quarta-feira, 23 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9939: Efemérides (93): A Operação Ametista Real foi há 39 anos (António Dâmaso)

1. Mensagem do nosso camarada António Dâmaso (Sargento-Mor Pára-quedista do BCP 12, na situação de Reforma Extraordinária) com data de 23 de Maio de 2012:

Aos Camaradas Luís Graça CO-EDITORES, envio as minhas saudações.
Desde há 39 anos que a data 23 de Maio tem sido uma muito difícil para mim. Significou morte e um trauma muito grande, tão grande que tenho muita dificuldade de falar sobre o assunto, isto apesar de ter uma neta que há 14 anos nasceu a 23 de Maio, o que representa vida.
Tenho alguns apontamentos, muitos com mais de 30 anos que peço para analisarem, editarem e publicarem se entenderem.

Um Ab
A. Dâmaso


OPERAÇÃO AMETISTA REAL

Em 17MAI73 cerca das 17H00, a minha Companhia - CCP 121 -, juntamente com o BAT Comandos Africanos, embarcou no cais de Bissau na LDG (Lancha de desembarque grande) 201 BOMBARDA, com destino a Bigene. Esta lancha tinha um tripulante conterrâneo que não ma deixou “passar sede”, íamos como sardinha em lata, fui para a ponte estendi o colchão pneumático, mas não consegui dormir por causa do ruído das máquinas e da trepidação. Nesta operação a minha função foi de Comandante interino do 3.º GComb e nunca me passou pela cabeça, que uma Operação aparentemente simples de 3 ou 4 dias se ia tornar nos 15 dias que foram o maior tormento da minha vida.

Levámos a noite toda e parte do dia seguinte a navegar, estivemos a fazer um compasso de espera na foz do rio Cacheu, não me apercebi se tinha a ver com marés, ou se foi para só chegar a Bigene perto do anoitecer, abicámos no porto de Ganturé ao meio da tarde e dirigimo-nos a pé até ao aquartelamento de Bigene. No caminho cruzámo-nos com elementos da CCP 123, que se dirigiam ao porto depois terem andado em operação na zona. Chegámos a Bigene perto do pôr do sol.

Os Comandos Africanos seguiram em frente em direcção ao Senegal e nós ficámos na parada de Bigene, comemos a ração de combate da ordem e preparámo-nos para passar a noite ali, ao meu pelotão calhou ali mesmo num canto da Parada em terreno limpo, liso e descoberto.

Depois de anoitecer, não posso precisar a hora, rebenta uma violenta flagelação ao aquartelamento com armas pesadas, e lá estávamos nós, alapados ao chão, rezando para que nenhuma granada nos caísse em cima, foi por pouco, uma caiu a escassos metros do meu pelotão espalhando uma saraivada de terra e pedras para cima de nós. Sempre que pernoitava em operações, colocava o equipamento à frente da cabeça, o que me protegeu porque no dia seguinte descobri vários furos nas cartucheiras

No dia 19 quando começou a clarear, seguimos em direcção à fronteira que ficava a cerca de 6Km. Chegados a esta, virámos à esquerda, seguimos pela picada da mesma, passando pelo marco de fronteira 129, mais um pouco à frente virámos novamente à esquerda, caminhámos nessa direcção entre 200 e 800 metros, e emboscámos no cumprimento da missão que nos estava reservada que era manter um Corredor de segurança para uma possível evacuação sanitária via Héli, entre Neneco e Bigene.

Cerca das oito horas ouvimos do outro lado da fronteira os bombardeamentos dos Fiat G 91, assim como os rebentamentos dos combates que se prolongaram até meio da tarde. Perto do pôr do sol regressámos a Bigene, nesse dia tivemos direito a uma refeição quente.

De novo preparámo-nos para passar a noite na parada e mais ou menos à mesma hora do dia anterior, mais uma violenta flagelação com armas pesadas, desta vez não caiu nenhuma perto de nós.

Havia um oficial do Exército que andava num jipe de luzes acesas, em alta velocidade de um lado para outro, fiquei sem saber qual a lógica de tal atitude, mas não interessava porque naquela guerra, o que mais se via eram coisas ilógicas, como já tinha visto em 1969 em Galomaro um Tenente andar de pistola em punho a atirar aos cães para os assustar.

Dali para a frente, os ataques/flagelações iriam fazer parte do nosso dia-a-dia.

No dia 20 fizemos o mesmo trajecto do dia anterior, fomos emboscar mais ou menos no mesmo sítio, à tarde regressamos e seguimos em viaturas para o porto de Ganturé onde embarcámos juntamente com alguns Comandos Africanos num navio patrulha, vim a saber no mesmo que se destinava a Binta.

Um Ab
A. Dâmaso

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9937: Efemérides (58): Guidaje foi há 39 anos... Alguns pequenos reparos e a minha homenagem a Amílcar Mendes, Daniel Matos e Victor Tavares (Manuel Marinho)

Sore a Op Ametista Real ver aqui mais postes.

Guiné 63/74 - P9938: Cartas do meu avô (5): Segunda Carta: Em Catió (Parte IV) (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

A. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria do nosso camarigo Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió

que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66, vivendo presentemente em Berlim.

B. SEGUNDA CARTA – EM CATIÓ (PARTE IV) (*)

Lichtenrade, Berlim, 14 de Março de 2012

6- Da Tormenta à Bonança

Ao cabo de uns meses, as cartas do Funchal começaram a rarear. Como é natural. Em vez delas, as de Lisboa chegavam certas.

A ansiedade pela avioneta do correio começava a crescer. Virá alguma ou não ? Sentia um verdadeiro deleite em ler cada uma que chegava.

O castelo delas ia subindo de altura, perto da cabeceira. Ia-as relendo e saboreando no intervalo de cada vinda da avioneta. Falavam-me da vida serena e pacata duma família aburguesada com os hábitos de Lisboa. As belezas de Sintra [, foto à direita, Palácio Nacional, postal antigo, fonte desconhecida, ] e Cascais que eu conhecia mal,  vinham descritas com mestria, ao contar os passeios de Sábado ou de Domingo, com os pais. Vila Franca e Salvaterra. Alcácer e Setúbal. Ficaram indelevelmente gravados na minha fantasia, como sítios onde teria de ir, uma vez regressado.

As peripécias do curso de biologia e aquele mundo imaginário da universidade, onde eu gostaria de ter entrado já. Histórias do seu gato preto, à mistura com as dos garotos da catequese. Aquelas tricas que há sempre dentro da família. A da Avó que, embora sempre “atrelada” aos passos da família, para todo lado onde fosse, ela ali estava, e no entanto, os mimos e galanteios iam todos para o tio. Que não lhe ligava um chavo…

As idas ao cinema com os pais, decididas de repente ao fim do jantar em dias de semana. Os serões que os pais faziam – ambos eram versados na arte das contabilidades – fora no Instituto Comercial que se conheceram - para darem conta das escritas dos clientes. Para ganharem mais algum. O soldo militar era religiosamente baixo. Por entendimento oblíquo do Salazar. Entendia o mago que o que faltava ao soldo, recebia-o no elevado benefício do estatuto militar… Os militares tinham a obrigação de casar ricos… Para isso usavam farda.

As minhas cartas eram tiradas a ferros. Sentia cá uma dificuldade enorme em redigi-las. Porque, tinham de ficar muito bem construídas. A naturalidade própria da escrita epistolar era-me inacessível. Sentia muita dificuldade em deixar correr a caneta. Mas porque a obrigação “ oblige”… por vezes, ficava até às tantas … Era um parto muito doloroso.



Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Vila de Catió >  Foto 16 - "Uma vista tirada da Rotunda, onde se vê uma DO-27 sobrevoando a zona do quartel, à direita a zona da antiga messe de oficiais e a antena dos Correios à esquerda".



Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do nosso saudoso  Victor Condeço  (1943-2010) > Vila de Catió >  Foto 17 > " Foto tirada da torre da Igreja no sentido do Quartel, vendo-se o depósito de água deste, a torre dos Correios, em baixo a rua das Palmeiras".




Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Quartel > Foto 32 > "Cerimónia militar em Fevereiro de 1968. Militares, civis da administração, correios e comerciantes. Da esquerda para a direita, [?], de costas o cap médico Morais, o comandante, ten cor Abílio Santiago Cardoso, quatro funcionários dos Correios e Administração, os comerciantes Srs. José Saad e filha, Mota, Dantas e filha, Barros, depois o electricista civil Jerónimo, e o alf mil capelão Horácio [Neto Fernandes]".






Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Quartel > Foto 3A > "Vista aérea da Rotunda e Avenida de Catió antes de 1967. O edifício à esquerda na foto era a escola primária que em 1967 já tinha sido modificado".

Fotos (e legendas) de Catió: Victor Condeço (1943/2010) / © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Todos os direitos reservados


Ainda hoje, quando me dá para as reler, do maço em que estão religiosamente guardadas, ali na gaveta da escrivaninha, vejo bem retratado o esforço de as escrever. E lembro-me muito bem do lugar e quando as escrevi… O entusiasmo recíproco era crescente. Havia entre ambos uma empatia indiscutível. Cada um de sua parte, interrogava-se sobre o que aconteceria, após o regresso, se ele viesse a verificar-se.

A mãe dela- confessou-mo ela depois- andava tão preocupada com o entusiasmo que via nela, que lhe perguntou:
- Olha lá,  filha. E se, entretanto, te aparece algum rapaz que goste de ti?...
- Que lhe respondeste? - perguntei eu,  a brincar.
- Que isso não me preocupa. O que tiver de ser,  será.

O á-vontade entre ambos foi se firmando com os meses decorridos. A tal ponto que alguém sugeriu, não me lembro quem e como, que seria bom partilharmos uma fotografia.
Eu mandei-lhe uma em que estava vestido com um “bonito” pijama azul comprado no mercado dos sirianos [, na loja do sr. Saad].

Fiquei à espera da dela. Com muita curiosidade, como é de supor. Qual não foi o meu desapontamento, quando, certa manhã, ao abrir uma carta dei de caras com uma foto, tipo passe, via-se um pouco do tronco ao nível do peito e dos ombros, uma golita branca a sair sobre uma camisola de lã feita pela mãe, à mão, e o rosto muito vivaço duma mocita de treze ou catorze anos!..



Confesso que fiquei desiludido e desnorteado. Nunca imaginei ser isso possível.
- Pronto. Mais um pontapé que me deram à falsa fé… Só pode estar a gozar comigo…

Coincidiu com a licença que o capitão me concedeu para ir a Bissau, tratar dos dentes – um salutar pretexto bem conhecido, para se passar uns dias fora da guerra. Bissau era uma metrópole africana, segura e cosmopolita. Para se passar umas ricas férias.

Entretanto a comissão ia decorrendo. Fui toda a viagem de avioneta,  ensimesmado. A olhar para a foto, de vez em quando.
- Só pode ser uma partida. Mas se é… diz muito mal dela…- pensava eu.

Nem deu para saborear a esfusiante beleza natural do emaranhado verde das bolanhas, matas com os rios em serpente, que se vê lá de cima, durante a meia hora até Bissau.

Os primeiros dias de Bissau foram soturnos. À procura duma explicação plausível. Não a encontrava. Só descansei quando resolvi deitar tudo para trás das costas e aproveitar bem aqueles parcos dias de libertação.
– Vou deixar de escrever-lhe e pronto. Ela, se estiver interessada, há-de explicar tudo muito bem.

Voltava de novo ao ponto de partida. Foi o que fiz melhor. 

Quando regressei a Catió, tinha umas duas ou três cartas. Numa delas vinha uma fotografia. Essa sim. Duma moça viçosa, duns vinte e tal anos. Um rosto duma beleza de linhas, fora do trivial, muito expressiva. E o corpo também. Não era uma boneca banal e estilizada. Tinha garra. Sinceramente agradou-me.
- Então porque mandou a outra, mais que ultrapassada?

A explicação vinha numa das cartas seguintes, à que trazia a foto. Como eu não dava sinal de mim, ela viu-se na necessidade de explicar. Aquilo fora uma reacção sua à minha ideia extravagante de eu ter mandado uma fotografia em pijama…

Na realidade, eu havia-o feito sem qualquer intenção. Não me passou pela cabeça a confusão que iria causar. Caí em mim, aceitei a reacção e pedi-lhe desculpa.

Tudo se recompôs a partir daí. Leviandades de quem é novato…mas não haviam de ficar por aí.

Em Catió havia um posto de correio público. Era vulgar ver por lá a gente nativa em altos berros a falar ao telefone com os faseus familiares doutras regiões da Guiné. Certo dia, deu-me a triste ideia de pedir uma ligação para Lisboa. Ela tinha-me dado o número não sei porquê. Ficava-se à espera tempos infindos que as ligações estivessem feitas.
Mal pensava eu enquanto esperava, o sarilho que havia desencadeado em casa dela…
- Uma chamada da Guiné? - Perguntou a Mãe, à pessoa dos telefones que a fez anunciar.

A Mãe ficou estarrecida. Se calhar há más notícias. O moço morreu. E agora? Chamo ou não chamo a A.T.?... Depois de uns instantes de intensa comoção, chamou-a. Ali apareci eu,  todo prazenteiro e descontraído, pelo menos em relação ao temporal que, sem dar conta, causara naquela casa.
- Apeteceu-me ouvir a sua voz!...- foi a ingénua explicação.

Só mais tarde, quando cirandávamos a namorar pelas ruas de Lisboa,  ela relatou o pesadelo que eu lhes tinha dado…

(Continua)
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Nota do editor:

(*) Vd. último poste da série > 16 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9910: Cartas do meu avô (4): Segunda Carta: Em Catió (Parte III) (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

Guiné 63/74 - P9937: Efemérides (92): Guidaje foi há 39 anos... Alguns pequenos reparos e a minha homenagem a Amílcar Mendes, Daniel Matos e Victor Tavares (Manuel Marinho)


1. Comentário do nosso camarada Manuel Marinho ao poste P9934 (*) [Foto à esquerdaManuel Marinho, ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74]:


Camaradas

Estes acontecimentos, referentes a Guidaje, carecem apenas de pequenos reparos já feitos no excepcional trabalho do malogrado Daniel Matos mas que volto referir pois penso que o Daniel estava na disposição de retocar o seu extenso texto quando foi atraiçoado pela doença que o viria a vitimar.

Quanto ao Vítor Tavares, da “grande” CCP 121, apenas quero dizer que ele é um dos “causadores” da minha entrada no blogue a par do Amílcar Mendes, da 38ª Ccmds, um grande abraço para eles, e o meu reconhecimento destas duas Companhias de Intervenção na resolução do cerco a Guidaje.

Agora os reparos:

(i) A 22 [de maio de 1973] não existem colunas, apenas dia 23 (5ª coluna); depois da coluna ter abortado por ordem do Cmdt Correia de Campos, apenas a CCP 121 segue para lá [, Guidaje].

(ii) Nessa coluna os mortos referenciados pelo Daniel (Fur Arnaldo Marques Bento e Sold Lassana Calissa) morrem em combate no dia 9 Maio, na 1ª coluna, e são da 14ª Ccaç de Farim.

(iii) No relatório desta coluna Binta-Guidaje, da autoria do Alf Joaquim Gomes Rebelo, ele afirma que os corpos dos Sold Bailó Baldé e Fonseca Nancassa, vítimas mortais da CCaç 3 que ele comandava, foram transportados para Binta, na retirada das forças que compunham esta coluna.

Esta versão é a mais credível porque a CCP 121, única força a seguir para Guidaje, não levou qualquer viatura para Guidaje, portanto nunca poderiam [aqueles corpos] estar sepultados em Guidaje.

Mas de facto na página 197 do livro "Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 8.º Volume – Mortos em Campanha, Tomo II Guiné – Livro 2", consta que estão sepultados em Guidaje, o que na minha modesta opinião será engano.

(iv) Finalmente falta a coluna de 19 [, de Maio,] Guidaje – Binta, que tem de retroceder para Guidaje, pois são fortemente atacados.

(v) Com o máximo respeito pelo trabalho dos historiadores [, Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso], devo lembrar que houve ainda mais duas colunas, a 11 e 12 Junho, que significou o acabar da questão Guidaje. Depois voltamos à normalidade.

Nem de propósito, penso brevemente dar novas sobre a minha desditosa coluna, se o meu camarada que ia na coluna, e que me cedeu informações preciosas sobre a mesma, me der autorização para publicar, senão pedirei permissão porque o que tenho em mão é de muita importância para esclarecer muita coisa.

Abraço
Manuel Marinho (**)
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(**) Último poste da série > 22 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9935: Efemérides (57): Guidaje foi há 39 anos... Pergunto: Por que é que a FAP não bombardeou com napalm a área de Genicó até Ujeque ? Por que é que não se utilizou o obus 14 no apoio às colunas ? No cerco de Guidaje muito eu desejei ter uma antiaérea... (Arnaldo Machado Veiga)


terça-feira, 22 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9936: Memórias da CCAÇ 798 (Manuel Vaz) (9): Uma perspectiva a partir de Gadamael Porto - 65/67 - VII Parte - Evolução da situação militar - Anexo IV



1. Em mensagem do dia 19 de Maio de 2012, o nosso camarada Manuel Vaz (ex-Alf Mil da CCAÇ 798, Gadamael Porto, 1965/67), enviou-nos o anexo IV referente à VII Parte das Memórias da sua Companhia.







MEMÓRIAS DA CCAÇ 798 (9)
De 63 a 73, uma década de Guerra na Fronteira Sul da Guiné
Uma Perspectiva a Partir de Gadamael Porto - 65/67 (VII Parte) > Anexo IV

Gadamael Porto fica situado na Fronteira Sul da Guiné-Bissau, num território que, na era colonial, pertenceu à França e que, através da Convenção Franco-Portuguesa de 1886 a “França cedia a Portugal a Zona de Cacine por troca com Casamança . . . “ (P3070),  dividindo o Reino Nalu sediado em Boké [, no território da Guiné-Conacri) . Assim, o território entre o Rio Cacine e a fronteira passou (na altura) a ser português, enquanto Casamança encravado entre a Gâmbia e Guiné-Bissau, continua a reclamar a independência.




Mais precisamente, Gadamael Porto, como se pode ver no recorte da carta anterior, situa-se na margem direita de um dos braços do Rio Cacine, onde desagua o Rio Queruene. Ao contrário do que se poderia pensar, Gadamael não era inicialmente um aglomerado populacional. A Carta Militar de 1954 [, de Cacoca,] dá ideia quanto à concentração da população. O maior aglomerado populacional, da etnia Biafada, situava-se na Tabanca de Ganturé, sede do Regulado, a cerca de 3 Km de Gadamael Porto. A tabanca mais próxima, digna desse nome, era a de Viana. Em toda a faixa compreendida entre os diversos braços do Rio Cacine e a fronteira, a zona mais povoada era para Sul, na estrada para Sangonhá.

Foi a sua localização, junto do braço do rio, associado à existência de um desembarcadouro que lhe deu a importância que tinha. Numa região com poucas e fracas estradas que na época das chuvas se tornam intransitáveis, a navegabilidade dos rios e a possibilidade do transporte fluvial para pessoas e mercadorias ganha uma importância vital. 

Foram estas condições naturais que determinaram o interesse das grandes Companhias que controlavam o Comércio, para instalarem ali um entreposto comercial. É disso prova a existência de duas casas de construção europeia, uma delas bem próxima do rio, exibindo a sigla ASCO que já fez correr muita tinta a propósito do seu significado, mas que, qual “ovo de colombo”, pode significar apenas, Associação Comercial [AsCo].

Foram estas casas abandonadas que a CART 494 encontrou, quando em 17DEZ63 ocupou Gadamael Porto, incorporando-as no Aquartelamento. Mas as NT já tinham estado anteriormente em Gadamael Porto. 

O Cap Blasco Gonçalves que foi o OInfOp do BCAÇ 1861, sediado em Buba (1965/67) dizia que já tinha comandado uma Companhia dispersa pelas localidades de Aldeia Formosa, Cacine e entre outras também Gadamael, onde teria estado uma Secção. Ora esta Secção deve ter estado instalada em Gadamael Porto, por volta dos anos 1961/62, tendo-se posteriormente deslocado para Buba, onde se fez o reagrupamento da Companhia.

Quando a CART 494 chegou a Gadamael, teve desde início de resistir às flagelações e emboscadas do PAIGC, ao mesmo tempo que construía as primeiras defesas do Aquartelamento e instalava um Destacamento em Ganturé (02FEV64) com apoio do Pel Rec Fox 42 que aí permaneceu até 20MAI64 (P7877). 

Seguiu-se o início das primeiras construções de apoio que se continuaram com a Companhia seguinte. Nesta fase, a margem direita do braço do Rio Queruane, a montante do desembarcadouro, com um piso plano constituído de uma pedra “esponjosa” de aparência vulcânica, serviu de pista de emergência, até ser construída a pista representada de amarelo, no recorte da Carta Militar, isto ainda no tempo da CART 494.

Aquartelamento de Gadamael Porto em Meados de 1969, no tempo da CART 2410.
O croquis faz a síntese do acolhimento das Populações: do lado direito, ao longo da Paliçada, as casas da Tabanca de Gadamael; do lado esquerdo as casas de colmo construídas para albergar a população vinda de Sangonhá/Cacoca (1ª fase do reordenamento da população); as casas com cobertura de zinco construídas pela CART 2410 para albergar a população de Ganturé. (2ª fase do reordenamento)

Foi com estes meios que a CCAÇ 798 encontrou o Aquartelamento de Gadamael Porto a 08MAI65. Durante a sua permanência continuaram as construções de apoio, incluindo a oficina auto, acolheram-se as primeiras populações no interior do perímetro defensivo, o que determinou o seu alargamento e a reorganização defensiva com a construção de novos abrigos e paliçadas. (P9329). 

A pista de aviação,  que na época das chuvas fora interdita, sofreu obras de ampliação e manutenção. A Engenharia Militar procedeu à eletrificação do Aquartelamento, o que permitiu a substituição do “velho petromax” e iniciou o projeto do Cais que viria a ser construído durante a Companhia seguinte, a CART 1659

Foi durante esta Companhia que se iniciaram as primeiras construções (reordenamento da população - P3013) ainda com cobertura de colmo, ao lado do Aquartelamento, para albergar as populações vindas de Sangonhá/Cacoca, entretanto extintos (29JUL68).



Fotografia aérea de finais de 1971 (CCAÇ 2796) gentilmente cedida pelo ©  Cor Morais da Silva
Desapareceram todas as casas de colmo, bem como os últimos troços de Paliçada. O perímetro do Aquartelamento alargou-se, incluindo mais construções militares sobretudo do lado oposto à Tabanca. 


Mas o Aquartelamento de Gadamael, com o perímetro deixado pela CCAÇ 798, deve-se ter mantido, sem grandes alterações, até à instalação dos primeiros Obuses, no tempo da CART 2410 (1968/69).



Fotografia aérea de 1972/73 (CCAÇ 3518), gentilmente cedida pelo ©  ex-Alf Mil L. Monteiro
Há mais construções militares do lado esquerdo. O Reordenamento da População está concluído e pode ver-se o braço do Rio Cacine, onde desagua o Rio Queruane, com o Cais de Acostagem.
 

A partir de agora, o Aquartelamento passa a ser uma base de Apoio de Fogos e de Reabastecimentos, através de um Pel Art e de um Pel AM para o qual houve necessidade de construir instalações. Esta Companhia continuou a construção da Tabanca (36 casas com telhado de zinco,  destinadas aos nativos de Ganturé=, alterou o Aquartelamento do lado da população pela eliminação da paliçada e procedeu à revisão do sistema defensivo daquele. O croquis anterior dá uma ideia do Aquartelamento nesses tempos, onde se pode ver ainda, a Tabanca inicial e os dois tipos de casas correspondendo às duas fases do ordenamento da população. 

A CART 2410 foi rendida a 21JUN69, por troca com a CCAÇ 2316, vinda de Guileje,  que apenas permaneceu em Gadamael, cerca de 4 meses. 

Seguiu-se a CART 2478 que começou por se instalar em Ganturé a 11OUT69, onde manteve dois Pelotões até à sua extinção, a 13MAI70. Foi no tempo desta Companhia que se iniciou a construção de Valas, como sistema defensivo.



Aquartelamento de Gadamael Porto nos primeiros meses de 1973, no tempo da CCAÇ 3518.
O Aquartelamento, tal como se representa no croquis, deve ter-se mantido sem grandes alterações, até ao ataque do PAIGC de MAI/JUN/73, apenas reforçado com um Pel CAN S/R com 5 armas, chegado a Gadamael na primeira quinzena de Maio, no tempo da CCAÇ 4743.


A 29DEZ70 a Companhia anterior era rendida pela CCAÇ 2796 que, nos primeiros tempos em Gadamael, foi severamente atacada pelo PAIGC, tendo sofrido várias baixas, entre os quais, o próprio Comandante da Companhia. O esforço operacional não a impediu de se dedicar à população, construindo 80 casas no Setor Norte do Aldeamento, uma Escola e um Posto Sanitário, na zona de ligação entre os dois setores do Ordenamento, para além de um Heliporto, Casernas e uma nova Reorganização do Terreno. A 1ª foto aérea dá uma ideia do Aquartelamento e das zonas limítrofes, no tempo desta Companhia.

A 24JAN72 a CCAÇ 3518 rende a Companhia anterior. Apesar dos constantes patrulhamentos numa extensa ZA, com uma fronteira de muitos quilómetros, nunca teve qualquer contacto com o IN. O PAIGC utilizava as frequentes flagelações sobre o Aquartelamento como forma de manifestar a sua presença e pressionar as NT, normalmente à noite, retirando durante esta todo o Armamento Pesado. 

Durante a presença desta Companhia foram feitas novas construções, entre elas um novo Paiol, e recuperadas as Casas de construção europeia. Foi anda concluído definitivamente o Aldeamento. É ainda de salientar a atividade do Posto Escolar nº 23, frequentado por 40 crianças e uma dúzia de adultos nativos. Desta ação beneficiaram ainda 30 praças que obtiveram o exame de 4ª classe em Bissau. (P6283)

A 04MAR73 abandonam Gadamael os últimos efetivos da CCAÇ 3518, dando lugar à CCAÇ 4743 que estava em sobreposição desde 08FEV73. Foi efémera a presença desta Companhia, interrompida pelo ataque a Gadamael de consequências dramáticas para toda a guarnição e população, ocorrido a partir da retirada de Guileje a 22MAI73. O que se passou a seguir, não é objeto deste anexo.

E agora um simples “clique” sobre a fotografia seguinte, permite-nos uma visita, em ecrã inteiro, a Gadamael Porto, nos finais do ano de 1971. Podemos ver a Escola e o Posto Médico ligando os dois Setores do Reordenamento da População, a Pista, o Heliporto, o Aquartelamento, bem como o envolvimento da floresta e do braço do rio Cacine.

Gadamael Porto nos finais do ano de 1971.  Fotografia gentilmente cedida pelo © Cor Morais da Silva.


Finalmente, aproveito para agradecer a possibilidade de divulgação das fotografias, ao Cor Morais da Silva (foto 1 e 3) e ao ex-Alf Mil L Monteiro (foto 2), bem como a intensa colaboração na elaboração dos Croquis, ao ex-Fur Mil L Guerreiro da CART 2410 e ao ex-Alf Mil L Monteiro da CCAÇ 3518, sem a qual não seria possível a sua apresentação.






Fontes:
Principal – Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, através das Apresentações, correções e Comentários.

Fontes Adicionais:
A necessidade de elementos concretos, obrigou ao contacto direto de vários camaradas que fazem parte da Tertúlia - Cor. Morais da Silva; ex-Alf Mil Vasco Pires; ex-Fur Mil Luís Guerreiro - e ainda do ex-Alf Mil Lopes Monteiro que não faz parte de mesma.

Manuel Vaz
Ex-Alf Mil
CCAÇ 798
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Nota de CV:  

Vd. último poste da série de 13 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9740: Memórias da CCAÇ 798 (Manuel Vaz) (8): Uma perspectiva a partir de Gadamael Porto - 65/67 - VII Parte - Evolução da situação militar - Anexos I, II e III

Guiné 63/74 - P9935: Efemérides (91): Guidaje foi há 39 anos... Pergunto: Por que é que a FAP não bombardeou com napalm a área de Genicó até Ujeque ? Por que é que não se utilizou o obus 14 no apoio às colunas ? No cerco de Guidaje muito eu desejei ter uma antiaérea... (Arnaldo Machado Veiga)

1. Mensagem do nosso leitor (e camarada) Arnaldo Machado Veiga, com data de 17 do corrente:

Como introíto apresento os meus cumprimentos e elogios pelo trabalho realizado, ao concentrar a variada informação sobre a guerra na Guiné.


Para mim, que vivia fazendo conjecturas acerca dos acontecimentos em Guidaje em Maio de 73, foi um alívio e ao mesmo tempo a consternação ao saber daqueles que lá morreram que eu conhecia bem. [Foto acima: mortos da CCAÇ 19, na zona do Cufeu. Foto de Amílcar Mendes, 38ª CCmds, 1972/74].

Foi também com alegria que revejo fotos recentes de Guidaje e do Cufeu, etc. Quero também realçar as dúvidas do Sarg Pára Manuel Rebocho e das quais também sempre comunguei e que se referem ao facto de, no cerco de Guidaje, as colunas de socorro terem sido empenhadas com tantos sacrifícios humanos e não terem sido utilizados os obuses de Farim (14, salvo erro) e até mesmo a sua deslocação para Binta em apoio das diversas colunas que pretendiam seguir em direcção a Guidaje.

Porque razão não deslocaram as Panhards de Bula para o mesmo efeito, por exemplo, já que em Bula tanto quanto eu saiba pouco valor acrescentado davam ?

Porque motivo a FAP não varreu a área desde Genicó até ao Ujeque com napalm? Tinham medo dos mísseis Strela? Mas os que andavam em terra já podiam levar com todo o tipo de armamento...

Também os judeus na guerra de 73 [, a guerra do Yom Kippur,] se viram a braços com os SAM 7 mas mesmo assim os seus Mirages e pilotos não deixaram de desempenhar a sua quota parte no sacrificio da guerra.


Guiné > Região de Tombali > Gandembel / Balana >CCAÇ 2317 (1968/69) > Gandembel: A antiaérea que era pressuposto proteger o pessoal contra eventuais ataques ... dos Migs russos da República da Guiné-Conacri. Já depois do 25 de abril também foi montada uma em Pirada, junto à  fronteira norte, com o Senegal.

Foto cedida pelo António Almeida, o intérpetre do Hino de Gandembel, soldado da CCAÇ 2317 (Gandembel/Balana, 1968/69) (1). Enviada pelo Zé Teixeira, também conhecido, entre os escuteiros de Matosinhos, como o Esquilo Sorridente . Legenda: AA/LG.

Guidaje tinha obuses de 10,5 e Bigene tinha obuses de 14 mas admito que as dificuldades de reabastecimento impedisse estas unidades de prestarem apoio às colunas com esta Artilharia.

Olhando para trás, fica-me um pouco a sensação de que os Altos Comandos se limitavam na inovação e se dedicavam a exercicios/ teorias pouco consentâneas com a realidade e esta ideia ainda ficou mais reforçada quando agora na revolta da Líbia se viam as antiaérias em cima de carrinhas a fazerem grandes estragos.

Não se imagina quantas vezes quer nas colunas Guidage/Binta quer no Quartel de Guidaje quando de ataques eu desejava ter uma antiaérea das que estavam em Bissau e. se não estou em erro, também em Nova Lamego e Cufar, para utilizar em fogo terrestre.

Bem haja pelo seu trabalho e votos de sucesso.

O meu muito obrigado

AMVEIGA 


2. Comentário de L.G.:

Obrigado, camarada Arnaldo, pelas tuas amáveis palavras em relação ao nosso blogue. Sabem sempre bem, sobretudo quando a gente se esforça por trabalhar bem e para todos, procurando dar a palavra a todos os que têm a (e querem) dizer algo sobre a sua experiência de guerra na Guiné, entre 1961 e 1974. 

Não me compete, por outro lado, responder às tuas perguntas. Elas aqui ficam para reflexão. serena,  de todos nós. Vejo que acompanhas o nosso blogue e que estiveste no inferno de Guidaje, mesmo sem saber mais nada a teu respeito (posto, unidade a que pertencias, etc.). Aproveito, por isso,  para te perguntar se não queres ir mais longe, partilhando fotos e outras memórias desse tempo, na qualidade de membro da nossa Tabanca Grande. Entrar é fácil: é dar a cara (duas fotos) e contar uma história... Para que amanhã os nossos filhos,  netos e bisnetos, não perguntem: Guidaje, avô Arnaldo ? Mas em que planeta é que isso fica ?

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Nota do editor:


Último poste da série > Guiné 63/74 - P9934: Efemérides (56): Guidaje foi há 39 anos: reconstituindo a 5ª coluna, de 22 e 23 de maio de 1973 (Victor Tavares e † Daniel Matos)

 

Guiné 63/74 - P9934: Efemérides (90): Guidaje foi há 39 anos: reconstituindo a 5ª coluna, de 22 e 23 de maio de 1973 (Victor Tavares e † Daniel Matos)

A 5ª coluna,  a caminho de Guidaje>  Operação Mamute Doido, com os páras da CCP 121 > 23 de Maio de 1973 [fusão de dois postes]

por Victor Tavares (*) 
e † Daniel Matos (**)


1A. Victor Tavares [, ex-1º cabo paraquedista, CCP 121/ BCP 12, BA 12, Bissalanca, 1972/74). foto à direita]:

No início do mês de maio de 1973, as forças do PAIGC intensificaram os ataques aos destacamentos de fronteira, mais concretamente Guidaje, a norte, e Guileje, a sul. Em Guidaje a pressão das forças IN começou com ataques ao aquartelamento e depois às colunas de reabastecimento no período 7 a 30 de Maio de 1973. Nesse período realizaram-se seis colunas. Apenas a terceira conseguiu alcançar o objectivo sem problemas.

E porque fiz parte da quinta coluna (***), gostaria de dar algumas ideias do que passei na mesma aos tertulianos interessados na guerra de Guidaje.


Para começar quero dizer-vos que já li que os efectivos da CCP 121 que participaram nessa coluna eram na ordem de 160, quando na verdade seríamos pouco mais de metade. Mas avançando para o desenvolvimento, mais concreto, do deslocamento entre Binta e Guidaje, de má memória para os paraquedistas da 121, nesse dia fatídico para as nossas tropas recebemos a informação de que íamos fazer protecção a uma coluna auto que ia para Guidaje, e que regressaríamos de imediato, até porque não nos fora distribuída alimentação.


1B. Daniel Matos [1950-2011, ex-Fur Mil da CCaç 3518, Gadamael, 1972/74, foto à esquerda] ...


[Em 22 de maio de 1973,] do quartel de Binta, sensivelmente à mesma hora (sete e trinta) em que saíramos de Guidaje, avançara também nova coluna logística, com a missão de evacuar o pessoal, sobretudo os feridos. A CCP 121 faria protecção a oeste da estrada, cabendo a um destacamento misto de fuzileiros (42 homens dos DFE n.º 1 e n.º 4, comandados pelo primeiro-tenente Albano Alves de Jesus) a protecção a leste. Os picadores seriam de um grupo de combate da CCaç 14 (guarnição de Farim), participando também um grupo reduzido de elementos da CCaç 3. Um dos elementos, – o furriel miliciano Arnaldo Marques Bento, – deste grupo comandado pelo alferes Gomes Rebelo, acciona uma mina antipessoal, reforçada com outra, anticarro, e tem morte imediata. Também um picador – o soldado Lassana Calisa, – morre alguns metros adiante e a mesma mina provoca dois feridos graves. 


Ainda um outro engenho viria a ferir gravemente outro homem. Cerca do meio dia, um grupo de combate saiu de Genicó e veio reforçar a coluna. O tenente-coronel Correia de Campos manda abortar a coluna de reabastecimento e o pessoal regressa a Binta, onde chega apenas por volta das 18 horas.

2A. Daniel Matos

[A 23 de maio de 1973,] sai de Binta em direcção a norte uma coluna/auto comandada a partir de uma DO-27 pelo major 
paraquedista  José Alberto de Moura Calheiros. É protegida por uma unidade de fuzileiros especiais e por grupos pertencentes a unidades do Exército, nomeadamente da CCaç 3 e, como sempre, por uma equipa de picadores que rasga caminho lá bem na cabeça da coluna.

Ao chegar perto de Genicó liga-se aos cerca de 90 homens da CCP 121 que, sob o comando do capitão pára-quedista Armando de Almeida Martins, emboscada desde bem cedo, ali aguardam a sua passagem, para lhe fazer protecção. Os pára-quedistas faziam parte de uma força de intervenção, que incluía ainda uma companhia de comandos e uma companhia de fuzileiros, enviada para Guidaje para tentar romper o cerco e aliviar a pressão do PAIGC sobre o quartel.


2B. Victor Tavares:

Lá seguimos manhã cedo, [a 23 de maio de 1973,] até passar uma pequena ponte. Logo de seguida estacionámos e emboscámo-nos do lado esquerdo da picada, ficando a aguardar a chegada da coluna auto que, passado algum tempo, chegou já protegida do lado direito por um grupo de fuzileiros especiais, seguidos de elementos do exército.

Na frente da primeira viatura seguiam vários sapadores (picadores). É de referir que a mata envolvente era bastante aberta o que facilitava o contacto à vista com as outras nossas forças.

Entretanto, é dada ordem para iniciarmos a marcha lenta por forma a manter a ligação à vista com a frente da coluna. Nessa altura rebentou uma mina antipessoal, provocando 1 morto. Isto cerca das 8.30h. 

Recomposta a ordem, retomamos a marcha, até que, passados pouco mais de 15 minutos, novo engenho é accionado, desta vez por uma viatura, desfazendo parte dela e provocando mais 1 morto e 2 feridos graves. A partir daqui foi fazer a transferência da carga e retomar o deslocamento. Pouco tempo andámos para nova mina ser accionada provocando mais 1 ferido grave.

Nesta altura estávamos próximos de Genico [a seguir a Caur, vd. carta de Binta]. Perante estes acontecimentos foi dada ordem para que a coluna regressasse a Binta, uma vez que a zona se encontrava toda minada e seria de evitar correr mais riscos.

2.C. Daniel Matos:

Por volta das 8,30 horas, com a ligação à vista praticamente a ser efectuada, uma mina antipessoal é deflagrada e provoca a morte do soldado Bailó Baldé, da CCaç 3. Escassos minutos a seguir, quando a coluna recolhe o corpo e retoma o andamento, uma viatura acciona outra mina e causa mais uma morte imediata (soldado Fonseca Nancassa, também da CCaç 3) e dois feridos com gravidade. 

Uma terceira mina vem a ocasionar mais um ferido grave. Perante as adversidades da progressão, parecendo impossível ultrapassar o enorme campo de minas e armadilhas que encontrou em cada metro de caminho, é recebida ordem para que a coluna retroceda e regresse a Binta. Aos  paraquedistas , no entanto, é dito que devem avançar até ao destino, em missão de patrulha (operação Mamute Doido). Assim procedem, vindo a efectuar uma pausa para descanso, já na área do Cufeu. Conforme estas fatídicas jornadas demonstram à saciedade, seja ao longo da bolanha seja em torno da casa amarela que avistamos a cada passagem – ou do esqueleto que dela resta, – o Cufeu é uma zona propícia para as emboscadas, desde logo pelo número inusitado de morros de baga-baga atrás dos quais dezenas de corpos se podem ocultar e proteger-se das nossas balas.
3A. Victor Tavares:

Com tudo isto já passava do meio dia, quando é dada ordem para a CCP121 continuar a operação em patrulhamento, regressando os fuzileiros e o exército.

Em direcção a Guidaje seguiam os paraquedistas, até que foi feita mais uma de muitas paragens para descanso do pessoal, esta já na zona mais perigosa de todo o percurso, que era Cufeu.

Como me encontrava desde o início na retaguarda, desloquei-me até junto do meu comandante de pelotão, Tenente Paraquedista Hugo Borges, afim de saber qual seria o nosso destino, porque nos encontrávamos já bastante debilitados fisicamente. Foi nesse momento que a grande altitude apareceu sobrevoando a nossa posição uma DO 27 aonde se encontrava o Major Paraquedista Calheiros que, em contacto com o comandante da CCP 121, Capitão Paraquedista Armando Almeida Martins, informa-nos que teríamos de seguir para Guidaje porque já estaríamos perto.

Dada esta informação, regressei a retaguarda mas ao fazê-lo pedi ao Melo, apontador de MG 42, para ocupar o meu lugar (todos os operacionais sabem o desgaste físico e psicológico que tal posição provoca) porque eu já vinha a mais de uma dezena de quilómetros naquele lugar.

Entretanto inicia-se a marcha e, quase de imediato, rebenta na frente a emboscada, tendo os primeiros tiros dados pelas forças do PAIGC abatido logo os Soldados Paraquedistas, Victoriano e Lourenço e ferindo gravemente o 1º Cabo Paraquedista Peixoto, apontador de HK21 e MG42.

A reacção dos paraquedistas foi pronta e rápida: apanhados em zona aberta sem qualquer protecção reagiram ao forte poder de fogo do IN, conseguindo suster o assalto das nossas posições como se verificou na retaguarda onde guerrilheiros, alguns de tez branca, tentaram fazer um envolvimento as nossas forças, o que foi evitado pela elevada capacidade de organização em combate e disciplina de fogo, aliada à coragem dos nossos militares.

Quero referir que simultaneamente toda a nossa coluna ficou debaixo de fogo IN numa extensão de mais de 300 metros.

É de realçar também a organização e o poder de fogo dos guerrilheiros do PAIGC que, equipados com bom armamento, bem melhor que o nosso, caso das Degtyarev, RPG2, costureirinha PPSH, Kalashnikov, Canhão Sem Recuo, RPG7, Morteiros 61mm e 81mm, mísseis terra-ar Strela (estes a partir do início de 1973 começaram a derrubar a nossa aviação tirando-lhe capacidade de actuação no teatro de operações).

Não era por acaso que as forças do PAIGC estavam tão bem organizadas nesta zona e neste período, tinham como comandantes Francisco Santos (Chico Té) e Manuel dos Santos (Manecas), dois dos mais temidos pelas nossas forças, além do comandante Nino Vieira.

3B. Daniel Matos:

Retemperadas as forças, o pessoal da companhia de caçadores paraquedistas reinicia a marcha e é de pronto surpreendido por constringente emboscada. Dois dos pára-quedistas que seguem na frente (António das Neves Vitoriano e José de Jesus Lourenço, este com apenas 19 anos) têm morte imediata; o 1.º Cabo Manuel da Silva Peixoto, apontador de HK-21, é colhido por uma rajada e fica gravemente ferido. O fogo inimigo é muito intenso, a frente prolonga-se por algumas centenas de metros e dura três quartos de hora praticamente consecutivos. Há quem garanta ter avistado gente branca do outro lado.

“Os militares José Lourenço, António Vitoriano e Manuel Peixoto iam na primeira linha e foram os primeiros a cair”, relata muitos anos mais tarde Hugo Borges, na altura da emboscada tenente, comandante de pelotão (hoje general).

À mistura com tiros de Kalashnikov ouvem-se estrondos de canhões sem recuo e roquetadas das RPG-7, que causam pelo menos mais duas baixas graves: a do soldado Palma, que se encontrava a tentar desencravar a metralhadora MG 42 do soldado António Melo, que foi também ferido e ficou imediatamente em coma (viria a falecer após evacuação, já na metrópole). 

Apesar da resistência das NT, a ofensiva só é contida graças ao apoio aéreo que desta vez corresponde ao chamamento. Os Fiat lançam bombas de cinquenta quilos ao longo de meia hora bem medida sobre a zona de acção IN (cuja força é estimada em cerca de setenta guerrilheiros). 

Algumas viaturas saíram de Guidaje e foram ao encontro dos paraquedistas. Fizeram inversão de marcha para se carregarem os corpos das vítimas e regressarem à origem. Abrindo um novo trilho, conseguem chegar à aldeia de Guidaje, não sem que os guerrilheiros retirados do Cufeu após o bombardeamento da aviação os tenham atacado de novo, mas de longe e sem consequências. 

O Cabo Peixoto não resiste aos ferimentos e morre também neste dia 23 de Maio, – imagine-se! – considerado o “Dia dos Paraquedistas” por ser há precisamente 17 anos (desde 1956) a data da fundação, em Tancos, da Escola de Tropas Paraquedistas!...

O Batalhão de Caçadores Paraquedistas (n.º 12) teve durante as campanhas na “Guiné Portuguesa” cinquenta e seis baixas, (três oficiais, seis sargentos e quarenta e sete praças).

Os corpos dos militares da CCaç 3 que protegiam a coluna inicial e que pela manhã foram vitimados pelo rebentamento de minas (mormente os de Bailó Baldé e Fonseca Nancassa), ainda devem ter sido transportados pelas mesmas viaturas que os camaradas 
paraquedistas  trouxeram para Guidaje, pois viriam a ser ali sepultados, dias depois, conjuntamente. Se assim não fosse, teriam sido levados pelos fuzileiros e elementos do Exército que regressaram a Binta e o tratamento aos seus esquifes teria sido diferente.

4A. Victor Tavares:

Continuando a relatar o desenrolar da operação: durante o contacto fomos flagelados com morteiradas e canhoadas que rebentavam a poucos metros de nós, tendo uma delas ferido gravemente os Soldados Paraquedistas Palma e Melo, este com grande gravidade, ficando de imediato em estado de coma e vindo a falecer, na Metrópole.

Ainda relacionado com as granadas que rebentavam junto a nós, aí poderíamos ter mais mortos e feridos, mas a nossa sorte foi o terreno ser mole porque as granadas enterravam-se e os estilhaços saíam em V. Faço esta afirmação porque a dois, três metros da minha posição de combate, rebentaram 3 granadas e felizmente nada me aconteceu. Já a quarta granada veio mais longa, atingindo os paraquedistas atrás referidos, quando se encontravam a desencravar a MG42 da qual o Paraquedista Melo era apontador, de grande categoria (este camarada era uma autêntica máquina de guerra).

Ainda debaixo de fogo começaram a ser socorridos os feridos da retaguarda, pelo enfermeiro 1º Cabo Paraquedista Fraga.

Ainda antes de terminar este feroz combate, os bombardeiros Fiat 91 bombardearam as posições IN tal foi a duração do mesmo (mais de 30 minutos).

Terminado o contacto, tratou-se de improvisar a maca para transporte do Melo, o outro ferido, o Palma, seguiria a pé, já que o ferimento era no pescoço. Entretanto chega-nos a indicação da frente que tínhamos mais feridos e mortos (os átras referidos Peixoto, Vitoriano e Lourenço).

Entretanto, quando chegamos à frente, deparamos com os corpos dos nossos camaradas que jaziam no chão, dois já defuntos, e um ferido de morte, este a ser assistido pelos enfermeiros dos pelotões.

A partir daqui aguardava-se a chegada de viaturas que vinham de Guidaje. Chegadas estas, carregaram-se os mortos e feridos. Nnessa altura fui à viatura onde se encontrava o Peixoto para ver qual era o seu estado. Apertando o meu braço, diz-me ele:
- Tavares, desta vez é que eu não me safo. - Aí respondi-lhe:
- Não, tu és forte e tudo vai correr bem, tem calma.

Quando desci da viatura depois de ver os ferimentos, fiquei com a convicção de que só por milagre é que o Peixoto se safava: fora atingido por vários tiros em zonas vitais .

De seguida iniciámos a marcha rumo a Guidaje, para pouco tempo depois a coluna na frente ser novamente atacada, desta vez sem consequências de maior, para as forças que seguiam na frente, Fuzileiros e Paraquedistas, seguidas das viaturas e na retaguarda os restantes Paraquedistas que ainda tentaram fazer um envolvimento às forças do PAIGC, o que não resultou derivado à distância ser grande e as mesmas terem abandonado as suas posições de ataque.

5. Daqui até Guidaje não houve mais qualquer incidente. Chegados, fomos instalados ao longo das valas, montando segurança durante os dias que ai permanecemos, sete ou oito. Durante esses dias foram elementos dos Comandos Africanos que regressavam da Operação Ametista Real (no período de 17 a 20 de Maio de 1973) na qual também participou a Companhia de Paraquedistas 121 (Assalto à base de Kumbamory) dentro do Senegal. Participou também o grupo do Marcelino da Mata.

Em Guidaje também aí encontrámos parte de um destacamento de Fuzileiros que aqui se encontravam sitiados há alguns dias e que pertenciam ao destacamento de Canturé.

A seguir relatarei a permanência em Guidaje durante 9 dias e o funeral dos meus camaradas paraquedistas . (...)

PS - No que atrás relato não estão incluídas algumas passagens muito importantes que entendo de momento não publicar. (****)




Guiné > Região do Cacheu > Carta de Binta (1954) (Escala 1/50 mil)  > Detalhes: posição relatiav de Binta, Genicó, Cufeu e Ujeque (na picada Binta-Guidaje).

__________

Notas do editor:

(*) 25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto

Vd. também poste de 9 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1260: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (2): o dia mais triste da minha vida

(**) 5 de abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6108: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (7): Os dias da batalha de Guidaje, 22 e 23 de Maio de 1973


(***) Os historiógrafos militares Carlos de Matos Gomes e Aniceto Afonso falam em 6 colunas, realizadas nas seguintes datas:

1ª coluna: 8 a 9 de maio de 1973;
2ª coluna: 10 de maio [ vd. aqui o testemunho do nosso camarada A. Merndes, da 38ª CCmds]
3ª coluna: 12 de maio;
4ª coluna: 15 de maio;
5ª coluna: 22 de maio;
6ª coluna; 29 de maio.

(In: Os anos da guerra colonial: volume 14: 1973 - Perder a guerra e as ilusões. Matosinhos: QuidNovi. 2009, p.45).

(****) Último poste da série > 9 de maio de 2012 > 
Guiné 63/74 - P9874: Efemérides (55): Cerimónia da transição da soberania nacional na Guiné (2) (Magalhães Ribeiro)


segunda-feira, 21 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9933: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (23): A TV na nossa guerra

1. Em mensagem do dia 16 de Maio de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas histórias e memórias, relembrando desta vez as mensagens de Natal dos combatentes da Guerra do Ultramar gravadas em África e passadas na RTP.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (23)

A TV na (nossa) guerra

Durante os anos 60/70 (século passado) a RTP era o único canal televisivo generalista a penetrar diariamente em nossas casas; os outros foram aparecendo um após outro depois da revolução… dita dos cravos.

Como competia a uma instituição do aparelho político (único) dava cobertura à patriótica missão dos nossos bravos militares na então “Guerra de Ultramar”; hoje segundo a vontade de alguns diz-se “guerra colonial”; sirva-se cada um segundo a sua vontade! É democrático!

Na minha terra, lá nas “berças”, do interior esquecido, cheias de gente sã (não mal intencionada) – gente boa existe em todo o lado, porque ainda não “bebeu” a parte negativa da dita civilização – dir-se-ia com a clareza e a sapiência de gente honrada e virtuosa: “albarda-se o burro à vontade do dono”. Creio que ninguém verá nisto (adágio) qualquer tipo de agressão despropositada e gratuita, sem sentido, pois a minha intenção não é essa com toda a certeza.

Lamento, no entanto, que alguns (mais do que seria desejável) tenham tentado denegrir, acintosamente, a imagem imaculada de tantos compatriotas de rija têmpera que se bateram tão garbosamente, tão denodadamente, por aquilo que, pelo menos tradicionalmente, era nosso – refiro-me às pessoas e não ao terreno. Terá havido excessos? – Claro que sim! Mas não deixaram de ser exceção! Lamento profunda e sinceramente os abusos que deliberada ou inconscientemente (fruto do momento) foram cometidos; por mim e pelos autores do exagero, peço perdão aos africanos molestados, se bem que não me pese na consciência ter cometido qualquer canalhice ou desaforo.

Não quero deixar passar em claro também aqueles que, por medo ou por questões políticas, se auto-exilaram para fugirem aos pavores da guerra. Também não posso deixar de referir aqueles que, tendo emigrado, para mudar de vida e regressaram à Lusa Pátria para cumprir serviço militar. Não sei se há números oficiais (não creio que tenham sido divulgados) mas consta que os segundos foram em maior número que os primeiros- o que não deixa de ser significativo.

Mas esqueçamos o que podemos chamar de bizantinices e… voltemos à RTP.

A televisão faria apenas um ligeiro e superficial acompanhamento da guerra… dentro dos quartéis. Não consta – desconheço – que algum repórter tenha acompanhado os nossos façanhosos combatentes (os que ousadamente participavam, ao vivo e com risco e até com o sacrifício da própria vida), em operações melindrosas para passar à película os factos dignos de registo.

Os enviados da RTP procediam, em larga escala, nos meses que antecediam o Natal, à transmissão de mensagens de “Boas Festas” dos combatentes para os seus familiares – o que já era, só por si, bastante louvável. Talvez tenha sido esta a missão mais honrosa e mais humana levada a cabo pela RTP. Honra lhe seja feita por tudo isto e tudo o mais que poderão eventualmente ter realizado, mas que desconheço.

Mensagem de Natal do nosso camarada Constantino (Tino) Neves, a quem mandamos um abraço

Os soldados (os combatentes) passavam desempenados frente à câmara, citavam a sua identificação e a terra de origem declarando alto e bom som: -“para a minha família em (?) desejo um Bom Natal e um Ano Novo cheio de prosperidades”. Uma boa parte dos soldados, intencionalmente – talvez – ou por incapacidade substituíam as “prosperidades” por “propriedades”; era mais fácil de pronunciar… e mais lucrativo. Terminavam com a célebre frase “Adeus, até ao meu regresso”. Esta legenda já é nome de um livro da autoria do companheiro Beja Santos e levado ao prelo pela “Ancora Editora”; passe a publicidade… é dever de consciência.

Deixo aqui o meu pedido de desculpa se algum operador e/ou jornalista chegou a envergar ousadamente um camuflado e participou nalguma das operações mais perigosas e desgraçadamente célebres a que os militares estavam sujeitos e que eu, por ignorância, não refiro.

Os operadores também fizeram filmes – bobines recheadas – de acontecimentos por vezes corriqueiros ou propositadamente inventados… vividos dentro dos quartéis ou nas suas imediações. Lembro-me de ter visto um filme daquela estúpida guerra em que o ousado operador (nosso) se encontrava, por incrível que pareça, entre as aguerridas hostes inimigas: quando os nossos briosos soldados carregavam “destemidamente” sobre o “inimigo”, estavam a ser filmados bem de frente – logo o operador estaria no campo do oposto.

Durante os dois anos (quase) que a CCAÇ 675 viveu em Binta (viveu?! Aquilo seria viver? Mas vivemos ou pelo menos sobrevivemos), os RTPs passaram por lá apenas uma vez. Visitaram-nos mas, como o Natal já teria passado, não houve lugar às alusivas mensagens.

Tiveram direito a um opíparo almoço… bem regado… com o de que dispúnhamos em pleno mato.

A Tabanca engalanou-se; os nativos, já regressados do Senegal, envergaram as suas melhores vestes e organizaram um valente batuque – manga de ronco!

Filmaram muita coisa; entrevistaram muita gente, especialmente africanos – festa de arromba! Um repórter contou-nos que, dias antes, entrevistara um régulo, alferes de 2.ª linha, algures noutra zona; como o “soba” citou várias vezes, elogiosamente, o nome de Salazar, o locutor perguntou-lhe abertamente:
- Sabes quem é Salazar?

A resposta é digna dum “douto” oficial de 2.ª linha:
- Salazar é “o homem grande” da tabanca de Lisboa que dá “manga de chocolate na pessoal bandido!”

Certamente o régulo imaginaria que Salazar era algum destemido pugilista afamado ou que seria, no mínimo, dono de extraordinária força física. – Pobre rato!

Um locutor (cujo nome não recordo) sugeriu-nos que, quando regressássemos da Guiné, passássemos pelos estúdios do Lumiar e ele nos mostraria coisas curiosas e desconhecidas do público, cortes de certas filmagens que, naquela época, não podiam invadir indiscriminadamente as casas dos contribuintes.

Anos depois, em Fátima, aquando da visita do Papa, encontrei o tal locutor que, no meio daquela azáfama desmedida, repetiu o convite.

Um dia apareci, curioso, nos estúdios! Passei cerca de duas horas a ver passagens hilariantes (de quebrar o coco) de certas filmagens: o Sr. presidente da República, o venerando (como se dizia) Américo Tomás, a coçar furiosamente o baixo-ventre durante uma tourada no Campo Pequeno; montes de “pernas à vela” nas bancadas; festas em que o elemento feminino exibia ousadamente (para aquela época) os seus dotes físicos. Nos campos da bola havia também das boas! O “Zé” lá em casa não podia assistir a tais desperdícios! E os “excessos” em certos bailes e/ou chás dançantes da “alta”! Tanto esbanjamento meu Deus!

Um “corte” cheio de beleza (política) mostrava o exuberante Negus Negusti da Etiópia, Hailé Selassié (nascera Tafari Makonnen) durante uma fabulosa jantarada algures, aquando da sua célebre visita oficial à capital do Império: - limpava cuidadosa e higienicamente as unhas com os dentes do garfo e bebia água morna com limão do vistoso lavabo a qual se destinava a libertar os dedos do cheiro do marisco!

Sugeri que seria a altura ideal para mostrar aos portugueses quem apoiava a guerra contra nós; creio que não o fizeram mas… talvez valesse a pena!

Bom! Voltemos a Binta onde uma equipa da RTP nos aguarda!

Um dos operadores sugeriu ao afoito capitão Tomé Pinto que “simulássemos uma operação” nas imediações dos quartel para… encher fita.

O capitão Tomé Pinto não admitia nunca sacrificar inutilmente os seus militares; com um sorriso malandro nos lábios, lançou o seguinte repto:
- Eu não brinco às guerras! Pernoitem cá e partimos pela madrugada; prometo levar-vos a uma zona onde haverá tiros (muitos) pela certa; terão uma oportunidade ideal e única para filmar uma operação militar... ao vivo. Doutro modo, não!

- Isso não nos agrada! Responderam em uníssono. Partiram para Farim

Dias mais tarde, algures no Sul, fizeram idêntica proposta ao malogrado capitão Meireles; este aceitou fazer uma guerra de brincadeira… para a TV filmar.

Um militar nativo detetou uma mina antipessoal; deu o alerta! Mas pisou logo, inadvertidamente, o arame de tropeçar (arame verde finíssimo) e provocou de imediato a explosão duma mina “ bailarina”! Houve vários feridos, entre os quais um major; o capitão Meireles foi logo riscado do número dos vivos. Poderia ter sido pior!... como dizia o padre lá da minha terra. Os “ceguinhos” (os que picavam a estrada poeirenta, para detetar as malditas minas) iriam tão “compenetrados” da sua missão que não se aperceberam duma potente mina anticarro que se encontrava numa zona de lama seca. O padre Nazário, ia no fim da coluna; assistia incrédulo a tamanho folguedo… e detetou a tal mina, raspando com a bota as folhas secas que a ocultavam. O padre sugeriu a um sapador ali presente que verificasse se estava armadilhada – não estava! Recomendou ao sapador que a recolocasse no local e ocultasse com terra e folhas secas para que no regresso, a RTP filmasse o seu levantamento, já sem perigo iminente.

Após aquele desastroso acidente não houve mais filmagens… mas trouxeram a perigosa mina anticarro para o aquartelamento… valha-nos isso!

É caso para citar, mais uma vez, a profunda sabedoria do nosso bom povo:
- Com coisas sérias não se brinca!

Eu acrescento: A guerra é coisa séria!” ponham seriedade nisso!

Maio 2012
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9646: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (22): A guerra das vacas

Guiné 63/74 - P9932: Notas de leitura (361): Marcello Caetano, Silva Cunha e a Guiné (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 11 de Abril de 2012:

Queridos amigos,
O documento do ministro Silva Cunha é do maior interesse.
Pelo enquadramento que pretende dar à era da descolonização e à resposta de Salazar, enunciando as diretrizes tomadas para a defesa militar, para as relações com os estados africanos, no caso em apreço, a Guiné.
Pela orientação que procurou imprimir no Ministério do Ultramar e as medidas de desenvolvimento tomadas durante o período da guerra.
Pelo olhar sobre a evolução dos acontecimentos da Guiné e as explicações que dá, aparentemente pouco dramatizadas.
Defensor acérrimo do ideário de Caetano, entrará em conflito com ele depois do 25 de Abril, e não será propriamente por causa da defesa do Ultramar.

Um abraço do
Mário


Silva Cunha e a Guiné (2)

Beja Santos

“O Ultramar, a Nação e o 25 de Abril”, de Silva Cunha, Atlântida Editora 1977, acolhe o depoimento político de alguém que esteve no governo entre 4 de Dezembro de 1962 até 25 de Abril de 1974, desempenhou funções durante cerca de 12 anos fundamentalmente na área do Ultramar Português. O seu testemunho é irrecusável a qualquer estudioso que procure entender a política de Salazar e Caetano a partir da grande vaga descolonizadora que assolou Africa e a Ásia. Silva Cunha, na continuação do que se disse no texto anterior, visita a Guiné em 1972, na altura em que uma comissão ONU percorreu regiões libertadas, e apresentou relatório em Nova Iorque. Para Silva Cunha, o relatório não convenceu ninguém mas serviu de pretexto para ativação da campanha em favor de Amílcar Cabral. E passa logo no seu escrito para os ataques a Guidage, Guileje e Gadamael. Spínola enviou para Lisboa conclusões pessimistas desta fase ofensiva do PAIGC: - o inimigo dispunha de equipamento superior ao das nossas forças; havia o risco de passar da guerra subversiva para a guerra do tipo convencional, em que, em tese, era de admitir meios aéreos e blindados para os quais não dispúnhamos de meios de defesa suficientes; o inimigo emprenhava-se em levar-nos ao colapso militar.

O relatório provocou grande alarme em Lisboa, Costa Gomes deslocou-se à Guiné e no seu regresso realizou-se uma reunião magna para apurar a evolução dos últimos acontecimentos. Costa Gomes insistiu muito sobre a necessidade de uma remodelação do dispositivo das nossas forças, reforçando as tropas de intervenção à disposição do Comando-Chefe, mesmo que fosse necessário aligeirar a extensão da quadrícula. “Assinalou também a existência de desproporção entre os nossos meios e os do inimigo e pôs em relevo o perigo que se verificaria se essa desproporção se acentuasse principalmente pela utilização de meios aéreos. O Presidente do Conselho pôs-lhe, então, formalmente o problema de saber se, como responsável operacional supremo, considerava que a situação impunha o abandono da Província. A resposta foi que, se não se desse nova escalada nos meios do inimigo, estávamos em condições de continuar a defender o território, mas que era necessário fornecer mais meios humanos e materiais ao Comandante-Chefe e remodelar o dispositivo das nossas forças”.

Certamente esquecido que Amílcar Cabral fora assassinado em 20 de Janeiro desse ano, atribui-lhe a intensão de proclamar a independência do território e refere ainda: “Chegavam-nos notícias de fortes divergências no seio do PAIGC, dividido entre os adeptos daquela orientação e os que alinhavam com Sekou Touré, que queriam que a independência fosse imediatamente proclamada. Não estão bem esclarecidas as circunstâncias deste conflito mas venceram os partidários de Touré”.

São largas e abundantes as referências que Silva Cunha tece à Guiné. Faz mesmo o historial do seu relacionamento com todos os governadores a partir de Silva Tavares, em 1958. Lembra que se convidou James Pinto Bull para Secretário-Geral da Guiné, após a Lei Orgânica de 1963, para dar um sinal de participação dos autóctones na coisa pública. Refere a FLING e o seu papel efémero, as desavenças entre Vasco Rodrigues, o governador, e Louro de Sousa, o comandante-chefe, de quem Silva Cunha não tinha boa opinião e que lhe deixara uma deplorável impressão quando numa reunião com diversos membros do governo iniciou a sua exposição declarando não saber o que estava a fazer na Guiné. Elogia o trabalho de Schulz e como este encetara uma política de desenvolvimento económico, de promoção social e de criação de infraestruturas básicas, a despeito de inúmeras vias estarem inacessíveis pela presença da guerrilha. E assim se chegou ao consulado de Marcello Caetano e às eleições de 1969 que o chefe do Governo queria que fossem disputadas honesta e livremente e que constituem-se um referendo sobre a política ultramarina a que se seguiu a revisão constitucional de 1971 que levou à criação de províncias ultramarinas com estatutos próprios como regiões autónomas, podendo ser designada por Estados, elemento de enorme ficção entre os apoiantes do regime. Refere pormenorizadamente a questão das forças armadas no tocante à indústria e aos efetivos. Sendo notória a escassez de oficiais e sargentos dos quadros permanentes, estudou-se a abertura dos quadros permanentes aos oficiais dos quadros de complemento que tivessem boas informações de serviço, sistema que era vivamente preconizado por Costa Gomes. Passo a passo, vai acender-se um conflito que levará à constituição do Movimento das Forças Armadas. O general Spínola também protestava com a deficiente preparação das tropas e a inadequação da orgânica das pequenas unidades ao tipo de guerra de guerrilhas. O IAO, ficou decidido, começaria a ser dada na Guiné. O Estado-Maior do Exército ficou incumbido de estudar e apresentar uma nova proposta para a orgânica das companhias que levou anos e nunca se concluiu.

Em Novembro de 1973, Silva Cunha é transferido da pasta do Ultramar para a Defesa Nacional, explica minuciosamente o que fez e procurou fazer. A Guiné era o quebra-cabeças, havia que adquirir material de defesa antiaérea, mísseis terra-ar denominados Red Eye e para a Força Aérea eram necessários aviões convencionais de transporte, de reconhecimento e ataque ao solo, helicópteros e caças-bombardeiros a jato; para o combate terrestre eram urgentes morteiros de 120, sobretudo. E escreve, acerca da compra do material: “Quanto aos mísseis, iniciaram-se, em Dezembro de 1973, negociações com os americanos, aproveitando o ensejo favorável resultante das facilidades concedidas pelos Açores. Quanto à aquisição de armas coletivas, a França fabricava-as – os mísseis Crotale – e fomos informados de que estava disposta a vender-no-las. O contrato foi fechado com a empresa produtora, estando prevista a entrega em duas fases, a partir de Maio de 1974. Foi mais difícil resolver o problema dos mísseis individuais. Em Março de 1974, iniciaram-se as negociações para a aquisição de um lote de 500 Red Eyes que nos foi oferecido por uma firma europeia. Chegou-se a assinar a carta de intenção e a abrir os créditos necessários”.

Silva Cunha refere ainda o fabrico de um lança-granadas foguete do tipo RPG2, ter-se-á encarado a hipótese do fabricar em Portugal. A última referência explícita à Guiné tem já a ver com o general Bethencourt Rodrigues, tomou posse como governador foi inteirar-se da situação e veio a Lisboa. “Expôs-me e ao Presidente do Conselho como encarava a situação e a ideia da manobra para a dominar. Indicou os meios de que necessitava. Foi-lhe concedido, do existente, o mais que se pôde e deu-se-lhe conhecimento das aquisições em curso para reforçar o nosso potencial militar. Regressou confiante e, na Guiné, no primeiro trimestre de 1974, a situação continuou sem alterações sensíveis, mantendo-se a expetativa do risco da nova escalada no inimigo, mas sabendo-se que tudo se encaminhava para se dispor de meios que lhe permitissem fazer frente”.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9896: Notas de leitura (360): Marcello Caetano, Silva Cunha e a Guiné (1) (Mário Beja Santos)