quarta-feira, 12 de abril de 2006

Guiné 63/74 - P686: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (1): Mafra

Mafra > Escola Prática de Infantaria (EPI) > 1968 > Cerimónia do Juramento de Bandeira > Desfile dos novos militares, onde se integrava o Paulo Raposo, frente ao Convento de Mafra.

© Paulo Raposo (2006)


O Paulo Enes Lage Raposo foi Alferes Miliciano de Infantaria, com a especialidade de Minas e Armadilhas, na CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 (Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70).

Durante a sua comissão, passou esteve em Mansoa e sobretudo na zona leste (Galomaro e Dulombi), a sul de Bafatá.

A sua companhia perdeu 17 militares na travessia do Rio Corubal, na sequência da retirada de Madina do Boé (1).

O Paulo mandou-me, já há um mês e tal, um documento policopiado, de 65 páginas, com o seu "testemunho e visão da Guerra de África", mais concretamente sobre a história da sua vida militar, desde a sua incorporação, como soldado cadete, em Abril de 1967, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, até à sua mobilização para a Guiné, como Alferes Miliciano da CCAÇ 2405, onde teve como camaradas os membros da nossa tertúlia Rui Felício e Victor David (2). Esta unidade partiu para a Guiné em Julho de 1968. O Paulo regressou passou à vida civil "ao fim de 37 meses de tropa".

O Paulo teve a gentileza de me escrever as seguintes palavras no exemplar que me ofereceu: "Como testemunho de gratidão pela tertúlia que proporcionaste na Net. Com amizade. Paulo Enes Lage Raposo. Março 2006".

O Paulo não esconde que tem uma visão própia da "guerra de África" (pp. 55-65), que não coincide (nem tem que coincidir) com a minha mas que eu respeito. Essa, é de resto, a regra nº 1 da nossa tertúlia. Escreveu ele, em papel timbrado da Herdade da Ameira (Montemor-o-Novo):

"Meu caro Luís: Junto te envio uma cópia do escrito que fiz [, em Dezembro de 1977, ] da minha/nossa vivência na Guiné.

"Tenho poucos mas bons amigos, mas os de África são especiais.

"Quanto à estratégia global que nos envolveu na guerra em África, vou apenas deixar-te um aperitivo. A guerra do Vietname tinha como objectivo puxar as forças americanas para o Pacífico e fechá-las lá. Como ? Com Allende no Chile, com os sandinistas no Panamá e com a Fretilin em Timor. Assim a União Soviética avançaria atItalicé alcançar um porto de águas quentes.

"Um abraço amigo. Paulo Lage Raposo".

Começamos hoje a divulgar o essencial de O meu testemunho, do Paulo Raposo. Agradecemos-lhe a gentileza da sua oferta e a autorização para publicitar o seu testemunho, de interesse documental para a nossa tertúlia e atépara os nossos amigos e visitantes. Começamos justamente pela sua passagem por Mafra. Os nossos camaradas que foram alferes milicianos irão, por certo, rever-se nesta evocação dos velhos tempos da Escola Prática de Infantaria de Mafra.


O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 24005, 1968/70) - I Parte: Mafra

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 4-7.


Entrei para o Convento de Mafra - E.P.I., como soldado Cadete, na 2ª incorporação do ano de 1967, mais precisamente no dia 10 de Abril. Escolhi esta incorporação para não apanhar os rigores do inverno dentro daquele grande Convento.

O choque da entrada foi grande, passar de civil a militar não é fácil. Após a entrada, só podiamos sair depois de saber marchar, conhecer as patentes e saber fazer a continência.

Aquela primeira semana parecia que nunca mais acabava.

Na parte de trás do Convento, na grande parada, formava-se o Batalhão de Instrução. O seu Comandante era o Major Rocha, que passava o tempo a dizer:
- Comigo não há figos. - Devia estar apanhado pelo clima de África nalguma Comissão de serviço que lá devia ter feito.

Encontrei-o mais tarde na Messe de Bissau e logo Ihe perguntei:
- Então, meu Major, não há figos?
- Comigo não há - respondeu ele de seguida.

O Comandante da companhia era o Capitão Ferro, com quem nunca mais me cruzei. O adjunto do Comandante era o irrequieto Ten. Garcia Lopes, a quemn voltei a encontrar na Guiné a comandar uma companhia de Comandos.

O nosso instrutor era um rapaz da nossa idade, o Alferes Leonel de Carvalho, sempre muito aprumado. Vi-o na televisão já como coronel, a comandar as forças militares que estavam na ponte 25 de Abril, aquando do grande bloqueio de 1994. Coitado, deve ter passado por situações muito desagradáveis.

Uma vez passada a primeira impressão entramos na rotina de um quartel. Há horas para tudo, no fundo também nos educa e auto-disciplina.

Recordo aqui alguns momentos que me custaram bastante.


O primeiro foi a dor que me causou, nos tímpanos, o estampido que a G3 dava quando fazia fogo. Até nos habituarmos, aqueles primeiros momentos passados na carreira de tiro eram dolorosos.

O segundo foi o lançamento de uma granada de mão, também na carreira de tiro. Só olhar para a granada me metia medo, quanto mais agarrá-la, tirar-lhe a cavilha e lancá-la.

Foi o Ten. Garcia Lopes que me acompanhou. Disse-me:
- Agarra a granada com a mão direita, tira a cavilha de segurança com a esquerda e lança-a; vê onde a granada cai e depois é que te metes no buraco.

Assim foi, mas não foi fácil.

O terceiro foi o campo de obstáculos que havia na Tapada Real, a que chamávamos a Aldeia dos Macacos. Havia dois obstáculos que eram difíceis de vencer. No fundo, o propósito era o de nos libertar dos medos e de nos vencermos a nos próprios.


© Paulo Raposo (2006)

Um deles era o salto ao galho. Este obstáculo era constituído por uma plataforma que ficava elevada a uns três metres do chão. A

frente da plataforma, a uma distância de um ou dois metros, estava um poste que tinha no topo um galho. Tínhamos, portanto, de nos lançarmos para o galho. Se falhássemos, caíamos, agarrados ou não, ao poste.

O outro obstáculo era o pórtico. Era constituído por uma vigas que faziam um quadrado, que tinha uma largura de 40 cm e estava a uma altura do chão de 6 metros. Tínhamos de subir por uma corda, trepar para a viga, fazer o perímetro e descer pela mesma e única via.

Outro era o trabalho de estrada. Uma vez por semana fazíamos este exercício: íamos a correr de Mafra ao João Franco, no Sobreiro, e regressávamos. As subidas eram feitas em passo rápido, o resto do percurso a correr, com as belas botas que nos enchiam os pés de bolhas, mais os 3,9 kg da G3 que levávamos às costas.

O dia da Infantaria é o dia 15 de Agosto. Este dia representa a vitória da Infantaria (rainha de todas as batalhas) no célebre quadrado da Batalha de Aljubarrota, em 1385, realizado por D. Nuno Alvares Pereira. Naquele momento, D. Nuno implorou a protecção de Nossa Senhora. Em seu louvor foi construído o Mosteiro da Batalha.

Durante a batalha, D. Nuno e os soldados passaram tanta sede naqueles dias de Agosto, que, simbolicamente, D. Nuno mandou lá colocar uma bilha com água que está junto a uma pequena capela, para mais ninguém ter sede naquele local.

Esta vitória representa também e acima de tudo a força de vontade popular (Infantaria) contra a aristocracia espanhola (Cavalaria) e, de um certo modo, também contra a aristocracia portuguesa vendida aos espanhóis.

Foi feito um convite aos cadetes para irem ate Fátima pelo dia 13 de Agosto. Fomos alguns. Fardados como cadetes, acompanhámos o andor de Nossa Senhora. Terminada a cerimónia fomos todos dormir para casa de um rapaz nosso colega, que tinha a sua quinta perto de Ourém. Uns dormiram em camas e outros no chão.

Foi uma noite passada cheia de alegria, com o José Megre a animar o serão, a contar as suas histórias das corridas de automóvel, por que tinha passado em Inglaterra. É um excelente contador de Histórias.

Tudo se passou. Aquele Convento de Mafra era sem dúvida uma fábrica de Oficiais.


(Continua)

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Nota de L.G.

(1)Vd. post de 3 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCV: Madina do Boé: 37º aniversário do desastre de Cheche (José Martins)

(2) Vd. posts de:

12 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXV: Paulo Raposo e Rui Felício, dois novos camaradas (CCAÇ 2405, Galomaro, 1968/70)

16 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIV: Victor David, CCAÇ 2405 (Dulombi, 1968/70)

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