Morrido, "lerpado", para usar o nosso calão de caserna, bruto e feio. "Lerpado", assim, sem mais nada, sem uma palavra, sem uma oração, talvez até sem um ai nem um ui, sem um grito de dor, sem um ato de contrição, sem direito sequer a um último desejo, um cigarro, uma palavra de despedida... Imagino ou suspeito que nem sequer tinha havido um xeque-mate, do tipo "a bolsa ou a vida!"...
"Lerpado", morrido, de morte matada, morrido, como um cão, com um tiro na nuca, como os cães que abatemos (dezenas!|), uma noite, em Bambadinca, nessa alucinante e sangrenta "Noite das Facas Longas", lembras-te?!... (Precisávamos de dormir, e eles eram uma alcateia selvagem de vira-latas, famintos, sem-abrigo, que todas as noites invadiam a parada, e uivavam às nossas janelas!)
Disseram-me que tinhas sido encontrado, morto, longe da nossa Guiné, dessa terra verde e vermelha que tu tanto amaste, longe da tabanca de Sinchã Mamajã, e da morança da tua bela e sensual Fatumatá, de mama firme, que se escapulia para a tua morança, nas noites de cio e lua cheia, em que uivava a hiena (o "lobo", para os guineenses)…
Longe do tarrafo do Geba, da Ponta Varela e do Poindom, do Mato Cão, dos Nhabijões, da Ponta do Inglês, da Missão do Sono, da Ponte do Udunduma, da orla da bolanha, do poilão, do bagabaga, do tarrafe… Longe de Bambadinca, de Badora, do Corubal,,,
Onde, afinal ? Não longe do lugar dos teus verdes anos, não longe do arco-íris do teu céu de menino, quiçá perto do estuário do teu Tejo, numa qualquer praia do mar da Palha, ou numa valeta suja de uma rua escura da tua cidade (Se bem recordo, moravas no Afonsoeiro, Montijo, na Rua Damão, rodeada de outras ruas com topónimos ultramarinos, Luanda, Ilha do Príncipe, Ilha de Sáo Tomé, Moçambique, Cabo Verde),,,
Em que encrencas te meteste, meu irmão ? E com quem jogavas à lerpa, camarada ? Ou em que emboscada caíste, meu amigo ?
Que morte tão crua, a ser verdade, oxalá fosse boato a notícia de fait-divers que alguém leu no jornal, a notícia de uma morte em que eu não te (re)vejo, nem nenhum de nós, teus velhos camaradas de Bambadinca.
Oxalá tenhas simplesmente desaparecido, emigrado!... Oxalá, tenhas sido sequestrado, tenhas mudado de código postal ou até de identidade, sempre era menos mal. Sinal ao menos, que estavas vivo, algures!... E poupavas-me este requiem, o teu elogio fúnebre, que é a pior das missões que se pode pedir a um camarada de armas.
Oxalá, Inshallah, Enxalé!
Disseram-me (mas eu não quis crer) que tinhas sido morto, sem honra nem glória, depois de cumprido o teu dever para com a Pátria que te foi madrasta, cruel Jocasta.
Já depois da última nau da Índia ter naufragado no mar da Palha da tua infância, já muito depois dos últimos guerreiros do império terem feito o espólio de todas as guerras e o relatório da sua errância desde Quinhentos.
No século passado, meu amigo, no século transato, meu irmão!...
Lembro-me de o velho Uíge, navio da Companhia Colonial de Navegação, nos ter devolvido a terra, à nossa cidade e capital. Nas praias da Rocha Conde d' Óbidos, no cais de todas as saudades, no cais de pedra donde havíamos partído em 24 de maio de 1969, quase às escondidas, vindos do comboio noturno e soturno de Santa Margarida, do Campo Militar de Santa Margarida.
Não sei quem te esperava nesse dia 22 de março de 1971, mas seguramente os mesmos entes queridos (pais, manos, namoradas, noivas, mulheres...) que nos esperavam, a quase todos nós, que ali, no cais, passávamos à condição de paisanos, depois de nos depedirmo-nos, a bordo, na noite anterior, bebendo o último gole de uísque sem gelo e fazermos promessas de amizade para sempre.
Vestidas as calças à boca de sino, e as camisas às florinhas que estavam na moda, na época, regressávamos ao doce lar, com as exóticas bugigangas compradas com o patacão da guerra em Bissau, na loja do libanès Taufik Saad.
Regressávamos da guerra, com a morte na alma e mazelas no corpo, num navio, quase fantasma, da marinha mercante, o T/T Uíge.
Como se tudo continuasse como dantes e a vida corresse normalmente, "contra os ventos da história" (como então se dizia), nessa viagem de regresso à pátria servia-se a bordo, na chamada classe turística, reservada aos sargentos: (i) uma sopa de creme de marisco; (ii) seguido de um prato de peixe (pescada à baiana); e (iii) um prato de carne (lombo estufado à boulanger)... sem esquecer (iv) a sobremesa: a bela fruta da época, o bom café colonial, o inevitável cigarro a acompanhar um uísque velho, antes de mais uma noitada de lerpa ou de king...
Não sei se "lerpaste" nessas noites, se perdeste (ou ganhaste) algum patacão... Sim, esse 17 de março de 1971, em que largámos do estuário do rio Geba, foi o primeiro dia do resto das nossas vidas... E, nas costas da ementa de um desses jantares a bordo, talvez o do último dia, deixámos escritos os nossos nomes e moradas.
Três de nós, que iam na classe turística, já não estão mais entre os vivos, tu, o sargento Piça e o furriel António Branquinho... Bolas, já lá vai meio século depois do nosso regresso... E todos jurámos ficar amigos... para sempre !
Regressávamos ao lar e à rotina das nossas vidas, pequenas, insignificantes. E a uma outra guerra, a da lufa lufa do quotidiano, com outras picadas, com outras minas e armadilhas, com outras emboscadas e golpes de mão.
Tu tinhas um lar, todos tínhamos um lar, uma família, alguns um emprego, muitos uma namorada ou uma noiva ou uma mulher e até filhos à sua espera… Mas eu…, o que sabia eu de ti ? O que sabíamos nós uns dos outros ? E dos nossos sonhos de meninos que foram obrigados a crescer tão cedo e tão rãpido ?
Muito pouco, afinal… Casaste ? Tiveste filhos ? Não, não deves ter tido tempo e pachorra para ser pai, um bom pai, e muito menos avô babado…
Não, nunca mais voltei a ver-te, depois desse dia 22 de março de 1969, ao longo de todos estes anos, em que tantas coisas aconteceram, para o pior e o melhor, na nossa Pátria... Uma palavra, repara, que saiu do léxico dos tugas, e já não se usa mais, a Pátria... Afinal o que é a Pátria, camarada ? Ou era ?
Em 1994, encontrámo-nos, alguns de nós, em Fão, Esposende, mas tu já não estavas no rol dos vivos... Julgo que foi aí que soube, pela primeira vez, da notícia de que tinhas morrido (segundo constava)...
A imagem mais forte, não a última, que retenho de ti, é a do menino e moço que saiu, fardado, garboso, bem escanhoado, da casa de seu pai e sua mãe...É a imagem do puto reguila, quiçá rebelde, temperamental, belicoso mas generoso, da margem sul do Tejo. Com jeito para o desenfianço, o desenrascanço, que a vida era dura para os homens da CCAÇ 12, brancos e pretos. E com lábia para as bajudas de mama firme e para os "dubis", os putos da companhia, alguns ainda meninos de sua mãe.
Retenho ainda, sem qualquer sentimento de pudor nem de culpa, a imagem do nosso patético duelo, numa noite de desvario, no bar de sargentos de Bambadinca, tendo por arma, letal, uma garrafa de VAT 69. (Ou era Jonhnie Walker ? Ou White Horse, a tal do cavalinho branco ? Já não me lembro do rótulo, sei apenas que era scotch, e do bom, daquele que vinha From Scotland for the Portuguese Armed Forces with love!, da Escócia para os tugas com amor.)
Um duelo de morte, gole a gole, até ao gole ou golpe final, em menos de 15 minutos!... Com árbitro e tudo, apostas a dinheiro, mirones e claques de apoio, como mandavam as regras dos apanhados do clima de Bambadinca!... Já não sei quem ganhou: seguramente perdemos os dois...
Apanhados do clima, cacimbados, dizes bem, Exaustos, usados e abusados, filhos de Sísifo, filhos de um deus menor, condenados ao mais insano dos suplícios, uma guerra a que chamavam de baixa intensidade, de contraguerrilha, do gato e do rato, de contrassubversão…
Não, não, era a roleta russa, ninguém tinha pistolas de tambor, era o fado lusitano, era o fado da Guiné, meu camarada, meu amigo, meu irmão.
Era a nossa triste condição, era a nossa quiçá estúpida, mas viril, maneira de matar… o tempo, o escasso tempo de lazer em tempo de guerra, , cronometrado, o tempo de espera entre uma operação e outra, o tempo de espera que podia ser entre a vida e a morte, que estava quase sempre emboscada nos trilhos que levavam do Xime à Ponta do Inglês.
Era a insanidade mental, era a raiva, traiçoeira, era a lucidez da loucura a tomar conta de nós….
Foi esse fado que te matou, essa maldita toxina, essa adrenalina, que trouxeste das águas do Geba e do Udunduma, e das bolanhas do Corubal, do cacimbo das manhãs de Sinchá Mamajá, e que te impedia de parar para pensar, simplesmente parar, simplesmente pensar, simplesmente viver, simplesmente respirar à tona de água. meu irmão, meu camarada, meu amigo.
Foi o sobressalto da vida, foi a vida em sobressalto, foi a vida em saldo, foi a alma em carne viva, foi a dor em lume brando... Foi isso que te matou. No pós guerra, na guerra dos paisanos.
Foi isso, foi a Guiné que te matou. Ao retardador.
© Luís Graça (2015). Revisto em 6set2023
Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Carta do Xime (1955) (Escala 1/50 mil) > Subsetor de Bambadinca > Detalhe > Tabancas fulas em autodefesa, Samba Juli, Sare Adé, Sinchã Mamajá e Sansacuta, situadas entre os rio Quéuol e Timinco, a leste da estrada Bambadinca-Mansambo. na frinteiras entre os regulados de Badora e Corubal Sansancuta faz parte dum eixo de aldeias estratégicas, como se diz no Vietname, no limite sul do regulado de Badora, no Sector L1, e que funciona como uma espécie de pequena muralha da China, cortando as linhas de infiltração das forças da guerrilha que eventualmente se dirijam para o interior daquele regulado a partir do rio Corubal (infiltração facilitada pela retirada de Madina do Boé, Béli, Ché-Ché, Madina Xaquili...) Estavam ali reagrupados os habitantes de três tabancas, uma das quais Sare Ade cuja população, sobretudo os mais jovens, não se conformou com a ordem de deportação dada pelo comando militar de Bambadinca, tendo fugido para o nordeste (Gabu) e inclusivamente para o Senegal, que também é chão fula.
Lugares que continuam no nosso imaginário, ao fim de mais de meio século, fazendo parte das nossas geografias emocionais...
Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)
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Nota do editor:
(*) Último poste da série > 30 de agosto de 2023 > Guiné 61/74 - P24599: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (8): Bonjour tristesse!
(...) Nada fazia prever, quando o Teodoro nasceu, que estaria predestinado a ser padre. Pelo menos não havia nenhum sinal exterior dessa predestinação, desse chamamento de Deus.
− Nenhum rasto de estrela ou cauda de cometa a apontar para a minha casinha de xisto. (Apesar de tudo, sempre era melhor do que a loja da vaca e do burro, em cuja manjedoura nascera o Menino Jesus, em Belém.) − comentaria ele, com um misto de ironia e melancolia, mais tarde, em 2008, quarenta anos depois da sua partida para França, onde fixara residência. Nunca mais voltara à sua aldeia, na Serra da Lousã, a não ser então, depois da reforma. (...)
Postes anteriores da série "Contos com mural ao fundo":
21 de agosto de 2023 > Guiné 61/74 - P24572: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (7): Sozinho, como um cão
(...) Estive no seu leito de morte. Um fatal cancro dos pulmões, porventura curável nos nossos dias, roubara-lhe a vida, há uns trinta anos atrás. Teria hoje os seus 80 anos, se fosse vivo. Morreu jovem, demasiado jovem.
Era um dos meus heróis da adolescência, o Doc. Tinha lentamente recuperado a alegria de viver, depois de uma grave crise que ele próprio qualificara de “existencial”. (...)
26 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24504: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (5): O "Felgueiras", de 1º cabo hortelão a comendador (1943-2017) (Parte I)