segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3760: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (15): A minha homenagem aos que viveram a Guerra da Guiné. (J. Mexia Alves)

A "Retirada de Guileje"


Mensagem do J. Mexia Alves




Caros camarigos


Tenho lido com atenção todos os textos sobre a “Retirada do Guilege” e sobretudo este último do José Dinis, levou-me a pensar na dificuldade de analisarmos “friamente” o facto em discussão.
Com efeito a “Retirada do Guilege” tem um rosto, e esse rosto tem um nome que é o Coutinho e Lima.
Mas esse rosto é de todos nós conhecido, e está presente na nossa mente, nas nossas vidas quando pensamos no assunto.
Almoçámos com ele, falámos com ele, confraternizámos com ele, e sendo uma pessoa sem dúvida simpática e afável, sabendo nós que tem a sua família que preza como nós a nossa, é-nos muito difícil analisar uma decisão que tomou sem pesarmos nas nossas consciências o mal ou o bem que podemos fazer a essa pessoa que conhecemos.
Por isso mesmo, embora reconheça como muito difícil a tarefa, para analisarmos verdadeiramente a “Retirada do Guilege”, segundo a minha perspectiva, temos de nos “afastar” desse “rosto” e analisarmos os factos, as suas consequências e a decisão tomada.

O exercício que vou tentar fazer é com certeza, muito incompleto, provavelmente errado, talvez não totalmente isento (mas quem o é verdadeiramente), mas decidi fazê-lo, mais como pensamento para mim, mas que coloco à disposição de todos.
Em primeiro lugar parece-me que não podemos analisar uma situação destas de guerra, com o pensamento nas vidas humanas que se poupam ou se perdem.
Quer queiramos quer não, na guerra perdem-se vidas humanas e por isso mesmo a guerra deveria ser inadmissível entre seres que se dizem inteligentes, e aquela que travámos toda a gente o sabe, foi em certa medida uma guerra inútil e em muitas facetas injusta.
Porque se nos servimos das vidas humanas poupadas, temos desde logo que pôr em causa tantas decisões tomadas ao longo da guerra, mormente a resistência em Guidaje ou Gadamael.
Mas aí está, tendo como finalidade da guerra a vitória sobre o “inimigo”, a verdade é que em Guidage e Gadamael ganhámos e em Guilege perdemos, mesmo tendo em conta a hipótese avançada pelo Mário Fitas da retirada estratégica, porque pelo que percebemos ela nunca esteve no horizonte da decisão tomada.

Ao falarmos em Guidaje e Gadamael, temos de nos perguntar quais eram as suas guarnições em termos de unidades militares quando começaram essas duas batalhas específicas e quanto tempo demoraram a chegar os reforços, ou seja, quanto tempo se aguentaram com a “prata da casa”.
É que ao lermos o desenrolar dos acontecimentos em Guilege tudo se resolve muito depressa com a decisão da retirada.

Mas vamos a outros factores, que vou enunciar, tentando não fazer julgamento dos mesmos.
Logicamente não serão os únicos, mas são os que me ocorrem.
Por aquilo que nos é dado a conhecer, cito o post 3737:

“Desde 6 de Maio que os GC do Guileje não efectuavam qualquer saída do quartel (excepção à tentativa de coluna a 18Maio), o que os deixou sem uma segurança avançada e sem saber o que se passava para além do arame farpado”, não mais a tropa voltou a sair para a mata, nem para reconhecimentos rápidos da envolvente do quartel.
Ora uma das primeiras coisas que é ensinada aos comandantes das unidades em quadricula, é a importância de manter patrulhamentos constantes à volta dos quartéis, não só para controlar o inimigo, mas para defender exteriormente a unidade afastando o s possíveis ataques ou “golpes de mão”.
Quando não procedemos como nos é ensinado, acabamos por dar ao inimigo a liberdade territorial que lhe permite aproximar-se do quartel, flagelá-lo e até tentar um possível “golpe de mão”.
Há exemplos na Guiné como sabemos.
Pequenas unidades, como Pel Caç Nat, estacionados em destacamentos, por vezes extremamente isolados, e em zonas de guerra, não deixavam de sair duas a três vezes por semana para garantirem essa segurança, apesar de tudo efémera.
Estas saídas não dependem da vontade dos subordinados, logicamente, mas dos comandantes respectivos, em último lugar do primeiro comandante do aquartelamento.

Outro facto, tal como é relatado:

"Guilege (sic) pretendia que se bombardeasse todas as matas em redor do aquartelamento. Ao ser-lhe perguntado por que razão não utilizava a artilharia, reportou que procedia desse modo a fim de não referenciar a posição do quartel!” Post 3752
Para que serve a artilharia se não é utilizada?
Se o quartel está cercado, então a sua posição é perfeitamente conhecida, portanto não tem razão de ser este argumento.
Outra razão haveria, com certeza, mas que não conhecemos.
Sabemos bem como muitos comandantes se “batiam” para terem às vezes apenas e tão só uns morteiros 81 nos seus aquartelamentos, quanto mais obuses 14.
No Xime, cito porque conheço, os ataques eram sempre respondidos com a artilharia e não foi por causa disso que o quartel estava mais ou menos referenciado.
Julgo que a utilização dos obuses 14 poderiam ter sido um forte efeito dissuasor.

Outro ainda:

«A meu ver por falha do QG Bissau que até essa data, e ao contrário do que se passava em Guidaje, não autorizava a FAP a ir ao estrangeiro, e igualmente por falha do Guileje, que já não era capaz de indicar de onde tinham partido os ataques, limitando-se a afirmar “bombardeiem todas as matas à volta do quartel”. Post 3737
Não há dúvidas que existe uma falha do QG em Bissau, porque com certeza um bombardeamento da artilharia do PAIGC estacionada além fronteira aliviaria em muito a situação do Guilege.
No entanto e também a resposta dada (que não pode ser assacada a quem a transmitiu, mas a quem a ordenou), aos pilotos dos aviões por parte do Guilege revela um desconhecimento da situação e uma certa desorientação.
Sem referências específicas, os pilotos limitaram-se a largar bombas na mata.
De qualquer modo e como nos refere o piloto: "Tendo sido lançadas 16 bombas deste tipo nas matas entre o Guileje e a fronteira, a haver tropa do PAIGC nessa área, os efeitos teriam sido devastadores", (Post 3752), os homens do PAIGC teriam de ter sofrido fortes baixas e portanto saído das imediações do quartel.

Isto leva-nos a tentar perceber como é possível com um quartel cercado, pronto a ser invadido, executar uma retirada de cerca de 600 pessoas sem haver sequer um tiro ou qualquer outro problema, até com fotografias tiradas durante a retirada.

E aqui podemos pensar que o PAIGC não o quis fazer para não provocar um “banho de sangue”.
Mas então não tem sentido não terem entrado de imediato no quartel que já sabiam vazio!
O subterfúgio do gerador ligado, só tem sentido se o inimigo estivesse longe e então não estaria a cercar o quartel.
Mas também não se percebe como é que o PAIGC iria perder a oportunidade de desbaratar uma unidade inteira que retirava com população, pelo que a sua resposta a uma emboscada seria sempre muito discutível e algo desorganizada.

Ao PAIGC, envolvido numa frente de propaganda estrangeira da qual retirava grossos dividendos políticos, seria “ouro sobre azul” mostrar uma unidade ocupada e a maior parte dos seus ocupantes, Forças Armadas Portuguesas, presos ou abatidos.
Como se compreende que, segundo relatam, o PAIGC, que cercava o quartel e portanto teria de ter conhecimento do que se passava, continuar a bombardear o quartel e só o ocupar passados três dias?
Eu pessoalmente não vejo em nenhuma das descrições feitas algo que sustente que o quartel estava irremediavelmente perdido e que portanto devia ser abandonado, mas posso estar redondamente enganado.

Repito o que disse ao princípio, ou seja, que se analisarmos a “Retirada do Guilege” pelas vidas poupadas, temos de chegar à conclusão que a maior parte das decisões tomadas durante a guerra estavam erradas.
A verdade é que a guerra, esta como qualquer outra, estava errada e por isso mesmo se perdiam e perdem vidas humanas, o que nada justifica.
Se para além disso pensarmos nas vidas que estavam no Guilege e nós conhecemos, mais difícil se torna a analisar a questão do ponto de vista militar.
As decisões são tomadas face a muitos outros factores, e para esta concorreram forçosamente outras decisões de outros centros de comando.
Tenho a minha opinião, mas não a expresso agora.

De qualquer modo, repito o que disse no inicio, este exercício que fiz, muito incompleto, provavelmente errado, talvez não totalmente isento (mas quem o é verdadeiramente), não pretende julgar ninguém (quem sou eu para o fazer), mas ajudar a pensarmos juntos numa história o mais correcta possível do que se passou no Guilege.
Porque camarigos, mesmo que se chegue à conclusão que em termos militares a retirada foi um erro, há sempre um factor de peso para a considerar uma coisa boa, que são, agora sim, as vidas poupadas.

Ao Coutinho Lima e aos homens que com ele viveram este drama da guerra da Guiné, a minha homenagem e a minha camaradagem.

E a todos o meu forte e sempre abraço camarigo.

Joaquim Mexia Alves
__________


Notas de vb:

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9 comentários:

Anónimo disse...

Caro Joaquim Mexia Alves,

Gostei da tua análise!
Não há dúvida que as minhas expectativas se vão tornando realidade!
A velha verdade de que o azeite vem sempre ao cimo da àgua se confirmam.
Conforme os tempos vão decorrendo, como a àgua que procura sempre o seu leito natural, indiferente às tentativas de alteração do homem.
Aos poucos vamos construindo a história de uma guerra, com a sensibilidade e conhecimentos dela conforme os graus de conhecimentos dela.
Os "3G" na Guiné, vão-se tornando mais visíveis.
Finalizando meu caro Joquim camarada "Ranger", desculpa a minha análise, mas uma guerrilha que se prepara (para mostrar ao mundo a conquista e aniquilamento total de uma posição inimiga) chegar lá "três dias depois" e não avistar viva alma)! Só o Cavalo de Tróia!
Para mim é de uma frustrção terrível, apesar de se poder ter feito de maneira diferente... sem comentários que não levarão a lado algum, antes à fracturação.
Fico calado!
Mas o PAIGC!? Não sei...foi muito frustrante.

Um abraço do tamanho do Cumbijã!

Mário Fitas

Anónimo disse...

Pouparam-se vidas, é verdade,também porque os guerrilheiros do PAIGC não deram sequer pela retirada das NT.Encontravam-se a uns bons quilómetros de distância.
Mas se Coutinho e Lima tivesse aguentado Guileje, não se teriam depois poupado mais vidas no subsequente inferno de Gadamael?
Na vida não vivemos de "ses". Havia uma guerra na Guiné, Coutinho e Lima era um oficial superior, do quadro permanente do Exército Português.
Guileje demonstrou a fragilidade de um comando. Ia ser substituído pelo meu coronel páraquedista Rafael Ferreira Durão, do CAOP 1. E Durão não ia para Guileje sem levar consigo os páras. Era apenas uma questão de dias.Estamos a falar de guerra.

Guileje (e os outros dois Gs)foi muito importante porque levou a uma maior conscencialização da inutilidade da guerra, e apontou saídas para o fim de um regime retrógado, ultrapassado pela História. O movimento dos capitães
nasce na Guiné em Abril/Maio de 1973. Eu estava lá.
Seria curioso que Coutinho e Lima referisse para além da sua actuação como militar, (cuja justeza ou não justeza me abstenho de comentar)a importância política do seu abandono de Guileje.
Um abraço,
António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Meu caro Mário Fitas

Sem dúvida que se a coisa tivesse sido pensada assim teria sido realmente uma estratégia de guerra brilhante, só que não o foi.

De qualquer modo, com a propaganda que na altura o PAIGC, como nós aliás, fazia, a coisa seria sempre dada para o estrangeiro como um abandono em fuga das nossas Forças Armadas, como com certeza não duvidas.

Abraço camarigo do
Joaquim Mexia Alves

Anónimo disse...

Meu caro António Graça de Abreu

Como lês naquilo que escrevi, para fazermos uma análise militar da situação, tão fria quanto possível, temos de nos afastarmos das vidas humanas poupadas ou perdidas.

Pela minha análise podes compreender bem qual é o meu entendimento da situação.

No entanto, tal como tu, «cuja justeza ou não justeza me abstenho de comentar», também não faço julgamentos.

Dou no entanto a minha solidariedade àqueles que passaram por tal experiência, como a todos os outros envolvidos na guerra, até porque como sabes bem, estas decisões, certas ou erradas, pesam sempre nas nossas vidas, como com certeza pesaram na vida daqueles que as tomaram.

Agora com certeza que tens razão, o abandono do Guilege permitiu ao PAIGC exercer maior actividade sobre Gadamael aumentando assim com certeza as baixas nesse aquartelamento.

Abraço camarigo do
Joaquim Mexia Alves

Anónimo disse...

No período em que estive em Gadamael(Junho e Julho de 1973), não vi o coronel Rafael Ferreira Durão!
Quando chegamos, apenas vimos o capitão Monge e só no primeiro dia!
Como disse atrás, noutro comentário, os páras eram comandados pelo Tenente-Coronel Araujo e Sá.
Um abraço,
Bernardo Godinho

Anónimo disse...

António Graça de Abreu dixit:
-"Estamos a falar de guerra"
-"O movimento dos Capitães nasce na Guiné em Abril/Maio de 1973. Eu estava lá."
Porque a Intedência também foi à guerra (leiam-se as análises tácticas e estratégicas),podemos concluir que o A.G.A. esteve no movimento dos Capitães? Ou somente que estava na Guiné em Abril/Maio de 1973?
Também qualquer um pode afirmar: O 25 de Abril fez-se em Lisboa. Eu estava lá. (Embora não tenha saído de casa por estar borrado de medo).
Alberto Branquinho

Anónimo disse...

É verdade! O 25 de Abril foi em Lisboa, e não só.
Mas ponho-me sempre esta questão:
Se o Povo não tivesse saído para a rua como seria? Houve de facto muita gente que ficou em casa. Mas se não se tivesse enchido o Largo do Carmo e outros locais mais? Se os sindicatos não tivessem mobilizado as suas gentes? Ou será que ainda é uma História para fazer?

Mário Fitas

Anónimo disse...

Eu não falo do meu umbigo, meu caro Alberto Branquinho, nem mando atoardas.
No meu Diário da Guiné, Lisboa, Gerra e Paz Editores, 2007, pag. 102, 103 3 104, encontras todos os elementos que justificam a minha afirmação "eu estava lá", no que à génese do movimento dos capitães diz respeito.
Um abraço,
António Graça de Abreu

Anónimo disse...

António Graça de Abreu
Apresso-me a agradecer o esclarecimento constante do comentário anterior.
Um abraço, também.
Alberto Branquinho