HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (21)
O Oio
Visita de Cortesia
No dia 5 de Agosto de 1964, durante uma “batida” lá para as bandas de Sambuiá – naquela época era a base independentista mais poderosa a norte do Cacheu – o Cap. Tomé Pinto, excelso líder indomável da C Caç 675, foi gravemente ferido. Uma granada de morteiro explodiu ao embate num ramo duma árvore; um estilhaço atingiu-o num ombro, indo alojar-se – soubemos mais tarde – a um centímetro da pleura.
O bravo capitão continuou a comandar não só os seus homens das espingardas, mas também a dar ordens precisas e duras do enfermeiro que o tratava o melhor que sabia e podia em pleno mato. Minutos depois foi a vez do Fur. Enfermeiro – o nosso Jero – receber ordens minuciosas e claras daquele ferido autoritário e persistente.
Infelizmente, ele já havia sido gravemente ferido em Angola e... portanto sabia da poda! Podemos afirmar.
O Capitão foi pouco depois helitransportado para o Hospital Militar de Bissau, onde permaneceu “apenas” 25 dias porque entretanto... “literalmente... fugiu” do Hospital – caso estranho!
Sobre este assunto aconselhamos a leitura do “Diário” da CCaç 675 da autoria do Jero.
Durante a ausência do Capitão, alguém preparou, para o dia 30 de Agosto de 1964, uma operação de certa envergadura na qual a CCaç 675 deveria participar.
Tratava-se (para nós) duma visita ao lendário Oio, onde Morés pontificava como o “santuário inviolável” dos guerrilheiros. Esta região seria... como a Sibéria (não no tocante à temperatura ambiente, claro): todos sabiam onde ficava... mas ninguém queria ir lá!
No hospital, o Cap. Tomé Pinto teve conhecimento desta operação (caso contrário não seria secreta como deveriam ser todas operações militares). Imediatamente, ainda debilitado e sem ter “alta”, o nosso animoso comandante “abandonou” o hospital e conseguiu logo transporte aéreo para Farim. Daqui para Binta, seguiu num bote de borracha (que ousadia!) acompanhado pelo Comandante do BCav 490, Ten. Cor. Fernando Cavaleiro.
Chegado a “casa”, recebido com exuberantes manifestações de alegria sincera pelos seus subordinados, logo o nosso valoroso chefe iniciou o planeamento da estranha e inesperada operação (na parte que à CCaç 675 dizia respeito).
Era a primeira vez que íamos actuar fora da nossa zona; a encrenca maior seria mesmo a nossa entrada no Oio real e ao vivo.
A norte, aquela zona tinha como limite a margem esquerda do rio Cacheu; na outra margem do rio localizava-se Binta, a sede da nossa Companhia.
Para entrar naquela fantasiosa região bastava-nos portanto atravessar o rio para sul.
Localização do aquartelamento de Binta na margem direita do Rio Cacheu, e da tabanca do Morés, entre Mansabá e Bissorã
Para participar naquela operação, tão perigosa quanto nova, em terreno alheio e desconhecido, o meu pelotão encontrava-se em situação bastante melindrosa pois eu não dispunha de nenhum comandante de secção: um, devido a ferimentos graves em combate, em 4 de Julho, fora evacuado para Lisboa e ainda não havia sido substituído, como veio a acontecer; outro estava de baixa; ao terceiro, horas antes, o médico havia extraído, a sangue frio, a unha do dedo grande do pé.
Pouco antes do embarque, eu expunha a situação ao meu pessoal, dando uma espichadela das antigas aos cabos para que assumissem deliberadamente o comando das respectivas secções, quando o Fur. Moreira se juntou ao pelotão, a coxear e calçando alpercatas. Este seria o calçado menos apropriado naquela situação; além das dificuldades normais, grande parte do percurso seria feito dentro da água pútrida das bolanhas lamacentas da margem esquerda do Cacheu.
- Que fazes aqui?! Onde pensas que vais?! Perguntei eu ao voluntarioso Fur. Moreira que, naquela hora, já tinha uma unha a menos.
- Vou comandar a minha secção! O senhor não pode ir para o Oio sem nenhum furriel!
- Agradeço a tua preocupação e boa vontade! Mas é preferível ir sem furriéis do que apenas com um... em manifesta inferioridade física! Além disso eu conto com os meus cabos... que são bons como sabes. Vamos percorrer grande extensão de bolanhas e tu sujeitas-te a contrair uma melindrosa infeção de consequências imprevisíveis e nefastas para ti! Vai tratar-te! Terás muito tempo para mostrar o que vales! Mais uma vez reconheço e agradeço a tua voluntariedade e preocupação mas... assim não! Tu ficas! Sai da formatura!
Tenho a certeza que alguns “gostariam” de se encontrar naquela situação... para não participar numa temerosa visita aos incómodos “turras” do Oio.
Fur Mil Moreira... fora de combate
A travessia do Cacheu, utilizando uma LDM (que ali comparecera para esse fim), foi rápida, segura e eficiente, no meio dum silêncio, diria, ensurdecedor. Só se ouvia o ruído do motor da barcaça e o chilrear da passarada, surpreendida por tanta azáfama, àquela hora.
Acabada a travessia, a LDM seguiu rio abaixo... para despistar, voltando pouco depois ao “porto” de Binta onde aguardaria o nosso regresso à base.
A margem do outro lado iniciava-se com uma extensíssima bolanha; atravessámo-la utilizando um caminho sobre-elevado que não era usado havia muitos meses. Era por esta via que, antes da guerra, a população do Oio transportava a mancarra para o “porto” de Binta – o 2º porto mais movimentado da Guiné – donde era “exportada” para Lisboa.
Antes do fim da zona pantanosa voltámos à direita, entrando na bolanha lamosa, com mil cuidados e sem ruídos para não acordar o inimigo que pernoitaria, nas calmas na aldeia ali próxima (merecia ser respeitado); passámos ao largo de Gebacunda e também próximo de outras tabancas sem que ninguém se apercebesse da nossa presença por ali, fora de horas.
Seguimos depois ao longo doutra bolanha que se prolongava extensamente para sul; ora na lama, ora em terreno enxuto aproximávamo-nos a passos largos da estrada Farim/Mansabá.
A nossa missão terminava numa tabanca de nome “Fátima”, já relativamente próxima daquela via.
Beneficiámos do efeito surpresa, provavelmente, porque o inimigo não esperava a nossa visita; consideraria improvável que a tropa de Binta, por mais intrépida que fosse, ousasse atravessar o Cacheu e, penetrando profundamente no Oio, sem o seu conhecimento nem consentimento e iniciasse a “batida” a sério apenas no regresso que já não demoraria muito. Calcularam mal!
Fátima foi cercada e destruída... ao amanhecer. Agora, com os guerrilheiros já alertados e à nossa espera, íamos iniciar o regresso. Uma após outra, todas as aldeias, ao longo do nosso percurso foram rapidamente riscadas do mapa. Houve poucos contactos com o Inimigo! Surpresa!
Para o fim ficou Gebacunda, que era a mais próxima do nosso quartel.
Numa das aldeias – já não recordo se em Tambato Mandinga se em Gebacunda – aprisionámos um padre Mandinga, ricamente paramentado.
Não houve mais prisioneiros porque as forças do PAIGC, apercebendo-se da nossa presença inoportuna, de surpresa, e fatal, obrigaram a população a abandonar as tabancas, procurando refúgio nas matas próximas.
Destruída a última aldeia, já com a tão desejada povoação de Binta no horizonte, a cerca de 3Km de distância, avistámos um grupo armado que corria em direcção ao rio. Quebrada a surpresa, a emboscada que pretenderiam montar na “estrada” que atravessava a bolanha em direcção ao Cacheu, não poderia surtir grande efeito. Na dúvida, corremos logo, diminuindo rapidamente a distância que nos separava deles; apercebendo-se da nossa perseguição e sob fogo intenso, debandaram em direcção à mata onde se sentiriam mais seguros. O caminho da bolanha ficou livre para que passássemos “tranquilamente” – até parece!
Aprenderam, à sua custa, que com a tropa de Binta... não se brinca! Com estes guerreiros... todo o cuidado é pouco!
Nós apercebemo-nos que os guerrilheiros do Oio, afinal, não eram os tais papões de que tanto se falava; eram idênticos aos da nossa zona; foram atraiçoados pela surpresa!
Mais 2 ou 3Km algo penosos e depois de 12 horas de “passeio” em terras do tristemente célebre Oio, concluímos que os combatentes daquela zona não eram donos da fama que se apreguava. “não são tão ferozes como os “pintam”... dizíamos; “estes”, sim, são extremamente ferozes, demolidores e mortíferos.
Depois do almoço e de um curto mas merecido repouso, o nosso capitão elaborou minuciosamente o relatório daquela “guerra” o qual enviou para a sede do Batalhão, transmitindo com pormenores como tudo aconteceu e também a captura do padre mandinga.
Este “prisioneiro” era alto e bojudo; como soe dizer-se: “tinha barriga de abade” – pele lustrosa, vestido com ostentosos paramentos garrridos, onde o verde abundava; parecia ter um nível cultural e social acima da média. Nunca esteve na prisão (que não tínhamos) relacionou-se bem com os seus captores, tornando-se um “hóspede” simpático e delicado.
O médico, Dr. Martins Barata, bom Galeno e divertido era o seu companheiro preferido; deslocavam-se juntos por todos os recantos do aquartelamento. Com ele, o médico ia aprendendo a “língua mandinga” e uns rudimentos de árabe.
O médico divertido... e o autor.
Como era habitual nos quartéis de cá, também em Binta, o cabo cozinheiro levava diariamente a prova do rancho ao capitão, ao médico e ao oficial de serviço.
Um dia, o médico provou o rancho em plena rua, estando acompanhado, como habitualmente pelo “prisioneiro”... que não era. O médico perguntou-lhe se queria provar; o padre olhou em redor; como não viu nenhum negro (mandinga) pegou no copo do vinho e “secou-o” num ápice.
Lá como cá... “olhai para o que eu digo”...!
O sacerdote fez constar que as suas duas mulheres viviam no Senegal, junto de familiares; que, se o capitão autorizasse, qualquer dia iria com a tropa até Guidage e traria as duas mulheres para Binta, onde gostava de viver; para o Oio... onde só voltaria depois da guerra.
Nós viajávamos frequentemente até Guidage para reabastecer a tropa ali estacionada e para recolher os nativos que se tinham refugiado no Senegal para fugir às agruras da guerra e agora, pretendiam regressar a Binta onde a tropa lhes proporcionava boas condições de vida: segurança, trabalho, pão e progresso.
Numa dessas viagens, volvidos mais de trinta dias sobre a sua captura, o “padre”, devidamente autorizado (verbalmente), viajou connosco até Guidage. Passou livremente a fronteira e embrenhou-se no Senegal. Transmitimos-lhe que, quando voltasse, aguardaria transporte para Binta naquele posto fronteiriço, até que lá voltássemos.
O padre mandinga (bojudo) e o acólito
Poucos dias volvidos, aconteceu o inesperado: recebemos do BCav 490 uma mensagem rádio solicitando que entregássemos em Farim, urgentemente, o dito “padre”. Ele não seria um ecliástico mas... era um perigoso terrorista. Ficámos atónitos, pois tínhamos convivido lado a lado com o prisioneiro inimigo... à solta dentro do quartel. Mais de 30 dias depois da captura e do relatório em que se tinha comunicado o seu apresamento, “lembraram-se” que o individuo, afinal, era suspeito e perigoso.
Transmitimos ao Batalhão o que tinha acontecido... não se falou mais no assunto a não ser para ironizar: tínhamos um prisioneiro... à solta; não quis ficar! Foi-se! Escafedeu-se!
Lisboa, 10 de Fevereiro de 2012
Belmiro Tavares
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 7 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9327: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (20): O plágio
3 comentários:
Caro camarigo Belmiro Tavares
Ora muito bem. Foste com a CCaç "a pé a Fátima", na Guiné, onde existiam muitas "Fátima". Mas esta tem para mim(e talvez igualmente para o co-editor CVinhal, a quem envio um grande abraço), como contei aqui, um significado especial. É que anos mais tarde eu não cheguei lá...
Nesse tempo(1971) havia por ali perto uma base IN bem dotada de "foguetório" e só mais tarde o Vitor Junqueiro "limpou aquilo", quando eu já estava no "bem bom" do CAOP-1 em TPinto.
Apenas uma mera "correcção" para dizer que se situava quase sobre o itinerário Farim-Olossato-Bissorã, mais propriamente, se olharem para o mapa apresentado, na picada Solinto-Madina Mandinga-Gebacunda.
Abraço
Jorge Picado
O meu CMDT Jorge Picado comentou antes de mim.
Eu vinha também dizer ao camarada Belmiro Tavares que a CART 2732 fez igualmente uma peregrinação a pé a Fátima do Oio, mas a experiência não deixou boas recordações. Em Fátima como no Morés, em 1971 e seguintes, respirava-se um ar muito pesado. Por tudo e por nada chovia manga de morteirada. Era mesmo má vontade para com a vizinhança.
Confirmo a localização de Fátima a Oeste da estrada Bissorã-Olossato-Estrada Mansabá/Farim, conforme indica o Jorge Picado. Vd. Carta de Mansoa.
Abraço
Carlos Vinhal
Meus Caros Amigos & Camaradas
Pois é, de facto o Jorge Picado tem razão, Fátima fica próximo do K3, na picada para o Olossato e muito longe do Morés e de Mansabá.
No meu tempo 69/71, era zona de intervenção do m/ Bat Caç 2879 - Sector O2 Farim, assim como Binta que também era no tempo do Belmiro.
Fátima era de facto um Santuário, onde toda a malta que esteve na zona de Farim e alguns de Mansabá, mais tarde, por lá passaram, porque em 1969, não sequer lá punham os pés, na medida em que, nem havia ligação de Mansabá para o K3, onde estive.
Em Agosto de 1969, a minha CCaç 2548 fez uma peregrinação apeada ao Santuário de Fátima-Solinto-K3 e quando a procissão de fila indiana passou na zona foi recebida com foguetes. Foi o baptismo de fogo da CCaç 2548. Emboscaram a frente e a rectaguarda da procissão, mas felizmente não houve problemas para as NT. Ainda deu tempo para fazer um ronco, pois capturaram uma cabra para festejar a festa em Farim. Ainda bem que não participei nessa operação àquele Santuário.
Mas digo-vos, quando o meu pelotão esteve em Agosto e Novembro no K3, aquilo era uma estância de férias. Quem não atacasse o ninho de vespas, andava por ali em beleza. Dava para caçar perdizes, galinhas do mato e gazelas, foi dos melhores tempos que passei na Guiné.
Recebam um abraço
Carlos Silva
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