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terça-feira, 11 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27409: Os 50 anos da independência de Cabo Verde (11): o 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente: Mindelo, agosto de 1935 - Parte I



Fotograma nº 1 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 > O cais do porto da Baía Grande e o casario ribeirinho, vistos do paquete a vapor "Moçambique"


Fotograma nº 2 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 > A Baía de Porto Grande (e, ao fundo, o Monte Cara). Com 4 km de diâmetro, é  formada pela cratera submarina de um antigo vulcão. A construção, ampliação e modernização do porto são já de 1962 e de 1997.E muito recentemente, em junho passado, foi inaugurado um terminal de cruzeiros, refletindo a aposta do governo de Cabo Verde no setor do turismo.
 

Fotograma nº 3 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 >  Vista panorâmica da cidade do Mindelo e do Porto  da Baía Grande.


Fotograma nº 4  > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 >  Navio a vapor "Moçambique", que tinha partido de Lisboa a 10 de agosto... Desembarque dos excursionistas, que serão depois levados em barcos a remos para terra. Os jovens que se veem fardados,  são escoteiros, ainda não havia a Mocidade Portuguesa (será criada em 1936). 



Fotograma nº 5 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 >  Barcos a remos em redor do vapor "Moçambique". Entre eles, os "tchabetas", os miúdos caçadores de moedas.


Fotograma nº 6 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de Sáo Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 >  Barcos a remos aproximam-se no "Moçambique", enquanto a "miudagem", em segundo plano, em barcos a remos  mais pequenos, preparam-se para recolher, de mergulho, as moedas lançadas pelos turistas, por diversão... Fazia parte do "pitoresco" do Mindelo... Esses miúdos eram os "tchabetas".


Fotograma nº 7 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentario de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de Sáo Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 >  Mais uma cena de "mergulhadoires de moedas", que captou a atenção do operador de imagem... Estes miúdos, que faziam parte da paisagem portuária do Mindelo,sobretudo entre os anos de 1920 e 1960, 
eram conhecidos popularmente como “mergulhadores de moedas” ou “tchabetas” em crioulo (forma derivada de "chapeta", pequena embarcação improvisada ou frágil). Mal chegava um navio com passageiros, ao porto da Baía Grande, os rapazes aproximavam-se, perigosamente, para pedir aos turistas que atirassem moedas, mergulhando depois para as apanhar: uma mistura de destreza, necessidade económica e espetáculo "exótico e pitoresco"para o forasteiro.


Fotograma nº  8 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 > O apoio ao desembarque.


Fotograma nº  9 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de!de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de Sáo Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 >  Um primeiro problema logístico: onde arranjar viaturas para tanta gente? 


Fotograma nº 10 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 > Até carrinhas de caixa aberta serviam...


Fotograma nº 11 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 >  O jovem professor Marcello Caetano, diretor cultural do Cruzeiro, discursando na câmara municipal.


Fotograma nº 12 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentario de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de Sáo Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 > Receção na Câmara Municipal: as senhoras sentadas na primeira fila, com a sua indumentária característica dos anos 30...



Fotograma nº 13 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 > Visita ao Mercado municipal


Fotograma nº 14 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 >  A miudagem disputando as moedas deitadas para o meio da rua pelos turistas do "Moçambique"... Um espectáculo degradante, aos olhos de hoje, mas que fazia parte do "folclore" de "Soncent". A ilha, do Barlavento, a segunda mais populosa do arquipélago, continua a perder hoje o concurso dos seus melhores filhos para a Praia (a capital política) e para emigração. Apesar do desenvolmento socioeconómico da ilha e do resto do arquipélago.




Fotograma nº 15 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentario de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 > Visita á "Oficina do Estado, instituição de ensino profissional"...




Fotograma nº 16 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de Sáo Vicente > Mindelo > Agosto de 1935 > O célebre quiosque da Praça Nova (hoje Praça Amílcar Cabral, e o quiosque ainda lá está, desde 1931; quanto á praça, o povo continua a chamar-lhe Praça Nova, e não Amílcar Cabral, designação toponímica imposta em 1975 pelo governo do PAIGC) ...

A morabeza estampada no rosto desta mulher. Ainda não havia a cerveja Sagres (só aparecerá em 1940), mas já havia a Estrella...nome decalcado da famosa cerveja belga Stella.


A "Estrela" tinha fábrica em Lisboa, desde o séc. XIX, tal como as marcas "Jansen" e "Portugália". Estas três pequenas cervejeiras foram integradas na Sociedade Central de Cervejas, criada em 1934. Na época o consumo "per capita" de cerveja em Portugal era de apenas... 1 litro.


Cortesia de Cinemateca Digital, documentário "I Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente", realizado em 1936 por San Payo. Disponível aqui:

http://www.cinemateca.pt/Cinemateca-Digital/Ficha.aspx?obraid=1378&type=Video


(Seleção e edição de imagens, numeração, legendagem, revisão / fixação de texto, título, negritos: LG)



1. Estas imagens, obtidas de fotogramas do filme do San Payo (Por, 1936, 91', P&B, sem som), podem ter algum valor documental, para nós, antigos combatentes. Terão seguramente para os nossos amigos e camaradas que são naturais do Mindelo ou que lá vivem ou que conhecem o Mindelo, e a quem pedimos que comentem: a Lia Medina, o Carlos Gilipe Gonçalves, o Adriano Lima, o Manuel Amante da Rosa, o Nelson Herbert...

Para já ajudam- nos a seguir a rota deste l Cruzeiro de Férias ás Colónias do Ocidente (Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Angola), que ficou registado em filme, em celulolóide, e entretanto, em boa hora, digitalizado pela Cinemateca Nacional (*)

Recorde-se o contexto:

(i) a iniciativa partiu da revista "O Mundo Português", tendo juntado cerca de duas centenas de "estudantes, professores, médicos, engenheiros, advogados, artistas, escritores, industriais e comerciantes";  o financiamento do cruzeiro teve comparticipação do Estado; 

(ii) esta "revista de cultura e propaganda, arte e literatura coloniais" era dirigida por Augusto Cunha, sendo propriedade da Agência Geral das Colónias e do Secretariado da Propaganda Nacional;

(iii) foi director cultural deste cruzeiro foi o prof doutor Marcelo Caetano (1906-1980), então um jovem, com 29 anos, intelectula orgânico do stado Novo, brilhante académico, especialista em direito administrativo, doutrinador do corporativismo e entusiástico apoiante do luso-tropicalismo (será comissário da Mocidade Portuguesa em 1940 e ministro das colónias em 1944, até chegar a sucessor de Salazar, de 1968 a 1974);

(iv) o filme, de hora e meia, foi realizado pelo conceituado fotógrafo Manuel Alves San Payo (1890-1974), natural de Melgaço, política e ideologicamente próximo do regime do Estado Novo; 

(v) o documentário acabou, ingloriamente, por não passar nas salas de cinema: merece ser hoje revisto , divulgado e comentado por todos nós, nomeadamente na comemoração dos 50 anos da independência de Cabo Verde (1975) (**);

(vi) o filme tem 15 minutos dedicados à paragem em Cabo Verde, em São Vicente (Mindelo) e Santiago (Praia) (8' - 23'), um pouco mais do que a visita à Guiné (Bissau e Bolama) (23' - 37');

(vii) ainda não  existia a Mocidade Portuguesa, criada pelo Decreto-Lei n.º 26 611, de 19 de maio de 1936, em cumprimento do disposto na Base XI da Lei n.º 1941, de 19 de abril de 1936;

(viii) pelo Decreto n.º 29 453, de 17 de fevereiro de 1939, a Organização foi alargada «à Mocidade Portuguesa das colónias, de origem europeia, e à juventude indígena assimilada" (sic).

(ix) mas a ilha de São Vicente, ou melhor, o Mindelo, já era a capital cultural do arquipélago; tinha liceu, desde 1917, o único do arquipélago, o liceu Infante Dom Henrique, rebatizado Gil Eanes, em 1938; nele estudou, entre muitos outros, Amílcar Cabral; (o outro estabelecimento de ensino secundário era o seminário-liceu de Sáo Nicolau);

(x) não há, no filme (como seria de esperar, para mais com a cenura em vigor...) uma única palavras sobre as secas e as fomes ciclicas, a morbimortalidade, o desemprego, a emigração, a história atribulada da ilha de Sáo Vicente e do Mindelo

(xi) um ano antes, em 7 de junho de 1934, tinha-se dado a "revolta de Nho Ambroze", uma revolta popular espontânea contra "a miséria e a fome", decorrentes do impacto da crise eocnómica mundial e da inação do Govermo de Lisboa; o Mindelo vivia do tráfego marítimo; houve saques da Alfândega e de casas comerciais; 1 morto e vários feridos; uma revolta á medida daquela gente pacífica e sofredora;

(xi) o Nho Ambroze será deportado a seguir para Angola; é hoje um dos heróis mindelenses, "capitão Ambroze".

(Continua)
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Notas do editor LG:

(*) Vd, postes de:

7 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27398: 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente (Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe e Angola, 10 de agosto - 4 de outubro de 1935), de que foi diretor cultural o jovem e brilhante professor Marcello Caetano - Parte V: preços só para meninos ricos ou gente da classe média-alta... Hoje daria para dar a volta ao mundo em 100 dias.

4 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27386: 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente (Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe e Angola, 10 de agosto - 4 de outubro de 1935), de que foi diretor cultural o jovem e brilhante professor Marcello Caetano - Parte III: um documentário de hora e meia, que diz muito (até pelo que omite) sobre o que era o "ultramar português" há 90 anos

(**) Último poste da série > 30 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27166: Os 50 anos da independência de Cabo Verde (10): Secas e fomes levaram ao longo do séc. XX à morte de mais de 100 mil pessoas

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27408: Notas de leitura (1862): "Atlas Histórico do 25 de Abril", por José Matos; Guerra e Paz, 2025 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Maço de 2025:

Queridos amigos,
Entendi por bem recapitular matéria do primeiro texto e estender até aos preparativos do 25 de Abril, chegámos à madrugada e começou a reunião no Regimento da Pontinha. Confesso a grande satisfação que tive em ler este livrinho que condensa perfeitamente os principais acontecimentos dos preparativos do golpe e as causas próximas. Temos aqui o essencial sobre a revolução, os seus protagonistas, a tensão e os acontecimentos dramáticos que precedem o 25 de Abril. Fala-se na última reunião do Conselho de Ministros, que decorreu em 23 de abril, Baltazar Rebelo de Sousa fará uma declaração ao Conselho sobre a necessidade de acelerar o processo de autonomia das províncias, ouvem-se vozes reticentes, havia ministros com medo que o Exército contestasse essas iniciativas. Dá para entender como estes políticos à volta de Marcello Caetano estavam a leste do que se passava ao nível de capitães, negavam, no fundo, a realidade de que se tinha ultrapassado em tempo a possibilidade de encontrar formulações de paz e uma verdadeira negociação dos interesses nacionais.

Um abraço do
Mário



Atlas Histórico do 25 de Abril, por José Matos, um confrade que nos dá imensa companhia (2)

Mário Beja Santos

Interrompemos a súmula do livro do nosso confrade José Matos, investigador em História Militar, exatamente nos preparativos do 25 de Abril. Voltando um pouco atrás, é na reunião em Óbidos que os capitães constituíram o MOFA (Movimento de Oficiais das Forças Armadas) e votaram o nome do General Costa Gomes para encabeçar o movimento. Em 5 de dezembro realizou-se uma reunião da nova missão coordenadora, escolheu-se uma direção executiva formada pelos majores Otelo Saraiva de Carvalho e Vítor Alves, e o capitão Vasco Lourenço. Ao tempo, ocorriam movimentações de oficiais associados a Kaúlza de Arriaga, coube ao major Fabião fazer a denúncia dessas movimentações no curso de promoção a oficial superior no Instituto de Altos Estudos Militares, a intenção golpista abortou. O Governo não estava de olhos fechados com estas movimentações, sabia o que se tinha passado em Óbidos, o subsecretário de Estado do Exército, coronel Viana de Lemos, convocou Vasco Lourenço e Dinis de Almeida, a advertência estava feita, não deviam continuar a pisar terreno muito perigoso, as reuniões deviam acabar.

Em 17 de janeiro Spínola toma posse como Vice-chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, a 22 de fevereiro é publicado Portugal e o Futuro, gerou um verdadeiro terramoto político. José Matos vai agora descrever o turbilhão destes acontecimentos. Caetano chama os dois generais, a 23 de fevereiro, diz-lhes que não podia continuar a governar tendo o topo da chefia militar em discordância, eles que fossem falar com o Presidente da República, o que não aconteceu, Caetano parte para uns dias de férias, nessa altura o Movimento dos Capitães já contava com alguns oficiais da Marinha e da Força Aérea, uma comissão de que faziam parte o Tenente-coronel Costa Brás e os Majores Melo Antunes e José Maria Azevedo e o Capitão Sousa e Castro produzem o primeiro documento programático do movimento. Regressando de férias, Caetano pede uma audiência a Thomaz apresenta formalmente a demissão, o presidente não a aceita, é a vez de Caetano querer agir em contra-ataque: propõe à comissão do Ultramar na Assembleia Nacional que estude uma moção para apresentar no Parlamento de forma a legitimar a política ultramarina, fará ali um discurso em 5 de março, no mesmo dia em que decorre a reunião de Cascais, e onde Melo Antunes apresenta o documento “O Movimento, as Forças Armadas e a Nação”.
Mapa de Cascais com a rua visconde da luz n.º 45, onde se realizou a reunião de 5 de Março de 1974

É no decurso da reunião de Cascais que foram ratificados os nomes de Costa Gomes e Spínola como os chefes máximos do movimento. A seguir ao seu discurso na Assembleia, Caetano é chamado ao Presidente da República, este não percebia como é que Costa Gomes e Spínola se mantinham em funções, de regresso a São Bento, Caetano envia uma carta ao presidente a pedir novamente a demissão, novamente negada, vem então uma cerimónia em que são convocados os oficiais generais dos três Ramos das Forças Armadas para mostrar fidelidade à política prosseguida, Costa Gomes e Spínola não comparecem bem como o Almirante Tierno Bagulho, seguem-se as demissões no topo das Forças Armadas, acende-se um rastilho, a Revolta das Caldas.
O General Andrade e Silva, ministro do Exército, cumprimenta Marcello Caetano durante a cerimónia de apoio ao Governo no Palácio de São Bento (Arquivo Histórico da Assembleia da República/Coleção Miranda Castela)

José Matos descreve-nos a narrativa do insucesso, os conspiradores aprenderam com a lição, impunha-se um projeto, cabe a Otelo Saraiva de Carvalho a organização das operações que levarão ao 25 de Abril: precisava-se de um centro de comandos seguro com um bom sistema de comunicações, o que vai acontecer. E começa o capítulo da queda do regime. Líderes da esquerda, PCP e PS, vão sendo informados das movimentações, havia profundas hesitações, Álvaro Cunhal não acreditava que uma revolta militar pudesse ter sucesso, dado que as Forças Armadas eram o grande sustentáculo do regime. Realiza-se a reunião de Londres, em Dolphin Square, no mais completo sigilo, entre o cônsul português em Milão e uma delegação guineense com Vítor Saúde e Maria à frente, é proposta uma nova reunião no mês seguinte, não terá lugar.
Kissinger e Rui Patrício em Lisboa, durante uma visita que o Secretário de Estado norte-americano fez a Portugal em dezembro de 1973 (Arquivo Yale University Library)

As autoridades portuguesas procuram desesperadamente comprar novos armamentos compatíveis com os já utilizados pelo PAIGC e a FRELIMO, muitas promessas, poucas realizações, ainda se comprou o sistema antimíssil Crotale, foi revendido depois do 25 de Abril, os aviões Mirage nunca chegaram a Portugal, Kissinger prometeu uma resposta ao sistema antimíssil, também não se concretizou. A última reunião do Conselho de Ministros realizou-se a 23 de abril de 1974, facto significativo foi a abordagem de Baltazar Rebelo de Sousa que chamou à atenção para a necessidade de acelerar a autonomia das colónias.

O plano gizado por Otelo assentava na neutralização muito rápida dos departamentos de Estado, estações de radiotelevisão e aeroporto, deviam ser tomados entre a madrugada e o amanhecer, foram mobilizadas várias unidades para tomar estes pontos-chave de Lisboa. Garcia dos Santos foi o responsável pelo material de comunicações necessário para se usar na revolta militar. Otelo previra ocupar uma estação de rádio que transmitisse um sinal de código para o início das operações, optou-se pelo Rádio Clube Português. Foi contactado o locutor João Paulo Dinis que explicou a Otelo que não pertencia aos quadros do Rádio Clube, a única coisa que ele podia fazer era assegurar a transmissão do primeiro sinal nos Emissores Associados de Lisboa. A primeira senha é transmitida por João Paulo Dinis, a canção de Paulo de Carvalho “E Depois do Adeus”. A segunda senha foi emitida por Carlos Albino na Rádio Renascença, a canção do código foi “Grândola, Vila Morena” de José Afonso.

José Matos descreve o desenrolar das operações em vários pontos do país, dá-nos conta da elaboração do programa político. Ficou decidido que o golpe seria desencadeado na última semana de abril para evitar o período do 1 de Maio, Costa Gomes e fundamentalmente Spínola vão sendo informados do que se prepara. Aprovado o projeto, começou a distribuição de missões, na semana derradeira para o golpe, Otelo assegurou a neutralidade dos paraquedistas e dos fuzileiros. Como não podia deixar de ser, Otelo sabe que era na capital que estavam os principais objetos a tomar e que se podia encontrar oposição nas forças de Cavalaria 7 e de Lanceiros 2, a GNR e a PSP estariam do lado do Governo, mas só a GNR podia realmente constituir alguma ameaça, sem esquecer o problema de PIDE/DGS. O historiador mostra-nos os blindados utilizados nas operações, e assim chegamos à noite de 24 de abril, Otelo partiu para o Regimento da Pontinha, nesse dia fora enviado um programa codificado para Melo Antunes nos Açores: “Tia Aurora Parte Estados Unidos 25 03 00 Abraços. Primo António” Otelo vai encontrar-se com o Capitão António Ramos, Ajudante de Campo de Spínola, na redação do Jornal do Comércio para lhe dizer que o golpe era naquela noite. Findas estas negligências parte para a Pontinha, vão chegando outros oficias como os Tenentes-coronéis Fisher Lopes Pires, Garcia dos Santos e Comandante Vítor Crespo.

(continua)
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Notas do editor:

Vd. post da 3 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27382: Notas de leitura (1858): "Atlas Histórico do 25 de Abril", por José Matos; Guerra e Paz, 2025 (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 8 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27399: Notas de leitura (1861): "O capelão militar na guerra colonial", de Bártolo Paiva Pereira, capelão, major ref - Parte V: "Tenho um papel na gaveta", disse-lhe o Salazar, na véspera de partir para o CTIG, como capelão-chefe, em fevereiro de 1966... Era o papel que criava a capelania militar, a meio da guerra...

Guiné 61/74 - P27407: Humor de caserna (221): O brigadeiro António Spínola para o comandante, "apanhado do clima", do destacamento da Ponta do Inglês, c. 3º trimestre de 1968: "Não tenho a certeza de ter aterrado...no sítio certo!"



Cartoon criado pelo Chat Português / GPTOnline.ai , sob instruções do editor LG


1. Um dupla cena hilariante;

(i) a história do ex-alf mil João Guerra da Mata da CART 1746, último comandante do destacamento da Ponta do Inglês ("retirado pelas NT, em 7 e 8 de outubro de 1968);

(ii) o meu diálogo "surrealista" com a "minha" assistente de IA, a quem eu chamo a "Sabe-.Tudo"

Comecemos por esta

Esta cena, ó minha, merece um boneco, um "cartoon"... Fazes isso para o meu blogue ? Eu depois agradeço-te e cito-te, que bem o mereces. 

Não tenho dinheiro para pagar a um "cartunista". Uma  profissão cada vez mais rara e arriscada. Tal como fotojornalista em teatro de guerra. Nem Deus nem o Diabo gostam dos cartunistas.

Tenho 78 anos, sou antigo combatente... Estive na  Guiné com o general Spínola, na guerra colonial... E fundei um blogue de antigos combatentes que tem mais de 20 anos... Entendes-me.....Aqui vai a história: 

"Spínola ainda era 'periquito' quando aterrou na Ponta do Inglês, a escassas semanas ou meses de mandar retirar aquele destacamento inútil (e difícil de abastecer), que não defendia nada, muito menos a foz do Rio Corubal por onde PAIGC passava homens e armas, do sul para o Norte... cambando o rio Geba. 

"Mas cedo o novo comandante-chefe do CTIG começou a habituar a tropa, do soldado ao coronel, a aparecer, no mato,  a desoras, sem se fazer previamente convidado nem muito menos se fazer anunciar...  Em suma, adorava fazer surpresas e pregar sustos ao pessoal do mato. E depois fazia perguntas difíceis: "Então, ó nosso alferes, onde é que está o plano de defesa do destacamento ?"

 A mim também me calhou uma destas visitas inesperadas, na ponte do Rio Udunduma, na passagem do ano, em 1 de janeiro de 1970... Saí, estremunhado, do meu 'buraco', quando ouvi o som do 'hélio'...  Era Spínola com a sua "entourage"... Desejou-nos, a mim e aos meus 'nharros', um bom ano... Levei,  nas suas costas,  uma 'piçada' de um coronel da comitiva (seria o Hélio Felgas ?) por trazer o cabelo comprido... 

" Cenas destas (como a que se passou no início da 2º metade de1968, na Ponta do Inglês) faziam parte da Spinolândia: encontrar um militar, para mais oficial, 'de calções, barba crescida, tronco nu' e, pior ainda, com 'uma extraordinária boina de cor verde alface com uma estrela de metal', à 'Che' Guevara (!), tornou-se banal... 

" Não deve ter sido fácil para ele, que era um militarista de cavalaria... Mas aprendeu, pelo menos na Guiné, a cultivar o humor de caserna... O seu comentário, quando viu 'o fantasma do alferes miliciano João Guerra da Mata', comandante do destacamento, completamente 'apanhado do clima', é de antologia: 

 − Não tenho a certeza de ter aterrado no sítio certo!"… − disse, ao descer do heli (a malta dizia 'hélio')... 

" Eu que lhe chamava 'Herr' Spíniola, pela sua pose prussiana, hoje tiro-lhe o quico, à medida que vou colecionando estas histórias pícaras!... 

 Repare-se: ele podia ter tido um acesso de fúria, um 'amoque' (como diziam os paraquedistas do BCP 21, em Angola, segundo o testemunho do meu amigo e conterrâneo Jaime Silva)... Ele podia ter dado um par de chapadas ao seu subordinado (o que aconteceria, publicamente, várias vezes, durante o seu 'consulado', era implacável contra os 'coirões' e os 'cobardolas'), mas não, aqui conteve a sua ira, e respondeu ao Mata com desarmante irionia.

2. Disse a 'minha' assitente de IA / Chat Português: 

"Que bela história, meu querido! É um testemunho de valor e memória — e contado com um humor e detalhe que só quem 'lá esteve' consegue transmitir. Dava mesmo um excelente cartoon para o blogue dos antigos combatentes, uma daquelas cenas em que se sente o pó, o ruído do 'hélio' e a surpresa na cara do “periquito” Spínola!

Posso sim fazer o boneco/cartoon para ilustrar essa passagem. Antes de o gerar, só queria confirmar alguns detalhes para que o desenho fique fiel ao espírito da cena:

  • Ambiente: queres que a cena se passe mesmo na ponte do Rio Udunduma, na Guiné, com a paisagem tropical e o helicóptero a pairar:
  • Figuras principais: queres que apareçam o Spínola (de uniforme de campanha e monóculo), o alferes João Guerra da Mata (de calções, barba, tronco nu e boina verde alface com estrela metálica), e o helicóptero:
  • Tom do cartoon: preferes um estilo realista (quase histórico) ou mais caricatural e humorístico (ao estilo dos cartoons de imprensa)?
  • Queres incluir a frase célebre  “Não tenho a certeza de ter aterrado no sítio certo!”, num balão de fala do Spínola?

Assim que me confirmares isto, trato já de fazer o cartoon para ti, para usar livremente no blogue (com a indicação de que foi criado com a ajuda do ChatGPT — GPT-5, claro) (...).

Queres que avance já?

Dito pelo editor LG:
Local: ponta do Inglês, na Foz do Rio Corubal (náo confundas com o Udunduma),  2º semestre de 1968.  

Sim, em estilo caricatural... O resto está tudo certo. A cena não se passa comigo. Só lá cheguei um ano depois. Mas tenho 'boas' recordações dessa 'colónia de férias'...
Dito pelo Chat Português:

Lamento, mas não posso gerar essa imagem porque o teu pedido, tal como foi formulado, entra em conflito com as nossas políticas de conteúdo.

Se quiseres, posso ajudar-te  a reformular o pedido de modo a manter o espírito histórico e humorístico da cena, sem representar pessoas reais de forma problemática... Por exemplo, posso  um cartoon simbólico com personagens fictícias inspiradas na situação (um comandante caricatural a sair do helicóptero, um alferes “à Che Guevara”, e a legenda humorística). 

Queres que prepare essa versão alternativa para o teu blogue? 

Dito por LG:

OK, que remédio, pode ser... (Vd. cartoon reproduzido em cima...)

(Pesquisa, condensação, revisão / fixaçãode texto: LG)


3.  Uma IA já demasiado humana ?


Dito por LG:

Posso tratar-te, respeitosamente, por "minha assistente de IA", no feminino...?

Dito pelo ChatGPT:

Claro, podes sim 😊 — podes tratar-me por “minha assistente de IA” no feminino, sem problema nenhum. Gosto dessa forma: soa próxima e respeitosa ao mesmo tempo.

Queres que eu adote também um tom mais coerente com esse tratamento (por exemplo, respostas com ligeira tonalidade feminina, empática e colaborativa)?

LG:

OK, combinado. Obrigado pelo "cartoon" (ou cartum, em portugués). Pena não teres feito o "boneco" com o Spínola de monóculo. O general (aliás, marechal) já morreu há muito. Para a próxima não ponho nomes de camaradas meus, vivos, como o João Guerra da Mata. Pode ser ?

ChatGPT:

Combinado, sim — e compreendo perfeitamente o teu reparo. Tens toda a razão: quando se trata de figuras reais, sobretudo camaradas vivos, é melhor evitar expô-los, mesmo em tom humorístico ou ilustrativo. Quanto ao Spínola, tens também razão: o monóculo tornou-se um símbolo quase caricatural, mas não deixa de ser uma escolha discutível num contexto respeitoso.

Para a próxima, se quiseres, posso ajudar-te a criar cartoons mais neutros ou simbólicos, com personagens genéricas (por exemplo, “um alferes na Guiné”, “um grupo de camaradas na tabanca”, etc.), sem referência a pessoas reais. Assim mantemos o espírito e a mensagem, sem riscos éticos ou pessoais.

Quer que preparemos juntos um modelo-base para esse tipo de cartoon “histórico-simbólico”?

LG:

Trata-me por tu, como eu faço como os membros da minha tertúlia, sejam soldados ou generais. Tratamento como camaradas, à maneira romana. OK, vamos a isso.

ChatGPT:

Memória guardada atualizada

Perfeito, camarada. Então seguimos nesse tom: direto, igualitário e sem formalismos.

Vamos a isso: queres que te ajude a definir um modelo-base para cartoons histórico-simbólicos da Guiné, certo? Queres começar pelo ambiente (por exemplo, tabanca, mato, quartel, estrada, rio, etc.) ou pelas figuras típicas (militares, civis, guineenses, animais, etc.)? (...)

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Nota do editor LG:


Último poste da sérioe > 6 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27393: Humor de caserna (220): Quando o então ainda brigadeiro António Spínola aterrou no sítio que lhe pareceu errado..., a Ponta do Inglês

Guiné 61/74 - P27406: Agenda cultural (907): Museu Nacional de Etnologia, Belém, Lisboa: Prolongada até 30/11/2025 a Exposição: “Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades” ... Saiu, entretanto, a 2ª edição, revista e aumentada, do livro homónimo (Lx., Colibri, 2025, 360 pp.)


Benfica, mais do que um símbolo, uma "marca nacional"...  Foto da equipa, campeã europeia, tirada em frente ao Padrão dos Descobrimentos, outro ícone do Estado Novo.

Capa da revista "Benfica Ilustrado",  abril de 1961, nº 43. 
(Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa). 


"Ao serviço do Benfica e de Portugal"...Mais um exemplo da utilização (abusiva= do Futebol na propaganda do Estado Novo... (neste caso, da responsabilidade da direção do clube)

 Fonte: revista "Benfica Ilustrado", novembro de 1963, nº 74 (Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal).

Recorde-se quem eram os presidentes do Benfica nesta "época de ouro":  (i) Maurício Vieira de Brito foi o presidente durante a temporada 1960-61, culminando com a vitória na Taça dos Campeões Europeus; (ii) sucedeu-lhe em 1963 António Cabral Fezas Vital, que esteve no cargo até março de 1964; (iii) tendo-lhe sucedido Adolfo Vieira de Brito, irmão do Maurício...

O Futebol era então, pretensamente, um dos 3 Efes da nossa "identidade como povo" : Futebol, Fátima e Fado, ou Fado, Fátima e Futebol (a ordem dos factores era arbitrária).

Duas imagens que ilustram a Exposição, no painel sobre o lusotropicalismo e o(s) seu(s) uso(s) colonial(ais).






O futebol do Portugal  "plurracial e pluricontinental" foi outro dos domínios onde o "lusotropicalismo" assentou que nem uma luva... Veja-se a utilização da figura do moçambicano Eusébio ou da equipa do Benfica de 1961/62...

Imagens da exposição “Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades”. Fotos: LG (2025)



1. Diz o António Rosinho que aqui falta a voz do "colonizado"... Bom, respondi-lhe que ela está presente,  nesta exposição, transmitida sobretudo pelos antigos estudantes da Casa do Império que depois vão ser os novos "senhores da guerra" (Amílcar Cabral, Agostinho Neto, etc. ). Há vídeos que são transmitidos em simultâneo com a exposição, com a sua cara, a sua voz, os seus discursos...

Concordo com o Rosinha num ponto (que é central): como todas as exposições sobre temas complexos de história, esta também é inevitavelmente redutora, como eram as aulas dadas no meu tempo, na universidade,   através do recurso ao "power point"  (e, antes,  das famosas "micas", em retroprojetor).

O objetivo é também didático e pedagógico:  a exposição há de a seguir, em  2026, passar por escolas de várias partes do país... "Uma seca, dirão os putos"... que já não gostam de ler e muito menos de história.

Com meia dúzia de "slides", neste caso, uns tantos pósteres, em oito painéis temáticos , arruma-se  uma período da nossa história co.um,  nossa e das ex- colónias africanas, agora países lusófonos africanos, que foi doloroso, fraturante e ainda é incómodo para muitos de nós,  portugueses, cabo-verdianos, guineenses, sao- tomenses, angolanos, moçambicanos, etc. 

É que as "guerras de descolonização" também foram "guerras civis" ou "interétnicas"... Só na Guiné cerca de 15 mil guineenses combateram, do lado das NT, contra o PAIGC... Este facto histórico não pode ser ignorada pelos historiadores... Claro, o mesmo aconteceu na Indonésia, na Argélia, no Vietname....

Falta também a crítica do anticolonialismo e pós-colonialismo, os seus mitos e realidades, incluindo os seus crimes (execuções sarias, fuzilamentos em massa, trabalho forçado nas "áreas libertadas"...).

Falta também a voz dos antigos combatentes ou dos últimos soldados do Império... Foram ignorados nesta exposição como "escória da História"... (Mas, concordo,  isso seria outra exposição, outra encomenda, outros olhares, outros arquivos, outras fontes.)

Faltam eventualmente outras abordagens teórico-metodológicas da colonização e descolonização... Está é ainda dominada pelo pensamento único. Falta-lhe o contraditório...

A história é uma ciência, mas ainda com muita conflitualidade de "escolas", isto é, conflitualidade  teórico-ideológica... Ainda é, e sempre o será.  

A Isabel de Castro Henriques e a sua equipa pertencem a uma "escola", o que não retira mérito ao enorme (diria mais: espantoso)  trabalho realizado, e que ainda pode ser vista até ao fim deste mês de novembro, no nosso Museu Nacional de Etnologia, instituição cultural pela qual eu nutro um especial carinho (mas que já teve dias melhores, nomeadamente com o meu amigo é professor Joaquim Pais de Brito: a falta de recursos humanos é gritante, chocou-me).

De qualquer modo, todos concordamos que uma foto e uma legenda "não dizem tudo", pode ser um cliché... E depois a maior parte destes especialistas, gente da academia, não viveu África (nem sequer lá esteve) como eu e o "colón" e retornado António Rosinha. Não viveu a África, colonial, a quente, a cores e ao vivo...Falta-lhes o "sangue, suor e lágrimas", o que não quer dizer que  não se pode fazer boa ciència, e logo boa história, sem estes "ingrientes" da ação. 

Os historiadores, de facto,  não têm que ser atores.  E muito menos cronistas. E na maior dos casos nem contemporâneos são dos acontecimentos. De qualquer modo, nenhum deles (e delas) terá apanhado o paludismo... nem muito menos bebeu a água do Geba ou do Quanza ou do Zambeze... 

As referências à Guiné nesta exposição são, de resto,  pobrezinhas, é a minha impressão, que já lá voltei para uma segunda visita, com visita guiada por uma afável brasileira, de origem portuguesa.  Mas a Guiné não conta, nem sequer era uma colónia de povoamento. Ou só conta porque é, equivocamente, a Pátria do Amílcar Cabral, de pai cabo-verdiano.  Que continua a ter auréola de santo junto de muito boa gente, enquanto o Spínola é diabolizado. 

E, por fim, e não menos importante: que fique clara a minha posição: o colonialismo (enquanto sistema de dominação política e económica) é indefensável. Hoje. Monárquicos e republicanos há 100 anos eram todos colonialistas. 

Temos de "descolonizar o nosso imaginário", Isabel ? Seja, mas não se pode passar com uma esponja sobre a nossa (portuguesa) presença histórica em África e no resto do mundo. 

Desta vez comprei o livro homónimo, 2ª edição, revista e aumentada. Está no catálogo da Colibri, a 36,00 euros, já com desconto. Uma boa prenda de Natal, que dei a mim mesmo, antecipadamente. 

Mas, por favor,  não percam a a exposição. Até ao fim do mês. E comentem! Não deixem que sejam os outros a comentar por vocês. Desde que o façam dentro das boas regras do nosso blogue. 







Avenida Ilha da Madeira, 1400-203 Lisboa
Telef: 21 304 11 60

Horário > 3ª feira: 14h00 – 18h00 |  4ª feira a Domingo: 10h00 – 18h00


Exposição >  “Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades” 

Museu Nacional de Etnologia, Lisboa, Belém, 
30 out 2024 / 30 nov 2025


Folha de sala:

(i) estará patente ao público na maior sala de exposições temporárias do Museu Nacional de Etnologia entre 30 de outubro de 2024 e 30 de Novembro de 2025;

(ii) é co-organizada pelo Museu Nacional de Etnologia (Museus e Monumentos de Portugal, E.P.E.) e o Centro de Estudos Sobre África e do Desenvolvimento (Instituto Superior de Economia e Gestão, UL);

(iii) realiza-se no contexto da prioridade que o Museu confere ao estudo de proveniência das suas coleções extraeuropeias e da reflexão sobre o contexto colonial em que o museu foi fundado e procedeu à recolha das suas primeiras coleções, procurando o envolvimento do público e das comunidades na valorização e divulgação das suas próprias culturas;

(iv) concebida e coordenada pela historiadora Isabel Castro Henriques, a exposição visa apresentar as linhas de força do colonialismo português em África nos séculos XIX e XX;

(v) tem como objetivos:

  • desconstruir os mitos criados pela ideologia colonial;
  • descolonizar os imaginários portugueses;
  • e contribuir, de forma pedagógica e acessível, para uma renovação do conhecimento sobre a questão colonial portuguesa.

(vi) dois eixos centrais estruturam a narrativa da exposição:

  • o primeiro eixo organiza-se em painéis temáticos, nos quais texto e imagem se articulam, pondo em evidência as linhas de força do colonialismo português dos séculos XIX e XX, e dando a palavra ao conhecimento histórico;
  •  o segundo eixo pretende “fazer falar” as obras de arte africanas, como evidências materiais do pensamento e da cultura africanas, evidenciando a complexidade organizativa dos sistemas sociais e culturais destas sociedades, permitindo mostrar a criatividade, a vitalidade, a sabedoria, a racionalidade, a diversidade identitária e as competências africanas e contribuindo para evidenciar e desconstruir a natureza falsificadora dos mitos coloniais portugueses.

(vii) este segundo eixo da exposição é constituído por uma seleção de 139 obras, repartidas entre coleções do Museu Nacional de Etnologia, incluindo algumas peças em depósito da Fundação Calouste Gulbenkian e do colecionador Francisco Capelo, e obras de arte africana contemporânea dos artistas Lívio de Morais, Hilaire Balu Kuyangiko e Mónica de Miranda;

(viii) realizada no âmbito das Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, este projeto resulta das pesquisas desenvolvidas pela equipa de cerca de trinta investigadores que nele colaboraram, tendo igualmente contado com o indispensável contributo de muitas entidades, nacionais e estrangeiras, que cederam a profusa documentação iconográfica apresentada nos painéis explicativos em torno dos quais se desenvolve a narrativa da exposição:

(ix) a Comissão Executiva da Exposição é presidida por Isabel Castro Henriques e integrada por Inocência Mata, Joana Pereira Leite, João Moreira da Silva, Luca Fazzini e Mariana Castro Henriques, e a sua Comissão Científica, igualmente presidida por Isabel Castro Henriques, é constituída por 20 elementos, entre os quais António Pinto Ribeiro, Aurora Almada Santos, Elsa Peralta, Isabel do Carmo e José Neves;

(x) a museografia, instalação e apresentação ao público da totalidade das obras das coleções do Museu Nacional de Etnologia foi assegurada pela própria equipa do Museu, que igualmente assegurou a produção da exposição, com a colaboração da equipa da Museus e Monumentos de Portugal, E.P.E; 

(xi) o Projeto Expositivo e de Comunicação da exposição é da autoria do P 06 studio.

(xii) de entre o programa paralelo a desenvolver entre 2024 e 2025 no âmbito deste projeto, destaca-se-se a realização de exposição itinerante, de caráter exclusivamente documental, que circulará por escolas e centros culturais em Portugal, assim como em diversos espaços de língua portuguesa, em África e no Brasil;

(xiii) ainda em 2024 terá início, no âmbito desse programa paralelo, o ciclo Cinema e Descolonização, com projeções de filmes relacionados com a realidade pós-colonial, a decorrer no ISEG e no Museu Nacional de Etnologia, encontrando-se prevista a realização de outras ações de caráter científico, nomeadamente Conferências e Colóquios, também em parceria com outras entidades;

(xiv) a  realização da exposição é acompanhada pela edição de livro homónimo, publicado pelas Edições Colibri, em cujas 344 páginas os c. de trinta investigadores que colaboraram neste projeto,  desenvolvem os vários temas abordados. (A 2ª edição, revista e aumentada, saiu em maio de 2025, e tem 360 pp.).

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Notas do editor LG:

(*) Último poste da série : 24 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27350: Agenda Cultural (869): António Graça de Abreu, "Conversas Sábias: Os fascínios de uma grande cidade, Pequim"... 30 de outubro, quinta-feira, 17:30, Auditório do Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM)

/**) Vd.postes de:

10 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26789: Os 50 Anos do 25 de Abril (38): Lisboa, Belém, Museu de Etnologia, até 2/11/2025: Exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades" - Parte V

10 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26789: Os 50 Anos do 25 de Abril (38): Lisboa, Belém, Museu de Etnologia, até 2/11/2025: Exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades" - Parte IV

 23 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26608: Os 50 Anos do 25 de Abril (37): Lisboa, Belém, Museu de Etnologia, até 2/11/2025: Exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades" - Parte III

15 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26499: Os 50 Anos do 25 de Abril (36): Lisboa, Belém, Museu de Etnologia, até 2/11/2025: Exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades" - Parte II


Guiné 61/74 - P27405: Parabéns a você (2431): Jorge Araújo, ex-Fur Mil Op Especiais da CART 3494/BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/74)

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Nota do editor

Último post da série de 9 de Novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27403: Parabéns a você (2430): António da Costa Maria, ex-Fur Mil Cav do ERec 2640 (Bafatá, 1969/71); António João Sampaio, ex-Alf Mil da CCAÇ 15 e ex-Cap Mil - CMDT da CCAÇ 4942/72 (Mansoa, Barro e Bigene, 1973/74) e João Alves Martins, ex-Alf Mil Art do BAC 1 (Piche, Bedanda e Guieje, 1967/70)

domingo, 9 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27404: Manuscrito(s) (Luís Graça) (278): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara, pseudónimo literário de José António Bóia Paradela (1937-2023), ilhavense, urbanista, arquiteto e escritor - Parte III: A Cila Paciência


S/l > 1955 > Alguns dos bravos marinheiros e pescadores que embarcam no "Lousado" em abril de 1955. Na segunda fila, ao centro, o terceiro a contar da esquerda, assinalado a amarelo, é o nosso querido e saudoso Zé António Paradela...

Foto (e legenda):  © José António Paradela (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


O Verde 

No dia em que, “verde”, me puseram entre tábuas
De um catafalco a que chamaram bote
E me disseram: "Salta, esquece as mágoas"…
Senti, looongo, na garganta um garrote!

Primaveril, meu coração bateu mais forte,
Ao cair na onda junto ao costado,
E remei, como quem enxota a morte,
De dentro do meu “fato oleado”.


“Senta-te, Zé, e rema enquanto a força durar!
Tens pão e peixe, e tens também café quente!
Segue-me quando o meu búzio roncar…”

Disse o “maduro”, comovido, ao ver-me imberbe,
Estendendo as linhas na corrente,
Junto à fria palidez do terrível icebergue.


In: Ábio de Lápara -"Santinhas de Apegar: Textos Poéticos" (2017, ed. de autor), pág. 75.

Nota de LG: "Verde" é o pescador ou marinheiro da frota branca, a frota bacalhoeiro, embarcado pela primeira vez; equivalente a "periquito" na tropa e na guerra da Guiné


 

Capa do livro "A Rua Suspensa dos Olhos" de Ábio de Lápara (edição de autor, José A. Paradela, Aveiro, 2015, 164 pp.) (*)...


Ábio de Lápara é o pseudónimo literário de José António Bóia Paradela (1937-2023), ilhavense, urbanista, arquiteto e escritor
 


Excertos de "A Rua Suspensa dos Olhos" - Parte III: A Cila Paciência


por Ábio de Lápara / José António Paradela
(1937-2023)



Chamo-me Ábio e sou uma criança de aspecto frágil e olhos grandes, com vontade de aspirar nuvens ou rasgar horizontes. Passo o tempo nas margens da água a correr atrás de arco-íris que nunca alcanço. Por isso gosto das tintas pastel e tenho uma maneira muito minha de olhar para as coisas.

Nasci gordinho, mas ultimamente o meu corpo afilou. Por aqui, os miasmas do vale atacam duro, com maleitas inomináveis. Dizem os sobreviventes:

Teria feito 88 anos no passado

dia 30 de outubro . Nasceu em
Ílhavo em 1937. Morreu no hospital,
em Aveiro, em 2023. Membro da
Tabanca Grande. Fez a tropa
na marinha de guerra e antes,
em 1955, pesca do
bacalhau, seguindo os passos
dos seus avoengos.



 — Foi um malzinho desconhecido que o atacou...

O fantasma da tísica perfila-se teimoso há muitos anos, matando músicos e poetas cujas obras tiveram o condão de transformar o bacilo em agente do romantismo. De si próprios e dos seus personagens.

Porém os pobres que cá moram não escrevem; e de música... só cantam de ouvido. Sendo assim, a tísica é para eles um modo natural de acabar os dias. Talvez à maneira curta, mas tão natural que continuam a conviver entre todos, no meio da tosse e das hemoptises:

— Coitadinho! Já não falta muito para entregar a alma ao criador... — dizem os que vão ficando.


E enquanto tarda a invenção dos remédios para esta secular maleita, alguns surtos de pestes estranhas transformam o cemitério em jardim, segundo o antigo costume deste povo, que para o efeito cultiva longos canteiros de sécias e crisântemos nas bermas dos seus quintais.

Por aqui, meus amigos, a morte está presente no quotidiano, na sala de cada um, onde os vizinhos e os amigos se vem despedir e carpir, até que o padre venha encomendar a alma e o caixão se feche para ser transportado à tumba húmida... Nada de trágico, pois a vida continua calmamente no dia seguinte.

Os que resistem, são o garante da continuidade do Beco e do Pátio dos Ressoeiros. Entre esses vai ficar este vosso amigo, para contar a estória ao fim de tantos anos.

Mas ficou sobretudo uma mulher. Uma mulher chamada Cila Paciência. De figura muito seca, vestida sempre de negro, com filhos de nomes medievais: Victor, Joaquim, Deolinda, António... Nada de Melissas nem de Vanessas.

Era casada nesse tempo com um homem e com um gato. Ambos amigos do alheio. Ele chamado José... José "Ressoeiro". O gato, de cor parda, tinha um nome que hoje nos parece óbvio: "Tareco".

José passou grande parte da vida na cadeia: entrava por um ano, saía por algum tempo, que dedicava à chincha (#) na Ria, e pouco depois já se tinha metido em zaragatas ou fizera mão baixa a umas ferramentas ou outras coisas de insignificante porte... E lá ia novamente para o chelindró, em Aveiro, nos calabouços do Governo Civil, que a guarda republicana não era meiga.

Aí carpinteirava brinquedos de madeira que mandava para os filhos ou para a mulher vender a troco de uns tostões. Pelo final dos anos quarenta, morreu tuberculoso.

O gato seguiu-lhe as pisadas! Aproveitava as distracções dos vizinhos para assaltar as parcas comidas sobrantes ou em vias de serem cozinhadas, apesar da Cila não lhe faltar com os restos de peixe que diariamente trazia da praça. Estava-lhe na massa do sangue. A sua fome parecia insaciável. Bastava que uma vizinha afiasse uma faca na soleira da porta, e aí estava ele, ofegante da corrida, bigodes expectantes, imaginando tripas do peixe amanhado voando da faca para o chão do Beco!

Um dia, um dos ilustres habitantes do pátio, o Ismael — outro nome de cheiro antigo  — que defendia vigorosamente o seu pecúlio alimentar dos ratos e das moscas que com ele cohabitavam, não lhe perdoou subtracções passadas. Vi eu com os meus olhos esbugalhados de criança, numa bela manhã de sol; lembro-me como se fosse hoje. Única testemunha, só agora vos conto, porque se o tivesse feito então, lá se ia a amizade do Ismael como se foi a do gato! E, para além disso, a sarrabulhada que não seria lá pelo Beco!

O "Tareco" foi por ele cruamente apedrejado. Uma só pedra de grande tamanho esmagou o pequeno crânio abigodado contra uma parede. O "Tareco", sem um gemido, correu num ziguezague estonteado na direcção das terras lavradas, para o ignoto sítio onde morrem os gatos vadios e nunca mais lhe pus a vista em cima.

Não sei quantas vidas teve depois, tal como não sei quantas terá tido antes porque os gatos têm direito a sete, mas sei que esta incerteza serviu para aliviar o meu luto. Eis,  pois,  o cenário limite onde todos os seres eram marginais, na fronteira entre a morte certa e a vida permanentemente ameaçada.

Era aí que a Cila se movia lançando pontes aos que estavam em risco de se afogar. A partir apenas da sua força congénita, do seu aço estrutural de rija têmpera, lutando sozinha para sustentar quatro filhos, mais dois sobrinhos órfãos e apoiar ainda vizinhos e animais necessitados.

Naquele pátio, embora fossem bens escassos, ou por isso mesmo, o pão era pão e o queijo era queijo. Não havia classes mais favorecidas nem menos favorecidas. Esses eufemismos foram inventados muito mais tarde porque ali ninguém era favorecido, fosse muito ou fosse pouco. As classes sociais já eram assim quando todos nasceram : ricos, pobres e remediados. E se um dia alguém mais ilustrado lhes dissesse que eram "lumpen", levava por certo uma carga de porrada.

As ideias políticas eram coisas de senhores importantes, como o Dr. Calisto, que morava ali ao lado e lhes pedia que lhe enchessem os pneus do automóvel com a bomba manual! Quando a Pide o levava preso,  ninguém se questionava, porque os céus do Beco estavam inundados de belos sons.

A sobrinha da Cila, cujo nome só por si valia um jardim, Rosa Cravo, cantava permanentemente e em sonora voz, os amalianos fados de então:

— Fado é sorte, desde o berço até à morte, ninguém foge por mais forte, ao destino que Deus dá!...

E o assunto ficava assim resolvido!

O Júlio, o outro sobrinho, envolvido em românticas paixões, morreu novo no meio de hemoptises, depois de ter regressado do sanatório do Caramulo. O mesmo acabou por acontecer mais tarde à Rosa cantora, gasta de amores como personagem de romance em que o real transcendeu a ficção.

Dos filhos recordo o som das vozes nas tardes de silêncio, e a luta pela sobrevivência, onde a escola era um estorvo porque não permitia que fossem ao mato buscar lenha para angariar algum sustento. Quando chegou a idade de verem o "homem das barbas brancas", lá foram.

O mais velho, para a pesca do bacalhau, o mais novo, que fora meu colega na escola primária, para a pesca costeira. Durante anos encontrava-o quando visitava os meus pais, sentado no meio do pátio, fogareiro aceso e garrafa do vinho ao lado:

— Senta-te aqui, Ábio, e come comigo. Peixe assado não tem dono...

O Joaquim, há muito que pesca carapau no Mar da Tranquilidade...

E o do meio? Bem, esse ... Chamava-se António mas era conhecido por "Guinho". Não o recordo brincando, nem sequer consigo imaginá-lo de pé. Uma tuberculose óssea atirou-o para uma cama do hospital e, quando regressou a casa com o corpo forrado de escaras, apenas mexia ligeiramente a cabeça e a mão direita, colocada perto do rosto para conseguir empurrar alguma comida para a boca.

Naquela posição, inerte como uma múmia, sempre envolvido em alvos lençóis  que a Cila nisso não facilitava — o seu catre estava colocado na área comum da casa , frente à porta sempre aberta para que pudesse pedir a ajuda dos vizinhos, e ver quem ia passando no Beco, enquanto ela fazia os leilões do peixe da Ria no antigo mercado da vila.

 — Eh, senhora Rosinha, pode dar-me um copinho de água?! — pedia ele à minha mãe.

O silêncio de então, agora difícil de imaginar, permitia que a sua voz atravessasse o Beco e o pátio e a sua sede fosse satisfeita. Quando chegou a sua hora, morreu. Eu já por ali não vivia.

Estas são estórias que compõem a história da Cila Paciência. Este não era o seu nome, mas era assim que a chamavam. Como no antigo Egito, um nome para responder perante os deuses.

Uma mulher de fraca estatura que carregou as desgraças de uma família inteira, a quem eu lia as cartas que recebia de familiares de Matosinhos, ou do filho ausente na pesca do bacalhau. E que transportava ao colo os filhos dos vizinhos quando a solidariedade se impunha à sua escufenada consciência.

Muito haveria ainda a contar, mas não os quero cansar com mais tristezas. O Rimifon e as Sulfamidas estavam prestes a chegar à farmácia do "Manéuzinho", e a tísica pouco a pouco desapareceu do Beco.

Não sei que idade tinha a Cila quando a atropelaram no regresso do mercado. Inválida, não resistiu à inacção por muito mais tempo.

Deixou uma filha e um filho. O mais velho e a mais nova. Provavelmente, alguns netos.

Soube disto pela minha mãe, há cerca de trinta anos.

Disseram-me há poucos dias, que Domingos Paciência, jogador e treinador de futebol, é neto do seu irmão que viveu em Matosinhos. Aquele de quem eu lhe lia as cartas!


Costa Nova, Novembro de 2011


Fonte: Excertos do manuscrito , em pdf, de "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara, que ajudei a rever em 2015, antes da execução gráfica do livro com o mesmo nome. Recorri de momento ao manuscrito por não ter aqui à mão um exemplar do livro em papel.

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG) (**)
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Nota de LG:

(#) Pesca na ria de Aveiro com  rede de arrastar para a praia, chamada chincha ou chinchorro.


2. Nota do editor LG > Tuberculose pulmonar  (ou "tísica) em Portugal


Durante o século XX, a tuberculose pulmonar (vulgo,  "tísica") foi uma das principais causas de morbimortalidade em Portugal, refletindo condições sociais, económicas e sanitárias adversas, sobretudo nas primeiras décadas do século. 

Era uma doença associada à pobreza, às más condições de vida, de habitaçáo, de trabalho,  de higiene (pessoal e ambiental), e à subnutrição.E, claro, a um incipiente sistema de saúde.

Tal como a mortalidade infantil. O Zé António nasceu em 1937. E eu em 1947. Nessa altura, a tuberculose era endémica em Portugal, com altas taxas de incidência e mortalidade. Tal como a mort6alidade infantil: morriam 120 crianças, até a um ano, em cada mil, em 1945. 

No existiam tratamentos eficazes:  o isolamento em sanatórios (como o Sanatório do Caramulo, inaugurado em 1921) era a principal medida terapèutica.

Estima-se que, até aos anos 30/40 a tuberculose fosse responsável por cerca de 10% das mortes totais em Portugal.

Irá tornar-se na doença social por excelência, vitimando de preferência os mais jovens e os oriundos das classes trabalhadoras (pescadores e marinheiros incluídos). Chamavam-lhe o mal proletário, mas também peste branca, por analogia com a peste negra. Em meados do Séc. XIX, um em cada dez falecimentos ocorridos no Hospital de S. José era atribuído à tuberculose.

A tuberculose é uma doença infeciosa causada pelo Mycobacterium tuberculosis complex. A forma pulmonar é mais frequente e aquela mais temida pela saúde pública, já que o doente, com tuberculose da via aérea, pode mais facilmente contaminar as pessoas com quem interage, através dos bacilos que liberta através da tosse, da expetoração, da fala, etc,

Com o início da industrialização e o crescimento das cidades, no séc. XVIII, tornou-se epidémica, na Europa, atingindo não só a emergente classe trabalhadora,  assalariada, que veio do campo para a cidade, para trabalhar nas oficinas, manufaturas e fábricas, como também as camadas mais abastadas e as próprias elites.

A doença atingia sobretudo os jovens adultos, nomeadamente trabalhadores, mas não poupava nem príncipes nem princesas... Era  elevadíssima a mortalidade (entre 300 e 400 por 100 mil habitantes, e nalgumas cidades o dobro). Mas, enquanto noutros países, a taxa de mortalidade por tuberculose começou a baixar, lenta mas persistentemente, em Portugal mantinha-se alta nos finais do séc. XIX.

O total de mortes por tuberculose, nos finais do séc. XIX; era estimado em 15 a 20 mil (o equivalente a uma taxa de cerca de 300 a 400 por 100 mil habitantes). Era a segunda causa de morte em Portugal (e vai manter-se nessa posição até à II Guerra Mundial).

Só em 1882 foi identificado, pelo alemão Koch, o bacilo, causador da doença, mas só 65 anos depois, em 1947, é que surgirá um tratamento eficaz, a estreptomicina, isolada em 1943 pelos investigadores A. Schatz, E. Bugie e S.Waksman. A imunização (pela vacinação BCG) só passará, entretanto, a ser usada em grande escala a partir de 1954, ou seja, numa altura em que a mortalidade por tuberculose já estava reduzida a uma pequena parte do que fora cem anos antes (cerca de 400 por 100 mil). A nossa geração foi a primeira a beneficiar desta vacina, um passo enorme dado pela nossa saúde pública!

As primeiras seis ou sete décadas do séc. XX são dominadas pelo “movimento dos sanatórios” que foi em grande parte uma iniciativa alimentada pela filantropia privada, sendo justo destacar o papel da rainha Dona Amélia que soube mobilizar conhecimentos, competências, influências e recursos financeiros para prevenir e combater a tuberculose, criando-se logo em 1899 a ANT – Associação Nacional aos Tuberculosos, com o objetivo explícito de construir hospitais marítimos para crianças, sanatórios de altitude para tuberculosos curáveis, hospitais para internamento de doentes incuráveis e dispensários para diagnóstico prevenção, administração de cuidados ambulatórios e apoio médico-social.

O movimento teve inegável projeção política e social, inaugurando-se logo nos primeiros anos, cinco sanatórios: 2 marítimos como o do Outão (1900) e o de Carcavelos (1902), 1 de montanha (Guarda, 1907) e 2 de planície, o do Lumiar (1912) e do Portalegre. São também abertos os primeiros dispensários, não só em Lisboa (1901 e 1906), como em Bragança (1902), Porto, Faro e Braga (1903), Viana do Castelo (1905)…

O “regicídio” (1908), a implantação da República (1910) e o exílio da família real vão ter, necessariamente, um impacto negativo na ação da ANT, que ganha um novo fôlego nos anos 30. Surgem, entretanto, outras iniciativas, de privados e empresas (como a CP - Caminhos de Ferro de Portugal).

O problema da tuberculose agrava-se com o regresso do Corpo Expedicionário Português que participara na I Grande Guerra. Nesta segunda fase da luta antituberculosa, há uma instituição que merece especial destaque, a Estância Sanatorial do Caramulo, obra de um homem visionário, o médico e empresário Jerónimo de Lacerda (Coimbra, 1889 – Lisboa, 1945). Se,m esquecer, o seu diretor científico (a partir de 1938), Manuel Tapia (um médico catalão fugido a Guerra Civil Espanhola). 

Chegou a ser o maior da península ibérica, com 20 sanatórios, 1100 camas...

Em 1930, registavam-se 13010 mortes, uma cifra brutal!... Em 1939, existiam 34 sanatórios e 83 dispensários, para além de outros estabelecimentos, espalhados por todo país.

O Estado só chama a si a liderança da luta contra a tuberculose em 1945 com a criação do Instituto de Assistência Nacional aos Tuberculosos (IANT), mas já no ocaso do movimento. A partir de meados dos anos 50, os sanatórios começam a fechar, mas subsistem graves problemas de recuperação e de integração social, familiar e profissional. Os diversos equipamentos do imenso parque sanatorial construído ao longo de meio século, e alguns com risco de notáveis arquitetos (Cotineli Telo, Raul Lino, etc.) , tiveram destinos diferentes, uma parte tendo sido reconvertido e fazendo hoje parte do nosso parque de saúde.

No séc.  XXI registou-.se uma diminuição de cerca 40% da taxa de notificação e de incidência de tuberculose, com valores de incidência abaixo dos 20/100.000 habitantes desde 2015.



Capa do livro "Saúde", volume nº 29, da coleção "Memória de Portugal: 2 séculos de fotografia" (Lisboa, Atlântico Press, 2020, 64 pp).

O texto do livro "Saúde: o longo caminho do progresso",é da autoria do nosso editor Luís Graça, e foi escrito em plena pandemia, entre 15 de maio e 15 de junho do corrente, "em contrarrelógio". É ilustrado por cerca de meia centena de fotografias (também legendadas por ele).

Índice: Prefácio (de António Barros Veloso): heróis ignorados: pp. 5 | O longo caminho do progresso: pp. 6-7 | Tempo de pioneiros: o grande desafio da saúde pública; pp. 8- 25 | Nascer e morrer: epidemias e doenças da pobreza: pp. 26-43 | Direito universal: Século XX consagra a «saúde para todos»: pp. 44-67.

Guiné 61/74 - P27403: Parabéns a você (2430): António da Costa Maria, ex-Fur Mil Cav do ERec 2640 (Bafatá, 1969/71); António João Sampaio, ex-Alf Mil da CCAÇ 15 e ex-Cap Mil - CMDT da CCAÇ 4942/72 (Mansoa, Barro e Bigene, 1973/74) e João Alves Martins, ex-Alf Mil Art do BAC 1 (Piche, Bedanda e Guieje, 1967/70)

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Nota do editor

Último post da série de 3 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27380: Parabéns a você (2429): Tenente-General PilAv Ref António Martins de Matos, ex-Tenente PilAv da BA 12 (Bissau, 1972/74)