segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26272: Notas de leitura (1755): "Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerra", por José Brás; Chiado Books, 2024 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
O José Brás/Filipe Bento volta a vindimar com a sua escrita assombrosa, creio que traz recados e avisos solenes de que isto de fazer a vindima vai até o lavar dos cestos, ou seja, que nós combatentes não fiquemos no belo recato de ler o que os outros escrevem atirando para trás das costas as tais memórias da guerra colonial que não se apagam. É um livro comprometedor, a arquitetura vem dos tempos do seu belíssimo romance Vindimas no Capim, mas o que agora nos oferece é mais o sinal dos tempos, constrói-se pelo poder da memória, revisitam-se lugares, gentes, pesadelos e solidariedades e posso-vos dizer que dentro deste processo de escrita onde se fala em termos litúrgicos, como antífona, a oração sobre as oblatas, a oração dos fiéis, despede-se de nós com um solene aviso: compete-nos também o registo de deixar para os outros aquilo que sentimos não foi em vão que por ali andámos a penar para tudo cair no esquecimento.

Um abraço do
Mário



Filipe Bento volta a fazer vindima e diz-nos que do capim há memórias que não se apagam (1)

Mário Beja Santos

A década de 1980 revelou que a literatura da guerra colonial estava a dar um salto qualitativo, entrara-se num período de acalmia e o pulsar da memória levedou numa quase inesperada ficção, podia aqui citar um conjunto de influentes romances, até ensaios, obras de historiografia, poesia, alguma investida memorial, mas fixo-me num surpreendente romance, justamente premiado pela Associação Portuguesa de Escritores, "Vindimas no Capim", de José Brás, então um autor desconhecido. Tratava-se de um romance de formulação invulgar, uma permanente conversa com o leitor, como se estive a acirrá-lo com perguntas, dando ele próprio respostas exclamativas, uma autobiografia de alguém que passara a sua juventude em meios agrícolas, e depois no Sul da Guiné, aqui as vindimas foram outras, havia Guileje, Mejo, Gandembel, lá ao fundo, sempre próximo do Corredor da Morte, havia Cacoca, Sangonhá e Cameconde, lá em cima Balana e, claro está, Aldeia Formosa, Filipe Bento estacionará em Mejo e noutros lugares de permanente sobressalto, confessará as suas dores e amargores, escreverá de forma inequívoca aquilo que muitos de nós já sabíamos e que se veio a comprovar: há memórias da guerra colonial que não se apagam. Mas nas "Vindimas no Capim" sentia-se aquela onda de calor em comunicar a quem quer que seja que aqueles jovens saídos de terras pobres, ordenados numa vida áspera, tinham sido lançados na defesa de uma parcela colonial, acoitados nuns fortins improvisados, a experimentar as penas do inferno. E Filipe Bento perguntava vezes sem fim porque é que tinha andado naquela vindima de pesadelo e porquê tudo por que passara estava agora tão esquecido, quem iria ganhar com o desmemoriamento de tanta luta inglória.


É nisto que o octogenário José Brás salta do esquecimento em que caiu tanta vindima e nos vem alertar do seguinte modo: “Na liturgia das vinhas a vindima seria o seu último salmo. Todavia, na voz do povo se diz que não acaba a missa no corte do último cacho; na derradeira lagarada; no bago que fecha o tonel, e que muita vindima há ainda por fazer até ao lavar dos cestos. Nas courelas que restaram deste anacrónico império, depois da colheita, quantos cestos continuam melados com o mosto das repisadas uvas brancas e tintas?” Presumo que aquilo que ele nos quer dizer é que temos todos a obrigação de fazermos a nossa vindima até ao lavar dos cestos, é assim o dever de memória para que as novas gerações guardem na sua identidade um sofrimento inaudito dos seus ancestrais, participantes num desastre anunciado.

Temos agora o "Lavar dos Cestos", José Brás e Chiado Books, 2024, Filipe Bento regressa ao Sul da Guiné, quartel de Guileje, estão a ouvir-se estrondos em Gandembel, quem aqui está vive o pesadelo, um quotidiano de infortúnio, fez-se um octógono que até parece inexpugnável, ali no Corredor da Morte, o PAIGC não se intimida com aquele fortim solitário, espicaça quem lá vive com tormentosas flagelações, Filipe acordou arrelampado com tanto estrondo, reflete em voz alta:
“Mejo e Guileje, buracos abertos na mata subtropical do Sul da chamada província ultramarina da Guiné, quadrados de cem, cento e poucos metros de lado, paliçada a todo o perímetro construída por duas paredes de cibes, rijíssimas árvores cortadas a propósito e sobrepondo-se, tronco deitado sobre tronco, deitado até uma altura de um homem baixo, separadas as ditas paredes por cerca de um meio metro de vazio que seria cheio de terra, finalmente, quando não mesmo, muitas vezes ainda, e com isso, nesses casos, lá fica desasada a palavra finalmente, muitas vezes ainda, volto a dizer, cosida exteriormente a chapa dos dois lados, lata recuperada dos bidões de duzentos litros da gasolina que alimentava as viaturas, unimogs, jipes e GMC’s, e o gerador elétrico do local destas praças militares portuguesas intervaladas por postos e aquartelamentos do inimigo a escassas distâncias, quatro, cinco, sete quilómetros de mata densa e alta.”

Pode parecer absurdo um inimigo, feroz e destemido, altamente motivado, estar posicionado a tão curta distância, mas as coisas passaram-se assim, aquele corredor da morte era um cordão umbilical para abastecimentos do PAIGC, de gentes, armamento, coisas de hospital e farmácia e mantimentos para a boca. E Filipe Bento já sonha com a passagem para Bolama, mas para ali chegar há que percorrer uma boa distância até Gadamael-Porto, e então, por lancha ou batelão e rio abaixo até Bolama. Mas, ó gente, vamo-nos preparar porque Filipe Bento tem histórias passadas para contar, fez recruta e especialidade, passou pela Carregueira, vai-nos contar ao pormenor e com palavreado da caserna, tudo quanto ali viveu, nas Caldas da Rainha ou em Tavira, entra em cena o major Leiria, associado àquele território onde ele passou a juventude, o pessoal das vinhas. O segredo desta vibração da escrita passa pela recuperação da arquitetura que o José Brás já utilizara em "Vindimas no Capim", a interpelação que tanto desassossega o leitor, ora estamos no quartel ora na taberna, e até se aproveita a circunstância para se dar ensinamento ao leitor urbano:
“Se vocês pensavam que uma enxada era assim uma coisa tão simples, só uma enxada, sem mais nada, a bendizer só a palavra, desenganem-se!
Enxada de dois ferros, um pouco mais curta na chapa, a fim de realizar uma cava mais funda com duas enxadadas no mesmo exato lugar. Enxada de um ferro, mais compridita para cavar num só golpe, não tão fundo, mas envolvendo uma amplitude maior de terra. Enxada de dois bicos que, como o nome indicia, alongava a meia-lua nos bicos, mais grossa e pesada, com um cabo direito para cavar terra seca e amontoar levas atrás do cavador a fim de facilitar a entrada da luz do Sol até mais fundo.”


Umas vezes estamos lá na terra das vindimas, outras vezes nas Caldas, em Tavira ou em Caçadores de Infantaria. Mas importa que se saiba onde vivia Filipe Bento antes de pegar em armas:
“A aldeia é pequena. Apesar de ser sede de Freguesia, de ter igreja paroquial, procissão dos passos anualmente, duas mercearias, festas de verão, escola de rapazes e raparigas, tem apenas a rua principal que sobe desde o cemitério, mesmo ao pé das abegoarias do Manel, outro Manel, Cortador, dono do talho, perto também da forja do Tóino Ferreiro, e passa pela farmácia, à esquerda, sempre a subir e do mesmo lado, a loja debaixo, o casarão apalaçado do Zé Fernandes, os Figueiras com a padaria.” E a descrição vai até ao largo, ficamos também a saber que o caminho que nos levaria à Seteirinha se à Seteirinha quiséssemos ir, tínhamos duas casas grandes do lado direito de quem entra, subindo como vínhamos subindo, olhando as fachadas, tentando perceber a gente que atrás delas vive. No canto direito do limite do largo, a loja de cima que fica por baixo da escola dos rapazes.

E depois, o Filipe Bento vai-nos falar de vinhas e enxertias e até de podas, prepare-se o leitor para uma exaltação das magnificências do que se extrai da terra, que beleza de escrita.
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Aspecto geral da Sala
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do Coronel Carlos Matos Gomes
Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro "Lavar dos Cestos", por José Brás > Intervenção do nosso camarada Mário Beja Santos


Lisboa, Casa do Alentejo, dia 1 de Dezembro de 2024 > Lançamento do livro Lavar dos Cestos, por José Brás > Actuação do Grupo Coral Fora D'Oras

(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 8 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26125: Agenda cultural (865): Convite para o lançamento do livro "Lavar dos Cestos - Liturgia de Vinhas e de Guerra", da autoria de José Brás, a levar a efeito no próximo dia 1 de Dezembro, pelas 15h00, na Casa do Alentejo, Rua das Portas de S. Antão, 58 - Lisboa. Com a participação do Coronel Carlos Matos Gomes, representante da Câmara Municipal de Montemor-o-Novo e do Grupo Coral Fora D'Oras (Cante)

“LAVAR DOS CESTOS - Liturgia de Vinhas e de Guerra” pode ser adquirido na rede de livrarias independentes espalhadas por todo o país;
É também comercializado Online na seguinte rede:
- AtlanticBookshop.pt
- Fnac.pt
- Bertrand.pt
- Wook.pt
- e ainda a pedido via mensagem na página Facebook do autor ou e-mail jasbras1@sapo.pt e enviado via correio CTT.

Último post da série de 13 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26263: Notas de leitura (1754): Ex-combatentes açorianos da Guiné falam das suas tatuagens (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P26271: Por onde andam os nossos fotógrafos ? (30): Virgílio Teixeira (ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte IV: o embarque, no T/T Uíge, de regresso a casa, em agosto de 1969


Foto nº 1


Foto nº 1A


Foto nº 1B


Foto nº 2


Foto nº 2A


Foto nº 3


Foto nº 3A


Foto nº 3B


Foto nº 3C



Foto nº 3D



Foto nº 3 E


Guiné > Bissau > 4 (ou 20 ?) de agosto de 1969 > Zona portuária > Fotos, tiradas do T/T Uíge, na viagem de regresso a casa dos BCAÇ 1933 e 1932.


Fotos (e legenda): © Virgílio Teixeira (2017). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar_ Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]



1. Fotos fabulosas do nosso camarada Vírgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM,CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) que estava no sítio certo na altura certa, a preparar o embarque dos seus camaradas, no T/T Uíge, de regresso à Metróple, em agosto de 1969 (ele diz que foi a 4, eu aponto para 20)..

Escreveu ele (*):

Tenho uma série destas fotos... É o dia 4 de agosto de 1969, o dia da saída da Guiné. Eu tinha passado a noite anterior no Uige, e por isso de manhã cedo estava de pé.

(...) Esta série de fotos que tenho da chegada das lanchas a encostarem ao Uige e depois a serem içadas  [as nossas malas], são realmente uma questão de sorte, eu estar no sitio certo à hora certa. 

Nenhum dos protagonistas, éramos cerca de 700 militares, conhece estas fotos, muitos vão rever-se nelas, um dia que as possam ver. 

(...) Fotografei a chegada, o içar da carga para o barco, um momento inesquecível, e como foi tirada com os 'slides', só foram revelados em Agosto e iam para França, e assim ficaram quase 50 anos. 

Nunca ninguém do BCAÇ 1933 e BCAÇ 1932 e outras Companhias e Pelotões, as viu, muitos poderão agora recordar a sua chegada em 4 de Agosto e entrada para o Uige, naquelas condições degradantes. " (...)

2. Comentário do editor Luís Graça;

Virgílio, as fotos são fabulosas!... Obrigado merecem "bis"! (**)... Mas há aqui um pequeno "desfasamento" de datas, tens que confirmar nos seus "canhenhos".

Tu dizes que foi a 4 de agosto de 1969 o vosso embarque; a CECA (livro 7, 2002) diz que o embarque do BCAÇ 1933 (pág. 101), do BCAÇ 1932 (pág. 98), bem como da CCAÇ 1801 (pág. 365), foi a "20Ago69", duas semanas depois... 

Não é relevante.  (A CECA não é a Bìblia, e também esta não pode ser levada à letra,  e só faz fé para os crentes: recorde-se que, segundo a Bíblia, a terra teria sido criada há 6 mil anos... Ora a Ciência aponta para os 4,5 mil milhões de anos.)

De qualquer modo,  não enccontrei nenhum embarque a 4 de agosto de 1969 patra o CTIG. Nesta data o BCAÇ 1932 foi substituído pelo COP 3, seguindo depois para Bissau para aí aguardar embarque. O mesmo aconteceu com o teu BCAÇ 1933, rendido pelo BCAç 2876, em 1 de agosto de 1969... As vossas companhias, CCAÇ 1790, 1791 e 1792 devem ter embarcado com o comando e a CCS n0 mesmo dia. O mesmo terá acontecido com o BCAÇ 1932, as CCAÇ 1789, 1788 e 1787. Quanto à CCaç 1801, essa era "independente".

Fonte: Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de  20 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18109: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte III: Foto tirada do T/T Uíge, no nosso regresso, em 4/8/1969: vê-se o T/T Rita Maria atracado na ponte-cais de Bissau, e uma lancha da marinha que nos veio trazer o último militar a embarcar.

(**) Último poste da série > 2 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26225: Por onde páram os nossos fotógrafos ? (29): Virgílio Teixeira (ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte III: São Domingos ou a "Guiné para os guinéus"...

Guiné 61/74 - P26270: Os 50 Anos do 25 de Abril (32): O "virar da página" da revista católica "Flama", cujo diretor era o António dos Reis, bispo de Mardassuma e capelão-mor das Forças Armadas (1967-1975) - Parte II

"O chaimite 'Bula' prepara-se para transportar o ex-Presidente do Conselho que, entretanto, setinha renido incondicionalmente ao General Anónio de Spínola,Presidente da Junta de Salvação Nacional"  (Flama, separata, 10/5/1974, p. III)


"Para os populares aglomerados nas imediações do Largo do Carmo tudo serviu para observar a ação das Forças Armada: estátuas, árvores,blindados".  (Flama, separata, 105/1974, pág. II)




Flama, separata, 10/5/1974, pág. II


Capa da separata da Flama: revista semanal de actualidades, nº 1366, A
ano XXXI, 10 de maio de 1974, XXXII páginas.


Flama documento : 25 de Abril : o virar da página
I II III
25 de Abril : o assumir de um compromisso
IV-V
25 de Abril : uma linha de abertura a soluções de evolução
VI VII
25 de Abril : perfeita coordenação no processo de controle
VIII-IX
25 de Abril : o país despertou com outra face
X-XI
25 de Abril : o Largo do Carmo foi o último reduto do regime
XII-XIII
25 de Abril : uma reacção agonizante
XIV-XV
25 de Abril : durou nove horas a tomada do Carmo
XVI XVII XVIII
25 de Abril : a D.G.S. estrebuchou até rebentar
XIX
25 de Abril : a população lembrava-se (bem) da polícia política
XX-XXI
25 de Abril : presos políticos reencontraram a liberdade
XXII-XXIII XXIV-XXV
25 de Abril : um posto de comando tranquilo
XXVI XXVII
25 de Abril : nunca se desejou o derramamento de sangue
XXVIII-XXIX
25 de Abril : quem com ferro mata...
XXX
25 de Abril : o virar da página
XXXI
25 de Abril : o povo esteve com as Forças Armadas
XXXII

Cortesia da Hemerateca Digital / Câmara Municipal de Lisboa

Este número da Flama e a sua separata também estão disponíveis, em formato digital,   no Centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra.


"Manter a população ao corrente da evolução dos acontecimentos foi preocupação constante do general Spínola". (Flama, separata, 10/5/1974, pág. IV)



"O generaql Spínola, com as individualidades que formam a Junta, no momento em que lia perante as câmaras de televisão a histórica declaração". (Flama, separata, 10/5/1974, pág. V)



"Os generais Costa Gomes e António de Spínola".  (Flama, separata, 10/5/1974, pág. V)




Aeroporto de Lisboa (Flama, separata, 10/5/1974, pág. VI)



"O Terreiro do Paço e o aeroporto de Lisboa  foram dos dois pontos estratégicos a ser ocupados pelas tropas do Movimento das Forças Armadas. A população transitou calmamente junto aos carros blindados, manifestando total conpreensão e civismo".  (Flama, separata, 10/5/1974, pág. VII)


(Flama, separata, 10/5/1974, pág. VII)





(Flama, separata, 10/5/1974, pág.VIII)


(Flama, separata, 10/5/1974, pág. IX)


"Foi longa a noite, mas às primeiras horas do dia já a esperança reinava entre os militares. Depois veio o povo disse o seu 'sim' apoteótico. O Governo caía às mãos dos militares". (Flama, separata, 10/5/1974, pág. IX)




(Flama, separata, 10/5/1974, pág. IX)


"Primeiro foi a ocupação (militar), depois a proclamação (popular). Estas foram as duas imagens de uma revolta que, em poucas horas, mudou a face de um país e fez reacender as esperanças de um povo desconhecedor, na sua quase totalidade, dos direitos democráticos".(Flama, separata, 10/5/1974, pág. X)





(Flama, separata, 10/5/1974, pág. X)


1. Tínhamos prometido voltar a esta edição (histórica) da "Flama" (*), revista semanal de actualidades que se publicou até 1976.

Alguns de nós recebiam e liam na Guiné esta revista, a par de outras como a "Vida Mundial", e dos jornais diários, de Lisboa e Porto, mais a " Bola"...Um ou outro mais "politizado" assinava a "Seara Nova", o "Comércio do Funchal", o "Notícias da Amadora", o "Jornal do Fundão"... E, excecionalmente, algumas revistas estrangeiras. 

A "Flama"  era uma revista simpática, que sabia conjugar o "light" com os assuntos mais sérios, "respeitada", origtinalmente ligada à Igreja Católica, mas nem por isso menos sujeita à sanha e arbitrariedade  dos "coronéis da censura"... Soube "refrescar-se", e adaptar-se aos sinais de mudança no mundo e na sociedade portuguesa. Era também lida pelo público feminino, com escolaridade de nível médio ou superior.  E conseguiu uma notável qualidade técnica e estética em muitas edições. 

Recorde-se que a "Flama" tinha nascido em 1937, da iniciativa de um grupo da JEC - Juventude Escolar Católica, com a benção de Salazar e do Cardeal Cerejeira. Era então marcadamente "masculina", e de teor "confessional" ou "religioso". Começou a redefinir-se a partir de 1944... Em 1967, apresentava-se como "semanário de atualidades de inspiração cristã" (sic)... Em 1974 era simplesmente uma "revista semanal de atualidades"... Custava 10 escudos o número avulso (17$50, em Angola, 20$00 em Moçambique) (*)

Dizem os estudiosos da história do jornalismo português, que foi também um marco importante no panorama da comunicação social portuguesa, nos últimos anos do Estado Novo: era uma revista em parte feita por mulheres e para as mulheres, mas também foi escola para conhecidos jornalistas da nossa praça.

Era dirigida, desde 1964 até ao fim,  por  um intelectual católico, com prestígio,  o dr. António dos Reis Rodrigues (1918-2009), nascido em Ourém, concelho a que pertence Fátima.  Padre, será, em 1966, nomeado  bispo auxiliar de Lisboa, sob o título de bispo de Madarsuma,  capelão-mor das Forças Armadas (1967-1975)., etc..  Entre 1947 e 1963 tinha sido capelão e professor na Academia Militar (ensinava ética e deontologia militares). Foi também procurador à Câmara Corporativa, na legislatura de 1961/65. 

Foi também com o  António dos Reis, enquanto diretor, que a revista conheceu o seu apogeu e  sucesso da "Flama". Foi também ele que "virou" e "fez virar" a página da revista (seguramente sob  a pressão dos seus jornalistas que, em 17 de maio de 1974, elegeram, "democraticamente" e "por voto secreto",  um "conselho de redação")...  Mas também com ele e a nacionalização da banca, que a revista conheceu a snetença de morte.

Com o 25 de Abril de 1974, os jornalistas portugueses, libertos do lápis azul da censura, tiveram que "reaprender" a pensar e a escrever...(Não só os jornalistas, como todos nós.) E a prova disso é a separata que o semanário "Flama" dedica, tardiamente, em edição de 10 de maio de 1974, ao histórico dia de 25 de Abril. É sobretudo um trabalho de fotojornalismo, com relativamente pouco texto (para além da declaração histórica do MFA, lida nesse dia perante as câmaras da televisão pelo presidente da Junta de Salvação Nacional, gen Spínola)... 

Infelizmente não sabemos  quem são os autores individuais da fotos,quer a preto, quer a cores, mas quisemos fazer aqui uma seleção desse documento, quer para os nossos camaradas que nessa data estavam ainda na Guiné,  quer para os outros que não tiveram, na altura,  oportunidade de ler este número especial da  "Flama". 

A reportagem é assinada coletivamente por António Amorim, Alexandre Manuel, Fernando Cascais, e Dionísio Domingos (texto), e António Xavier, António Vidal e Carlos Gil (fotografia). (O deparatmento de fotografia da "Flama" era considerado pioneir0.)

A revista vai ter, de resto,  uma vida efémera no pós-25 de Abril: encerrou em 2 de setembro de 1976, por decisáo unilateral e arbitrária  da administração, ligada à banca.

(Seleção, revisão / fixação de texto, reedição das imagens: LG)

domingo, 15 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26269: Blogpoesia (802): "O sonhador é um fazedor de carências", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

O sonhador
é um fazedor de carências


Tu és uma profunda sonhadora
a minha carência
de um belo sonho de uma noite de luar
à beira de um imenso mar azul
o colo cintilante de estrelas
e os lábios húmidos de poemas.

Os olhos são os mesmos
a boca não mudou de lugar
e os beijos ainda lá estão
a atear a última chama do verão.

Diz-me onde tens a alma
gostava tanto de saber
gostava tanto de beber
um cálice de Vodka
ou de Porto
à saúde da tua alma
Ou de fel…não importa.

Vagueio horas a fio
preso aos dias e às noites
se calhar a vida inteira
à procura de um verso que perdi
não sei onde nem quando…
não sei se na vida errando
não sei se dentro de ti.


adão cruz
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Nota do editor

Útimo post da série de 2 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26002: Blogpoesia (801): "Preso à cidade", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

Guiné 61/74 - P26268: Timor Leste: passado e presente (29): Uma viagem de mais de um mês de Lisboa a Díli, no N/M holandês Sibajac, em agosto/setembro de 1936 (Cacilda dos Santos Oliveira Liberato, "Quando Timor foi notícia: memórias", Braga, Pax, 1972)



N/M Sibajak > Navio de passageiros que fazia a carreira das Índias Orientais Holandesas (Roterdão - Batavia, hoje Jacarta). Teve uma longa vida (1928-1959) (durante a guerra foi convertido em navio de transporte de tropas). Com 154,4 metros de comprimento, o seu nº de passageiros (em 3 classes) era 527. Tripulação: 209. Fonte: Wikimedia Commons (com a devida vénia)


Timor (c. 1936-1940), porto-cais de Díli 

Foto do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagem do domínio público, de acordo com a Wikimedia Commons. Editadas por blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)



Capa do livro "Quando Timor foi Notícia: Memórias", de Cacilda dos Santos Liberato (Braga, Editora Pax, 1972, 208 pp.). Encontrei um exemplar na Biblioteca Municipal da Lourinhã. Já o li de um fôlego. Tem um prefácio patrioteiro, propagandístico, algo despudorado e completamente datado,  do escritor  António de Seves Alves Martins: 

"Estar, agora, Portugal  vitoriosamente em armas, como vitoriosamente esteve em paz na segunda grande guerra, dá plena atualidade a este livro bem revelador da força moral de um povo que não abdica dos seus direitos porque também não se demite dos seus deveres" (pág. 12).

Cacilda foi uma "mãe coragem: viúva de Júlio Gouveia Leite, secretário da administração de Aileu (vítima do massacre de Aileu, em 1/10/1942) (*), irá casar depois com o tenente António Oliveira Liberato, também ele viúvo, na "zona de proteção" de  Liquiçá em 1943 (nome eufemístico dado pelos nipónico para  o campo de concentração dos portugueses). 

Com dois filhos pequenos, viu a morte à sua frente por diversas vezes. Publicou as suas memórias trinta anos depois (com alguns retoques, acrescente-se,  de gente erudita do regime que se quis aproveitar do seu testemunho singelo de "mãe coragem").

Estranha-se que o livro só tenha sido publicado em 1972. O manuscrito vem datado de dezembro de 1971. A autora vivia em Portalegre.

Era casada em segundas núpcias com António Oliveira Liberato, cap inf ref, ex-comandante da PSP de Portalegre, oficial da Legião Portuguesa e responsável pela censura a nível distrital. Era autor  de dois livros de memórias: "O caso de Timor" (Lisboa, Portugália Editora, s/d, c. 1946, 242 pp.) e "Os Japoneses estiveram em Timor" (Lisboa, 1951, 336 pp.). (Também dois livros, de difícil acesso, só disponíveis em alguns alfarrabistas e numa ou noutra biblioteca pública.)

1. O que é que os portugueses dos anos 30 do século passado (para mais em plena década do triunfo político das teorias racistas, e do nazismo  em particular)  pensavam do "outro" que estava lá longe, no "além-mar" das Áfricas, das Ásias, das Oceanias ? Enfim, em terras tão distantes como Timor, a 20 mil quilómetros de Lisboa, e a mais de um mês de viagem por mar ? E sobretudo as portuguesas, ainda poucas, que acompanhavam os maridos, funcionários civis ou militares destacados para funções nas colónias.

Cacilda está de "abalada para o Extremo-Oriente, rumo ao longínquo Timor " (p. 13). Estamos em agosto de 1936. Não sabemos exatamente o dia. Mas terá sido na primeira quinzena. 

O navio era holandês, e  elegante", o N/M Sibajac (p. 15).  E o dia "límpido, radioso", em Lisboa (p. 14). (Portugal não tinha um navio da marinha mercante que, nessa época, fizesse a ligação entre a metrópole e a sua colónia mais longínqua, nem havia movimento de carga e passageiros que o justificasse.)

Antes de entrar no Mediterrâneo, por Gibraltar,  o navio faz uma primeira paragem, curta, ao largo, em Tânger, "o tempo suficente para levar o correio à cidade" (p. 14).  Inevitável associar Tânger ao "drama do Infante Santo" (...) "desastre a toldar o brilho da epopeia gloriosa da nossa expansão pelas sete partidas  do Mundo" (p. 15). 

Mas há uma granada, disparada não se sabe donde, que vem rebentar "a reduzida  distância da proa" do Sibajac. Confusão, se não mesmo pânico,  a bordo. Cacilda  vem lembrar, entretanto,  que "estávamos em 1936" (...): "a guerra civil espanhola eclodira  havia apenas  um mês" (p. 16). Em boa verdade, a 17 de julho de 1936, dizem os historiadores.

A viagem até Timor vai demorar mais de um mês... Cacilda e o marido chegariam a Díli em 17 de setembro de 1936. O marido é  um médio funcionário da administração colonial,  Júlio Gouveia Leite, secretário de circunscrição,  que irá encontrar a morte, na tragédia de Aileu, em 1 de outubro de 1942 (*). Era um homem com alguma cultura literária,  acima da média, tendo inclusive sido cofundador, na colónia, de um jornal de vida efémera, em 1938, de que se publicaram três edições  (**)

O que leva esta mulher da pequena burguesia lisboeta a perseguir "o sonho que há muito tempo acalentava" (p. 13), desde as precoces leituras da sua adolescência ?  Acompanhava, desta feita,  o marido que, por "rotineiro despacho ministerial", ia ocupar um lugar do Quadro Administrativo da Província" (o livro é publicado em 1972, pelo que em 1936 a terminologia era outra: Timor era uma colónia; a autora é traída por estes pequenos pormenores, o que sugere que terá tido ajuda de "copywriter" ou revisor de texto, o próprio marido, cap inf QR António Liberato ou o filho, Henrique, que era licenciado).

E logo Timor!... Familiares e amigos em vão a quiseram dissuadir: Timor, "que horror!", Timor, "a lendária antecâmara do Inferno, terra de degredados e de febres, de biliosas e  perniciosas" (p. 14)... Advertências de "sabor resteliano" (sic) (outra referência de sabor erudito, alusiva ao "velho do Restelo", a personagem camoniana que personificava o pessimismo de alguns portugueses em relação à aventura marítima) que provocavam também dúvidas e receios no espírito desta jovem mulher, recém-casada e com já um filho pequeno.

Nada a demoveu. E lá vai ela decidida a "conhecer as fascinantes  regiões das essências e especiarias, o exotismo dos usos  e costumes das suas gentes" (p. 13).

"Demandados Gilbraltar e Marselha, lobrigadas das águas  do estreito as cidades de Régio e Messina, atingiu-se Port-Said " (p.  16).

É "o primeiro contacto com terras do Oriente". E as primeiras descobertas do "exotismo", o caleidoscópio de "toas raças", tão caro ao viajante da época, vindo da Europa, e para mais ,"supremacista".... Travessia do canal do Suez em comboio (dez navios), Mar Vermelho,, "atmosfera de fornalha" (p.17).,,

Ao fim de sete dias de viagem "sob torreira inclemente", atingem Ceilão (hoje Sri Lanka), fundeando em Colombo, a capital da ilha (p. 18). Foi ocasião para alguns portugueses e "3 missionários holandeses" meterem-se a fazer uma curta exploração da cidade, em sete "rickshaws",  puxadas por "coolies", cuja reputação nem sempre era a melhor, conforme aviso feito a bordo... 

Calcilda e o companheiro ( e seguramente o filho) quase que perdem o navio, com as voltas que o seu "coolie" deu,  alongando o passeio, mas afinal "bem intencionado", ao querer mostrar a zona mais "excêntrica" da cidade,... Tiveram de se meter numa "gazolina" (sic) para apanhar o navio já ao largo, a caminho de Malaca (p. 21).

A descrição pitoresca da viagem continua por mais três páginas: o N/M Sibajak acerca-se de Sabango (ou Sabang, na ilha de Sumatra, Indonésia), navega ao longo de ilhas e ilhotas de vegetação luxuriante, que a autora descreve como "lugar(es) paradisíaco(s)" (p. 22).

"De novo em marcha, escalámos sucessivamente, Belawan, Singapura e Batávia". Aqui terminava a viagem do navio holandês. "Três portos, três empórios, em que os navios abundavam e o tráfico era intenso" (p. 22).

Batávia era o nome então da atual "Djakarta" (sic), "uma cidade de marcado estilo colonial": "vasta e muito povoada, de ruas amplas e largos espaçosos" (...), "edifícios grandes e opulentos" (...), "avenidas alfaltadas" (...), "airosas moradias, cercadas de jardins tratados com esmero e bom gosto" (pp. 22/23). 

O  que chocou o olhar português e lisboeta da Calcilda ?... "O espetáculo vergonhoso de multidões de indígenas" (sic),  que se banhavam e lavavam a roupa em cursos de água barrenta, avermelhada, correndo junto a algumas artérias da cidade...

Apanham outro barco, o Melchior Treub, seguindo viagem até Macassar, nas Celébes, para depois embarcarm no Reisgnears que os levará a Díli. Barcos mistos, de cabotagem, que "em digressão pachorrenta" os transportam  por "aqueles mares coalhados de ilhas"...

"Entrei na baía de Díli. Ancorava-se ao largo. Pequena ponte de madeira servia de cais, onde os passageios eram conduzidos em botes e 'gazolinas'. Ali pisei a primeira vez terras de Timor, na manhã de 17 de setembro de 1936" (.p23).

E quais as primeiras impressões de Díli  (cap. II, pp. 27-29) ?

"A Capital era, naquela época, um aglomerado sem importância" (...): "o traçado dos edifícios era simples, vulgar, a tender para a uniformidade"... Exceção para "a catedral, de construção recente", destacando-se da "trivialidade do conjunto" pelas suas "linhas modernas" e pela sua "torre, apontada ao céu" (...) e "dominando o modesto burgo" que se espreguiçava "indolente, sob a densa mata de coqueiros, palmeiras e 'gondões' (imbondeiros)"... (p. 27)

O movimento era "diminuto". O comércio local era apenas alimentado pelo "magro orçamento da Província" (sic). A "população não aborígena" (sic) (p. 27) resumia-se ao funcionalismo público, civil e militar, que comia à mesa do Estado... De fora só  "meia dúzia de empregados do setor privado" e um ou outro,  raro e próspero, "plantador". 

E quem era esse funcionalismo ? De origens diversas: europeus, indianos. macaístas bem como um "elevado número de nativos"... (p.28).

"A colónia chinesa detinha o monopólio do comércio" (p. 28). Fora a firma portuguesa "Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho"  e o "indiano Wadoomahl", "as lojas e quitandas" de Díli e  do resto da ilha "pertenciam aos sorridentes filhos do Celeste Império" (p. 28).

Era no bazar do Wadoomahl que o "elemento feminino" (sic) da colónia gastava as economias com artigos importados de Macau e  Índia... "Coisas de sonho" (p. 28): "tecidos, louças, objetos de laca e obras de cânfora e de sândalo, 'bijouteries' e outros artefactos de aparato e valor"

De 3 em 3 semanas, com a chegada do "vapor holandês da carreira", a loja do indiano tornava-se local obrigatório de visita e encontro  das "senhoras da sociedade de Díli" (p. 28).

Pontos de reunião, festas, receçóes e bailes, eram os clubes Benfica e Sporting, tão rivais entre si localmente como em Lisboa.

Em Díli, Cacilda, o marido e o filho pequeno ficaram numa moradia à beira-mar (p. 29). Mudaram-se pouco depois para Lahane, onde existia o bairro do funcionalismo, a 3 km da capital, com clima mais salubre. 

Ao fim de 3 anos, com o filho Henrique de sete anos, foram para Bobonaro, sede da circunscrição de fronteira, que confinava com o Timor holandès. Voltam para Díli em abril de 1941, quando nasce o segundo filho, Rui Nuno. 

Em agosto vão para Aileu (também conhecida na época como a "vila general Carmona", sendo Baucau a "vila Salazar"...), descrita pela autora como "uma pequena vila habitada por meia dúzia de europeus, outros tantos comerciamtes chineses, alguns mestiços, e nativos evoluídos " (sic) (p. 29). Um pequeno grupo de sipaios "assegurava a guarda à tranqueira, fornecia as ordenanças,as estafetas e outro pessoal paar serviço da Administração" (p. 29). 

Dispersos pelas redondezas, alcandoradas no "cume das montanhas" (p. 30), em pequenos aglomerados viviam os "indígenas"... A "civilização" em Aileu resumia-se  âs instalaçóes da secretaria da Administração, Central telefónica, moradia do secretário, e â saída, já na estrada para Maubisse, os edifícios do Presídio e da casa chamada dos Passageiros (p. 30)... Enfermaria, armazéns, capela, e algunas vivendas isoladas completavam o quadro de Aileu.

E será justamente em Aileu que a Cacilda ouvirá a notícia do início da II Guerra Mundial (1 de setembro de  1939) na  Europa (p. 33)  e depois no Pacífico, com a entrada de novos beligerantes, o Japão e os EUA, em 7 e 8 de dezembro de 1941, respetivamente  (p. 35). 

E seria ainda em Aileu que a Cacilda e a família apanhariam as duas invasões estrangeiras do territória, a dos Aliados e depois dos "matan-bubu" (olhos inchados, a alcunha dada aos japoneses pelos timorenses) (p. 48). 

As suas memórias mais dolorosas (mas também heróicas)  são justamente da longa, cínica e cruel ocupação japonesa (de 20 de fevereiro de 1942 a  5 de setembro de 1945). (***)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 5 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25809: Timor: passado e presente (16): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte VII: As chacina de Aileu e Ainaro, em outubro de 1942... E a coragem da jovem Julieta Lopes, de 17 anos, que gritou aos assassinos, em tétum: Quétac óhò feto ò labáric! (Na guerra não se matam mulheres e crianças!)

.(**) Timor - Publicação eventual de carácter literário e científico. Díli, 1938-1939. Impresso na Imprensa Nacional de Timor. Publicação fundada por Júlio Gouveia Leite e João da Costa Freitas, e como editor João da Costa Freitas. Os colaboradores são Virgilio Castilho Duarte, Lorenço de O. Aguiar e Alberto Rodrigues Paizana. Registaram-se três exemplares. Fonte: Biblioteca Nacional de Lisboa.

In: Vicente Paulino e Lúcio Sousa - Contribuição para um roteiro da imprensa periódica de Timor-Leste (1900-2002). Veredas: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, nº 40, p. 166-183, jul./dez. 2023.

 (***) Vd. poste de 5 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26234: Timor Leste: passado e presente (28): O concelho de Sardoal homenageou, em 15/9/1946, um dos seus filhos, Augusto Leal de Matos e Silva (1905-1944), chefe de posto administrativo de Laga, um dos heróis da resistència aos japoneses, morto da prisão de Díli

Guiné 61/74 – P26267: (Ex)citações (432): Noite de descontração (José Saúde)

 

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


Noite de descontração

Camaradas,

Numa declinar fase das nossas existências que queremos, e desejamos, que seja ainda longa, pois ninguém é eterno, e não vamos olvidar esta evidente realidade, mas onde os nossos já “débeis” corações se apressam para o reviver de um passado no qual proliferaram sentimentos de alegrias e de tristezas, sendo que esta dicotomia de vida nos envia para um fugaz reencontro com memórias que o tempo, sem termo, ousa desafiar, eis-nos perante pequenos retratos que a nossa passagem por terras da Guiné registou e que nós guardaremos eternamente no baú das recordações.

Éramos jovens, com sangue na guelra, corpos marcados pela elegância e de cabelos abastados, não temíamos, por vezes, a imprevisibilidade que uma ida para o mato impunha, alimentávamos, e sempre, esperanças num futuro que todos perspetivávamos de faustosos, mas, a vida, aliás, as vidas remetem-nos para uma ida ao confessionário e de mansinho implorarmos ao universo que, por enquanto, continuamos a fazer peso à terra.

Perante o que atrás descrevo, deixo-vos uma foto e o texto adiante narrado, acerca de uma noite de batuque no nosso quartel e que ainda recordo com extrema nostalgia.  

Batuque na tabanca e na messe de sargentos

 Noite de descontração  

O som do batuque deliciava-me! Encantava-me a alma. Noite de batuque era noite de ronco na tabanca. A população, numa correria louca, desfazia-se em contactos e os nativos, sempre faustosos, marcavam presença no local do aconselhado e de atrativo ronco. O tocador, ou tocadores, bem cedo diziam presente. As bajudas, sempre destemidas, envergavam indumentárias garridas e davam cor ao espetáculo. Os rapazes, com vestes compridas, impunham a sua condição de machos negros e as pomposas donzelas esculpiam os seus salientes rabos ao toque do tambor. 



Ao lado, homens e mulheres já entrosados na idade, agitavam-se com os estrondos vindos dos instrumentos das mãos dos tocadores. Os corpos do pessoal do batuque desenhavam figurinos encantadores. Descalças e descalços o pessoal da tabanca obsequiava com humildade os convivas. Paulatinamente os corpos joviais, alguns divinais, iniciavam o processo da transpiração. Um processo que não colocava senãos a gentes que por teimosia ousavam desafiar o calor da noite. Os cheiros não importavam! Conhecíamos já esses velhos odores. Faziam parte do nosso quotidiano. O perfume Hugo Boss, deixado, entretanto no baú das recordações, era um esmero anfitrião, mas para outros momentos de afirmação social. Naqueles instantes a festa era outra! De arromba. Os cheiros natos da jovialidade apresentavam-se para nós como mais uma página a acrescentar ao calendário de uma comissão que paulatinamente evoluía no tempo, mas devagarinho. 

Recordo as minhas saídas noturnas com outros camaradas a caminho de tabanca para ouvirmos e vermos ao vivo as maravilhas de um batuque das gentes guineenses. Em noite de luar era mais fácil a aproximação à manga de ronco. A pequena multidão, em círculo, faturava momentos ímpares de incontidos prazeres.

O toque do batuque generalizou-se aos quartéis, não obstante admitir uma opinião quiçá contraditória, ao interior dos quartéis, porém, era pressupostamente usual os militares terem nas suas instalações os respetivos tambores, sendo alguns deles comprados a quem fazia da arte um esmerado primor. Numa noite de plena descontração a rapaziada juntou-se e toca a batucar. Nesta perspetiva, um grupo de tocadores improvisados brindou a malta da messe de sargentos do quartel de Nova Lamego, um aquartelamento localizado à beira da estrada que nos levava a Bafatá, com os melodiosos sons oriundos de caixas feitas pelos ilustres mestres negros.

A recetividade da iniciativa mereceu honras dos camaradas que a seguir, e à nossa volta, se predispuseram para ofertar refrescantes bebidas aos tocadores. Numa noite de batuque, e sem danças feitas por corpos ondulantes, uma cuba livre foi divinal!  


Abraços, camaradas
José Saúde
Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523

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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em:  

29 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26212: (Ex)citações (431): Ainda o caso do nosso saudoso António da Silva Baptista (1950-2016), o "morto-vivo": nas vésperas do "verão quente de 1975" era herói da literatura de cordel nas feiras e romarias do Norte

 

Guiné 61/74 - P26266: Parabéns a você (2337): Sousa de Castro, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista da CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1971/74)

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Nota do editor

Último post da série de 12 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26258: Parabéns a você (2336): Francisco Palma, ex-Soldado CAR da CCAV 2748 / BCAV 2922 (Canquelifá, 1970/72) e Luís Dias, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 3491 / BCAÇ 3872 (Dulombi e Galomaro, 1971/74)