadas numa vereda, esperámos que eles se limpassem e vestissem.

Já fazia escuro quando voltámos à estrada. Calados de medo, seguimos até Biarritz. Comemos e depois procurámos um albergue, enquanto os rapazes foram para a estação dos comboios. Era ali o fim da nossa viagem juntos. Abraçámo-nos emocionados. Foi difícil deixá-los, pois apetecia acompanhá-los até ao fim da viagem.

No dia seguinte, regressámos. Passámos por Pamplona, pois tínhamos dito à família que íamos às festas desta cidade [referência às famosas festas de São Firmino, que se realizam anualmente de 6 a 14 de julho]. Queríamos trazer alguns panfletos e outra publicidade que confirmassem a nossa “história”.

(…) A passagem da fronteira portuguesa foi complicada. Obrigaram-nos a estacionar o carro num parque, atrás da alfândega. Fomos levadas para dentro da alfândega onde nos interrogaram. Este tempo pareceu infinito. As respostas tinham sido já pensadas antes de partirmos. Muito firmes, respondemos a tudo. Eu tinha em mente uma frase do nosso professor de filosofia, Honorato Rosa [padre católico, falecido em 1968] , “A verdade é para quem a merece”.

Voltámos para o carro, com dois polícias que o desmancharam todo. Tiraram tudo do porta-bagagens, os revestimentos do porta-bagagem, o pneu sobressalente, enfim, um pavor! Por fim deixaram-nos passar. Não soubemos se telefonaram para Lisboa, para as nossas famílias, ou não. Mas passámos um mau bocado.

(...) Estas ajudas continuaram com outras modalidades e outras cumplicidades (…) O Carlos foi um dos últimos refractários que ajudámos a sair de Portugal, desta vez pelos lados de Trás-os-Montes. Era o amigo da Merita, minha amiga desde os nossos estudos universitários.

Ela foi ter com ele a Grenoble, e eu fui visitá-los várias vezes ao Chemin Jésus, nome da rua onde ficava um apartamento, numa casa antiga, com grandes quartos onde se vivia em comunidade entre os refugiados, desertores, refractários e exilados, numa convivência de “república de estudantes coimbrões”.

Aí conheci um francês que, mais tarde, no Verão de 1970, me veio visitar com a Merita e mais amigos, ao Norte de Portugal, onde trabalhava.(…)

(...) Fins da Primavera, princípios do Verão de 1973, amigos meus chegaram a Grenoble, fugidos de Portugal, a seguir à prisão da Xexão com a célebre “mala das armas”.

A nossa casa, um apartamento num bairro popular da periferia de Grenoble, onde viviam muitos compatriotas, meus vizinhos, transformou-se num albergue. Tentámos encontrar soluções para os amigos e outros portugueses fugidos à guerra. (...)

Nessa altura, conheci outras “redes” como a associação Chrétiens français-immigrés ["Ronda do Soldadinho", canção de José Mário Branco gravado em 1969 com o apoio de associações de imigrantes  portugueses] (...)

(…) A minha vida de imigrante em Grenoble era muito agitada. A semana começava às 6 horas da manhã no hospital e nunca acabava, pois a seguir ao trabalho eram os encontros e as reuniões.

Algum tempo depois de eu chegar a Grenoble, os imigrantes revoltaram-se contra as leis racistas francesas. Os imigrantes que habitavam nos “lares dos trabalhadores” fizeram greve.

(...) Os imigrantes portugueses estavam pouco organizados com os outros colegas de trabalho, não conheciam os sindicatos, queriam ser discretos, não dar nas vistas. Era preciso explicar, mobilizar.

(...) Em Varses e Vif, cidades muito perto de Grenoble, onde existiam muitos portugueses , ensinávamos cantigas, explicando o texto e o sentido da história : “Um e dois e três, era uma vez um soldadinho” teve grande sucesso.

Sábados e domingos, depois do almoço, íamos para as Associações de Portugueses: Em Echirolles onde vivia, no bairro Des Alpins, em Fontaine, no Clos d’Or....

Nós, o Noël [,o marido,] e eu, ficávamos com os mais jovens, crianças e adolescentes, cantávamos, dançávamos, discutíamos, falávamos de Portugal, das colónias, da guerra, da imigração...

Também falávamos da História de Portugal. Mostrávamos diapositivos dos monumentos, etc. Tanto os pais como os filhos, conheciam de Portugal, apenas a aldeia de onde vinham, onde passavam as férias e onde construíam “a casa”.

Sexta-feira à tarde ou sábado de manhã, nós as mulheres, preparávamos os nossos encontros do fim-de-semana. Lá em casa era um regabofe. Umas descascavam as batatas, outras desfiavam o bacalhau, picavam cebolas e salsa. Tudo isto no meio de cantares e histórias das vidas vividas. Risadas e falares alto com grande alegria e entusiasmo. Bons momentos de confidências e convivência.

(...) Nessa altura, a nossa casa estava à disposição de todos os que vinham pois tínhamos espaço e comodidades. Estou a ver ainda o Zeca Afonso, a fazer composições de novas músicas e novas letras e a gravar, em várias vozes sobrepostas, no nosso gravador, numa cassette que ainda tenho.

Nestas manifestações, os pastéis de bacalhau eram indispensáveis e, lá estávamos nós, as mulheres, às voltas a fazermos quilos e quilos de frituras que perfumavam a casa durante semanas.

Nesta altura, em França, e sobretudo em Grenoble, onde nasceu o Planeamento Familiar, uma militância importante cresceu entre as mulheres portuguesas e as mulheres francesas.

(...) Reuníamos entre nós para trabalharmos sobre acções políticas, para mobilizarmos a opinião pública francesa, na denúncia da política fascista e colonialista em Portugal.

Mobilizar a opinião pública internacional era um meio muito importante e eficaz na luta contra a política portuguesa, sempre muito sensível ao que se dizia de Portugal, no estrangeiro. Sempre foi assim e continua a ser.

(...) As reuniões faziam-se em nossa casa. Longas noites e longas tardes de Sábado, onde o sério se conjugava com risadas e anedotas.

(...) Mais tarde, formámos uma associação francesa (sob a lei de 1905), o GAP (Grupo de Acção Política), para termos acesso ao espaço público francês de maneira oficial.

(...) Voltemos a Grenoble e aos anos 1973/74. As manhãs de domingo eram dedicados à venda de O Alarme nos mercados. Éramos muitos, nesta tarefa militante, pois O Alarme chegava a todos os mercados de Grenoble e arredores. ["O Alarme" era um jornal regional, criado em Junho de 1972, sendo destimado aos imigrantes portugueses; era de publicação mensal e distribuído na região de Grenoble].

(...) Também íamos a cidades mais longe onde os portugueses nos esperavam para aqueles dois dedos de conversa, trocas das novidades do País e das famílias. Lembro Vienne, Rives, Tulin... Depois fazíamos as nossas compras. Vínhamos sempre carregados de couves e outros legumes bem ao nosso gosto, chouriços e outras delícias.

(...) Como sempre, éramos mais mulheres que homens . O “machismo”, bem português, também aí se fazia sentir pois tínhamos que seguir à letra o que o “chefe” dizia e estipulava. Brigávamos muito mas recomeçávamos sempre.

(...) A ida a Portugal para irmos buscar “os últimos objectores e refractários” foi a 22 de Abril 1974.

Partimos, o Noël e eu na nossa Renault 4L, rumo ao Alentejo. Ficámos em Madrid em casa do Bart, um amigo meu, holandês expulso de Portugal. Ele deu-nos as últimas notícias dos amigos que tinham sido presos nuns dias anteriores e insistia comigo para não seguir viagem pois, dizia ele, se eu entrasse em Portugal ia “dentro”, como os nossos amigos. A PIDE andava muito assanhada.

Nós tínhamos compromissos e partimos no dia seguinte. Escolhemos entrar pela fronteira de Vila Real de Santo António, mais discreta.

(...) Resolvemos seguir caminho. Parámos em Sines. Fomos comer alguma coisa num café. Que espanto, ouvíamos na rádio música e cantares proibidos. Não era possível! Perguntámos o que se passava. O empregado não sabia muito bem. Falava-se de Movimento das Forças Armadas. Ninguém sabia muito bem o que se passava em Lisboa.

Uns gritavam “Agora é que é ! O governo já caiu” . Outros gritavam “Ai meu Deus, que eles vão matar o povinho todo”.

Resolvemos vir rapidamente para Lisboa, sem parar em Évora onde tínhamos encontro com alguém que nos devia indicar o que devíamos fazer em seguida.

(…) Em Lisboa percebemos TUDO! Vimos amigos, sentimos o alvoroço. Fomos até à casa dos meus pais, no Bairro do Arco Cego, em frente do Ministério do Trabalho. “Chaimites” impediram que parássemos o carro em frente da casa.

Os meus pais estavam à janela do primeiro andar da moradia. A curiosidade era maior que todos os medos. A minha mãe, sempre com medo das revoluções e das guerras civis, que lembravam a sua infância, dizia-me “se eles te vêem minha filha... Isto está muito feio. Não sei em que isto vai dar”. Mas não saía da janela!

Telefonei, marcámos encontros, trocamos alegrias e esperanças. Saímos para ir para a Baixa. Não havia autocarros, nem Metropolitano. Fomos pelas Avenidas Novas em direcção ao Saldanha, com a intenção de descer a Avenida da Liberdade. Não pudemos avançar. Toda a Lisboa estava na rua.

O resto todos sabemos! 

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos e paratênses rectos com legendas explicativas, para publicação exclusiva no blogue: LG]

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Nota do editor:

Último poste da série > 18 de abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23179: Manuscrito(s) (Luís Graça) (211): "Viva o compasso pascal / Desta linda freguesia, / Fizeram-nos muito mal / Estes dois anos de pandemia."

quinta-feira, 21 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23185: Humor de caserna (52): O anedotário da Spinolândia (II): "Não, não quero falar com o teu comandante, quero falar contigo!" (Tino Neves, ex-1º cabo escriturário Tino Neves, CCS/BCAÇ 2893, Nova Lamego, 1969/71)


Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > CCAÇ 2588 > Natal de 1970 > Destacamento de Bindoro > Visita no gen Spínola (1)

Foto (e legenda): © José Torres Neves (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Tino Neves, foto atual,
bancário reformado,
vive na Cova da Piedade,
Almada
1. Esta história do gen Spínola, verídica, é/foi contada  pelo nosso camarada Constantino (ou Tino)  Neves, ex- 1º. cabo escriturário, CCS / 
BCAÇ 2893 (Nova Lamego, 1969/71). 

Sem qualquer tom depreciativo usa, no fim, o
vocábulo "Spinolândia" para se referir à Guiné
do seu tempo. O termo, de resto, era popular durante o "consulado de Spínola" (1968-1973), e nomedamente 
na zona leste (regiões de Bafatá e de Gabu).

O nosso editor, também sem qualquer intuito depreciativo, vai incluí-la no "andedotário da Spinolândia". Muitos dos nossos leitores mais recentes  nunca a lerem. 

Spínola tem mais de 410 referências no nosso blogue, muito mais do que qualquer outro governador-geral e comandante-chefe (Arnaldo Schulz, por exemplo, tem menos de 90; Bettencourt Rodrigues tem pouco mais de 50).

Esclareça-se o que se entende por anedotário e anedota. O anedotário é uma coleção de anedotas. A anedota é. segundo os dicionários: 

(i) uma breve narrativa de um caso verídico pouco conhecido; 
(ii) uma pequena narrativa que provoca (ou pretende provocar) o riso; 
e (iii), também se diz, em tom depreciativo, de uma pessoa que, pelos seus ditos ou atitudes, provoca riso ou é motivo de troça. 

No nosso blogue não há (ou não deve haver) lugar à "anedota" nesta última aceção, referindo-se a camaradas ou a comandantes operacionais... que passaram pelo TO da Guiné, embora tenhamos conhecido alguns...

2. A spinolândia, 
por Tino Neves

Vou contar uma pequena estória do nosso General Spínola. Das poucas visitas programadas que fez, houve uma, não programada, muito especial.

Um determinado dia, pousou na pista de Nova Lamego, uma DO-27, e quando o único soldado, que estava de guarda à pista, se apercebeu de quem se tratava, já o General Spínola e o seu guarda costas 
[ou talvez ajudante de campo]um capitão paraquedista, estavam junto dele. Apalermado, correu logo para o telefone.

O General Spínola perguntou então ao soldado:

 O que é que vais fazer?
 Vou telefonar ao nosso Comandante, a dizer que o Sr. está aqui!
 Não, não vais ligar, não quero falar com ele, vim aqui falar contigo.
 Comigo???
 Sim, contigo!!!

Spínola falou com o soldado durante 30 minutos, e logo a DO-27 levantou voo.

O soldado então depois disso, ligou então a dizer ao Comandante do Batalhão, o Sr. Tenente Coronel Fernando Carneiro de Magalhães, que tinha acabado de falar com o Sr. General Spínola durante 30 minutos.

O Comandante Magalhães, admirado, pergunta:

 Então e não me avisaste?!
 O nosso General não deixou, disse que só queria falar comigo!
 Contigo???
 Sim, comigo!
 Então o que era que ele queria?
 Saber se eu gostava de estar aqui, se comia bem… assim essas coisas.

Conclusão, o General Spínola, da última vez, que tinha visitado Nova Lamego, em visita programada, tinha deparado com um quartel que estava um primor, só faltava estar todo embandeirado com pequenas bandeiras de várias cores, e os militares a dançarem o Vira, o Fandango ou qualquer outra dança tradicional portuguesa, para mostrar que estávamos todos alegres e contentes, e satisfeitos por termos nascido.

E o nosso General sabia disso, quando as visitas são programadas. E nós também, tanto que nós dizíamos que não estávamos na Guiné, mas sim na... Spinolândia. (**)

Tino Neves
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 5 de abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1647: Estórias do Gabu (2): A Spinolândia (Tino Neves)

(**) Último poste da série > 20 de abril de  2022 > Guiné 61/74 - P23182: Humor de caserna (51): O anedotário da Spinolândia (I): "Sabes o que é um lapso, rapaz?" (Rogério Ferreira, ex-fur mil at inf, MA, Teixeira Pinto, Bachile, Nhamate, Galomaro, Nova Lamego, Pirada, Paiama, Paunca, Sinchã Abdulai e Mareue, 1970/71)

Guiné 61/74 - P23184: (In)citações (203): Nós, os fulas e os nossos (mal-)entendidos, a propósito da expressão "(lavadeira) para todo o serviço" (Cherno Baldé / Mário Miguéis)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Rio Corubal > Rápidos do Saltinho > 3 de Março de 2008 > Lavadeiras do Saltinho.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentários ao poste P23180 (*):

(i) Cherno Baldé (Bissau):

O Sector de Empada, na região administrativa de Quínara, é habitada maioritariamente por Biafadas, contando com uma presença negligenciável de outras etnias como Fulas, Manjacos e Papel. De referir que esta localidade deu alguns comandantes dignos de registo ao movimento da libertação.

Quanto ao caso em apreço, como é habitual no contacto entre europeus (portugueses) e africanos, na minha opinião, deve haver um "grande" mal entendido, derivado da diferença de culturas e da deficiente comunicação entre os comunicantes de parte a parte, pois que, em meados de 1964 o nivel de percepção e entendimento correcto da lingua portuguesa a nível de todo o territorio não devia ultrapassar os 2% do total da população. 

E numa localidade como Empada, no início da guerra, devia ainda ser muito inferior e o ex-alf mil  Joaquim Jorge fala de dois homens grandes que, na melhor das hipóteses, nem o Crioulo dominavam.  Qual podia ser o diálogo possível entre um alferes metropolitano que não conhecia uma única palavra dos locais e dois homens grandes que nem sequer falavam o Crioulo?... Certamente um enigma.

E,  de mais a mais, em nenhuma sociedade conhecida do mundo, seja ela "civilizada" ou "arcaica",  um(a) avô/ó  poderia atribui-se a si a prerrogativa de dar a outrem, seja em que condições fossem, a sua neta para ser usada "para todos os serviços". Isto não pode existir senão na cabeça de alguém que desconhece completamente a cultura dos fulas.

Na verdade, em Empada, existia e penso que ainda continua a existir uma pequena comunidade de fulas dispersos pela zona e que, com o início da guerra, poderiam concentrar-se em Empada por razões de segurança, mas habitando fora do seu chao de origem, não estariam organizados colectivamente de modo a ter uma chefia, de modo que o homem grande em questão deveria estar a agir por sua conta e risco e não representava ninguém em particular a não ser que a isso fosse impelido por força da guerra e pela presença intimidante da tropa.

Em África, foram registados e são bem conhecidos os casos de ofertas de serviços (inclusive sexuais) a certas personalidades estrangeiras e não só como forma de hospitalidade em contextos variados e que vinham de períodos anteriores à colonização, mas que, todavia, não era uma particularidade unicamente africana, pois antes da chegada dos europeus a África já mantinha relaçoes seculares com os povos do Mediterrâneo Sul e do Médio Oriente.

Não é a primeira vez que leio estórias semelhantes vindas de portugueses (metropolitanos) que, se bem que possa haver alguns casos verídicos, na maior parte são fruto de uma interpretação errada dos factos e/ou de pura imaginação ligada a preconceitos tipicos do período do Estado Novo.

PS - O nome indicado como sendo do homem grande (Xalá) nao existe na nomenclatura da língua e cultura fula. E eu vejo nisso mais um indício da fraqueza do facto testemunhado.


(ii) Mário Miguéis (Esposende):

Nos meus dois anos de comissão na Guiné, salvo um breve contacto de duas semanas com balantas, nos Nhabijões, só estive em regiões onde os fulas eram, sem exceção, a etnia dominante. 

E, pelo que me foi dado observar ao longo do tempo (e eu lidava muito com as populações), não havia, nem de longe nem de perto, situações como a descrita pelo nosso camarada Joaquim Jorge, ou seja, não havia, pura e simplesmente, casos de favores sexuais prestados por responsáveis nativos a quem quer que fosse. 

Aliás, acompanhei a rendição de uma por outra unidade ao longo de todo o período de sobreposição e não só ninguém veio propriamente prestar vassalagem aos vindouros como os nossos anfitriões se mantiveram sempre à distância até o comandante da nova companhia lhes ser apresentado. 

Os fulas eram muito "senhores do seu nariz" e, para além disso, sabiam "dar-se ao respeito", comportando-se com uma dignidade que eu sempre admirei. 

Por isso me inclino para a tese do nosso camarada Cherno Baldé, justificando a confusão que se gerou na cabeça do novel e imaturo comandante (que me perdoe a piada o nosso camarigo Joaquim Jorge, que muito prezo) com uma incorreta tradução dos serviços a prestar (de lavadeira, não mais que isso) por parte do inabilitado intérprete, ele próprio traído, se calhar, pela tal expressão da "criada/lavadeira para todo o serviço",  muito utilizada, com a costumeira fanfarronice, por alguns militares menos discretos.

Agora, relações sexuais deste com aquela e daquela com este, independentemente de favorecimentos, isso é óbvio que acontecia com a naturalidade que acontece ainda hoje em qualquer parte do mundo. 

E, já agora, quanto à nomeação dos atores em presença, o bom senso ditará sobre a sua inconveniência ou não, tendo em atenção os usos e costumes, ao tempo, de cada grupo étnico. (**)
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 19 de abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23180: Recordações de Empada do meu tempo (Joaquim Jorge, ex-alf mil, CCAÇ 616, 1964/66) (1): Xalá Baldé, o homem grande da etnia fula, que me veio prestar vassalagem e oferecer a sua neta, jovem e bonita bajuda, "para todo o serviço"...

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23183: Historiografia da presença portuguesa em África (313): Informações da Guiné na Memória do Tenente Bernardino de Andrade (1777) (Mário Beja Santos)

Carta da Costa Ocidental de África, feita em Amesterdão, 1705


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
É mesmo para ter em conta o que aqui relata o Tenente Bernardino António Álvares de Andrade, a viver há dez anos e oito meses na Praça de S. José de Bissau, escreve uma Memória para um Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor que não sabemos de quem se trata, e dá-lhe informações preciosas sobre a nossa presença na ilha de Bissau, nas nossas relações com os Felupes e o comércio de Cacheu, desce depois a Tombali e ao rio Nuno, sobe à povoação de Geba e dá-nos a saber que um tal José Lopes ofereceu a Sua Majestade domínio senhorio que tinha na Serra Leoa. Várias ilações podemos extrair deste texto: referências a régulos déspotas nas cercanias da ilha de Bissau, pouca lealdade à soberania portuguesa, algum tráfico negreiro; uma admirável descrição dos Felupes de Bolor e da sua lealdade com Cacheu; negócios concorrenciais de Tombali e em Rio Nuno, na Serra Leoa tinham chegado os ingleses recentemente e hostilizavam às claras a presença portuguesa; considerar a povoação de Geba como a de melhores negócios e de plenos recursos, por ali andou acompanhado de administradores da Companhia de Grão-Pará e Maranhão; e a doação de José-Lopes dos seus bens na Serra Leoa ao rei de Portugal (D. Maria I), que seguramente não teve efeitos práticos. Somando estas parcelas caleidoscópicas que podemos ir formando uma certa ideia do que era a nossa presença na Guiné no último quartel do século XVIII.

Um abraço do
Mário



Informações da Guiné na Memória do Tenente Bernardino de Andrade (1777)

Mário Beja Santos

No Arquivo das Colónias, Volume I, Julho-Dezembro de 1917, encontra-se um bem curioso documento que é a Memória que o Tenente Bernardino de Andrade elaborou em 1777 para informar o Governo da Guiné e dos seus recursos. Um dos aspetos mais curiosos do texto é ele revelar como foi cedido a Portugal o território da Serra Leoa. Em rigor não sabemos a quem se dirige, fala sempre no Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor a quem expõe sobre a ilha de Bissau, a terra firme da Guiné, Serra Leoa e Cacheu:

“Divide-se a ilha de Bissau da terra firme da Guiné por um pequeno rio chamado o de Balantas”. Refere algumas das frutas próprias do país (banana, mamão ou papaia e limão azedo). Fala numa viagem de três horas de Bissau a um outro porto chamado dos Brames onde vivem Balantas: 

“Nação indómita, muito traidores, cruéis nos seus procedimentos, vendem poucos escravos, raras vezes marfim e nenhuma vez cera”. Alude ao porto de Bejamita, na ilha de Bissau, onde se compra sal, arroz, algum milho, azeite de chabéu, diz ser povoada de muita madeira boa, para obras navais e de edifícios, aqui se vendem alguns escravos, é abundante dos frutos próprios do país, tem abundância de peixe, caça de toda a qualidade e produz bem a mandioca. “Deste porto para a Praça de Bissau há caminho por terra, em que se gasta pouco menos de um dia, é governada por um fidalgo despótico no seu governo, mas quando este morre herda o sobrinho filho do irmão, e para herdar dá certos donativos ao rei da ilha de Bissau”

Refere igualmente outros lugares como Safim, porto antes de chegar ao de Bejamita.

Está agora a caminho de Cacheu e refere Felupe do Bote, porto abundante de arroz, milho, galinhas, peixe, porcos, azeite de chabéu, diz ser gente de muito má fé, revoltosos, inimigos declarados de franceses e ingleses, admitem nos seus portos as embarcações portuguesas, neles se fazem negócio de mantimento para a praça, mas com muita vigilância, “e cuidado por amor da sua traição”

Fala igualmente de Felupe de Bolor, dizendo que é gentio manso e que se intitulam vassalos do nosso soberano, praticam as mesmas cerimónias que se veem usar na praça de Cacheu, onde vão levar escravos, mas caros, muitos bons porcos e em bom preço. 

“Esta nação tem por costume ser obrigada, nem lhe ser penoso, quando sucede haver alguma diferença em Cacheu com o gentio do seu continente, logo que ouvem a peça de rebate largam as suas casas e nas suas próprias embarcações, e com as suas armas, nos vêm auxiliar e ajudar à defesa da Praça. Esta nação pouco cultiva, mas são as que mais vendem e aonde se acha mais abundância de mantimentos; porque até as próprias mulheres metidas em embarcações, sem decência alguma em seu corpo, andam comprando de porto em porto; elas são as mesmas que remam nas suas embarcações, as que limpam o arroz, e os maridos só servem para o venderem, e para lhe defenderem a terra dos invasores de outros bárbaros, que lhe acometem”.

O Tenente Bernardino António Álvares de Andrade refere agora a terra firme de Guiné e o caminho de Serra Leoa. Começa em Tombali e fala na venda de escravos, cera e marfim, esta nação Beafada vai vender aos ingleses e franceses que frequentam o rio de Nuno. O porto de Tombali tem abundância de arroz, milho, galinhas, peixe e frutos do país, tem muita caça e muita vaca. Ficamos a saber que o rio de Nuno é povoado pela nação Beafada e alguns Fulas. Nalguns portos deste rio se faz negócio abundante em escravos e marfim, mas caro, pela frequência dos navios estrangeiros. Um deles chama-se porto de Santa Cruz e ainda há alguns vestígios de uma população portuguesa, e nela se adora uma cruz, há cristãos dispersos sem pasto e espiritual. Deste porto faz-se caminho por terra tanto para a Serra Leoa como para Geba. O Tenente Andrade refere o Porto dos Ídolos, povoado de gentio mouro preto, aonde vão carregar franceses e ingleses os seus escravos. No princípio do ano de 1775 principiaram os ingleses de Liverpool a fortificar uma casa de negócio neste porto, para o que tinham levado artilharia e materiais precisos. E adverte na sua memória: 

“Os ingleses não querem dar passagem às nossas embarcações, e quando veem que os capitães são frouxos, e lhe não sabem dizer que aquele continente é conquista descoberta pela nação portuguesa e a esta doado pelos nacionais do mesmo país o direito, que tinham dele ao nosso soberano”.

Fala da viagem da ilha de Bissau para a povoação portuguesa de Geba, demora de quatro a cinco dias sem perda de tempo. 

“Todo o gentio deste sertão estima a correspondência dos nossos nacionais que a eles vendem os escravos, cera e marfim que têm. A povoação de Geba é grande, tem um só padre. O governo desta povoação intitula-se capitão Cabo que se costuma dar este governo aos filhos da terra, e os nacionais do mesmo país, ainda que cristãos, são muito revoltosos, levantados, sem fé além de Deus e sem obediência à de Sua Majestade. É esta a melhor povoação de negócio de Guiné, farta de mantimentos da terra, muito povoada de matos de boas madeiras, cercada de muitas povoações e aldeias de mouros pretos, Soninqués e Fulas. Segue-se o mesmo rio Geba sempre caminhando a leste oito dias de viagem, no fim destes se dá em uma cachoeira por onde não pode passar a embarcação, mas em pouca distância é navegável, e dizem os naturais daquele país que, caminhando-se pela margem daquele rio, se dá em uma grande lagoa, e que desta despede outro rio também de água doce. Esta é a informação mais comum, e certa, que achei em as repetidas jornadas que fiz por terra, e pelo mesmo rio em serviço de Sua Majestade, acompanhando aos administradores da Companhia de Grão-Pará e Maranhão na condução das remessas que se lhe faziam para a dita casa”.

E despede-se do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor referindo a doação que fez José Lopes da Serra Leoa: 

“No ano de 1760 do feliz reinado do fidelíssimo rei D. José, doou José Lopes em presença de todos os seus parentes e cabeças daqueles povos e de todo o povo e por parte do nosso soberano o Capitão Cabo António Godim Sanches e Frei Fernando da Feira e outros se celebrou a escritura de doação para todo o sempre do domínio e senhorio que ele tinha da Serra Leoa, para que Sua Majestade houvesse por bem fortificá-la e fundar nela igreja e convento e tudo mais que fosse do seu real agrado. Tomou posse em nome de Sua Majestade António Godim Sanches e foi remetida a esta Corte pela Secretaria de Estado dos Negócios do Reino. É do que posso informar a Vossa Excelência pelas notas que tenho adquirido em dez anos e oito meses de actual serviço na Praça de S. José de Bissau”.
Capturados e vendidos numa feitoria do litoral
Sónó de bronze com braços laterais e figura de um cavalo na extremidade superior, atribuído ao grupo soninquê. 1,23m. Acervo do Museu Nacional de Etnologia (Lisboa)
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23164: Historiografia da presença portuguesa em África (312): Fundos da gaveta: leituras espúrias sobre a História Antiga da Guiné Portuguesa (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23182: Humor de caserna (51): O anedotário da Spinolândia (I): "Sabes o que é um lapso, rapaz?" (Rogério Ferreira, ex-fur mil at inf, MA, Teixeira Pinto, Bachile, Nhamate, Galomaro, Nova Lamego, Pirada, Paiama, Paunca, Sinchã Abdulai e Mareue, 1970/71)

1.  Não é só do "Gasparinho", "nickname", do cap e depois major art José Joaquim Vilares Gaspar (1935 - 1977) que se alimenta o anedotário da Spinolândia... 

O próprio Com-Chefe e Governador-Geral  do CTIG, António Spínola, brigadeiro e depois general, entre 1968 e 1973, alimentou o bom e o mau hunor das nossas casernas...

Caco Baldé  ou simplesmente Caco era alcunha mais popular do Gen Spínola. Mas também  era tratado por Homem Grande de Bissau,  O Velho. O Bispo... 

Origem da alcunha: vem de caco, monóculo, mais  Baldé, apelido frequente entre os fulas. O historiador Luís Nuno Rodrigues escreveu a sua biografia (Lisboa, A Esfera dos Livros, 2010; a foto ao lado é retirada da capa do livro, com a devida vénia...)

Recorde-se que o monóculo é um tipo de lente corretiva utilizada para corrigir a visão em apenas um olho, sendo constituída por uma lente circular, geralmente com um fio ao redor da circunferência do anel que pode ser associado a uma corda; a  outra extremidade da corda é então ligada ao vestuário em uso para evitar a perda do monóculo. Origem da palavra: do grego: mónos, único e do latim, oculu, olho (Fonte: Wikipedia)..

Andam por aí muitas histórias deliciosas (anedotas ou não) do militar mais carismático do nosso tempo de Guiné.  Vamos tentar compilar algumas, inéditas ou já publicadas. Elas também falam o nosso quotidiano, os nossos camaradas e os nossos chefes.  Na série "Humor de caserna" cabe toda a gente.

Só se contam anedotas de quem a gente gosta, aprecia, valoriza, respeita, teme, e às vezes ama e odeia ao mesmo tempo... E o Gen Spínola foi tudo isto, durante a guerra colonial e depois do 25 de Abril (e até chegou a Marechal, que a democracia é como o sol   quando nasce é para todos, e tem uma esponja grande para limpar as nódos do camuflado)....


2. Havia, por parte da maioria da malta do nosso tempo, do Zé Soldado, mas também dos milicianos, um sentimento algo ambivalente em relação ao Caco Baldé... Não sei se ele era verdadeiramente adorado, como ele gostava de o ser (ou de ter sido), por todos os seus subordinados, os metropolitanos e os do recrutamemto local, a par dos seus queridos "guinéus", do Cacheu ao Cacine.

De um modo geral, as praças respeitavam-no e admiravam a sua maneira de ser e de estar, de comandar, de aparecer onde menos se esperava, a sua coragem física, o seu paternalismo autoritário, o seu populismo ("avant la lettre"), o seu carisma,  a sua "mise em scène", o seu perfil prussiano, o monóculo, o pingalim, enfim, a sua demagogia também, a sua voz de "ventríloquo"...  Era uma figura militar a quem ninguém podia ficar indiferente.

O Caco Baldé, como todos os grandes chefes militares, era  amado  por muito boa gente, mas também  temido, sobretudo  por muitos oficiais superiores,  nomeadamente a nível de batalhão (desde que não fossem da mesma arma do general, que era a cavalaria, diziam as más línguas).  

Dizia-se também que os fulas e os manjacos (as duas etnias mais "leais" às autoridades  portuguesas) o tratavam, com respeito e deferência,  como o "homem grande de Bissau". Penso até que o admiravam muito, nomeadamente as hierarquias daquelas duas comunidades étnicas.  

Não havia sondagens naquele tempo, nem nunca foi feito nenhum plebiscito. Em suma, era difícil de avaliar a popularidade de Spínola com números na mão. Tudo o que se possa escrever é baseado na percepção e observação daqueles de nós que estivemos no TO da Guiné no seu tempo. Mas quem, de nós, pode dizer verdadeiramente que o conheceu? Teríamos que  ter o testemunho daqueles.

O anedotário da spinolândia é muito maior que os  textos que já aqui publicámos sobre o humor de caserna... No meu tempo (1969/71), tenho a ideia que toda a gente contava anedotas do Spínola... Mas, passados todos estes anos, parece que até as anedotas do Homem Grande de Bissau  ou do Caco Baldé se nos varreram da memória...

Fica aqui o apelo para refrescarmos as nossas memórias. O humor de caserna é um antídoto contra a crise, a depressão, o mau-estar, o azedume que a idade também traz consigo, bem as núvens negras que atingem nesta altura a Europa e o resto do Mundo...

Começamos por republicar aqui, uma história que nos foi enviada em  1 de outubro de 2008,  pelo Rogério Ferreira, natural de Santarém, ex-fur mil at inf,  Minas e Armadilhas,  CCAÇ 2658/BCAÇ 290
5 (Teixeira Pinto, Bachile, Nhamate, Galomaro, Nova Lamego, Pirada, Paiama, Paunca, Sinchã Abdulai e Mareue, 1970/71) (Foto à esquerda).


3. Anedotário da Spinolândia (1): 

Sabes o que é um lapso, rapaz ?

Quando da minha passagem por Paunca, estive num destacamento chamado Paiama [, na margem esquerda do Geba Estreito, a noroeste de Paunca,] e, alguns dias após o Natal de 70,  tivemos a visita do heli.

Mandados os soldados de piquete para a orla da mata a fazer segurança, o heli aterrou. Apareceu-nos então um sr. Capitão em passo de corrida, dizendo que era uma visita do nosso general (Caco Baldé), e que os soldados formassem como estavam nem que fosse em cuecas.

Logo instantes depois aparece o nosso General no seu camuflado de manga curta e seu monóculo. Olha em volta e, dando indícios de não conhecer o sítio, diz:
  Eu nunca aqui estive, isto quer dizer que não vos dei os votos de Boas Festas.

E virando-se para um dos nossos soldados, o J. J. 
 natural da Torre da Gadanha e cuja mãe lhe enviava umas ricas Boias, ou seja, pedaços de lombo de porco em banha numas latas tipo Cerélac, o qual hoje é carteiro na zona da Amadora  disse:
− Isto foi um lapso... Sabes o que é um lapso?
− Sei, sim, meu general, é uma coisa para escrever.

Grande risota geral, até do general.

Rogério Ferreira
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Notas do editor:


(**) Útimo poste da série > 18 de abril de  2022 > Guiné 61/74 - P23177: Humor de caserna (50): "O meu pessoal só pode transitar em canoas balantas. E alguns não sabem nadar. Conclusão: Siga a Marinha!": um documento do "Gasparinho" que ainda hoje nos suscita um sorriso amargo (António J. Pereira da Costa, cor art ref)

terça-feira, 19 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23181: Efemérides (365): Passaram 97 anos da Revolta de 18 de Abril de 1925, em que participou o meu pai (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS/QG/CTIG)


1. Em mensagem de 18 de Abril de 2022, o nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), conta-nos que o seu pai, Joaquim Branco Pinheiro, há 97 anos, participou na Revolta de 18 de Abril de 1925, também conhecida como Golpe dos Generais:


Faz hoje 97 anos que o meu pai andava metido na Revolução do 18 de Abril de 1925.

Era militar no Grupo de Baterias de Artilharia a Cavalo, de Queluz, cujo Comandante era um Botelho Moniz.
Saíram para a rua, juntamente com outras Unidades, mas foram derrotados e o golpe falhou.
Foram todos presos para o Castelo de S. Jorge e depois, presos, ainda, foram para Vendas Novas onde juraram bandeira pela segunda vez.

A cena repetiu-se no 28 de Maio de 1926, perderam a revolução, foram presos para o Castelo de S. Jorge novamente e foram também para Vendas Novas onde juraram Bandeira mais uma vez.

Em anexo vai uma foto da equipa junto da peça de artilharia.
O meu pai, Joaquim Branco Pinheiro, nascido em Alcanena em 8 de Maio de 1904, é o terceiro na foto a contar da esquerda.

Era o tempo daquele tempo.

Carlos Pinheiro

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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23176: Efemérides (364): Tempo de recordar - Guerra Colonial, O Calvário de Uma Geração - 50 anos decorridos sobre a tragédia de Quirafo, 17 de Abril de 1972 (Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf)

Guiné 61/74 - P23180: Recordações de Empada do meu tempo (Joaquim Jorge, ex-alf mil, CCAÇ 616, 1964/66) (1): Xalá Baldé, o homem grande da etnia fula, que me veio prestar vassalagem e oferecer a sua neta, jovem e bonita bajuda, "para todo o serviço"...

1. Recordações de Empada do meu tempo (Joaquim Jorge, ex-alf mil, CCAÇ 616, 1964/66) (1):  


A NETA DE XALÁ BALDÉ

por Joaquim Jorge


Estávamos ainda há muito pouco tempo em Empada. Eu, como Alferes mais antigo, estava a comandar a Companhia em virtude de ainda não ter sido nomeado um capitão para esse efeito.

Em certa manhã de Abril de 1964 fui procurado no quartel por Xalá Baldé, o “ Homem Grande” (Chefe), da etnia Fula, residente em Empada. Vinha acompanhado de uma das suas netas, uma formosa bajuda como são todas as jovens da sua etnia. Bajuda, no conceito e linguagem dos nativos guineenses, é uma jovem rapariga virgem ou solteira.

Nesta altura eu não conhecia nem uma palavra de linguagem fula e de “crioulo” também pouco ou nada sabia por isso estava com alguma dificuldade em perceber a razão da sua visita e quais as suas pretensões. Perante esta situação e para que nos entendêssemos bem, mandei chamar Mamadi Sambu para intermediar a nossa conversa, pois ele falava bem o português e dominava as diversas línguas nativas. Mamadi Sambu era o Homem Grande dos Beafadas, o maior dos Homens Grandes das etnias residentes em Empada. Respeitado por todos e de toda a nossa confiança. Seguidor de Alá, Homem simples mas muito experiente, sensato e fiel foi um excecional nosso colaborador. Antes de agir consultava-o em quase todas as circunstâncias.

A que vinha então Xalá Baldé falar comigo? Dei-lhe a palavra para iniciarmos a nossa conversa. Veio apresentar “Mantenhas” (cumprimentos em crioulo) de boas vindas à nossa Companhia em representação dos Fulas e prestar-nos vassalagem, prometendo colaboração e fidelidade da sua parte e da sua etnia.

Senti-me deveras sensibilizado! Agradeci-lhe efusiva e elogiosamente a sua atitude. Aproveitei e fiz-lhe, de imediato, os primeiros pedidos que foram: a sua colaboração na formação de uma Companhia de voluntários nativos e na reorganização defensiva de Empada e do quartel. Ficou radiante com a ideia. Abraçámo-nos com amizade. Até parecia que já nos conhecíamos há muito tempo. A seguir ao Mamadi foi o segundo grande amigo que arranjei em Empada.

Pensava eu que, por aquele dia, estava encerrada a nossa conversa, mas, afinal, Xalá Baldé trazia mais outra intenção, intenção essa que me deixou perplexo e que, de imediato, quase sem saber o que lhe havia de responder com medo de o ofender ou de ele julgar que a minha atitude revelava um sentimento de racismo, de repúdio ou de desprezo.

Xalá Baldé, seguindo uma tradição fula como ele me disse, vinha também oferecer-me “para todo o serviço” aquela sua neta bajuda, jovem e bonita que o acompanhava. Tentei explicar-lhe a minha atitude de forma que ele não ficasse magoado com a minha recusa.

Respondi-lhe que era casado, que amava e respeitava a minha mulher, que a minha religião não permitia isso, que, como comandante de Companhia, não devia nem podia dar esse exemplo aos meus subordinados… Enfim arranjei todos os argumentos possíveis para que saísse airosamente deste imbróglio e para que, simultaneamente, ele ficasse de bem comigo…

E assim aconteceu… e o Mamadi Sambu também contribuiu para isso com as suas sábias e coerentes intervenções. Pelas suas atitudes posteriores fiquei convencido de que Xalá Baldé aceitou de bom grado e valorizou a minha opção. Ficámos grandes amigos por toda a comissão e no último dia lá estava ele no porto de Empada para despedir-nos. Abraçámo-nos e, abraçados, chorámos os dois.

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23179: Manuscrito(s) (Luís Graça) (211): "Viva o compasso pascal / Desta linda freguesia, / Fizeram-nos muito mal / Estes dois anos de pandemia."






Marco de Cananveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 18 de abril de 2022 > O fotógrafo escondido por detrás da sua sombra. Visita do compasso pascal, que não se realizava há dois anos por causa da pandemia. 


Foto (e legenda): © Luís Graça  (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Viva o compasso pascal

Viva  o compasso pascal
Desta linda freguesia,
Fizeram-nos muito mal
Estes dois anos de pandemia.


Faltam beijos e abraços,
Mas lá iremos ao normal,
Hoje damos mais uns passos,
Viva o compasso pascal!

É uma antiga tradição
Que nos enche de alegria,
E reforça a união
Desta linda freguesia.

Andámos todos com medo
E com máscara facial,
Duas Páscoas sem folguedo
Fizeram-nos muito mal.

Sem compasso nem foguetório,
Sem convívio nem folia,
Nem sequer houve peditório
Nestes dois anos de pandemia.

Saúde, paz e alegria para todos e todas,
Obrigado em nome dos cá da casa.


Quinta de Candoz, 18 de abril de 2022


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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P23178: Notas de leitura (1438): “A Balada do Níger e Outras Estórias de África”, por Amílcar Correia, Civilização Editora, 2007 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Amílcar Correia é Diretor-Adjunto do Público e responsável pela sua edição online. "A Balada do Níger e Outras Estórias de África" é o seu primeiro livro. O mínimo que se pode dizer é que é uma reportagem empolgante, partiu bem preparado e disponível para confirmar com os olhos as impressões que passou à escrita. Rumou em primeiro lugar para Tombuctu e não esqueceu o que havia subjacente ao projeto henriquino, entrar em contacto com outras gentes. Recorde-se que nas primeiras navegações fizeram-se apostas erradas dos lugares onde aportaram, imaginaram o Nilo, a Etiópia menor, iam espicaçados com o sonho de atingir a Rota do Ouro, aquele mesmo ouro que chegava ao Norte de África, uma das razões pelas quais possuíamos fortalezas que só foram abandonadas no reinado de D. João III. De Tombuctu, Amílcar Correia viaja para a Mauritânia, lugar do vastíssimo Sara. Ele não o diz, mas dali vieram e vêm os comerciantes influentes dos mercados guineenses, as lojas dos mauritanos, como soe dizer-se. É uma viagem por África numa reportagem de grande qualidade, sob um olhar percuciente, culto, que nos captura desde a primeira página.

Um abraço do
Mário



Ali para as bandas da Guiné e um pouco por toda a África (1/4)

Beja Santos

“A Balada do Níger e Outras Estórias de África”, por Amílcar Correia, Civilização Editora, 2007, é um livro de cambanças, o jornalista e viajante começa por se pôr ao caminho em direção a Tombuctu, aproveita para refletir um pouco sobre a magia daquele lugar, que tanto empolgou os portugueses logo no século XV: “Até meados do século XI, enquanto o deserto era para a África mediterrânica um obstáculo tão temível quanto as terríveis tempestades do Atlântico, a região a sul do Sara era, para os europeus, uma terra habitada pelos monstros mais horríveis e as pessoas mais pavorosas. Alguns dos principais Estados islamizados em África (Mali, Songai ou Gana) desenvolveram-se nesta região, entre 800 e 1300, como consequência da inevitável ascensão muçulmana. O Império Mandinga do Mali, fundado por Sundiata (1230-1255), converteu-se ao Islão a partir do século XIII, mas os Árabes conheceram melhor Mansa Mussa (1307-1332). Numa peregrinação a Meca com 60 mil criados e escravos, Mansa Mussa distribuiu tanto ouro que fez baixar em 10% a sua cotação nos mercados do Cairo. Mas ninguém terá contribuído tanto para que a cidade de Tombuctu, onde, no regresso, mandou erigir uma mesquita, a maior da cidade, fosse celebrizada como o El Dorado do deserto”. Amílcar Correia não esquece João Fernandes que terá partido de Lisboa em 1443 ou 1444, numa das duas caravelas da expedição de Antão Gonçalves, com destino à costa ocidental africana. Foi recebido pelos Azenegues, viajou de camelo e sob a orientação do vento e do voo das aves.

Muitos meses depois foi encontrado na costa. Zurara garante que os Árabes choraram quando João Fernandes embarcou. Não se sabe se Fernandes chegou a Tombuctu. Ao longo dos séculos outros ocidentais procuraram esse ponto mágico. Robert Adams, depois de muitas peripécias, escreveu um livro referindo-se a Tombuctu como uma cidade aborrecida, suja e nada atrativa. A veracidade do seu testemunho continua a ser posta em causa. Ibn Batuta, um reputadíssimo geógrafo e viajante árabe, protegido por Leão X, visitara e descrevera Tombuctu: “Trazemos para esta cidade livros escritos à mão que se vendem muito bem, de tal forma que obtemos mais lucros do que com qualquer outra mercadoria que possamos vender”. Suspeitava-se que Tombuctu albergava tesouros infinitos, muitos procuraram atingir a cidade e Amílcar Correia dá-nos dessas peregrinações um magnífico relato. Como bom viajante, releva as coordenadas e não minimiza o poder da geografia: “No Mali, termina o deserto e começa a savana; termina o Norte de África e inicia-se a África transariana. Tombuctu é o ponto de encontro entre os agricultores da Savana e os nómadas do Sara, entre as pirogas e as caravanas de camelos, entre nomadismo e sedentarismo”.

E o viajante entra em Tombuctu e deixa-nos as suas impressões:
“As suas ruas de areia não conservam nenhum outro esplendor que não o do mistério que a celebrizou. São poucos os vestígios do passado glorioso da cidade interdita. O mistério não se vê nas ruas de Tombuctu; respira-se. Ameaçada pelo constante avanço das areias, a cidade é hoje habitada por 25 mil a 35 mil pessoas, quando, no século XVI, aqui residiam cerca de 100 mil, um quinto das quais estudava Direito e Teologia, ou não fosse este um local de concentração de universidades corânicas.
Em redor da mesquita de Djinguereber, trava-se o avanço das areias com pesadas lajes de cimento, deverão ser colocadas por todo o centro histórico. Ao lado da mesquita, uma criança retira areia do interior de casa com a ajuda de um prato. Tuaregues passeiam pelas ruas de turbante e túnica azul, olhos amendoados e artesanato em ‘prata tuaregue’ para vender.
Como em outras cidades africanas, as crianças pululam e pedem um cadeau. As moscas mordem a carne nos talhos de rua, as t-shirts das crianças imitam as ramificações do Níger, as mulheres povoam os seus mercados com frutas, legumes ou peixe ressequido, os pneus esventrados e o lixo acumulam-se em certas ruas e a poeira é uma constante diária. A pobreza é evidente. O esplendor de há cinco séculos não. Terá de ser encontrado nas portas de influência marroquina, na paisagem de tetos lisos, nas suas casas feitas em banco ou calcário, nas suas bibliotecas com milhares de manuscritos em árabe.
É natural que Tombuctu desiluda quem transporta mitos e desconhecimento sobre a sua história e o seu mistério. A sua nova imagem realista e triste não substitui, porém, a sua antiga. Tombuctu conserva uma aura de mistério e de inacessibilidade.”


E o viajante segue para a Mauritânia, chega à capital deste país despovoado e coberto de areia, Nouakchott. Dá-nos conta das suas observações locais: “O número de nómadas que cruzam os desertos deste país com o dobro do tamanho da França tem vindo a diminuir. A seca, a desflorestação e a força centrífuga do Sara têm arrastado as populações do deserto para as cidades. Atualmente, a percentagem de nómadas não atinge os 10% da população, ao passo que, na década de 1960, ultrapassava os 80%. Praticamente um terço dos 3 milhões de habitantes da Mauritânia habita em Nouakchott”. Fala de cidades, de gafanhotos que esbarram no jipe, de uma importante cordilheira e não esquece um cientista que percorreu cuidadosamente a região: “Théodore Monod, o turista mais antigo do país, passou mais de setenta anos a percorrer a pé e de camelo o deserto do Sara. Diz a lenda que Monod, com 98 anos, repartia o seu tempo entre o deserto, o Museu de História Natural de Paris e os seus escritos, que abordavam arqueologia, flora, fauna, geologia e o modo de vida dos habitantes do Sara. A travessia do deserto era, para Monod, uma espécie de busca do Santo Graal. Entre ser pastor protestante e naturalista, optou pela segunda hipótese. Começou, em 1922, por estudar a fauna marinha do país e lançou-se, posteriormente, na sua primeira travessia da Mauritânia Ocidental. Para o naturalista, o deserto ‘é uma escola que nos obriga a deitar fora a quinquilharia dos pensamentos, a fortalecer-nos’. Em suma, diz Monod, ‘o deserto não é complacente. Ele esculpe a alma e escurece o corpo’.

Segue para Chinguetti, velha cidade da Mauritânia, a sétima cidade santa do Islão sunita e antiga capital muçulmana. Aqui terá nascido a primeira biblioteca do mundo islâmico. Os velhos manuscritos destas bibliotecas foram considerados Património da Humanidade em 1989. Por ali anda Amílcar Correia, e deixa uma nota final: “Como o país só se passou a chamar Mauritânia no princípio do século XX, houve tempos em que o nome da cidade se confundia com o nome de uma enorme região. Daí se ter usado, durante muito tempo, e há ainda quem o faça com um gozo evidente, a expressão país de Chinguetti. Para quem vive no meio do vazio e longe dessa capital do deserto que é Nouakchott, a expressão adquire uma descarada ironia. Em Chinguetti, a neve de areia tudo cobre e não há limpa-areias que impeça o Sara de crescer”.

(continua)


A ler no telhado da Mesquita de Djinguereber, Tombuctu
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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23171: Notas de leitura (1437): "Os Forjanenses e a Guerra Colonial", organização de Luís G. Coutinho de Almeida e Carlos M. Gomes de Sá; edição da Junta de Freguesia de Forjães, 2018 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23177: Humor de caserna (50): "O meu pessoal só pode transitar em canoas balantas. E alguns não sabem nadar. Conclusão: Siga a Marinha!": um documento do "Gasparinho" que ainda hoje nos suscita um sorriso amargo (António J. Pereira da Costa, cor art ref)



Guiné > Região do Oio > Nhamate > CART 3330 > 1971 > Uma peça de antologia do humor negro... castrense: "O meu pessoal só pode transitar em canoas balantas. E alguns não sabem nadar. Conclusão: Siga a Marinha!"  ...


1. Este documento foi-nos oportunamente remetido pelo António J. Pereira da Costa, cor art e membro da nossa Tabanca Grande, com a seguinte informação (*):

(...) Aqui vai uma nota escrita pelo célebre major Gaspar que inventou aquela expressão que ainda hoje usamos: Siga a Marinha!

In Os Anos de Guerra: 1961 - 1975: Os portugueses em África: Crónica Ficção e História. Organização de João de Melo - II Volume. S/l: Círculo de Leitores 1988. 190 (documento reproduzido com a devida vénia...).

Leiam-na com atenção e vejam se ela não é um tratado de logística da Guerra Colonial. É de um humor amargo, mas era a verdade. (...)


2. Fixação e revisão de texto, da responsabilidade do editor LG, de modo a tornar mais legível o conteúdo da mensagem:


Ministério do Exército | Comando Territorial Independente da Guiné

Mensagem nº 125/71 [classificada como Confidencial, Urgente), enviada pelo Comandante da CART 3330, SPM 6928, Cap Art José Joaquim Vilares Gaspar, dirigida ao Comandante da Engenharia, com conhecimento a CAOP1, RepOper/Com-Chefe, RepPop/Com-Chefe, RecAcap/Com-Chefe, e BCAÇ 2928. Entrada na Secretaria do Batalhão de Engenharia, nº 306, em 22/3/71.

Nhamate, 18 de Março de 1971.

Assunto - Quartel em Nhamate (ou mais propriamente abarracamento)

1. Exponho a V. Excia um dos assuntos mais vitais para a continuidade militar e humana de NHAMATE [, a leste de Binar: vd. carta de Bula].

2. Passo a descriminar [sic, em vez de discriminar]:

a) DEPÓSITO DE GÉNEROS

Quando chover fico sem pão pelo menos 15 dias. Julgo que não é muito agradável. Informo V. Excia que não como pão. Gordo estou eu.

E os outros géneros ? E os autos subsequentes ? Só problemas.

b) CASERNAS: 

Barracas de lona, todas oficialmente dadas incapazes. Na Birmânia, viveu-se assim 1 ou 2 meses. Os quadros vivem-no há 10 anos. E os milicianos (os meus, de certeza) “dão o litro” até ao fim. Os soldados dão tudo. Há que tudo lhes dar, na medida do possível.

c) CANTINA: 

E o tabaco ? Desde Napoleão e Fredy [diminuitivo de Frederico] da Prússia que o tabaco era uma das bases da eficiência do Exército. Como combater ou trabalhar sem o velho cigarrinho ? E outros géneros ? V.Excia, mais experiente, meditará sobre o assunto.

d) CASERNA DE CIMENTO: 

Único exemplar. Vou demoli-lo. Não tenho materiais. Solicito auxílio Engenharia.

e) MESS [sic, em vez de Messe]: 

Desde o início das chuvas desnecessita de garrafas de água. Basta as mesmas estarem abertas. Ponchos e gabardinas já temos.

f) CHAPAS DE ZINCO: 

Ao mínimo vento já voam no Quartel.

g) GABINETE D COMANDANTE E 1º SARGENTO: 

Com as chuvas eu e o 1º Sargento só temos a solução de entrar de escafandro, visto estar a 2 metros abaixo da superfície do solo.

h) O meu pessoal só pode transitar em canoas balantas. E alguns não sabem nadar. CONCLUSÃO: SIGA A MARINHA!


3. Este quartel tem se ser revisto por um Oficial de Eng[enharia], senão começo a construir um novo com os materiais dos REORD[ENAMENTOS], contra a norma, o que é aborrecido, contende com a disciplina e eu não gosto.

4. Agradecendo a boa atenção de V. Excia., gostaria de aqui ter como convidado um Senhor Oficial de Eng[enharia] a fim de concordar ou condenar as minhas asserções supras.

Cumprimentos,

O Comandante,
José Joaquim Vilares Gaspar, Cap Art



3. Comentário do editor LG:

Reproduzo, no essencial, o que escrevi na altura, há cerca de 14 nos atrás.

Repare-se no circuito da informação: uma simples mensagem, que devia ser de rotina, a pedir o apoio da Engenharia para se proceder a obras de reparação num aquartelamento  do interior (na realidade, um conjunto de barracos, como tantos outros), seguia para 6 (seis): o comandante do BENG 447,  com conhecimento a outras unidades,  incluindo três repartções do Com-Chefe!!!... 

Digam-me lá como se podia ganhar a guerra com tantos relés parasitas, porteiros, gate-keepers, típicos do disfuncionamento burocrático! ... 

De um exército em armas (que chegou aos 40 mil homens, no CTIG) quantos não haveria, do cabo ao sargento, do tenente ao coronel, com funções amanuenses, ligados à gestão da informação  e conhecimento?!

Milhares de homens, mangas de alpaca militares, escreviam notas como esta (seguramente menos geniais, divertidas, contundentes, demolidoras, corrosivas... como esta!), batiam-nas à máquina, expediam-nas, classificavam-nas, arquivavam-nas, retinham-nas, guardavam-nas na gaveta, analisavam-nas tardiamente, reencaminhavam-nas tarde e a más horas para o nível superior da hierarquia militar... 

Enfim, a maior parte das vezes estes homens não comunicavam devidamente, não recebiam resposta ou feedback positivo, continuavam perdidos e sós, nas Nhamates  e bu...rakos do mato da Guiné...

Pela primeira vez, em 2008, ouvi falar em Nhamate, na CART 3330 e no seu desconcertante e bravo comandante, o cap art Gaspar, tratado afetuosamente como "Gasparinhi"... 

Pergunta.se:

(i) será que a sorte dos homens que estavam em Nhamate melhorou ? 

(ii) será que nenhum morreu afogado na época das chuvas ? 

(iii) será que nunca lhes faltou o tabaquinho e a água de Lisboa

(iv) será que a Marinha seguiu mesmo ? 

(v) e o Gasparinho (que ternura de nome, posto pelos seus pares e usado pelos seus subordinados) não terá acabado na psiquiatria ? 

Sabemos hoje que acabou mesmo na psiquiatria e levou, ainda por cima,  dois anos de prisão disciplinar... Vejo que morreu cedo, coitado, em 1977... Um homem que tratava o Frederico da Prússia por Fredy merecia um estátua em Nhamate!

Tenho alguma relutância em classificar em poste na série Humor de Caserna... Embora ligeiro, soft, é o título que me acorreu primeiro... Mas podia ser outro qualquer, mais contundente, mais duro, mais agressivo, mais próximo do tempo e do lugar, algures na Guiné, longe do Vietname, como eu ironicamente costumava escrever, no tempo em que lá estive, em 1969/71.

4. Comentário adicional do António J. Pereira da Costa (*):

(...) Sobre este assunto quero acrescentar que não se tratava de uma situação de rotina, mas sim de um pedido para solução de um problema de instalações que se arrastava.

 Como podem ver,  o pedido era enviado às principais Repartições  do ComChefe que não estariam no circuito habitual para uma situação destas. Tratava-se, portanto, de fazer o "protesto" subir de tom para provocar a reacção de quem de direito. Sei que este desiderato foi atingido. 

Por mim considero este documento um verdadeiro tratado de logística, para além de uma prova de inteligêcia. (...)

26 de junho de 2008 às 23:07
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Notas do editor:

(*)  Vd. poste de 26 de junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2986: Humor de caserna (5): Siga a Marinha para Nhamate, mais abarracamento que aquartelamento (António José Pereira da Costa)

domingo, 17 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23176: Efemérides (364): Tempo de recordar - Guerra Colonial, O Calvário de Uma Geração - 50 anos decorridos sobre a tragédia de Quirafo, 17 de Abril de 1972 (Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf)

A propósito da tragédia de Quirafo que ocorreu faz hoje exactamente 50 anos, transcrevemos, com a devida vénia ao nosso camarada Mário Migueis da Silva (ex-Fur Mil Rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72), o texto por ele publicado na sua página do facebook:


Tempo de recordar

Guerra Colonial, O Calvário de Uma Geração - 1

Cumpre-se hoje, 17/04/2022, exatamente meio século sobre o dia mais triste da minha vida. Foi no leste da Guiné, numa manhã de sol inclemente, num sítio chamado Quirafo. Éramos vinte, em duas viaturas. Uma emboscada. Um numeroso grupo inimigo que nos metralha com canhões, lança-rockets e metralhadoras. Num minuto, pouco mais, morrem-nos doze homens e seis ficam feridos, alguns dos quais com muita gravidade. Na noite que se segue à tragédia, puxo do meu bloco de notas e escrevo:
Vinte e duas horas. Do dia mais triste da minha vida. Aqui, na desoladora messe de oficiais e sargentos, apenas eu. Nem o responsável pelo bar ficou. Todos recolheram à solidão dos abrigos, possivelmente para meditar. Lá fora, um silêncio de morte. Um silêncio estranho e sepulcral, de que faz parte este maldito e cadenciado martelar que tende a rebentar-me os tímpanos e o sistema nervoso. Já o não suporto mais. Corro para a porta, a fechá-la. E não posso evitar um fugidio olhar. Um fugidio olhar suficiente para que sinta o coração esfrangalhar-se-me e este terrível nó seco na garganta, que me comprime a alma: o cangalheiro, rodeado de urnas por todo o lado, trabalha. Sereno. Indiferente.

Aturdido, encosto a porta com todo o cuidado e venho de novo sentar-me. Sinto-me cansado. Abatido. Gostava de fechar os olhos e adormecer. Mas, não consigo. A certa altura, parece-me ouvir um assobiar baixinho… Mas, o que é isto?!... Apuro o ouvido, e não, não é. Parece mais alguém que trauteia qualquer coisa, uma cantilena qualquer… Volto a correr para a porta, agora intrigado e enraivecido.

Nada. Só o silêncio. E o cangalheiro. Que prossegue no seu trabalho, taque-taque, taque-taque. Com a mesma serenidade. A mesma indiferença.

E o sentimento de revolta apodera-se de mim com mais intensidade. Sinto vontade de lhe cair em cima. De o agredir. De lhe dar dois socos.

Mas, contenho-me. Volto covardemente para o meu canto, como um cão lazarento com o rabo entre as pernas, e ponho-me a pensar. A tentar refletir sobre o que se passa comigo e com a cena macabra que me envolve. E vêm-me à cabeça as lágrimas, os abraços e os lenços brancos das despedidas em Lisboa, lá no cais das não sei quantas. Meu Deus, e os pais?!... Que será dos pobres pais, coitados, quando souberem da triste nova?!... Eles que, cada dia, antes da deita, caem de joelhos aos pés do Cristo, da Virgem, do Anjo da Guarda e de todos os santos protetores e mais alguns, a pedirem a salvação dos seus filhinhos?!... Era tão bom, tão alegre, tão cheio de vida…

É isso que vos espera, camaradas, lá no outro lado do mundo: o choro, o lamento, a recordação.

E nós, por cá… Nós, por cá, todos bem graças a Deus. Beijinhos para os manos, tios e priminhos. Cumprimentos aos vizinhos e amigos. Adeus, até ao meu regresso.

Saltinho, 17 de Abril de 1972
Mário Migueis


"António Ferreira", 1.º Cabo TRMS, morto durante a emboscado do Quirafo
Homenagem do nosso camarada Mário Migueis
Acrílico: © Mário Migueis da Silva (2010). Todos os direitos reservados





Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Picada de Quirafo > Fevereiro de 2005 > Restos da GMC da CCAÇ 3490 (Saltinho, 1972/74), que transportava um grupo de combate reforçado, comandado pelo Alf Mil Armandino, e que sofreu uma das mais terríveis emboscadas de que houve memória na guerra da Guiné (1963/74)... 
Foram utilizados LGFog e Canhão s/r. Houve 11 militares mortos, 1 desaparecido... Houve ainda 5 milícias mortos mais um número indeterminado de baixas, entre os civis, afectos à construção da picada Quirafo-Foz do Cantoro. A brutal violência da emboscada ainda era visível, em Fevereiro de 2005, mais de três décadas, nas imagens dramáticas obtidas pelo Paulo Santiago e seu filho João, na viagem de todas as emoções que eles fizeram à Guiné-Bissau.

Fotos: © Paulo e João Santiago (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: LG]

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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23038: Efemérides (363): Há meio século, nestes dias 26 e 27 de Fevereiro, sábado e domingo, foi levada a cabo a Operação Juventude V na zona Caboiana/Churo (Ramiro Jesus, ex-Fur Mil Cmd, 35.ª CComandos, Teixeira Pinto, Bula e Bissau, 1971/73)