segunda-feira, 15 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25391: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (25): Um país de gente porreira - Parte I


Palácio Nacional de Mafra: uma visão romãntica, em litografia de 1853, da autoria de João MacPhail (que morreu em 1856). Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal: http://purl.pt/12043

Imagem do domínio público, Cortesia de Wikimedia Common


Mafra > Escola Prática de Infantaria (EPI) > 1968 > Cerimónia do Juramento de Bandeira > Desfile dos novos militares, onde se integrava o Paulo Raposo, frente ao Convento de Mafra. O Paulo Enes Lage Raposo, que nada tem a ver com a história que a seguir se conta (os nomes são ficcionados, mas onde os factos são verdadeiros),  foi alf mil inf, MA, CAÇ 2405 / BCAÇ 2852 ( Mansoa, Galomaro e Dulombi, Guiné,1968/70), e o organizador  do histórico  I Encontro Nacional da Tabanca Grande (Ameira,  2006). A sua companhia perdeu 17 militares na travessia do Rio Corubal, na sequência da retirada de Madina do Boé, em 6 de fevereiro de 1969 (Op Mabecos Bravios). 


Foto (e legenda): © Paulo Raposo (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Contos com mural ao fundo (25) >  Um país de gente porreira (Parte I)


 por Luís Graça



1A. Conheceste o Bacelar em Mafra.
Em finais de novembro de 1972. 
Iam tomar posse na repartição de finanças.
Um mês antes do Natal.
Numa tarde fria e chuvosa...
E logo em Mafra. Logo ali, na ”Máfrica”,
como tu e outros que por lá passaram na tropa,
chamavam àquela terra desgraçada.
Tudo por causa da EPI,
a Escola Prática de Infantaria,
que se tornara a principal fábrica
de oficiais milicianos, alferes e capitães,
comandantes operacionais
com destino à guerra de África.

Ainda te soava aos ouvidos a frase  de uma canção de protesto, de um gajo de Coimbra, estudante de medicina, que deve ter chumbado a meio do curso, e que era do “reviralho”, cantava bem e tocava viola sofrivelmente : 

− Muita chuva, muito vento, muita merda… e um convento! − cantarolava ele na caserna, enlameado e estafado, depois do crosse semanal... Completamente "passado dos carretos"!

Por aqui passaras tu, cerca de quatro anos antes, como “feijão-verde”.  Tu, o teu antigo capitão miliciano e outros camaradas de que já havias perdido o rastro.  Para ti,  "criminoso" contra a a tua vontade, era como voltar ao “local do crime”. Foi dos regressos ao passado mais penosos da tua vida. Ao sítio onde não foras feliz, nem nunca o poderias ter sido. 

Afinal, foi aqui que recebeste a trágica notícia da morte do teu pai.  Prematura, sem ter completado os sessenta anos. Não te autorizaram sequer a ir despedir-te dele. Morrera na véspera do teu juramento de bandeira. Mandaram-te, da agência funerária, um telegrama em cima da hora. O tenente da tua companhia de instrução chamou-te ao gabinete e disse-te, seco e perentório, em resposta ao teu pedido para ir a Mértola, ao funeral:

 − O nosso soldado-cadete pode ir, o pai é seu, mas perde o juramento de bandeira, chumba no COM, vai parar ao CSM, a Tavira, às Caldas ou a Santarém, atrasa o seu embarque para o Ultramar em mais alguns meses… Enfim, a escolha é sua!”…

Sim, o pai era teu, mas a pátria era deles... Ficaste com um pó ao tenente... Enfrentaste,  nesse fim de tarde, um terrível dilema, dividido entre o teu amor filial, o teu dever de ir prestar a última homenagem ao teu pai, e a tomada de consciência,  naquele preciso momento, de que passavas a estar, doravante, na “linha a frente” e, ao mesmo tempo, a ser o sustento da tua família, da tua mãe e da tua irmã, mais pequena. 

Por outro lado,  davas-te conta da impossível escapatória  daquele sistema concentracionário, que era a “Máfrica”, representado pela nudez e a crueza daquelas paredes que te encarceravam. Mas, se não ficaras em França, não ías agora fugir do teu país...

Confessarás, mais tarde,  que choraste lágrimas de sangue no dia seguinte, enquanto juravas bandeira, na praça frente ao palácio, com a arraia-miúda,  muda e calada,  ao largo… Não tinhas ninguém a acenar-te, e muito menos a mostrar-se solidário na tua dor. 

Trágica ironia, juravas defender a tua Pátria (se necessário, até "à última gota do teu sangue”), no preciso momento que descia à terra o corpo do homem que te dera o ser. Lá longe, em Mértola, que o tenente nem sequer sabia onde ficava, a muitas léguas dali.

Passado pouco tempo estavas em Vendas Novas, na Escola Prática de Artilharia, a meio caminho de casa, e mais perto também da tua irmã mais velha, que vivia em Almada e cujo marido, soldador,  trabalhava na Lisnave. Foste lá fazer a instrução de especialidade. Atirador de artilharia: não sabias o que era... 

Aproveitaste uma licença de alguns dias  para dar um salto à tua terra e depor um ramo de flores silvestres  na campa, rasa, do teu velhote, morto pela silicose que lhe destruira os pulmões.

Mas o Bacelar não tinha nada a ver com isto, com o teu passado recente e muito menos com os teus dramas de consciência. Ele era apenas mais um “companheiro de infortúnio”  que tu tiveras o azar de encontrar em Mafra, desta vez no mesmo emprego. Claro que tu não o conhecias de lado nenhum. E, muito provavelmente, não  irias voltar mais a vê-lo,  a partir do dia em que cada um  fosse à sua vida, uma vez colocados noutros sítios, lá onde onde o fisco muito bem entendesse.  

Por estranha coincidência (ou supersticioso  como tu eras,  seriam mesmo coisas do destino ?!), tinham chegado, tu e o Bacelar, no mesmo dia, ao fim da tarde, com uma hora de diferença. Numa tarde fria e chuvosa, anotaras  na tua agenda. Ainda a tempo, contudo, de poderem “tomar posse” (era assim que se dizia na época) do lugar do quadro do pessoal  da repartição de finanças local. Como se o lugar fosse teu, "de pedra e cal", e para o resto da vida...

Mas tu devias estar, se não feliz, pelo menos aliviado por arranjar um emprego na função pública, com as habilitações literárias que tinhas, o 7º ano do seminário que só dava equivalência para a tropa e o funcionalismo público.  Mas não!... Logo por azar teu, as finanças estavam instaladas naquele pavoroso convento, o mesmo onde funcionava, nas traseiras,  a “Máfrica”, de triste memória para ti.

Tu tinhas chegado em cima da hora. O chefe da repartição, que te pareceu, à primeira vista, boa pessoa, afável, educado, com um típico sotaque açoriano, foi quem vos apresentou um ao outro, e ao restante funcionalismo.

Mas, dado o adiantado da hora, com a repartição a fechar, fez questão de deixar a cerimónia da tomada de posse para a manhã do dia seguinte, com a promessa de, no respetivo termo, constar a data da véspera. Ele era a amabilidade e a calma em pessoa. E fez questão de dizer a ambos, no seu sotaque de ilhéu, que não  queria, em caso algum, prejudicar-vos a “antiguidade”. E carregava na penúltima sílaba com evidente deleite.

Percebeste logo que também aqui, tal como na tropa, a “antiguidade” era um posto. Bem te tinhas lixado com essa da "antiguidade", tiveste de substituir o teu  capitão, na Guiné,  depois de ele ter sido evacuado para a “metrópole”, por motivo de doença,  que, toda a gente sabia, mas não dizia em voz alta,  era do “foro mental”.  

Nunca foram chegados, tu e o teu capitão, falavam apenas das coisas estritamente indispensáveis de serviço. Ele também não era de grandes falas.  Nunca te falou do seu passado. Devia ter mulher, filhos, um emprego, aos trinta e poucos anos.  Sabias  que tomava algumas drogas para o sistema nervoso, almoçavam  juntos na messe de oficiais. Tínham uma messe só para os oficiais,  o capitão e os quatro alferes milicianos. 

Na prática, a messe era igual, para oficiais e sargentos, mas havia uma divisória, uma espécie de biombo, a separar as duas classes. O resto da maralha, comia à parte, no refeitório geral. "Nobreza, clero e povo, / Cada um para seu lado; /  Na Guiné, nada de novo, / Saia um bife bem passado "..., ironizava o "baladeiro" da companhia, no "Fado do Vagomestre".

Alguém da companhia ainda o encontrou, ao capitão,  em Bissau, no HM 241, na “psiquiatria”. Era um verdadeiro  labéu para a reputação de um militar,  uma baixa psiquiátrica. Um tipo podia ser “apanhado do clima”, que se lhe desculpava tudo (ou quase tudo). Um gajo podia apanhar uma "borracheira", daquelas de caixão à cova, que logo lhe acrescentavam mais uns pontos no currículo de macho. Um gajo podia até ser "cornudo", coitado, que isso não acontecia só aos outros. Um gajo podia ser “maluco”, mas nunca podia dar “parte de fraco”, "dar baixa", neste caso ir parar à “psiquiatria”… Muito menos sendo um comandante operacional.

Antes de saírem para o conforto dos seus lares, os novos colegas das finanças, solícitos, se não mesmo afáveis mas algo premonitoriamente distantes, deram, aos recém-chegados, indicações sobre onde  jantar e pernoitar.... Que no dia seguinte logo se arranjaria melhor sítio para se ficar por uns tempos, já que quartos para alugar não faltavam naquela terra,  "saloia, dizem, mas acolhedora e hospitaleira" (sic). 

Não gostaste logo da cara de alguns, que pareciam os verdadeiros “donos da baiuca”.



1B. Conheceste hoje o Ravasco. 
“Ravasco, que raio de nome!”,
pensaste tu quando ele te estendeu a mão,
rugosa, de cavador de enxada…
”Será nome ou alcunha ?”,
tiveste a indelicadeza de lhe perguntar.
”Apelido, de família”, respondeu-te,
secamente, com cara de poucos amigos.
Ravasco, na tua terra, dizia-se 
de um homem libertino, "putanheiro"...


Dormiste, nessa noite, tu e o Ravasco, numa pensão, rasca, a condizer, numa daquelas  ruas que atravessavam o casario frente ao canvento,  e que o teu novo colega logo reconheceu do seu tempo de soldado-cadete. E que cheirava a grelhados, a serradura e a mijo de gato.  Ele fizera aqui a tropa há quatro anos atrás, em 1968, segundo te confidenciou. E ficara, desde então,  com um asco a Mafra.

Em conversa com ele, ao jantar, descobriste que ambos tínham regressado, ainda relativamente há pouco tempo, da guerra do Ultramar. Tu de Angola, ele da Guiné. Eram da mesma colheita, 1947, embora ele fosse mais novo uns meses.  Mas cada um, afinal, com diferentes memórias, experiências e até expectativas. As recordações que tu trazias eram até boas, as dele nem por isso.

Evitaste, deliberadamente, falar em demasia desse passado recente que vos aproximava. Talvez por pudor. E também porque não conhecias o Ravasco, ou melhor, tinhas acabado de o conhecer  há umas escassas horas. E, em boa verdade, não tinhas a certeza de poder confiar nele. Tiveste até o pressentimento que muitas coisas vos podiam separar. 

Nunca foste pessoa de fazer amizades logo à primeira vista. Sempre fora uma das recomendações da tua  mãezinha que era uma mulher sábia e com um formidável sexto sentido: nunca se enganava no primeiro juízo que fazia dos estranhos. Tirava-lhes logo a "pinta", pelas primeiras frases e gestos...

Para começar, o Ravasco era, seguramente, de famílias modestas ou humildes, como se diz na tua terra. Em contrapartida, era um antigo camarada de armas, se bem que tu, na época,  ainda não valorizasses muito essa condição. Agora era teu colega de trabalho. Mas tu, ao princípio,  atrapalhavas-te, tratavas o Ravasco ora por colega ora por camarada. Com alguma cerimónia, talvez nortenha.

E apercebeste-te logo que ele não gostava de tocar na tecla da Guiné. Tu puseste-te então a imaginar que ele teria passado um tempo pior, na Guiné, do que o teu, em Angola. Talvez tivesse até apanhado uma "porrada", ou coisa parecida.

 Toda a gente sabia que a Guiné era um duro osso de roer. Mas os gajos da Guiné também gostavam de cantar o "fado da desgraçadinha", como se em Angola (e até certo ponto em Moçambique, dependendo dos sítios) a malta tivesse só andado a brincar aos índios e cobóis. 

Percebeste logo, também, ti e ele eram diferentes, se calhar irredutivelmente diferentes, oriundos de diferentes regiões do País, e até de meios sociais  distintos. Tu, do Norte, ele, do Sul.

O Ravasco era alentejano de Mértola, e tu minhoto de Ponte de Lima. Do Alentejo tu só conhecias meia dúzia de anedotas, estúpidas, dirias hoje. E nenhum dos dois  conhecia a terra um do outro. O que não admirava: naquele tempo,  há meio século atrás, ainda era fraca a mobilidade espacial dos portugueses, viajava-se pouco, dentro (e, pior ainda,  fora) do País, embora tu já tivesses carro. Mas o mais longe aonde já tinhas ido, a Sul,  era até Lisboa, quando prestaste serviço no RI 5, nas Caldas da Rainha.

O Ravasco confessava que o mais a Norte aonde já tinha ido fora a Aveiro. Fora lá, de comboio, com uns camaradas, mobilizados para a Guiné, comer um ensopado de enguias. Um deles era da Murtosa ou coisa parecida.

Estivera menos de dois meses no Campo Militar de Santa Margarida, a formar companhia. Fora mobilizado para a Guiné pelo RI 2, o Regimento de Infantaria 2, em Abrantes. E não teve pejo em dizer-te que não sabia exatamente onde ficava Ponte de Lima, “lá no mapa do Minho”. O que para ti era  imperdoável, quase um insulto, não conhecer a geografia do país...

De facto, para ti, o Minho era a “joia da coroa” deste país à beira-mar plantado, o teu país. Era no Minho que começava Portugal, o Portugal do Minho a Timor, como havias aprendido na escola. Sempre tiveste  muito orgulho do teu Minho e, claro, do teu torrão natal, Ponte de Lima, que, segundo te ensinaram os teus avoengos maternos,  era a terra, a vila,  mais antiga de Portugal.



2A.Viste logo que o Bacelar era mais viajado do que tu.
Viera de Mini, de Viana do Castelo até Mafra,
um dia inteiro a conduzir.
Tinha um Mini Morris 850,com jantes especiais.
Mas também não fazia a mínima ideia
onde ficava Mértola, a tua terra natal.
Disseste-lhe que ficava na margem direita do rio Guadiana,
e que já vinha do tempo de fenícios, romanos, visigodos e mouros.
Não mostrou curiosidade em saber mais.


Na primeira noite, em que ambos se  conheceram, por sinal  uma noite desagradável por causa do frio e da chuva, falaram sobretudo do tempo. Falar do tempo é sempre uma solução airosa quando um gajo  não  tem assunto para conversa, ou não está afim de conversar, ou não quer mostrar logo o jogo, a sua maneira de ser e de estar, a sua história de vida, os seus pontos fortes e fracos… Falaram pouco das terras e das  andanças de ambos pelo país.

Simpático, o Bacelar mandou vir duas aguardentes velhas de vinho verde, "duas amarelinhas", que fez questão de ser ele a pagar. E estiveram ali os dois a falar, afinal amenamente, evitando, todavia,  tocar  em assuntos da tropa  e da guerra. O que era difícil, disseste para ti mesmo...

Na realidade, era como se estivessem ainda em África, a resguardarem-se da picada do mosquito  e a contar as noites e os dias que lhes faltavam para a “peluda”. Em geral, tu eras mais reservado, nunca ou raramente falavas da tropa e, muito menos, da Guiné. Por outro lado, tratavam-se por você (e assim continuaram até pelo menos ao 25 de Abril de 1974). Ele também era cerimonioso, mais do que tu, e talvez mais por educação do quer por feitio. 

Todavia,  já mais para o final da conversa, ficaste  com a ideia de  que ele tinha o "bichinho de África" e que hoje ainda estaria arrependido de não ter aceite uma boa oferta de trabalho em Luanda. No Banco de Angola, gabava-se ele.  De resto, não terão faltado outras propostas de emprego, menos aliciantes,  como por exemplo a de guarda-livros numa fazenda de café, a norte de Luanda. 

Não te explicou as razões por que voltara para a santa terrinha, ele que se gabava de ter alguns “grandes africanistas” na sua ascendência, do lado materno, um dos quais, militar, da Armada,  ainda conhecera o Zé do Telhado no desterro,   em Luanda, a caminho de Malanje. 

Mas as saudades, às vezes, falam bem mais alto do que a razão. E já que puxara a conversa, disseste-lhe que fizera bem, que haveria de continuar a fazer a sua vida na sua terra, que era Portugal, e que o futuro de Angola era incerto, tal como o de toda a África Austral, último reduto dos brancos, o mesmo era dizer, do colonialismo. E não te enganaste, o velho “apartheid” branco haveria de ruir em 1994, tal como já tinha antes ruído o muro de Berlim  e tudo o que ele representava, "dividindo o mundo em duas partes como uma maçã, mas de cores diferentes por fora.

Ouviu calado as tuas divagações. Foram-se  deitar cedo, estavam ambos cansados, o Bacelar tinha vindo a conduzir desde Viana do Castelo. Tu vieras de mais perto, de Almada, onde pernoitaras na casa da tua mana mais velha. (Era casada, ainda de fresco,  com um operário da Lisnave, estavam a montar a casa, viviam com dignidade mas com muito aperto, como as famílias operárias da época.) Vieste de cacilheiro para Lisboa para depois apanhar, na Rua da Palma, uma camioneta da Mafrense.

Tínhas guia de marcha para te apresentar até às cinco horas da tarde desse dia, para a “tomada de posse”. E o Bacelar também. Reparaste no olho azul dele. Soubeste, mais tarde,  que era oriundo de uma família de senhorios, donos de terras de um antigo morgadio com direito a brasão. 

Sempre invejaste, diga-se de passagem, quem tinha algo de seu, casas, montes,  terras. O teu pai construíra uma casinha de paredes de tabique no couto mineiro. Nada a que ele pudesse chamar seu. Os gajos do Sul, como tu, não tínham raízes telúricas e muito menos “pedigree”, brasão, árvore genealógica, antepassados, memórias,  referências, valores, ... E quem não tinha raízes na terra nem árvore genealógica para mostrar aos outros, era mais propenso às depressões, ouviste essa teoria da anomia ao alferes miliciano médico do teu batalhão, que deve ter seguido psiquiatria, era mais “apanhado do clima” do que os operacionais.

O primeiro emprego que o Bacelar arranjara, depois do regresso de Angola, fora numa repartição de finanças do distrito de Viana do Castelo. Um tio (ou tio-avô, materno) tinha (ou tivera) um cargo importante na Direção Distrital de Finanças do Porto. Teria sido, ao que parece, condiscípulo de diretor-geral das contribuições e impostos, o dr. Vitor Duarte Faveiro, natural de Ansião. Por isso, no gozo, tu chamavas-lhe  “filho de Ansião”… E o apodo ficou, quando os outros sacanas dos colegas mafrenses descobriram… “Dor de corno!”, pensaste tu. Quem tinha “cunhas” para entrar na DGCI, nas contribuições e impostos, era logo apodado de “filho de Ansião”, a terra do director-geral que toda a gente reverenciava e temia, sendo tido como uma referência  enquanto fiscalista. 

Tu não lhe disseste, por vergonha,  que também tiveras uma cunha, essa eclesiástica. De um cónego do cabido da sé-catedral de Beja. Teu antigo professor. De qualquer modo, tanto tu como o Bacelar, haviam feito, com sucesso, um concurso de provas públicas, como era norma no Estado Novo.  Eram já “concursados”… Consolava-te a ideia de teres entrado, por mérito, para a função pública,  não tendo roubado o lugar a ninguém.  

O Bacelar tinha a secreta esperança de ainda poder ser chamado para o Banco Nacional Ultramarino ou para o Banco de Portugal, se bem percebeste. Ou de vir a ficar mais perto de casa, no caso de  continuar nas finanças.

Se ele tinha defeitos que saltassem logo à vista, era essa de se gabar do seu “capital de relações sociais”, como se diz hoje…. A matriz  da sociedade portuguesa era ainda na época muito clientelar, nada se conseguia (empregos, negócios, casamentos, tropa, etc., ou um simples internamento no Hospital de Santa Maria ou de São João…) sem “conhecimentos”, o mesmo era dizer, sem “cunhas”. 

Mas não precisava de ser “cunha” de gente muito importante, às vezes até parecia que quem mandava mais neste país era a criada,o contínuo,  o motorista, a amante, a secretária, o sargento, o sacristão, o caseiro, o feitor, o maioral, enfim o chefe do pessoal menor… Nas zonas rurais, o feitor era um tipo poderoso, tal como o sargento na tropa… Tu vias por Mértola e Beja, onde os latifundiários, a viver na capital, raramente lá punham os pés, a não ser na época  das colheitas e da caça.

Ambos arranjaram, entretanto,  um quarto, amplo, com duas camas, numa casa sita no centro da vila de Mafra. Vivia-se, naquele tempo, do aluguer de quartos a professores primários, funcionários públicos e militares da Escola Prática de Infantaria, incluindo soldados-cadetes que tinham algum poder de compra. Era simpática, a velhota, a dona da casa, viúva de um sargento.

Os quartos já não eram baratos na época e tu, tanto como o Bacelar, se haviam convencido, estupidamente, que estavam ali de passagem. Mais ele do que tu. A  ideia de ambos era, logo depois da tomada de posse do lugar do quadro, pedir  de imediato transferência. Tu, para Beja ou para Almada (estavas indeciso), o Bacelar para Braga ou Viana do Castelo. Acabariam por ficar em Mafra mais de 21 meses naquela "vida de ciganos".

Detestava a "Máfrica", como tu chamavas  àquela terra, tomando a parte pelo todo. Estavas farto da tropa. E se calhar as pessoas  de Mafra também estavam, tirando as viúvas de militares, simpáticas mas empobrecidas, que viviam do aluguer de quartos aos desgraçados que lá iam parar. 

 O teu tenente-coronel, comandante do teu batalhão,  na Guiné, ainda te fez a cabeça para meteres o "chico". Deu-te inclusive um louvor, imagina! 

−  E se tu tivesses metido o "chico" ? − perguntavas-te hoje a ti mesmo. 

Bom, não te livrarias de voltar à Guiné, agora como capitão. Secretamente, a ideia não te desagradava de todo, terias  hoje um melhor pé de meia ou conta bancária. Mas também lá podias ter deixado a meia, o pé ou até a vida. 

Os galões dourados de capitão não te deixavam indiferente, a ti que, não passando de um simples alferes miliciano,  experimentaras, por breves meses, a secreta  volúpia do poder, que tinha como contrapartida o angustiante desafio de comandar 150 homens num teatro de guerra, e o risco de perder alguns. Tu que antes nunca estiveras à frente de nada, nunca foras ninguém, nem sequer chefe de turma ou capitão de equipa de futebol!...

Tínham apenas um reposteiro a separar as duas camas, como nos quartos de hospital. A tua  cama tinha um colchão de palha (!) onde te afundavas com os teus 90 quilos. (Engordaste, estupidamente, depois que passaras à "peluda"!.)



2B. Para o teu gosto, feitio e educação,
o Ravasco tinha um tipo de humor um pouco brusco e mordaz.
Não sabias se era um humor tipicamente alentejano.
Afinal ele era o primeiro alentejano com quem tu ias trabalhar.
E não te lembrava de ter lidado na tropa
com alentejanos ou algarvios.
A malta do Norte, já na altura os tratava por “mouros”.
Por sorte, a tua companhia em Angola
só tinha angolanos, minhotos e durienses.
E deram-se todos bem.


Não te importaste de partilhar um quarto, com o Ravasco, afinal ainda estavam habituados, tanto um como o outro,  ao ambiente de caserna, aos seus maus cheiros, à sua bagunça, ao seu ar opressivo, à sua promiscuidade... O teu quartel no leste de Angola também era uma espelunca, dormiam com cobras e ratos....Sempre poupavam algum dinheiro e, dentro em breve,  estariam de volta a casa. Ou, pelo menos, era essa a tua  secreta esperança. 

Viste que o Ravasco era poupado, se não mesmo forreta. Usava roupa fora de moda. O seu único luxo eram os jornais e um ou outro livro. Percebeste que andava a preparar-se para fazer o exame do 7º ano do  liceu. O 7º ano do seminário não lhe valia de nada. Queria seguir letras, e tirar o curso de direito. Tinha uma obsessão pelo direito. Se calhar, era-lhe mais fácil por causa do latinório. Queria aproximar-se de Lisboa para poder entrar na universidade.

Acabaram também por tornar-se, se não íntimos, pelo menos mais próximos, por força das circunstâncias, como os prisioneiros que estão na mesma cela e estão condenados a, minimamente, entenderem-se. Ficaste a saber que ele tinha deixado noiva em Beja. Ora tu, nesse aspecto, estavas mais à vontade, eras "livre como um passarinho".

Foste conhecendo-o, a pouco e pouco. Foram-se conhecendo. Deste conta de que, debaixo da sua aparente bonomia, e do seu verbo fácil, fluente, alegre e até folgazão, havia um homem reservado, subtilmente amargo e revoltado com a vida e com a sorte que lhe coubera a ele e à sua família e à gente da sua terra. Não esquecia a injustiça da doença e da morte do pai. E tivera uma infância difícil.

− Criado a migas, a toucinho de porco e a ervas do campo que agora vão à mesa do rico  rosnava ele, mal humorado.

Tanto quanto pudeste apurar das  conversas com ele em Mafra, onde ambos estavam “desterrados” (a expressão era dele),  o Ravasco era neto de ganhões, e filho de mineiro. Tirara o 7º ano do seminário, graças a uma bolsa de estudo da diocese de Beja. Por detrás dessa obra benemérita haveria uma senhora devota, de uma família de grandes proprietários agrícolas, muito conceituados na região. Foi o que ele te deu a entender, sem entrar em pormenores. Era uma bolsa para estudantes pobres, oriundos do Baixo Alentejo. 

Quiseram-no encaminhar para o sacerdócio, mas ele terá percebido, quando acabou filosofia, o 7º ano, que “não tinha vocação”. Ou talvez pior, para um cristão: terá perdido a fé ao lidar (mal) com as injustiças de que o pai fora  vítima, ainda em vida, nunca lhe tendo ocorrido que Deus poderia estar a  pô-lo à prova. Como te pôs á prova a ti, quando deixaste pai e mãe e foste para Angola, não para o “bem-bom de Luanda”, mas para a guerra no Norte e depois no Leste.

No verão, quando ainda andava a estudar, o Ravasco ia sempre para França, para a região de Bordéus, fazer a campanha  das vindimas e ganhar uns francos. Entretanto dera  o nome para a tropa, mas beneficiava de uma licença militar para se poder ausentar temporariamente do país. Nunca lhe passara pela cabeça não voltar a casa e ficar em França, tornando-se refratário.  Sempre se considerou um homem de palavra. E patriota. 

E aí a tua consideração por ele aumentou, apesar de tu o continuares a chamar de “mouro”. Não levava a mal. Tal como tu, também não, quando no gozo te chamava “morgadinho” e, depois do 25 de Abril, "pequeno-burguês". 

Ainda chegou a ser “aliciado” por um comité luso-francês, católico, contra a “guerra colonial” que dava apoio a desertores e refratários portugueses na região de Bordéus. Mas ele nessa altura não queria saber nada de “política”. E era agarrado à família. E, em boa verdade, temia represálias contra o pai, já doente, se ele  não regressasse de França. (Sabendo o que se sabe hoje, não houve represálias contra as famílias de exilados, desertores e refratários; a PIDE podia ter um braço comprido, mas não chegava felizmente a todo o lado.)

Segundo ele te contará, mais tarde, o pai tinha sido mineiro nas minas de São Domingos, entretanto definitivamente encerradas  em meados dos anos 60. Vem a morrer quando ele estava aqui, em Mafra, a fazer o COM. De silicose, ao que parece, uma doença  de evolução prolongada, então muito comum entre os mineiros. Mas só tardiamente fora diagnosticada e reconhecida, ao pai, essa doença profissional, com direito a reparação médico-legal, segundo ele te explicou.  De pouco lhe terá valido a “miserável pensão de invalidez” que lhe fora atribuída, a expressão era do Ravasco.

Tu ainda comentaste que no Norte era bem pior, os pequenos lavradores, rendeiros ou não,  ao fim de um vida dura de trabalho, morriam de miséria num catre, numa cabana de madeira,  só com a ajuda da família, quando a tinham.  E chamavam o médico só na hora da morte. 

Ele endureceu a expressão do rosto e respondei-te com veemência: 

− É porque você não sabe o que é um ganhão nem nunca engoliu o pó de uma mina!… 

E tu aí tiveste que reconhecer que ele tinha razão, tu sabias lá o que era um ganhão e muito menos uma mina ou um mineiro e essa coisa da silicose que destruía os pulmões lentamente.  Nalgumas coisas tu tinhas sido um privilegiado da sorte, embora nunca tendo sido rico, como fizeste questão de lhe frisar. 

O Ravasco tinha ajudado a família com o vencimento de alferes miliciano de artilharia, enquanto estivera na Guiné. Era frugal, não se metia em tainadas. Bebia  de vez em quando o seu uísque. Não fumava. Nem sequer veio de férias para poupar o dinheiro da passagem. Saberás mais tarde, quando ganharem mais confiança, que terá optado por ir uma semana a Bubaque, nos Bijagós.  Tencionava arranjar um pé de meia para se poder casar. Mostrara-te, ao fim de uns meses,  uma fotografia da rapariga que lá deixara em Beja. Não fixaste o nome. Só reparaste que não era lá muito bonita: era trigueira, de olhos de cor de azeitona, não fazendo o teu género. 

Sentiste, isso sim, que a morte prematura do pai, antes dos sessenta  anos, deixara-o muito abalado e revoltado. Adivinhaste  logo que ele era do “contra”, como diria o senhor teu pai. Não gostava de Salazar nem de Caetano. E referia-se à guerra do Ultramar como “guerra colonial”, expressão que era então proibida nos jornais. E que tu também não usavas. E, pior,  também não frequentava a igreja. Fazia-te confusão, sendo ele um antigo seminarista. Enfim, um "herege".

Depois de vir da guerra, começou a interessar-se pela política. Lia o “Diário de Lisboa”, além do “Comércio do Funchal”, de que tu nunca tinhas ouvido falar antes. Era um jornal cor de rosa. Chegaste  a dar uma vista de olhos, mas não te despertou a curiosidade.

Em suma, as afinidades entre os dois eram puramente acidentais ou circunstanciais. Foram parar àquela terra que, tal como a conhecemos hoje,  não existiria se o Dom João V, para ti de boa memória,  não mandasse ali construir aquele monumental palácio e convento, um dos mais grandiosos da Europa,  que o Ravasco teimava em qualificar de “monstruoso”. 

A repartição de finanças estava lá instalada, tal como a EPI, e outras repartições públicas como as comservatórias, já não te lembras ao certo, até por que convivias com pouca gente da terra (e, sempre que podias,  davas uma escapadela pelos arredores, sobretudo ao fim de semana).  

No inverno rapava-se frio de rachar. Tu, que vinhas do Norte, onde também fazia frio a sério, lembras-te de ter de usar ceroulas no inverno e grossas camisolas de lã em Mafra. Tu e o Ravasco davam-se mal com aquela humidade marítima que chegava do Atlântico e se entranhava nos ossos. Não havia aquecimento central, nem uns simples aquecedores a gás.  

Mas Mafra tinha belas praias, com destaque para a Ericeira. Começaste a gostar da Ericeira, e da Foz do Lisandro, e sobretudo das miúdas estrangeiras que começavam a parar por lá.



3A. Bom, lá foste tomar posse no dia seguinte, logo de manhã.
No gabinete do chefe, que mandou chamar o resto do pessoal
para assistir à cerimónia.
Ficou só um funcionário, ao balcão.
Para o caso de chegar algum contribuinte por causa da “décima”
ou do "cadastro"...
Mas nessa manhã estava tudo muito calmo.

O termo de posse já estava pré-preenchido, com os dados de cada um,   era só precisa a  assinatura dos empossados, no final,  depois de lido o famigerado juramento de lealdade ao Estado Novo.

Repetiste mecanicamente a fórmula, como quem rezava o Padre Nosso, no último ano do seminário, depois de teres perdido a fé e a vocação. Olhaste, com um misto de temor e de desdém, para os retratos,  pendurados na parede, dos três mais altos magistrados da Nação (os vivos, Américo Tomaz e Marcelo Caetano; e o morto, Salazar, o “pai da Pátria”, ou o “refundador da Nação”, que ainda ninguém tivera a coragem de mandar retirar) e disseste, firme e em voz bem alta:

 Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela constituição de 1933, com ativo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas....

O juramento dos funcionários públicos fora  aprovado pelo decreto-lei nº 27 033, de 14 de Setembro de 1936, mas tu nunca chegaras a ler esse diploma, tal como nunca leras a Constituição de 1933.

E, de repente, lembraste-te do teu juramento de bandeira na “Máfrica”  e indignaste-te por, na altura, nem sequer teres questionado as palavras que, mesmo em voz baixa, atabalhoadamente e a medo, proferiste na parada… 

Regressado de uma guerra, repugnava-te ter aceite, no passado,  o dever absurdo de jurar “obedecer cegamente aos teus chefes”. Afinal, eles poderiam ser todos cegos, conduzindo todo um povo, também de cegos,  à beira de um precipício… 

Tiveras um pesadelo nessa noite. Voltarias a tê-lo quatro anos depois...



3B. Ganhava-se mal na função pública,
mas era um emprego certo,
com cheque da Caixa Greal de Depósitos ao fim do mês 
e algumas pequenas regalias.
Nas finanças, havia os “emolumentos”,
que representavam mais uns tostões ao fim do mês.
Tu terias preferido entrar para a banca,
nessa altura tinha mais prestígio.
Os bancos, privados, pagavam melhor 
e tinham melhores instalações.
E havia já uma ou outra rapariga ao balcão…

 

Naquele tempo, com a economia a crescer a dois dígitos (como se diz hoje),a sangria da guerra e da emigração,  e a máquina do Estado a expandir-se e modernizar-se,  não era difícil entrar para função pública, a banca, os seguros, as caixas de previdência, os escritórios,  as fábricas… 

Não, não era o teu sonho seguir as peugadas do teu pai, um obscuro funcionário corporativo num Grémio da Lavoura minhoto. Bem, nunca o disseste em público, mas,  infelizmente, o teu pai era um fraco exemplo de ambição e liderança. De resto, lá em casa vigorava o matriarcado, a tua mãe era mestre-escola, tinha o curso do Magistério Primário, a primeira mulher da família  a ir estudar. E sobretudo era minhota. Em pequenino contava-te a lenda da Deu-la-deu Martins. Os homens da casa e a criada chamavam-na a “generala”, com o devido respeito… E integrava a comissão local do Movimento Nacional Feminino. Sem favor, achavas que fazia um bom papel, ajudando muitas famílias pobres da região, com filhos no Ultramar.

Quando tu saiste da tropa, apetecia-te era “correr mundo”, como alguns dos teus amigos do colégio dos jesuítas. E que, mais finos e expeditos do que tu, se safaram melhor, alguns, da tropa ou até do ultramar: um ficara em Luanda, outro  no Hospital da Estrela em Lisboa, e um terceiro fora parar à Bélgica...

Sempre fizeste questão de esclarecer que não meteste nenhuma cunha para te livrar da guerra do Ultramar. O teu pai, que era da União Nacional ( tinha que ser, era funcionário corporativo), ainda esteve tentado a “mexer os seus pauzinhos”, como ele te confessou.  Mas a tua mãe fuzilou-o com um olhar de reprovação. Era (ainda é) uma mulher de grande verticalidade. Uma senhora de grandes princípios, com um educação esmerada. E, ela, sim, de origem fidalga. O teu pai era um plebeu, um pobretanas, um manga de alpaca que nunca passaria da cepa torta. Claro que o Ravasco não acreditaria nesta história, se tu  caísses na patetice de lha contar.

Enfim, foste colocado, sem honra nem glória,  na repartição de finanças de Mafra, num lugar do quadro de pessoal, como aspirante de finanças. Entravas numa carreira técnica. Passavas a ser liquidador de impostos, como na Roma Antiga, como fantasiava o teu pai. 

No passado, era um lugar de prestígio, de nomeação régia. Na época ainda não havia computadores, liquidava-se os impostos à mão, de lápis na orelha. Quando muito havia já umas pesadas maquinetas, electromecânicas, que funcionavam como “calculadoras”. O mais importante era saber fazer contas de cabeça. Nisso tu eras bom, melhor que o teu irmão que foi para o magistério primário, seguindo o exemplo da mãe (enquanto o teu pai queria que ele fosse para regente agrícola).

Já não te lembras das categorias, nem das letras de vencimento, mas estavas cá para o fundo da tabela salarial: começava-se como aspirante de finanças estagiário, depois aspirante concursado, depois aspirante do 2º grau e depois do 1º…

O Ravasco gozava contigo e perguntava-te com que idade é que tu te  imaginarias chegar,  se não a diretor de finanças como o meu tio-avô, pelo menos a adjunto… Mas do que  tu mais gostavas era do teu cartão da DGCI, com uma barra na diagonal, a verde e a vermelho, as cores da República, que te davam acesso a quase tudo, com destaque para as casas de… “diversão noturna”. 

Passaste a ser um gajo respeitado pelos “gorilas” que estavam à porta das “boîtes”, como então se dizia, “à francesa”...Quantas vezes não entraste no “Ouriço”, na Ericeira, que, ao que te dizem, ainda hoje existe… (Nunca mais lá voltaste à Ericeira, depois de teres sido transferido para Braga e, mais tarde, reformado.)


4A. Vê-se que o Bacelar não nascera para isto,
“manga de alpaca”, como ele dizia, com desdém, do pai.
Tu chamavas-lhe o “morgadinho”, com ironia.
Tinha a mania que era de “sangue azul”.
Mas a verdade é que ele tinha de fazer pela vida, tal como tu.
Via-se que tinha “bons princípios”,
tendo nascido, se não em berço de ouro,
pelo menos em cama com lençóis de linho.
Pois fora coisa que tu nunca tiveras.
E a tua mãe, coitada, era analfabeta.
E o teu pai, mineiro. E o teu avô, ganhão.
E acima de avô já não conheceste mais ninguém.


Procuraste consolá-lo, foram petiscar, “jaquinzinhos fritos” com arroz de tomate, ainda te recordas, numa tasca saloia, de um fulano da Malveira,  que ainda lá existia, quatro anos depois. Já estava mais “modernaça”, para o teu gosto, com mesas envernizadas, tampos de vidro e paredes espelhadas… (Passaria, mais tarde, a ser uma espécie de tertúlia, da malta do 'reviralho' da terra, que foste conhecendo, pelos jornais que liam, frequentada também por alguns cadetes.)

Depois procuraste mentalizar o teu colega de “desterro”  (mas, no fundo estavas a tentar arranjar algum consolo para o teu próprio infortúnio): um gajo, na vida,  tem de começar por qualquer coisa, “estagiário” ou “aspirante” a qualquer merda. A menos que se tenha um pai rico… 

Começavam ambos como “aspirantes estagiários”, muito bem… E um dia, se o convento não desabasse, haveriam de subir mais um ou dois degraus… Pensavas nisso quase todos os dias quando subias aquela maldita escadaria, de manhã, para chegar à repartição. Foi o que o “chefe” disse a ambos, incentivando-os a estudar, como ele tinha feito… 

 É uma carreira bonita mas dura… 

E, aí, de repente, tiveste a intuição de que ele, o teu "chefe",  só poderia ter sido padre, há uns vinte e tal anos atrás… Os padres são marrões, conhecia-os de ginjeira.

Salazar, também ele seminarista (chegara quase a padre), esse, já tinha morrido, uns tempos antes, mas o seu regime sobrevivera, aparentemente incólume, reproduzindo-se o “mandarinato chinês”, como tu dizias depreciativamente. Era o que se estava  a viver, na época, a “mudança na continuidade”, com o Marcelo. O regime estava a chegar ao fim, mas tu não conseguias predizer quando nem como…  E os “mandarins” começavam a andar nervosos. Não sabias nada do que se passava por detrás dos muros da “Máfrica”, naquela época, em finais de 1973, longe de imaginar que, mesmo com RDM em vigor e a PIDE a vigiar, pudesse haver  conspirações, traições, concluios, alianças, vinganças, etc.

Tudo isto para dizer que foste completamente apanhado de surpresa pelo 25 de Abril de 1974. Nessa manhã tu estavas na repartição, quando alguém, de confiança, da tua tertúlia (a dos "jaquinzinhos"), te veio dar a notícia, alvoraçado, ao balcão.  Mas ainda a medo, segredando-a ao teu ouvido. 

Tu próprio pensaste logo que era um golpe da extrema-direita, orquestrado pelo Américo Tomás e o Kaulza de Arriaga. Mas de tarde já andava tudo nervoso, lá na repartição, a começar pelo "açoriano", que se trancou no gabinete.

Pessoalmente não tinhas grandes ideias para o teu futuro pessoal. Querias poder equacioná-lo numa perspetiva de futuro… coletivo. Precisavas de sentir que o teu país tinha futuro. Era uma dos chavões da época... Querias continuar a estudar, mas não tinhas grande cabeça para o fazer. Faltava-te a disciplina mental. Ainda estavas a fazer o “luto”: não já da morte do teu pai, mas da tua participação na guerra… Estranhamente, só depois de teres regressado, é que começaste a sentir “asco” por ter feito aquela guerra…

Não é que tu fosses muito “informado” quando partiste para a Guiné… E, confessas até, não tinhas “consciência política” na altura… Nem grande nem pequena… Não tens hoje vergonha de o dizer, depois de passar à “peluda”… 

Quando foste mobilizado, não questionaste sequer a "legitimidade da guerra"… Aceitaste a “canga” que te puseram em cima, como o burro que puxava a nora, lá no quintal de um dos vizinhos dos teus avós de São João dos Caldeireiros, em Mértola… 

Mas depois viste coisas, na tropa e na guerra, de que não gostaste. E isso terá enviesado a maneira de ver o que se passava em Portugal, a partir de 1972. De resto, tinhas tido uma educação, no mínimo, “religiosa e conservadora”, propícia à aceitação resignada da "ordem estabelecida", como então se dizia… O Vaticano II, o Concílio,  levara tempo a chegar a Portugal, mas começava a “fazer estragos”, e um deles foi o progressivo despovoamento dos seminários...

 

4B. Uns meses antes do 25 de Abril, 
tiveste um impulso, foste, num domingo, à missa.
Gostaste de conhecer o padre lá da paróquia.
Pela idade, devia ser o coadjutor, 
mas irradiava simpatia e inspirava confiança. 
E rodeiava-se de gente nova. 
Parecia ser um padre “arejado de ideias”, 
como então se diz. 
Ficaste com vontade  de o apresentar ao "herege" do Ravasco.


Suspeitavas que  era um daqueles padres “progressistas”, que nem sempre sabiam distinguir as coisas de Deus e os negócios dos homens. A linha de fronteira era ténue. E tu próprio às vezes ficavas confuso sobre o teor dos sermões que ouvias nas homilias. 

Era um tipo que se aproximava das preocupações dos mais novos e, sem abordar diretamente as questões mais quentes da sexualidade, por exemplo, retirava a carga de pecado que os padres mais tradicionalistas associavam aos  “pensamentos, palavras e obras" dos cristãos... Falava também de liberdade e justiça, citando amiúde o João XXIII...

Antes de ir, no Natal de 1973,  a casa, pediste-lhe, ao padre, para te ouvir em confissão. Há quase um ano que não te confessavas nem comungavas. Não saberias o que haverias dizer à tua mãezinha se ela, na Missa do Galo, visse que tu  já não comungavas… 

Bem, tu  achavas que já não eras mais o mesmo, também não vieste o mesmo de Angola onde a descristianização era já muito maior do que aqui. As pessoas estavam instaladas, viviam bem, os brancos, e tinham-se tornado cínicas… E sobretudo demasiado confiantes em relação ao futuro… Arrogantes, dirias mesmo… Pertenciam a outro mundo, em acelerado desenvolvimento, e no fundo sentiam alguma sobranceiria  em relação à tropa e   às demais  gentes  do "Puto"... que nem todos conheciam.   Uma parte já tinha nascido em Angola. Portugal era um  país que já lhes era estranho, e não tinha as riquezas fabulosas (o petróleo, os diamantes) que iriam tornar aquela terra num eldorado, num novo Brasil do séc. XVIII.

Em Luanda não havia guerra nem se falava da guerra, se não fora a presença de tropa fardada e o movimento de viaturas e aviões militares… Mas tu tinhas saudades, de Luanda, onde ainda passaste os últimos meses da tua comissão... Da ilha e da baía de Luanda, do Mussulo, da vida noturna… Ah, aquelas noites tropicais, com os pés dentro de água, e, na mão, um gin tónico com uma rodela de lima… 


5A. Achavas um ridículo e atroz o Bacelar usar,
no anelar esquerdo, um cachucho com brazão!...
Não escondia as suas simpatias monárquicas
e era católico de ir à missa.
Fazia questão de te dizer que não se interessava
pela “política politiqueira”.
Onde é que tu já ouviras isso ?
Nas “conversas em família”…
do senhor professor doutor Marcello (com dois eles) Caetano

Gostava de gabar-se de que ainda tinha algumas boas relações, que vinham do tempo em que um dos antepassados, do lado do ramo materno, fora juiz-conselheiro e par do reino no tempo do senhor Dom Carlos. Não quiseste humilhá-lo perguntando-lhe o que era isso de ser “par do Reino”… e lembrando-lhe que em 1910, há mais de 70 anos, tinha caído a monarquia em Portugal… 

Para desgosto da mãe, que devia ser  uma pessoa intelectual e moralmente exigente, ele nunca fora bom aluno, tirara o quinto ano dos liceus, se calhar à rasquinha, pelo que tu deduziste.  O que não era normal nos filhos dos professores primários, formatados para serem os primeiros da turma. Mas tinha jeito para línguas, mais do que tu, que eras um cepo. Vá lá, tu safavas-te no latinório, que era uma língua morta, e desenrascava-te no francês de praia…

O Bacelar era o que se podia dizer um sedutor nato, tinha sorte, garantia ele, junto do “sexo fraco”. Mas também fazia facilmente amigos de ocasião. Tinha olho azul e inha uma bela cabeleira, alourada. Enfim, era bem “apessoado” e caprichava no vestir.  Mas tu não lhe davas grande trela, não tinhas pachorra para lhe ouvir as aventuras amorosas desde o tempo do colégio dos jesuítas… Secretamente, invejavas-lhe a sorte de ter tido, nessas matérias,  melhores professores do que os teus…

Ao Bacelar não era  totalmente estranha a “região saloia” (como ele abusivamente dizia, confundindo-a com a Estremadura), já que tinha passado dois ou três meses, mais a norte, nas Caldas da Rainha como 1º cabo miliciano, monitor no Curso de Sargentos Milicianos, antes de ser mobilizado para Angola. 

Explicaste-lhe que a “região saloia” ia das muralhas de Lisboa até Mafra… O Dom Afonso Henriques poupara os mouros, não os passando pelo fio de espada, como era norma, bárbara,  em tempos de cruzadas,  mas mandara-os cultivar alfaces fora das muralhas. Enfim, esta era a historieta que te contaram um dos teus instrutores, na “Máfrica", se calhar ele próprio ainda com sangue mouro  nas veias...

Quis o destino que fossem os dois parar àquele antro de públicas virtudes e vícios privados, desde o tempo do senhor Dom João V… O "cubículo" da repartição de finanças era, só por si, um casarão, com um pé direito muito alto. Mas falava-se baixo. O chefe impunha o seu tom de voz, mavioso, de ilhéu terceirense. Era da terra do Vitorino Nemésio, Praia da Vitória. Raramente aparecia em público. Passava a maior parte do dia, no seu gabinete, com um enorme  estante, de madeira exótica,  pau-preto, forrada de códigos e diários do governo encadernados, a preparar-se para o “próximo concurso” que nunca mais chegava...

Ah!, também não gostavas de ver o Bacelar a puxar do  “cartão da PIDE”, como tu lhe chamavas com sarcasmo,  quando  ambos  iam ao “Ouriço” ou até ao bar do hotel da Ericeira!... Ele tinha cá uma lata!... Tu, pelo contrário, recusavas-te a fazer uso do cartão da DGCI.  Fizeste gala de dizer que nunca puxaste por ele para te impores a alguém ou entrar num estabelecimento da vida nortuna, que de resto só frequentavas para fazer companhia ao Bacelar.

 

5B. Na divisão de serviço, o Ravasco teve mais sorte do que tu:
atribuíram-lhe o imposto de compensação e transações….
Fazia o mapa das empresas rodoviárias,
de transportes de passageiros e mercadorias,
a Mafrense, a Isidoro Duarte e outras…

 

A ti, pelo contrário, deram-te o trabalho de um reles escriturário: expediente, correio, diário do Governo, atendimento ao público, e pouco mais… Foi o sacana do adjunto que distribuiu o serviço, em nome do chefe “que nunca podia ser incomodado, a não ser por força maior”…

Desde o início que o gajo não simpatizara contigo, o adjunto, por alegadamente seres “filho de Ansião”. O homem devia ter tido algum conflito com o diretor-geral, no passado. E quem pagava, por tabela, eram os “afilhados”… 

Inconsolável, foste pôr o caso ao chefe da repartição e puxaste pelos teus pergaminhos, falando-lhe do teu tio-avô, diretor de finanças…. Enfim, para não se chatear com o seu adjunto, alargou a tua área de competência com a  do cadastro e a contribuição predial que era “muito trabalhosa”, e retirou-te o correio e o expediente, que era coisa de reles escriturário…

Em jeito de protesto, tu no dia seguinte pediste logo transferência para Viana do Castelo ou Braga, conforme as vagas…

O “serviço melhor” já tinha dono, três ou quatro funcionários do “grupinho do adjunto” controlavam as “principais áreas de poder”: contencioso, fiscalização externa, imposto sucessório, imposto profissional, imposto complementar, contribuição industrial… Eram todos da terra, quer dizer “saloios”, com exceção de um de fora, mas já com raízes familiares em Mafra.

Acabaste por descobrir, por portas e travessas, que este era também o “grupinho das meninas”: uma vez por mês iam a Lisboa, a uma casa de passe clandestina, controlada por uma “madama” com muito boas relações com a hierarquia da DGCI,  ali no Terreiro do Paço (e se calhar com outra gente do poder)… Era à sexta-feira da última semana de cada mês… Percebia-se pelos sorrisos,piadas e  conversinhas, entre eles, na segunda-feira de manhã, seguinte, que a noitada de sexta tinha sido em grande, acabando numa conhecida marisqueira das Portas de Santo Antão… 

Contaste tudo isto ao Ravasco, que ficou indignado e mostrou-se solidário contigo. Afinal, quem pagava tudo isso ?, interpelava-te ele.  

A tua consideração pelo teu colega alentejano aumentou mais um ponto ou dois. Mas não alterou nada da tua situação ali dentro. Sentis-te deslocado, infeliz, com saudades da tua gente e da tua terra.



6A. Não podias jurar que havia ali corrupção.
Corrupção ?!... Não se falava disso na época.
Discutia-se o regime como um todo.
E esperava-se, à boa maneira sebastiânica,
que acabasse por cair um dia. De podre.

 

Tu tinhas chegado há pouco e tencionavas não demorar muito por lá, pela repartição de finanças de Mafra. Mas não punhas as mãos no fogo pelo adjunto e o seu “grupinho das meninas”, como lhe chamava o Bacelar. Quiseram ser simpáticos com os dois e, no feriado do 1º de Dezembro, que calhava a um sábado, convidaram ambos para beber um copo, a seguir ao jantar e ver um "filme pornográfico sueco" (na realidade, dinamarquês), em 8 mm, na quinta de uns amigalhaços, ali para os lados do Gradil.

O Bacelar levou o carro dele, tu foste num outro, não querias ser votado ao ostracismo logo nos primeiros dias. Percebia-se que cultivavam boas relações com alguns dos maiores contribuintes, empresários e proprietários ruaus, ricaços da terra. Era costume, por exemplo, um deles, muito conhecido, ligado à indústria de alimentação e bebidas, oferecer, pelo Natal, uma lauta ceia aos funcionários da repartição de finanças. Era uma tradição já arreigada, não só nas contribuições e impostos,  como no restante funcionalismo da província, incluindo os tribunais. Noutras ocasiões  ia-se a uma marisqueira de Ribamar da Ericeira.

Nesse final de ano de 1972, tu e o Bacelar também foram convidados. Parecia mal não alinhar, logo no “primeiro ano”. Sabias que os "novatos" estavam “à prova”, debaixo de escrutínio… O chefe, esse,  delegou no adjunto. Parecia-te um homem decente, mas fraco em termos de autoridade… Chamavam-lhe, nas costas e no gozo,  o “achou...riano”…

Nessa “ceia de Natal do fisco”, entre “charutos cubanos” e “conhaques franceses”, ouviste a história do fundador da empresa que, no tempo da guerra de Espanha, aprendera a fazer contrabando de “essência de laranja”, e acabara por abrir uma fabriqueta de “pirolitos”…O segredo do negócio ? A água, o acesso a água, “muita e de boa qualidade”… Percebeste depois que, com a “guerra de África”, as exportações haviam aumentado em flecha…Era um dos fornecedores da Intendência Militar. Lembras-te de ter visto a marca, na Guiné, por todo o lado… Mas tu não bebias refrigerantes, com carradas de acúcar, que só faziam aumentar a sede…

A tua santa ingenuidade, a tua crença, parva, na honestidade e bondade intrínsecas do ser humano, sofreu mais um duro golpe. Tu tinhas idade para ficar de pé atrás contra certa gente. Afinal, aquilo da "respublica", da administração pública tinha pouco. O tal adjunto era apenas a ponta do iceberg. Entristecias-te ter colegas daqueles a trabalhar a teu lado. Infelizmente tinhas que lhes sorrir e apertar a mão direita enquanto, com a mão esquerda, eles enfiavam no bolso o “santo antoninho”, a nota de vinte paus, que o pobre do contribuinte saloio lhes deixava debaixo da capa do “processo"... O  "processo”, o terror de qualquer pequeno contribuinte !!!...

Mas, adiante. O acontecimento mais marcante que viveste em Mafra ,   no tempo em que lá estiveste, enquanto trabalhador dos impostos, foi o 25 de Abril de 1974. Não por nenhum acontecimento local, digno de especial nota: não viste movimentação de tropas, alvoroço de tropas,  viaturas,  chaimites, tiros para o ar, nada disso… 

Tudo se decidiu alguns quilómetros mais a sul, a 40 km, na capital. Mas antes tens de recordar aqui uma cena, das tuas memórias de Mafra desse tempo,  que nunca mais esquecerás, enquanto pelo menos não apanhares o Alzheimer.

(Continua)


© Luís Graça (2021). Revisto em 15 de abril de 2024

Nota do autor: Neste conto, os nomes (de pessoas e lugares) podem ser fictícios, mas os factos são verdadeiros. Acontece que este país é demasiado pequeno.

__________

Nota do editor:


Último poste da série > 1 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25324: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (24): O tio Ortiz (1906-1944), um herói trágico

Guiné 61/74 - P25390: Álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) - Parte XV: Visita ao Enxalé


Foto nº 1 > Viatura empanada (i)


Foto nº 2 > Viatura empanada (ii)


Foto nº 3A > O capelão católico e o imã, o  "padre" muçulmano (i) 


Foto nº 3 > O capelão católico e o imã, o "padre" muçulmano (ii), com os seus filhos


Foto nº 4 > Djubis (i)


Foto nº 5 > Djubis (ii)

Guiné > Região Oeste > Sector O4 (Mansoa) >  BCAÇ 2855 > Destacamento do Enxalé >  A partir de 1 de julho de 1969, passaram  por aqui um pelotão da CART 2411,  e outro da CCAÇ 2587  e ainda outro da CCAÇ 2589.  Em 1 de novembro de 1969, o destacamento de Enxalé foi integrado no Sector Leste, L1 (BCaç 2852). A visita do capelão deve ter acontecido no 2º semestre de 1969.
 
Fotos (e legendas): © José Torres Neves (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71); missionário da Consolata, foi um dos 113 padres católicos que prestaram serviço no TO da Guiné como capelães. Neste caso, desde o dia 7 de maio  de 1969 a 3 de março de 1971. 

É membro da nossa Tabanca Grande, nº 859, desde 2 de março de 2022. O BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71; divisa: "Nós Somos Capazes") tinha como subunidades de quadrícula: CCAÇ 2587 (Mansoa, Uaque, Rossum e Bindoro, Jugudul, Porto Gole e Bissá),  CCAÇ 2588 (Mansoa,  Jugudul, Uaque, Rossum e Bindoro)  e CCAÇ 2589 (Mansoa, Braia e Cutia).

O nosso camarada e amigo 
Ernestino Caniço (ex-allf mil cav, cmdt  do Pel Rec Daimler 2208, Mansabá e Mansoa; Rep ACAP - Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica, Bissau, fev 1970/fez 1971, hoje médico, a residir em Tomar) fez amziade com o Zé Neves. E este confiou-lhe o seu álbum fotográfico da Guiné, que temos vindo a publicar desde março de 2022. São cerca de duas centenas de imagens, provenientes dos seus "slides", digitalizados. 

Já aqui foram publicadas fotos das suas visitas como capelão aos diversos aquartelamentos e destacamentos do Sector Oeste, O4 e outros: Mansoa, Bindoro, Bissá, Braia, Infandre,Cutia, Encheia, Dugal...

Recentemente, em 19 de março último, o Ernestino Caniço mandou-nos mais fotos, de Enxalé e Infandre. Hoje publicamos as do Enxalé, que em 1969 (e até outubro) ainda pertencia ao Sector de Mansoa, SO4  (passaria depois para o Sector de Bambadinca, L1). O nosso muito obrigado aos dois. (LG).



Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector de Bambadinca (L1) > Xime > Carta do Xime (1961) > Escala 1/ 50 mil > Posição relativa de Enxalé, rio Geba e  Xime

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)
___________

Nota do editor:

Último poste da série > 12 de fevereiro de 2024 >
Guiné 61/74 - P25160: Álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) - Parte XIV: visita a Dugal e Encheia

Guiné 61/74 - P25389: Notas de leitura (1683):"Memórias SOMântícas", de Abulai Sila; Ku Si Mon Editora, 2016 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
Importa não esquecer que os intelectuais guineenses de há muito dão conta de um sonho perdido, de uma esperada reconciliação entre os povos guineenses que não houve, de uma pátria bem administrada que não houve, de uma solidariedade que rapidamente se transformou numa selvática competição de interesses, cada um por si, o Bem-comum não conta, todos os sonhos de Cabral caíram por terra. 

Recorde-se o filme Mortu Nega (em português, Morte Negada) de Flora Gomes, 1988, Kikia Matcho: O desalento do combatente, por Filinto de Barros, 1997, e mais recentemente o romance A Cidade Que Tudo Devorou, por Amadu Dafé, 2022, isto já sem esquecer o que escrevem ou escreveram Leopoldo Amado, Julião Soares Sousa e está espelhado na poesia de Tony Tcheka.

 É uma belíssima narrativa estas Memórias SOMânticas , não encontro explicação para esta palavra, talvez tenha a ver com semânticas e românticas, o pungente mas poderoso solilóquio da combatente vai à origem das palavras, o mesmo é dizer que vai à origem do sonho que presidia aquela luta e há o quê de romantismo na sua fé e no seu inabalável sonho. Mais explicações para a palavra é assunto que cabe ao autor revelar.

Um abraço do
Mário



Fui combatente do PAIGC, conheço a desilusão, mas vivo esta paixão da liberdade à exaustão

Mário Beja Santos

"Memórias SOMântícas", de Abulai Sila, Ku Si Mon Editora, 2016, é um espantoso solilóquio de uma mulher que participou na luta, que confiava numa pátria livre e numa cadeira de rodas assiste à degradação do seu país. É o cântico de uma heroína anónima, uma narrativa escrita na primeira pessoa e num absoluto silêncio, é uma mensagem para o futuro, um tema de reflexão para as gerações que não conheceram a luta armada:

“Esta é a história de uma vida. Uma vida que quis ser vivida. Com paixão e dignidade. Pretendo narrá-la, porque a existência só se torna memorável se for narrada. A narração, quando oportuna, restaura a crença, abrevia qualquer recordação dolorosa e enobrece a vida. Atribui-lhe cor e reverência”.

E confidencia-nos ao que vem:

“Nunca escondi as minhas ambições. Onde está o sentimento de liberdade se o que mais ambicionamos tem que ser escondido ou disfarçado? Pior ainda, privatizado. Quero que tudo o que ambicione de verdade seja também pretendido pelos meus próximos, acessível a todos, valorizado por todos”.

Orgulha-se de celebrar a vida, a despeito das ilusões, violentas e por vezes tão inesperadas. Disserta sobre a infância, a morte da mãe, os desamores familiares. Nunca aceitou a submissão, paradigma da mulher africana. Conheceu o amor, alguém que a vai despertar para a luta, ele desaparece e ela vai no seu encalço, vai para Conacri. Narra as vicissitudes de uma adaptação áspera, é hábil na negociação para se dar bem com as companheiras de quarto, o seu sonho cresce, pensa a toda a hora na independência, nas instituições do país, é mulher de esperança inabalável. Os tempos não são fáceis para ela em Conacri, assiste à chegada de gente jovem, irmanada pelos mesmos ideais, começa a trabalhar na cozinha, sente-se útil, procura afanosamente saber do seu amor que anda na luta, a todos que vêm a Conacri faz perguntas, por alguém se sabe que ele está vivo, rejubila. 

Nunca lhe passou pela cabeça ser enfermeira, detestava ver sangue, a vida troca as voltas, viu-se a colaborar num bloco operatório, foi louvada, decidiram que ela seria enfermeira.

Há ali perto do hospital alguém que vende cola e se chama Tunkan, tem uma filha a viver em Bafatá e garante-lhe quando a guerra acabar que quer ir a Bafatá conhecer os netos. Gosta do seu trabalho:

“Durante muitos anos ajudei a aliviar dores e a sarar feridas, tanto as visíveis como as que se escondem no fundo da alma, silenciosamente destruindo o corpo e inviabilizando sonhos. Tinha ajudado muita gente, agora tenho que ajudar-me a mim mesma, ser a minha própria enfermeira. Tenho que aperfeiçoar a arte de curar, a magia de dar sempre o que nem sempre se tem.”

É transferida para a Frente Sul, encontra o homem da sua vida em Kabukaré. E tece louvores àquela luta armada:

“Eu vi amor, paixão, entrega e determinação a germinarem, a manifestarem-se em todo o lado. Nos guerrilheiros e na população. Nas canções e no choro. Até no olhar das crianças mutiladas. Vi guerrilheiros com lágrimas nos olhos. Mas vi também o pesadelo do passado a evaporar-se sob o calor desse novo sol e descobri os contornos do novo mundo de paz e harmonia que vinha sendo anunciado nos cânticos. No escuro da pátria ainda subjugada, detetei uma tremeluzente luz projetada num horizonte não muito distante.“

Vive agora em Boké, aqui encaminha-se armamento para as frentes de combate e cuida-se os feridos, e tem o filho para criar. Ela aspira que quando a guerra acabar irão ter que investir na purificação dos corações, a vida ganhará uma outra dimensão, tem ainda interrogações para resolver:

“Porque é que havia africanos a combater ao lado dos brancos contra nós? Quando tomarmos a nossa independência e voltarmos para a nossa terra, os nossos comandantes vão continuar a confraternizar com os nossos combatentes como fazem agora? Quando acabar a guerra, o nosso Presidente vai precisa de guarda-costas armados?”

O amor da sua vida precisa de ir a Conacri, vai acompanhado do filho, irão morrer num acidente, ela está enlouquecida, o seu lenitivo é a sua amiga Ramatulai, é como uma irmã, mas há uma dor que subsiste:

“Eu sou dos inúmeros concidadãos que definitivamente vão voltar para casa magoados, com alguma amputação, temporária ou vitalícia. Eu levo todo um sonho amputado, sim, mas em vantagem em relação a muitos deles. Vou sem o meu companheiro de vida, sem o meu filho, mas com uma irmã, a minha irmã do coração.”

Chegou a hora da independência, apareceu Tunkan para ver a família, tinha o genro preso, acusado de colaborar com o exército colonial.

“Dei-lhe todas as garantias. Depois de uma guerra que vitimara tanta gente, a hora era de paz e perdão. Se estava em algum quartel ou cadeia eu iria encontrá-lo”.

Percorre o país de lés a lés, alguns dos camaradas com que tão intensamente convivera em Conacri fitam-na com desprezo, era como se ela perguntasse por uma pessoa que tinha traído, o que fazia dela uma traidora, alguém lhe dirá mesmo que para cada traidor haverá sempre uma bala no cano. 

“Como é que chegámos a este ponto? Em que se tinha tornado o meu querido país e a minha gente? Que fora feito da camaradagem que, proporcionado a permanente partilha das dificuldades dos êxitos, dos sonhos e das ambições, tornara a vida mais colorida para todos ao longo de tantos anos?”

Adoece e reage, dedica-se a uma escola frequentada por filhos órfãos do Partido. Tudo faz para que haja abastecimento seguro, vai mesmo ao Ministério da Agricultura onde pede e consegue sacos de semente de feijão, de milho, de mancarra, de arroz. Mas um dia acabou o internato, as crianças foram dispersas. 

“Sinto que estão por aí, entregues à sua sorte, sem a bênção de quem devia revelar-lhes as virtudes regeneradoras da fé e as lições da vida tiradas da História. Vacilei durante algum tempo e envergonho-me hoje disso.”

E é neste exato momento que Abdulai Sila tece os seus parágrafos sublimes, a renumeração daquela vida à procura do seu amor, a partilha do jubilo e das situações de desgraça, os terríveis desapontamentos de ter visto fechar um internato com órfãos de guerra, aquela mulher sentada numa cadeira de rodas lembra os órfãos da guerra, os mutilados, a solidariedade acabou, os jovens vivem sem ideais, ela não se entende com tanto despautério, é a fé que a alimenta, e então a velha combatente faz ressoar as trombetas para o futuro:

“Marginalizados? Nós é que domesticámos o invasor e abolimos o medo perante o desconhecido. Na calada da noite prenhe de incertezas reinventámos a vida e, bem alto no céu, fizemos soar a sinfonia da dignidade.
Deserdados? Construímos um mundo plural, onde todas as cores do arco-íris se fundem sem nunca se confundirem. Recuperámos a palavra e, abençoando-a, fizemos com que a magia da narração sustentasse os novos limites da razão.

Não erguemos troféus, não exigimos medalhas, nem guardámos ressentimentos. Impusemos um novo paradigma da inteligência: sem ser mártir nem ambicionar ser heróis, viver uma paixão até à exaustão e morrer sonhando.”


Na linha de uma literatura vincada pela dor do desapontamento de uma pátria derruída, Abdulai Sila dá-nos uma narrativa pungente onde o sonho, mesmo tão profundamente abalado, continua a ser a semente da vida, a razão por que se lutou para ser livre, é esse o derradeiro testemunho que se deixa às novas gerações. Um belíssimo texto de irrecusável leitura.

Houve tempos em que a Guiné contava entusiasticamente com quem a libertara
_____________

Nota do editor

Último post da série de 12 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25377: Notas de leitura (1682): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (20) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25388: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-Chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte XVII: O meu pai, cor Henrique Gonçalves Vaz, que não pertencia ao MFA, deu um abraço de despedida, apreço e respeito ao seu Com-Chefe no momento da sua destituição (Luís Gonçalves Vaz)

Guiné > Bissau > 1973  (4.º trimestre )> No canto esquerdo o comandante Ricou, o oficial do lado direito de óculos é o Coronel CEM/CTIG Henrique Gonçalves Vaz, e ao centro, também de óculos, o general Bethencourt Rodrigues (destituído em 26 de Abril de 1974), numa cerimónia oficial, em Bissau, no ano de 1973. Fotografia do arquivo pessoal do coronel Henrique Gonçalves Vaz.

O QG/CTIG era o Quartel-General do Exército (situado nas instalações militares de Santa Luzia), enquanto o QG/CCFAG era o Quartel-General de todas as Forças Armadas em serviço naquele território (situado no antigo Forte da Amura, mesmo em frente ao cais de Bissau).

O coronel Henrique Gonçalves Vaz, CEM/CTIG na altura destes acontecimentos, irá desempenhar as funções de Chefe do Estado-Maior do CTIG/CCFAG (Comando Unificado), após o Golpe Militar de Bissau.

Foto  (e legenda): © Luís Gonçalves Vaz (2014).  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


O jovem Luís Gonçalves Vaz,
que tem as melhores memória
do  tempo passado na Guiné
(1973/74)
1. Luís Gonçalves Vaz tem 75 referências no nosso blogue. É filho do Cor CEM Henrique Vaz (Barcelos, 1922-Braga, 2001). E esteve em Bissau, com a família, de 1973/74, Tinha 13 anos quando se deu o 25 de Abril. Frequentava o Liceu Honório Barreto, estava no 3.º ano.  Tem partilhado connosco boa parte do arquivo do pai. Entrou para a Tabanca Grande em 2011. É o nosso tabanqueiro nº 530  (*). 

Com formação académica em Biologia e Geologia, na altura o Luís era professor de Matemática e Ciências da Natureza numa escola C+S,  na região de  Braga (cremos que em Vila Verde).  

Fez o serviço militar na Escola Prática de Cavalaria, frequentou o 2.º  CSM de 1983. Foi fur mil da Polícia do Exército. Tem 18 meses de tropa. Na EPC ainda conheceu (e fez serviço com) o Salgueiro Maia em 1984 (na altura regressado dos Açores, e major cav desde 1981).

Ficou um grande amigo da Guiné. Sempre entusiástico, empenhado e generoso, tem  posto as suas memórias e as do seu querido pai,  à disposição dos amigos e camaradas da Guiné. 

Hoje, e a propósito da 23ª hora do gen Bettencourt Rodrigues, enquanto comandante-chefe do CTIG, fomos repescar um poste já antigo, em que o Luís nos conta como foi o "seu" 25/26 de Abril de 1974 em Bissau, e um episódio da prisão do com-chefe, em que vem ao de cima a nobreza de caracter do seu pai (**).


O meu pai, cor Henrique Gonçalves Vaz, que não pertencia ao MFA,  deu um abraço de despedida, apreço e respeito ao seu Com-Chefe no momento da sua destituição 

por Luís Gonçalves Vaz


O meu falecido pai, Coronel Henrique Gonçalves Vaz, Chefe do Estado-Maior do CTIG, teve conhecimento durante a noite de 25 para 26 de Abril, pois na madrugada recebeu, pelo seu telefone “civil” (não o militar!), a notícia de que na Metrópole decorria um “Golpe de Estado” para derrubar o sistema político de então (sei que foi um oficial da sua confiança que lhe ligou aqui da Metrópole). 

Logo de manhã o meu pai dirigiu-se para a reunião do costume, com o General Comandante-Chefe no Palácio do Governador. Quando lá chega vê o edifício cercado por tropas especiais e deparou-se com a “destituição” de Bettencourt Rodrigues. 

É claro que o coronel Henrique Vaz não pertencia ao MFA, mas isso não o impediu de se insurgir contra alguns “modos um pouco rudes” (em sua opinião, é claro) com que estariam a conduzir o processo de destituição (ou prisão?) do Comandante-Chefe, e ofereceu-se para o acompanhar ao avião que o conduziria de regresso a Lisboa, via Cabo Verde.

O General Bettencourt Rodrigues despediu-se com um abraço do meu pai, e agradeceu-lhe o “respeito” demonstrado, apesar de saber que o meu falecido pai iria continuar a ocupar o seu posto no Teatro de Operações da Guiné. 

É claro que a situação não era para brincadeiras e tudo podia acontecer nas próximas horas, e como o Coronel Henrique Gonçalves Vaz era um militar íntegro, patriota e com espírito de missão (não afeto ao anterior regime), foi imediatamente convidado para continuar como CEM do CTIG, tendo aceitado e só regressou definitivamente a Portugal no último voo de militares portugueses, pelas 23 horas do dia 14 de Outubro de 1974, acompanhando o Brigadeiro Carlos Fabião, na altura já indigitado para CEMGFA.

Esses mesmos oficiais do MFA solicitaram ao Comandante Marítimo, Comodoro Almeida Brandão, que assumisse as funções de Comandante-Chefe interino das Forças Armadas na Guiné-Bissau. 

As primeiras medidas tomadas pelo MFA na Guiné, foram a “detenção dos agentes da PIDE” e a “libertação dos prisioneiros políticos”. 

Como tal, no dia seguinte, 27 de Abril, surgiram pela cidade de Bissau várias manifestações lideradas por esses presos, uma delas cercou e tentou invadir o meu Liceu, o Liceu Honório Barreto.

Ainda me lembro como se fosse hoje, um funcionário do Liceu, um homem de grande estatura, e de origem cabo-verdiana, pegou numa grande tranca e afugentou vários manifestantes (deu resultado!), tendo de seguida fechado a porta principal. 

Nas salas do andar inferior, que davam para o jardim, tivemos de fechar as persianas, pois havia muitos manifestantes que nos diziam aos berros, com paus e catanas “Tuga na ba p`Bó Terra”…

É claro que eu achei muita piada na altura, pois nunca temi pela minha segurança, já que tinha colegas com 16 anos ou mais (alguns vinham do interior da Guiné para estudar em Bissau) que sempre me fizeram estar à vontade. 

Fugi do Liceu com esse grupo de colegas mais velhos (eu tinha apenas 13 anos e frequentava o antigo 3.º ano do Liceu), em direção à base militar de Santa Luzia, onde vivia com a minha família (a casa do Chefe do Estado-Maior do CTIG era aquela mesmo em frente do Clube Militar, na outra ponta da avenida). (***)
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 13 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9194: Tabanca Grande (310): Luís Gonçalves Vaz, professor, filho do Cor CEM Henrique Vaz (1922-2001)

(**) Vd. poste de 25 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9399: No 25 de abril de 1974 eu estava em... (16): Bissau, tinha 13 anos, era estudante no Liceu Honório Barreto... (Luís Vaz Gonçalves)

Guiné 61/74 - P25387: Parabéns a Você (2262): António Pimentel, ex-Alf Mil Rec Inf da CCS / BCAÇ 2851 (Mansabá e Galomaro, 1968/70)

____________

Nota do editor

Último post da série de 11 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25367: Parabéns a Você (2261): Jorge Picado, ex-Cap Mil Inf, CMDT da CCAÇ 2589/BCAÇ 2885 e da CART 2732 (Mansoa, Mansabá e Teixeira Pinto - CAOP 1, 1970/72)

domingo, 14 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25386: No 25 de abril de 1974 eu estava em... (29): Bissau, Depósito de Adidos, era oficial de justiça, na Secção de Justiça... e a viver com a minha mulher, em "segunda lua de mel"...( Joaquim Luis Fernandes, ex- alf mil, CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973, e Depósito de Adidos, Brá, 1974)


Joaquim Luís Fernandesnatural de Leiria, foi alf mil, CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973, e Depósito de Adidos, Brá, 1974; é autor da série "Acordar memórias"; membro da Tabanca Grande desde 21 de junho de 2013; tem 23 referências no nosso blogue.



1. As histórias das nossas vidas... Pequenas, mas são nossas. Quando as nossas almas forem pesadas, no Juízo Final, que importam as boas obras, e sobretudo as grandiosas ?...Vão-nos dar cabo do juízo mas é com os pecados... mortais. 

Joaquim, onde é que tu estavas no 25 de Abril ? (*)  Cuidado com as más companhias... Ah!, estavas em Bissau, ao pé do grande amor da tua vida, a avó dos teus netos... Estás perdoado... E já agora os teus antigos camaradas do BCAÇ 3863 não terão vindo no T/T Niassa, mas nos TAM (Transportes Aéreos Miliyares), em 16 de dezembro de 1973...


No 25 de abril de 1974 eu estava em... (29): Bissau, no Depósito de Adidos, era oficial de justiça, na Secção de Justiça... e a viver com a minha mulher, em "segunda lua de mel"...( Joaquim Luis Fernandes, ex- alf mil,  CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973, e Depósito de Adidos, Brá, 1974)

por Joaquim Luís Fernandes


Viva,  Luís Graça!

Só agora a responder à tua "trivial" questão: onde é que eu estava no 25 de Abril de 1974.(**)

A resposta é simples: estava em Bissau. Mas dito deste modo, a resposta que interesse tem?

E o que dizer mais, que suscite algum interesse?

Depois de no ano de 1973 ter estado em Teixeira Pinto, onde sofri e vi sofrer qb, de, apesar de tudo, reconhecer que era uma região pacífica quando comparada com outras, do Norte, Leste e Sul, mais próximas das fronteiras, com o aproximar do fim de comissão do BCAÇ 3863, onde estava integrado, apresentei um requerimento para que me fosse concedida a possibilidade de ficar integrado na Unidade que o iria render. O requerimento foi indeferido.

Interrogava-me então, sofrendo por antecipação, que sorte seria a minha, para que buraco me iriam mandar. Para alguma Companhia Africana?...

Em Dezembro de 1973, fui com o Batalhão para o Cumeré, onde o pessoal que tinha acabado a comissão aguardou o embarque para a Metrópole. Acompanhei os meus camaradas até ao navio Niassa (não recordo bem a data, dia 19 ou 20?) onde me despedi dos mais próximos.

E o meu destino imediato, foi apresentar-me no Depósito de Adidos em Brá, penso que a aguardar colocação.

E aconteceu, que por esses dias, tinha terminado a sua comissão nesta Unidade, o nosso camarada e amigo, Augusto Delfim Silva Santos, que prestava serviço na Secção de Justiça, criando aí uma vaga.

Pois foi precisamente essa vaga, penso eu, que me safou de pior destino. Fiquei colocado no Depósito de Adidos em Brá, na Secção de Justiça, como Oficial de Justiça.

E logo em eu, atirador de Infantaria, sem formação na área de Direito.

Mas a falta dessa formação académica, não me impediu de um bom desempenho nas funções em que fui incumbido, que mereceu um louvor do Comandante da Unidade, pelos bons serviços prestados nos Processos que me foram confiados.

E um convite para preencher o requerimento para a minha continuidade no Serviço Militar, que rejeitei.

Foi pois nestas funções e nesta Unidade, que vivi o 25 de Abril de 1974. Não recordo de nesse dia ter sabido do que se estava a passar em Lisboa.

A esse tempo, vivia com a minha mulher em Bissau e levava a vida de um casal em segunda "lua de mel". Estava demasiado concentrado na nossa vida a dois, para me dispersar em devaneios políticos.

Estes já tinha acontecido na minha mocidade, de adolescente e jovem, em formação de carácter, contra o Regime, opressor e caduco, de Salazar e Caetano.

Durante a Instrução Militar, sempre me associei com os camaradas que eram do "contra", cortando na casaca do Regime e da Instituição militar.

Também em Teixeira  Pinto, acompanhei os movimentos corporativos (mas também políticos) dos Oficiais do Quadro Permanente, que se manifestavam contra o Decreto Lei, que os prejudicava na promoção, sendo este o embrião do que viria a ser o Movimento do Capitães, do 25 de Abril de 1974.

Como sabemos, em Bissau, a "revolução" aconteceu em 26 de Abril de 1974. Do que se tornou visível e audível, lembro o movimento dos helicópteros, a baixa altitude sobre Bissau, em ações persuasivas sobre a cidade.

Não me embrenhei no que se estava a passar em Bissau e penso até que fiquei de noite no Quartel.

A minha mulher contou-me que ficou assustada com o movimento aéreo sobre a cidade e que estranhou que um Tenente, que morava em casa vizinha, viesse armado de G3 para casa, o que não era costume.

Sobre o que se seguiu a esse dia, mesmo não tendo retido tudo na memória, o que havia a contar não cabe neste comentário que já vai muito longo.

Abraços

JLFernandes



2. Ficha de unidade > Batalhão de Caçadores nº 3863

Identificação: BCaç 3863
Unidade Mob: RI 1 - Amadora
Cmdt: TCor Inf António Joaquim Correia
2.° Cmdt: Maj Inf Joaquim Abrantes Pereira de Albuquerque | Maj Inf João José Pires
OInfOp/Adj: Maj Inf João José Pires (acumulava)

Cmdts Comp:

CCS: Cap SGE Manuel Ferreira de Amorim
CCaç 3459: Cap Mil Inf António Mendes Robalo da Silva
Cap Mil Inf Joaquim Mendes Teixeira Ribeiro
CCaç 3460: Cap Mil InfFemando Manuel de Araújo Lacerda Morgado
CCaç 3461: Cap Inf Abílio Dias Afonso
Cap Mil Inf Aires da Silva Gouveia

Divisa: "Honra e Glória"
Partida: Embarque em 16Set71; desembarque em 22Set71 | Regresso: Embarque em 16Dez73

Síntese da Actividade Operacional

Após realização da IAO, de 27Set71 a 230ut71, no CIM, em Bolama, seguiu para o sector de Teixeira Pinto, em 240ut71, a fim de efectuar o treino operacional e a sobreposição com o BCaç 2905.

Em 24Nov71, assumiu a responsabilidade do referido Sector 05, com sede em Teixeira Pinto e abrangendo, então, apenas o subsector de Teixeira Pinto, com subunidades instaladas com as sedes em duas áreas diferentes, em Bassarel e Teixeira Pinto. 

Em 01Fev73, por transferência do CAOP 1 para outra área, o sector voltou a integrar os subsectores de Bachile e Cacheu. 

A partir de meados de Set73, as áreas de Teixeira Pinto e Bassarel foram individualizadas e
consideradas subsectores distintos. As suas subunidades mantiveram-se integradas
no dispositivo e manobra do batalhão, com excepção, inicialmente, da CCaç
3460.

Desenvolveu prioritariamente uma actividade de controlo, coordenação e segurança dos trabalhos dos reordenamentos das populações e sua promoção socioeconómica, a par de constante vigilância e acções de patrulhamento e segurança de itinerários tendentes a impedir eventuais acções inimigas sobre as populações e respectivos aldeamentos.

Dentre o material capturado mais significativo, refere-se 1 morteiro e 1 espingarda.

***

A CCaç 3459, após o treino operacional na regiao de Bachile desde 240ut71, seguiu, em 13Nov71, para Bassarel, a fim de render a CCaç 3327 e assumir a responsabilidade da referida área de Bassarel e dos destacamentos instalados nos reordenamentos de Chulame, Blequisse, Bajope e Binhante. 

Em 01Fev73, mantendo a sua sede em Bassarel, passou então a incluir os destacamentos
de Chulame e Churobrique.

Em 23Nov73, foi rendida no então subsector de Bassarel pela 3ª C/BCaç 4615/73 e recolheu a Bissau para o embarque de regresso.

***
A CCaç 3460 seguiu em 240ut71 para a região de Cacheu, a fim de efectuar o treino operacional e sobreposição com a CCaç 2659. 

Em 24Nov71, assumiu a responsabilidade do referido subsector de Cacheu, com um destacamento em Bianga, inicialmente na dependência do CAOP 1 e depois integrada
no seu batalhão.

Em 23Nov73, foi rendida pela 1ª C/BCaç 4615/73 e recolheu a Bissau para o embarque de regresso.

***
A CCaç 3461 seguiu em 240ut71 para Teixeira Pinto, a fim de efectuar o treino operacional, deslocando-se, em 12Nov71, para Carenque, a fim de efectuar a sobreposição com a CCaç 2660 e assumir a responsabilidade da área de Carenque, com pelotões destacados nos reordenamentos de Batucar e Caió, e outro em Teixeira Pinto. 

Em 01Fev73, a sede da subunidade foi transferida para Teixeira Pinto, onde assumiu a responsabilidade do respectivo subsector, agora com pelotões destacados em Carenque e Batucar.

Em 28Nov73, foi rendida n subsector de Teixeira Pinto pela 2ª C/BCaç 4615/73, tendo recolhido seguidamente a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.
 
Observações - Tem História da Unidade (Caixa n.º 94 - 2ª Div/4ª." Sec, do AHM).

 Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pp. 157/158.

_____________

Notas do editor:


(**) 12 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25374: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-Chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte XV: as ondas hertzianas também chegavam a Nhala, Gadamael, Pirada, Canquelifá...