sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10740: Notas de leitura (433): "Elites Militares e a Guerra de África", por Manuel Godinho Rebocho (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Setembro de 2012:

Queridos amigos,
É preciso ler tudo, de fio a pavio, e reler cuidadosamente.
Temos aqui uma tese de doutoramento transformada num ajuste de contas com os oficiais do quadro permanente, incompetentes, fora do tempo, sem o sentido da liderança.
Fala-se na guerra de África mas as histórias fundamentais aqui descritas passaram-se na Guiné, sob a lente do doutor Rebocho.
Quem imagina que nas teses de doutoramento é totalmente impossível praticar assassinatos de caráter, então desiluda-se. O doutor Rebocho ensina que se chegou ao 25 de Abril, ao 28 de Setembro, ao 11 de Março e ao 25 de Novembro porque havia duas fações em disputa, irá ganhar a do quadro permanente.
Por favor, leiam este livro.

Um abraço do
Mário


A “milicianização” da guerra (2)

Beja Santos

A tese de doutoramento de Manuel Godinho Rebocho suscita a controvérsia. O título é “Elites Militares e a Guerra de África”. Os exemplos que vai buscar são predominantemente extraídos da Guiné e da sua vivência enquanto paraquedista, iremos ficar a saber os desaguisados que teve com vários oficiais. É impiedoso em referências a oficiais de carreira, de capitão para cima. Os cadetes da Escola Militar queriam era conforto, os milicianos que fizessem a guerra. A partir de 1970, formaram-se mais de 160 capitães milicianos por ano, situação que iria ter consequências quando os milicianos passaram a ingressar e a engrossar o quadro do complemento, a faísca virá de um decreto de 1973 que abrirá caminho para uma guerra de fações que irá desaguar no 25 de Abril. E num documento que devia ter probidade científica, o novel doutor dá como comprovado que houve lutas assanhadas entre os oficiais milicianos à volta de Spínola e os oficiais elitistas do quadro que apoiaram Costa Gomes. Não, isto não é para rir, vale a pena acompanhar o que escreve o doutor Rebocho, o que também dá pretexto para se rever a matéria do texto anterior.

Primeiro, os oficiais do quadro permanente foram fugindo do mato, ficaram acantonados nas sedes de batalhão (CCS) e na miríade de serviços relacionados com a gestão militar, não esquecendo o Estado-Maior que se revelou quase sempre incompetente ou fora das realidades. Foram os milicianos progressivamente que passaram a tomar conta das unidades de combate.

Segundo, vá de fazer a história da formação das elites militares, assim se irá concluir que nas campanhas de África do fim do século XIX começaram a brilhar os milicianos. O doutor Rebocho não concretiza nomes, mas pensamos tratar-se de Aires d’Ornelas, Mouzinho de Albuquerque e Teixeira Pinto. É evidente que muitos oficiais milicianos se distinguiram nas campanhas de África daquele tempo como mais tarde na Flandres. Mas fazer disto doutrina… O grande drama destas elites militares (quadro permanente, entenda-se) é que elas privilegiaram a formação científica/cultural e apoucaram a vocação e a experiência.

Terceiro, é bem verdade que na transição da década de 1950 para 1960 os altos comandos previram e propuseram reformas, aliás, na época até sopravam os ventos da NATO e já havia guerras de guerrilha para comparar, mas não houve reformas de fundo, o corpo de oficiais teve uma formação elitista, como estivesse a ser preparado para uma guerra convencional. Trata-se de gente saída predominantemente das classes médias, estavam centrados numa formação universitária, etc., etc.

Quarto, não há nada como ir buscar exemplos. Veja-se o BART 2865, foi-lhe atribuído o sector de Catió, em Fevereiro de 1969. Entre Fevereiro e Outubro de 1969 este batalhão formou 4 companhias, uma delas deslocou-se para o Norte da Guiné. Tinha adstritos vários pelotões e um dispositivo de quadrícula onde cabiam Catió, Cabedú, Cufar, Bedanda, Guileje, Gadamael Porto, Ganturé, Cacine e Cameconde, ou seja 9 unidades fisicamente separadas. O comando era, quase sempre exercido por oficiais de patente muito inferior à que seria normal. Contudo, o número de baixas foi reduzido e os atos de indisciplinas escassos. O que é que isto traduz? O factor humano era o elemento decisivo. O doutor Rebocho decidiu inquirir Canha da Silva, então capitão oriundo da Escola Militar que deu provas de liderança em empreendimentos essenciais como o reordenamento de Mato Farroba. Mas outros dois oficiais do quadro permanente que o novel doutor investigou revelaram ser oficiais que nunca o deviam ter sido. Um, Coutinho e Lima, esteve na Guiné de 1963 a 1965. Lê-se a documentação e o que é que salta à vista? 50 praças e sargentos desta companhia foram punidos, o que atesta a inapetência para o comando de Coutinho e Lima. A comissão do capitão Vasco Lourenço, está escrito textualmente, foi uma nódoa, o rancho miserável, as condições de alojamento péssimas, o armamento em mau estado de limpeza e conservação, e por aí adiante. Spínola encolerizou-se. Resultado: Vasco Lourenço não tinha aptidão para comandar. Lá para o fim da comissão, a companhia de Vasco Lourenço executou uma operação, “Última Vendetta”, durante a qual destruiu 44 moranças, 58 vacas, 15.700 kg de arroz, 1 porco, 60 molhos de capim, e por aí adiante.

Como este trabalho é científico, e o doutor Rebocho, por imperativos universitários, não pode abandonar a neutralidade, então escreve: “Operacional fui eu, em tropas de elite, durante 26 meses e nunca a minha companhia destruiu qualquer produto alimentar da população”. Será que Vasco Lourenço foi incompetente por mandar destruir alimentos destinados a apoiantes do PAIGC? E depois apanhamos uma injeção das tropas paraquedistas e elogios sem conta à unidade militar do doutor Rebocho, o BCP 12. E para demonstrar o quê, já que estamos a falar de elites: só se manda fazer a quem sabe, e os sargentos e praças paraquedistas eram uma matéria-prima de altíssima qualidade, vem até uma narrativa de uma operação em que participou o doutor Rebocho na área de Porto Gole onde se vê o desembaraço daquela tropa paraquedista. E como estamos a falar de um documento científico ficamos a saber que apareceu por lá o capitão miliciano paraquedista Henrique Morais da Silva Caldas, um homem que se relacionava muito mal com os sargentos e de quem ninguém gostava. O capitão Caldas acabou por aprender com a exemplaridade do doutor Rebocho que entretanto desatou a estudar e a fazer exames… O novo capitão, Costa Cordeiro, também foi outro osso duro de roer, mas acabou por baixar a grimpa, escreveu ao comandante de batalhão uma informação onde rezava: “O furriel Rebocho é um graduado aprumado, competente, disciplinado e disciplinador. Atualmente está a estudar, não descurando a sua valorização pessoal. Elemento muito válido e de prestígio na classe de sargentos, promete com mais experiência vir a tornar-se um opimo sargento".

Quinto, a partir de Março de 1973 as coisas complicaram-se na Guiné, a companhia do doutor Rebocho voltou ao Cantanhez e cedo se verificou que havia criatividade do lado da guerrilha e uma enorme apatia do Estado-Maior. Temos depois o relato da participação paraquedista em Guidage e depois em Gadamael Porto. E sentencia, sobre o que se passou em Guileje: “A posição de Coutinho e Lima não tem, nem pode ter a mínima justificação no campo militar. Compreende-se o seu estado de espírito, que terá motivado tão invulgar decisão, por quanto se nenhum outro oficial de carreira estava colocado a sul do rio Cacine, por que razão haveria ele de lá estar? Naturalmente que Coutinho e Lima não previu o desastre que a sua atitude iria provocar, desde logo não pode ser condenada no campo da moral”. Tudo o que se passou em Guileje, declara a sangue frio, é mais uma manifesta desarticulação do Estado-Maior.

Vejamos agora o comportamento das elites militares no pós-marcelismo. E se alguma dúvida houvesse que as teses de doutoramento andam pela rua da amargura bastava ler o que vem a seguir:

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10727: Notas de leitura (432): "Elites Militares e a Guerra de África", por Manuel Godinho Rebocho (1) (Mário Beja Santos)

7 comentários:

Anónimo disse...

Caros camaradas,
Nisso, naturalmente, não me meto, mas não resisto a citar:
"Como este trabalho é científico, e o doutor Rebocho, por imperativos universitários, não pode abandonar a neutralidade, então escreve: “Operacional fui eu, em tropas de elite, durante 26 meses e nunca a minha companhia destruiu qualquer produto alimentar da população”.
"Quem imagina que nas teses de doutoramento é totalmente impossível praticar assassinatos de caráter, então desiluda-se."
"E num documento que devia ter probidade científica, o novel doutor dá como comprovado que houve lutas assanhadas entre os oficiais milicianos à volta de Spínola e os oficiais elitistas do quadro que apoiaram Costa Gomes. Não, isto não é para rir".

Gastei dinheiro na compra do livro e tempo na leitura.
Um abraço,
Carlos Costa Cordeiro

Anónimo disse...

Vou ler com muita atenção, mas começo a verificar que afinal fui o único que pegou em armas e não esteve a estudar, mas custa-me saber que os milicianos e os "elitistas"? lutavam entre si em vez de combater o IN. Tive sorte porque quando lá estive e agora comprova-se, pelo que diz aqui o Dr Rebocho, éramos todos valentes combatentes,(pois que não houveram essas disparatadas disputas) Se calhar é como o pão, que sai melhor na 1ª fornada e seguintes e nós oficiais e sargentos que para a Guiné fomos em 1965 fomos das primeiras fornadas.
Veríssimo Ferreira, Fur.mil, CCAÇ 1422, K3 1965/1967

Anónimo disse...

Obrigado por mais esta Beja Santos.
Continua sempre que vale a pena mesmo que omitas ou não a tua opinião.

Como tenho que emitir sempre a minha opinião, só tenho a dizer que melhor comandante numa operação que fiz, foi um primeiro cabo.

Cumprimentos

Antº Rosinha

Anónimo disse...

Quero apenas esclarecer que os Decretos-Lei que em 1973 deram origem ao designado Movimento de Capitães (QP) em contraposição aos oficiais QP, oriundos de milicianos, não tem nada a ver com esta situação dos capitães milicianos que a partir de 1970 foram nomeados para comandar companhias depois de um curso em Mafra.
O problema da contestação nasceu com a alteração da antiguidade relativa entre os que frequentaram a Ac. Mil. sendo uns oriundos de cadete e outros de milicianos. Isto ocorreu ao longo da década de 60.
Em relação à posição de Rebocho contra os oficiais do QP, julgo que o trabalho do Cor. Morais da Silva divulgado neste blog esclarece a situação que ocorreu e que se pode resumir ao baixo número de oficiais do QP, motivado pela falta de candidatos à Ac. Mil. a partir de meados dos anos 60. Recordo que o Rebocho esteve preso a seguir ao 25 de Novembro 75 e talvez daí a sua posição tendenciosa em relação a este assunto.
Manuel Bernardo (Cor. Ref.)

Anónimo disse...

Eu li com muita atenção este livro.

Estou em desacordo com muitas das afirmações aí descritas,mas no essencial estão correctas (na minha modesta opinião).

Uma tese de doutoramento baseia-se em dados científicos e sobre estes em concreto não tenho e penso que a esmagadora maioria não tem competência para fazer uma avaliação, que já foi feita por quem de direito.
A única crítica que faço é que se nota da parte do doutorando um certo ressentimento em relação aos oficiais em geral e até assassinatos de carácter a alguns em particular o que não devia ter sido feito.
Em todas as profissões há incompetentes,só que no caso em concreto onde ter capacidade de chefia e liderança é fundamental,não ter essas qualidades as consequências são mais graves,refiro-me obviamente ao teatro de guerra.

C.Martins

Anónimo disse...

E eu que não consigo encontrar o livro nas livrarias, como posso adquiri-lo?
amribeiro44@sapo.pt

João Carlos Abreu dos Santos disse...

Caro António Marques Ribeiro, ex-furriel miliciano do 6ºPelArt/BAC1 (Mejo e Guileje 1967-14Fev69),

Para seu benefício, e de outros interessados na aquisição e leitura da obra, objecto desta sequência de "recensões" (p10727, p10740, p10754), as informações que procura - e bem assim um substancial excerto da mesma (em formato pdf) -, encontram-se desde 26Nov2009 disponíveis, aqui >

ultramar.terraweb.biz/06livros_ManuelGodinhoRebocho

Cpts,
Abreu dos Santos
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