terça-feira, 26 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8605: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (11): O Soldado Milhais ou O Soldado Milhão

1. Em mensagem de 11 de Maio de 2011, Belmiro Tavares, (ex-Alf Mil, CCAÇ 675 Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), recebemos esta memória:

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (11)

O Soldado Milhais
ou
O Soldado Milhão



No ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1911 foi instituído em Portugal o Registo Civil Obrigatório; até esta data os registos de nascimento eram elaborados pelos párocos no Livro de Assento de Nascimentos existente nas Paróquias.

A inscrição do neófito no dito livro era feita mais ou menos nestes termos:
- No dia – do mês – do ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de – baptizei uma criança do sexo – a quem dei o nome de –; era filho (a) – natural de – e de -; seguia-se os nomes dos avós paternos e maternos. Os apelidos (sobrenomes) dos pais eram mais tarde acrescidos sem regra ao nome da criança e sem qualquer registo.

Isto serve de intróito para transmitir aos leitores que no dia 9 de Julho de 1895 nasceu em Valongo e foi baptizado na freguesia de Murça (Mirandela) um rapaz a quem o padre, segundo proposta paterna, pôs o nome de Aníbal Augusto; era filho natural de António Manuel e de Umblina Rosa de Milhais, agricultores daquela freguesia.

Os anos passaram; a criança foi crescendo até deixar de sê-lo; em 1916 o mancebo Aníbal Augusto de Milhais assentou praça na RI 19 em Chaves com o n.º 469 da 3.ª Companhia do 1.º Batalhão.

Em 23 de Março de 1917, em plena GG, embarcou para França tendo participado activamente na chamada “guerra de trincheiras”; notabilizou-se na batalha de La Lys em 9 de Abril de 1918 e no combate de Huit Maisons.

O soldado Milhais, sendo o n.º 1 da guarnição da metralhadora, retardou o avanço da tropa alemã, não abandonando o seu posto, indiferente ao perigo, senão quando, portugueses e escoceses já tinham retirado (talvez debandado) em relativa segurança.

Com a sua inaudita coragem, valentia e lusa bravura impediu que muitos companheiros fossem feitos prisioneiros ou abatidos. Houve inúmeros mortos, é certo, mas muitos mais seriam se o destemido Milhais não agisse como bravo e indómito português.

Depois da batalha, já em local mais seguro, no campo de Isberg, o comandante Ferreira do Amaral mandou formar o Batalhão; no meio da “parada” chamou o bravo soldado Aníbal Augusto e, abraçando-o calorosamente, exclamou:
- Tu és Milhais mas vales milhões!

A partir dali, o bom do Aníbal Augusto passou a ser conhecido por o Milhão ou o Milhões.

Em 15 de Julho de 1918 foi louvado porque “realizou voluntariamente a defesa do seu posto, manejando a sua metralhadora com Valor, Lealdade e Mérito, indiferente ao foco das metralhadoras e da artilharia inimigas”.

Pelos seus feitos excepcionais em combate e ao serviço da Pátria, foi condecorado com a Cruz de Guerra de 1.ª classe, com a Torre-e-Espada, com a Cruz Leopoldo da Bélgica, entre outras.
A condecoração Torre-e-Espada foi colocada no peito do Milhais pelo general Gomes da Costa.
Em 1919 foi-lhe atribuído um prémio de 1.000 liras por uma sociedade italiana.

Nota: Não sabemos quanto valeriam naquela época as 1.000 liras; o câmbio, certamente, não seria o mesmo do nosso tempo.

Terminada a guerra o Milhais regressou à Pátria e à aldeia que viu nascer, coberto de glória.
Creio que ele terá sido, até hoje, o único soldado a ser condecorado com a Torre-e-Espada, a mais prestigiosa condecoração nacional.

Em 1924, a cidade do Porto promoveu uma recepção triunfal para realçar o valor dos seus actos extraordinários em companhia e ao serviço da Pátria. A sua terra natal, a aldeia de Valongo, passou a partir de então a chamar-se Valongo de Milhais em honra ao heroísmo e bravura do seu filho, mais ilustre.

Durante o governo “dá outra senhora” o Almirante Tomás, então presidente da República, deslocou-se a Murça para inaugurar uma escola (não juro que era mesmo uma escola... mas isso pouco interessa). O herói, soldado milhão, retirou do fundo duma arca carunchosa a sua velhinha farda militar com cheiro acre a bafio e a naftalina; aperaltou-se com rigor para assistir, bem de perto, à inauguração da escola (ou cemitério?).

O velho almirante presidia à inauguração de tudo quanto vinha à rede; Não foi ao casamento da princesa Margarida, porque, segundo constava, de inauguração já não se trataria!

O Milhais não esqueceu as suas estrondosas, imponentes condecorações com, que fora galardoado por inauditos e inigualáveis feitos.
No meio da multidão (uns para assistir à inauguração, outros para ver o presidente e outros por tudo ou por nada) o Milhais conseguiu chegar perto do venerando presidente. Este logo reparou na estranha e velha farda envergada por um cidadão comum, de tez queimada do sol. Apercebendo-se do elevado valor das condecorações exibidas perfilou-se, empertigou-se (peito para fora, barriga para dentro, pelo menos em pensamento) e prestou a merecida e obrigatória continência; o nosso herói correspondeu... e permaneceram os dois frente-a-frente em “correcta” continência durante mais de um minuto... e assim continuariam por muito o mais tempo se um dos presentes não sussurrasse ao bom do Milhais:
- “Desfaz a continência, pá!”
Ele obedeceu.

O presidente, já trémulo e cansado, ficou profundamente grato a quem fez a tal sugestão salvadora. Se tal não acontecesse, muito provavelmente, os dois estariam ali frente-a-frente com a mão na testa... até ao fim da semana seguinte!

O presidente sabia que não devia desfazer a continência em primeiro lugar; o Milhão desconhecia que naquele momento “era superior” (a sua condecoração) ao Almirante e ao Presidente ou aos dois juntos.

Seguidamente o Presidente abraçou calorosamente, respeitosamente, o desconhecido soldado Milhão.
O nosso herói (pé rapado) faleceu em 1970; pode dizer-se que expirou no meio duma tremenda miséria a que só a morte pós termo.
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Somos de opinião que as condecorações foram instituídas para serem atribuídas a quém voluntariamente, fez por merecê-las por feitos desmesurados em combate e ao serviço da Pátria. Mas... apesar dos actos praticados... o comandante a quem cabe a atribuição das condecorações deve conhecer profundamente quem vai ser condecorado e ilucidá-lo das “paladas” a que ele (a condecoração) passa a ter direito para evitar situações embaraçosas como a que acima foi narrada.

Por outro lado é sabido que o Milhais passou grande parte da sua vida a apascentar rebanhos d’outrem, a troco dumas magras moedas; tinha também o direito de comer, diariamente, no meio do campo, um naco de broa, que levava no bolso, com um pouco de leite que subtraía à cabra ou à ovelha; era o seu lauto almoço de cada dia.
O Milhais não necessitava de tão altas condecorações... para pastorear rebanhos alheios! É caso para dizer: - o peito coberto de glória... e a barriga anexa a dar horas!

E se as condecorações, pelo menos a(s) de mais alto valor, fossem acompanhadas duma tença para que o homenageado pudesse levar uma vida mais desafogada?!

Melhor fizeram outros ao nosso grande Luís de Camões, o Épico, nos idos anos de 1500, embora não se saiba ao certo se a tença que lhe atribuíram era suficiente para viver sem grandes preocupações.

Um pouco de pragmatismo não faz mal a ninguém.

Lisboa, Maio de 1911
Belmiro Tavares
Ten. Mil.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8596: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (10): Oficiais não viajam em 2.ª classe

3 comentários:

José Marcelino Martins disse...

Caro Belmiro Tavares

Mais uma história, tendo como cenário aqueles a quem chamam povo, mas que no fim somos todos e cada um de nós.

O Milhais ou o Milhões, como ficou conhecido, não foi o único soldado, entenda-se praça de pré, a ser condecorado com a Torre Espada, que tem vários graus, com a competente correspondência a patentes militares, das quais a mais alta é comparada ao posto de Tenente Coronel. Não afirmo, pois que estou a relembrar algo que lí.

Creio, no entanto, que foi o último.

Para que o Soldado Milhões não fosse o primeiro, outros houve, pois que um destacamento de soldados em Moçambique que no dia 27 de Dezembro de 1895, aprisionaram o Gungunhana.

Tenente de Artilharia Aníbal Sanches de Miranda,
Tenente de Infantaria José da Costa Couto,
Alferes Graduado Médico Francisco Maria do Amaral,
2º Sargento de Infantaria José Bernardo Dias,
1º Cabo de Infantaria Joaquim Marreiros, Francisco de Oliveira e Simão Inácio Paiva,
2º Cabo Servente de Artilharia António Lopes,
Soldado de Artilharia Manuel Bento, Joaquim Coutinho, António José Ferreira, Eliseu Nogueira, Manuel dos Santos, Augusto Chibante e João da Silva,
Soldado Corneteiro Braz Vitorino,
Soldado Servente de Artilharia Manuel Mendrico, José Monteiro e António Cordeiro,
Soldado de Cavalaria Joaquim Pedro de Sousa,
Soldado de Infantaria José Ferreira, António Lourenço, Manuel da Silva, José Leonor, João de Sousa, Manuel Martins, Inácio Gonçalves, Caetano Maria, Inocêncio, António Mestre, Francisco António, José Nunes Fernandes, Francisco dos Santos, José Domingos, António Jerónimo, José Cipriano, José Domingos (2º), Inácio Guerreiro, Domingos da Silva Carneiro, Francisco Condeça, Inácio António Batata, Joaquim Duarte Mimo, José António, Pedro da Costa, Joaquim Gomes, Manuel Lopes, Manuel Martins e José da Rocha,
Policia José Purificação
Soldado Indígena Manuel Afonso da Silva Oliveira
Soldado de Caçadores Aleixo

Os militares condecorados pertenciam aos Exército do Reino e estavam colocados nas seguintes unidades:
Bateria de Artilharia de Montanha,
Artilharia nº 3 e Artilharia nº 4,
Cavalaria nº 1,
Infantaria nº 2, Corpo de Policia de Moçambique e
Batalhão de Caçadores nº 3 de Moçambique

Notas:

Os médicos eram conhecidos pelo título de facultativos;
Os sargentos, na altura, eram considerados “praças de pré”;
Na altura havia o Exercito do Reino, estávamos em Monarquia, e o Exército Colonial. Depois da instauração da República o Exercito do Reino passou a chamar-se Exercito Metropolitano.

Hélder Valério disse...

Caro camarigo Belmiro Tavares

Essa história passou-se faz já alguns anos, mas parece que pouca coisa mudou, verdade?

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Não foi o único nem o último. A questão é que alguns nos aparecem como furriéis milicianos. Temos o 1.º cabo Ângelo dos Santos Rodrigues, que, segundo a lista do Diário de Notícias era 1.º cabo, mas na lista do Ultramar.terraweb nos surge como fur. mil. E temos também o sold.maqueiro Manuel Marques Sardão, também nos surge como fur.mil. A este último foi erigido um monumento e dado o seu nome a uma rua da Figueira da Foz. Num comentário de José Manuel Sande, em
http://cart3503.blogspot.com/2008/10/o-dia-em-que-comandei-companhia.html
fala-se precisamente no facto de o soldado Sardão ter sido promovido a fur.mil. a título póstumo. E questiona: "nunca percebi se promovido para poder receber a condecoração, se por a ter recebido". Sardão, ferido numa emboscada em Cabinda (22 de Outubro de 1965), não olhou o seu estado (de que viria a morrer nesse mesmo dia), mas ao apoio de que necessitavam os seus camaradas feridos. Nesta mesma emboscada o 1.º cabo Ângelo Rodrigues foi também condecorado com a TE.
Quanto à equivalência dos graus aos postos militares: a mais alta é comparada a oficial general; a mais baixa a alferes (ultramar.terraweb).
Um decreto de 1986 atribui uma pensão - correspondente ao ordenado mínimo - aos detentores da TE, desde que aposentados ou reformados e que provem carecer "de meios de subsistência suficientes".

Parece até impossível: então é-se condecorado por feitos extraordinários e - talvez para não acontecer o que terá acontecido ao soldado Milhões" - dá-se uma pensão miserável e desde que careça de meios de subsistência. NOTE-SE AINDA: se for condecorado com mais do que um grau, só pode receber uma pensão. A família (viúva, filha solteira e filhos menores) ficam com o direito à pensão, que será dividida entre todos (decreto-lei 414-A/86).

Abraço,
Carlos Cordeiro