Preciosa foto do álbum de Clara Schwarz (1915-2016). O seu marido, o escritor e jurista Artur Augusto Silva, é que conviveu mais com Amílcar Cabral. Clara, que foi professora no Liceu de Bissau, traduziu textos de Cabral para francês. O nosso querido e saudoso amigo Pepito, o filho mais novo, nasceu em Bissau, em 1949 e morreu em Lisboa, em 2014. [LG]
Foto (e legenda): © Clara Schwarz / Pepito (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas de Guiné]
“Amílcar Cabral - Um Outro Olhar” é um ensaio sério, honesto, que tem na figura de Amílcar Cabral um eixo condutor. O título sugere uma certa biografia. Mas não uma biografia do género "Longa Marcha para a Liberdade" de Nelson Mandela nem “A Face Oculta de Kennedy” de Seymour Hersch. Cito estes dois grandes estadistas e estas duas extraordinárias biografias porque estão uma nos antípodas da outra. A primeira é epopeica e panegírica descrevendo um percurso honroso e dignificante enquanto a segunda é escabrosa e indecorosa narrando os subterrâneos da vida de um político e do seu clã – vergonhosa, imoral e pouco digna.
A obra de Daniel Santos não é uma coisa e também não é outra. Não glorifica nem denigre. Não é isento – não gosto desta palavra porque ela, a palavra, é desprovida de conteúdo, não tem substância, nem é real. Despiria o autor do seu saber, da sua formação, do seu pensar, do seu cunho pessoal. É objectiva, seria a expressão certa para a classificar.
Mas diria mais! Diria que “Amílcar Cabral – Um outro Olhar” é denso, é substantivo, é real, por isso potencialmente polémico. É também equilibrado, porque rigoroso e profusamente documentado.
Escrito numa linguagem simples sem ser simplista, escorreita, desprovida de qualquer gongorismo ou sociolecto, Daniel dos Santos convida o leitor despretensiosamente a uma permanente reflexão. Na verdade faz uma TAC (Tomografia Axial Computadorizada) centralizada na figura de Amílcar Cabral (AC) em que escalpeliza um homem, um partido e um tempo. Fundamenta-se na vida multifacetada de uma das maiores figuras de África do seu tempo – Amílcar Cabral – para descrever o homem, o político, o diplomata, o chefe militar, bem como social, cultural e historicamente esse tempo – o das independências das colónias portuguesas de África.
O autor divide a sua obra em três partes. O nome que dá a cada uma e as razões que estão na base desta sua organização são explicadas e descritas nas primeiras páginas. Em contrapartida separa a vida do “biografado” em cinco fases cronologicamente estabelecidas, a saber:
- Conformista;
- Contestatário;
- Revoltado;
- Nacionalista;
- e Revolucionário,
Nada escapou ao olhar atento do investigador político e do antigo jornalista. Do país ele aborda com clareza e com rigor científico o seu achamento, o seu povoamento, a sua colonização, o seu “colonialismo”, cruzando e confrontando inteligente e assertivamente teorias, doutrinas e conceitos − jurídicos, sociológicos, históricos, culturais − concluindo convergentemente com Cabral de que Cabo Verde era uma colónia sui generis porque “tecnicamente sem colonização e sem colonialismo”. Cabral diria para culminar uma intervenção a este propósito:
Ao percorrer a vida de Cabral, Santos não esquece, antes, realça o facto de AC, não obstante ser filho de um homem culto e professor, só ter feito a 4.ª classe aos 13 anos, na Escola Central da Praia.
Ofendia desta forma, pela linguagem que utilizou e não pela condenação da poligamia, o povo do País que o acolheu, o mundo muçulmano e a cultura generalizada de África. Cabral viajava com dois nomes falsos (ambos com passaportes de países muçulmanos, um de Marrocos em nome de Mohamed Benali, outro da Guiné-Conacry em nome de Ousman Keita). Não me vou alargar sobre este facto. Fecho o parêntese.
Pois bem, AC lá fez o Liceu com distinção – 17 valores – no Gil Eanes de S. Vicente para onde se deslocara com os seus três irmãos e a mãe que teve que trabalhar duramente – ganhava 50 centavos por hora na fábrica de conserva de peixe, quando havia peixe – para manter a família monoparental uma vez que o pai durante todo o tempo – 7 anos – absolutamente nada enviara.
Cabral chegou a Lisboa em 1945 – com 21 anos – pouco mais de um ano depois da criação da CEI. Também fim da 2ª Grande Guerra, que, como se sabe, traria alterações significativas na situação das colónias; ano da criação da ONU. E já agora, acrescente-se – e não é despiciendo – auge da repressão salazarista.
E foi seguindo o seu percurso, as suas relações com a “CEI” e com os principais protagonistas do ambiente estudantil africano do qual Daniel faz uma bem articulada exposição da evolução da “Casa” como espaço criado pelo Estado Novo (Ministro do Ultramar Vieira Machado e Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa Prof. Marcello Caetano – autor dos estatutos da CEI) para integrar e controlar os estudantes ultramarinos – dispersos em inúmeras associações – evolução, dizíamos, primeiro para um centro de consciencialização da cultura africana, isto é, como disse Tomás Medeiros como um local de “busca da re-africanização da identidade e das raízes” ou como avançou Frantz Fanon «quebrar a máscara branca» uma vez que o antilhano considerava que o colonialismo é um processo de alienação que inferioriza o colonizado porque faz dele cópia, em termos culturais, do colonizador e, posteriormente, de politização das consciências.
Assim dito, parece que tudo começou com a CEI. Não, nada disto. E Daniel dos Santos expõe-no com clareza e oportunidade. Vai mais atrás, insere na sua análise toda, e não é pouca, actividade africanista que se dá com a queda da monarquia e o advento da república.
Refere-se ao surgimento de uma actividade político-jornalística intensa e muito abrangente, com a criação de várias associações e organizações que lutam pela igualdade de negros, mestiços e brancos, por uma “Uma África para os Africanos”, aproveitando-se do pan-africanismo de Garvey e Du Bois e dos protagonistas dessas actividades em Portugal e colónias, salientando o papel dos cabo-verdianos Augusto Vera Cruz e dos irmãos Luís e Martinho Nobre de Mello.
A passagem de AC pela CEI não foi relevante. Por um lado porque a princípio AC estava muito mais focado nos seus estudos do que em qualquer outra coisa. E a sua aparição na Casa, diz-nos Daniel dos Santos, só se dá em 1949, quase no fim do curso, pelas mãos de Marcelino dos Santos e depois da chegada de Mário de Andrade (1948).
O surgimento (na clandestinidade) em 1951, do Centro dos Estudos Africanos (CEA), na Rua Actor Vale, 37, em Lisboa, veio dar seguimento ao trabalho cultural iniciado na “Casa” e que não podia continuar porque ela era dominada pelos filhos dos ricos colonos, sobretudo angolanos, que, obviamente, não deixavam espaço para essas actividades.
E para terminar esta fase da vida de Amílcar que o autor descreve e analisa de forma exaustiva, não posso deixar de referir, muito rapidamente, como começou, segundo Daniel Santos:
Antes de partir, ainda no ano em que se formou, 1952, com 15 valores, publicaria o “Apontamentos Sobre a Poesia Cabo-verdiana” no Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação onde estabelece um paralelo entre os Claridosos e os predecessores. Dizia que o advento dos Claridosos tinha tirado a poesia cabo-verdiana dos céus e tinha-a colocado na terra: “Cabo Verde já não era o Jardim Hesperitano mas um país real, de gente com problemas” e, continuo a citar: «onde as árvores morrem de sede, os homens de fome, a esperança nunca morre» … «e o mar a estrada da libertação e da saudade». (Fim de citação)
É ainda nesse ano de 1952 que Mário de Andrade e Francisco Tenreiro publicam “Os Cadernos da poesia Negra de Expressão Portuguesa” que para alguns constitui um marco na afirmação da personalidade africana em terras portuguesas. Foi altura, diz-nos Santos, em que Cabral descobre o Pan-Africanismo de Du Bois e Washington e o Movimento Negritude de Senghor, Césaire, Anta-Diop e outros.
Na Guiné, Cabral desenvolve um extraordinário trabalho técnico merecendo a apreciação do Governo da Guiné do qual teve sempre boas referências. Mesmo depois de tentar fundar uma Associação, espante-se (!) em que exclui cabo-verdianos e europeus. Longe devia estar a ideia da unidade!...
É claro que os estatutos não passaram apesar da simpatia que o Governador Mello e Alvim, um homem de ideias liberais, tinha por ele. Mais: Mello e Alvim tê-lo-ia repreendido e dado conselhos de que Cabral mais tarde agradeceria e dos quais nunca mais se esqueceria.
Cabral deixa a Guiné em 1955, evacuado com paludismo e não expulso como se tenta fazer passar, di-lo e prova-o Daniel dos Santos. Durante o tempo que esteve na Guiné teve oportunidade de assistir a espancamentos, torturas, maus tratos de indefesos «indígenas». Numa palavra: De viver e testemunhar a violência do colonialismo. É a fase de revoltado, segundo Daniel dos Santos, que a explica com pormenores.
Até 1959, esclarece-nos Daniel dos Santos, «a folha de Amílcar Cabral na PIDE estava completamente limpa».
Da Guiné salta para Angola para onde fora trabalhar num projecto ligado ao mapeamento de solos. Ali ele tem contactos com activistas e nacionalistas angolanos, mais politizados (numa fase mais madura) e mais bem preparados. Toma consciência da luta que é necessário travar, merecendo de acordo com a entrevista concedida por Tomás Medeiros a Daniel dos Santos o seguinte comentário (cito): [AC]
Isto, e explicações mais acabadas que encontramos ao longo do livro desfazem o mito, engendrado e alimentado no seio do PAIGC de que AC esteve na fundação do MPLA. AC nada tem a ver com a criação do MPLA. Ele, AC, politizou-se em Angola, com angolanos e não o inverso como o demonstra Daniel dos Santos. É o período em que o classifica de nacionalista.
Quando se dá a revolta dos estivadores do cais de Pidgiguiti em 1959, Cabral estava em Angola, de regresso para Portugal tendo tomado conhecimento da ocorrência pelos jornais. Visita a Guiné passado um mês, em Setembro, não lhe faltando informações sobre os acontecimentos, uma vez que o seu amigo Aristides Pereira por onde passavam as mais secretas e confidenciais informações era, sempre de acordo com Daniel dos Santos, o homem de confiança do Governador e do Inspector da PIDE.
Pidgiguiti é mais uma das falácias do PAIGC que durante anos o reivindicou como obra sua, sem nada, absolutamente nada ter a ver com ele. Até porque, como se verá ao longo da obra, PAIGC nem sequer existia.
Em Janeiro de 1960, Cabral viaja para Tunes integrado no MAC (Movimento Anticolonial) fundado em 1957 por um grupo de militantes de luta anticolonial – o 1.º compromisso político de AC – para assistir ao II Congresso Pan-africano realizado para os movimentos africanos organizados. Não foram admitidos uma vez que o MAC era uma organização de cidadãos de várias colónias – Viriato da Cruz e Lúcio Lara de Angola, Amílcar Cabral da Guiné, Hugo de Menezes de S. Tomé – e não uma associação de organizações nacionais, como se exigia.
Depois da Conferência de Tunes – um marco importantíssimo não só na vida de Cabral como na luta das colónias – em que ele assinara com o pseudónimo de Abel Djassi, um compromisso, não havia mais condições de Cabral regressar a Portugal onde tinha deixado a família e teve que abandonar a clandestinidade e lançar-se na luta.
Chegou a Conacry em Maio de 1960. Já existiam no terreno muitos partidos (MLG, MLGC e UPGB entre outros) pelo que teve de lutar duramente – nem sempre com elegância e elevação (troca de panfletos e de insultos, conspirações, intrigas) com os partidos concorrentes – para que o seu PAI, que acabara de sair de Tunes – sem expressão, sem quadros e sem estruturas – fosse reconhecido como única força representando Guiné e Cabo Verde.
Em 1963, o PAI já PAIGC dá o seu primeiro tiro. É o início da Luta Armada. E os problemas no seio do PAIGC ganham outra natureza. É a fase de Cabral revolucionário. Tinha sido nomeado Secretário-Geral do PAIGC fora do quadro estatutário por uma Conferência de Quadros em Dakar. A partir daí alterou os estatutos como quis, sem nunca convocar um único congresso e foi-se assenhoreando do Partido.
Em 1964, com a “Conferência de Quadros de Cassacá” mais tarde tornado Congresso, do qual se saíra muito bem, mas deixando atrás “um rasto de um número indeterminado de condenações e fuzilamentos de combatentes e de militantes”.
Reforçou os seus poderes e assumiu-se como senhor absoluto do PAIGC. Passou, desde então, a coleccionar inimigos e adversários internos, todos movidos por um único interesse: o de o eliminar.
E à medida que a luta se ia desenvolvendo mais poderes chamava a si. Tornou-se, diz-no-lo Daniel dos Santos, primeiro, uma espécie de semi-deus em que, cito Maurice Duverger citado pelo autor: “toda palavra que sai da sua boca constitui a verdade; toda a vontade que dele emana é a lei do partido”, e depois em próprio deus que decidia da vida e morte dos militantes e em que até os casamentos careceriam da sua autorização.
Diz um documento do PAIGC, reproduzido no livro, que ele estava acima do Partido e podia por este facto aprovar ou reprovar qualquer decisão tomada por qualquer órgão do Partido inclusive da sua própria Comissão Permanente. Passava a todos, sem excepção, uma certidão de incapacidade e de incompetência.
De tudo isto e do que adiante virá nos dá conta o livro.
Ao mesmo tempo que crescia o seu autoritarismo, o seu absolutismo alegadamente iluminado, engrossavam as fileiras internas dos que o queriam eliminar. Bastas vezes foi posta em causa a sua liderança inclusive pelo seu próprio irmão Luís Cabral, como poderão ver na obra.
Apresento uma lista dos atentados, conspirações, intrigas, intentonas mais importantes de entre os que Daniel dos Santos elenca no seu livro:
- Revolta de Boé (Junho de 1967); - todos fuzilados. As causas residem, alegadamente, na protecção que AC dava aos cabo-verdianos. Nino estaria envolvido mas recusou-se a comparecer ao julgamento para que foi convocado;
- Novembro de 1967, um atentado perto de Ziguinchor;
- Em Dezembro de 1967 são os mandingas que se manifestam devido ao número de baixas que sofriam;
- Em Janeiro de 1969 um grupo de balantas em Boé recusa-se a combater exigindo a presença de Cabral;
- Um outro movimento de revolta surge chefiado por Mário Gomes, Braima Sissé e Sena Camará;
- A 3 de Maio de 1968, 150 mandingas chefiados Injai Bá da região de Oio traçaram um plano de deserção para o exército português; a deserção era punida com fuzilamento;
- A 30 de Dezembro de 1968, os mandingas e os manjacos juntam-se e criam a Junta Militar dos Patriotas da Guiné-Bissau com vista a transformar o PAIGC em PAIG; propunha-se eliminar AC e os seus homens de confiança que, para eles, só vivem roubando o partido; a Junta era dirigida por Mamadu N’Daie, Mamandim Iafa e Bobo Keita, todos Comandantes supremos;
- Em Fevereiro de 1969 atentado contra Osvaldo Vieira desta vez, (supostamente) à ordem de AC que estava convencido de que Osvaldo Vieira e Lourenço Gomes pretendiam derrubá-lo da Chefia do PAIGC;
- A 31 de Março de 1969 um militante de nome Jonjon é surpreendido pelo próprio AC no seu Gabinete com uma granada no bolso para o eliminar como mais tarde confessaria;foi fuzilado com os seus cúmplices;
- Em Outubro de 1969, Malam Sanhá, Seco Baio e outros guineenses reuniram-se em Simbeli com o propósito de urdir um atentado para eliminar AC quando este para lá se deslocasse;
- Um outro plano para eliminar AC é conhecido em 1969;
- Em 1972, um ano antes da morte de AC também um conluio (Cabi de etnia balanta e Caetano); tratava-se de uma cilada que consistia em minar a estrada por onde AC iria passar;
- Carta do Nino Vieira a Rafael Barbosa que foi interceptada e os seus efeitos: Conselho de Guerra para Nino demitido de todas as suas funções e 40 militantes presos para averiguações.Perante esta enumeração (elencagem), que peca por defeito, hoje, podia-se perfeitamente ter pedido emprestado a G. Garcia Marquez o título de um dos seus mais famosos livros: “Crónica de Uma Morte Anunciada”, morte esta que viria a acontecer a 20 de Janeiro de 1973.
O que intriga, e Daniel é absolutamente claro quando o insinua, é que perante os factos e o historial, ainda permaneça em certas pessoas a fixação de que os autores morais do bárbaro assassínio tenham sido apenas a PIDE e o Gen. Spínola quando não faltavam agentes e motivos internos. Ou é comodismo, preguiça de pensar ou é ignorância sobre o que se passava no interior do PAIGC, o que seria natural dada a situação de guerra e natureza estalinista do Partido. Ou então seria mais uma fabricação do real como veremos adiante.
Para chegar ao assassínio de Cabral, Daniel percorre a luta e o Partido de lés-a-lés: a sua génese, o seu desenvolvimento, os seus sucessos, os seus fracassos, as suas estratégias e tácticas, as suas falácias, os seus momentos de elevação mas também de indignidade.
Nada, absolutamente nada, escapa ao olhar de lince, perspicaz, cuidadoso e abrangente do político e politólogo, olhar este que se projecta para além da vida do criador do PAI.
Desde a maneira autocrática, despótica e absolutista como Cabral conduziu o seu Partido, até à criação de um poderoso e bem organizado exército passando pelas intrigas, conspirações, choques, oposições de que atrás falámos.
Daniel dos Santos confronta ainda, com subtileza, a presença de cabo-verdianos na luta armada, segundo ele, de 30 a 40, com a dos cubanos que chega a atingir os 500 no ano de 1967, bem como os mortos em combate – 2 da parte dos cabo-verdianos e 17 da parte dos cubanos. (...)
A questão identitária não foi também esquecida. Sem entrar em grandes pormenores, direi que Daniel dos Santos assume uma posição que considero salomónica, de equilíbrio: Não temos que nos re-africanizarmos nem de nos re-europeizarmos. Somos cabo-verdianos, fruto do encontro dos dois continentes e respectivas culturas.
Lembrando o grande poeta, ensaísta e jurista Gabriel Mariano: Não temos que procurar as raízes, “nós somos as nossas raízes!”
Retomando o conteúdo da obra é importante salientar que o livro de Daniel dos Santos é construído como se de um puzzle se tratasse. Um puzzle cujas peças se encaixam de múltiplas maneiras. Tantas, quantas as conclusões a que cada leitor poderá chegar. Um puzzle em que cada peça que se coloca é um mito que se desfaz na nodulosa edificação construída no aconchego de um conceito marxista-leninista de ideologia que Daniel dos Santos tão arguta e inteligentemente repescou de Mário de Andrade e que consiste na “fabricação do real para fazer passar uma verdade” que se deseja ou que convém.
É neste quadro que situaremos:
- a falácia da data de criação do PAIGC;
- a apropriação da greve dos estivadores de Pidgiguiti;
- a mentira do controlo dos dois terços do território;
- o embuste do recenseamento da população da chamada zona libertada;
- a apropriação da autoria da queda do helicóptero onde viajavam deputados portugueses quando a causa tinha sido unicamente meteorológica;
- a teatralização (publicidade enganosa) da audiência pública do Papa Paulo VI tornada privada; a exultação em Conacry dos irmãos Cabral pelo bárbaro assassínio dos três majores portugueses;
- a proclamação da independência da Guiné-Bissau pretensamente (há fortes dúvidas do local) em Boé;
- e a alegada legitimidade histórica transferida para Cabo Verde por um grupo de cabo-verdianos que lutaram para a independência da Guiné-Bissau,
Daniel dos Santos é lógico, sem ser silogístico no sentido aristotélico do termo. No geral evitou conclusões. (...) Daí que as minhas não são unívocas. Um outro leitor aportará seguramente a outras inferências. Contudo há sempre algumas que se consideram (ou parecem ser) consensuais, não unânimes. E são a estas, sem quaisquer pretensões de estar certo, que me vou rapidamente referir:
- Amílcar Cabral viveu apenas 10 anos em Cabo Verde – dos 11 aos 21 – anos que, como é lógico, poderiam ter (e terão) sido de algum enriquecimento intelectual e social mas dadas as limitações e as circunstâncias que se viviam é de pouco ou nula relevância social – apenas um ou outro exercício literário. É esta a fase que Daniel classifica de conformismo;
- Surge [AC] em Cabo Verde, para o povo cabo-verdiano, (não para a elite informada) trazido pelo “25 d’Abril” e pelas mãos de um punhado de homens e mulheres que tinha todo o interesse em endeusá-lo e mitificá-lo para se legitimar como herdeiros do seu alegado “extraordinário” legado histórico colocando-o directa, mas sobretudo convenientemente, no “Panteão” por uma unanimidade imposta e sem um debate sério sobre ele, que promovesse, no mínimo, um consenso; (estatisticamente, a unanimidade é quase sempre uma imposição enquanto o consenso é uma construção).
- Consenso de que ele não gozava como líder – é bom que se diga – entre os dirigentes guineenses como a obra de Daniel dos Santos revela; e do qual, pelos vistos, só se redimiu com a morte, que o resgatou. Basta ver a quantidade de responsáveis guineenses implicados no seu assassínio.
- Que a luta desenvolvida na Guiné-Bissau, utilizando as justificações e os discursos de Cabral, tinha muito mais um cunho, um cariz, anticolonialista, de mera luta pelo poder, do que nacionalista – defesa de um ideal, de valores.
- Amílcar Cabral não teria lugar no Cabo Verde de hoje. A concepção monolítica que ele tinha de poder, da sociedade e da política são absolutamente incompatíveis com a democracia (sem adjectivos), com os valores e as actuais aspirações do povo cabo-verdiano.
- O livro de Daniel dos Santos reclama de nós uma profunda reflexão sobre a verdadeira contribuição desse homem – Amílcar Cabral – no processo político cabo-verdiano;
- É também um convite a um debate sério sobre o mérito ou demérito do seu lugar no “Panteão” e sobre a “fundação” de uma nação que há mais de 450 anos existe e que como tal, como nação, fez a 1ª reivindicação dos seus direitos cívicos em meados do seculo XVI no longínquo reinado de D. João III.
- É (o livro) um desafio à mitificação, ao culto da personalidade, idiossincrático dos regimes totalitários e ditatoriais de que guardamos evidentes resquícios e produzimos primárias e grotescas manifestações;
- É ainda (o livro) um forte apelo a uma discussão urgente, há mais de 40 anos adiada. Não apenas das teorias ou do pensamento de Cabral mas do seu efectivo papel na independência do País.
É este o livro de Daniel Santos que tenho o privilégio e a honra, e também o prazer, de vos apresentar – uma tarefa difícil dada a sua extensão (quase 600 páginas) e densidade – cuja leitura, a todos, recomendo vivamente.
(*) 20 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23899: Antologia (86): Excertos da entrevista de Daniel Santos, ao "Expresso das Ilhas" (15/9/2018): Amílcar Cabral e a "falsificação da história"