1. Mensagem do nosso camarada Abílio Magro (ex-Fur Mil Amanuense (CSJD/QG/CTIG, 1973/74), com data de 12 de Janeiro de 2013, com o segundo capítulo da sua série Um amanuense em terras de Kako Baldé.
Um Amanuense em terras de Kako Baldé*
2 - Colocado na CSJD/QG/CTIG
Em 02ABR73 apresento-me na CCS/QG/CTIG e sou colocado na CSJD - Chefia de Serviço de Justiça e Disciplina.
O Comandante do CTIG era, na altura, o Brigadeiro Alberto da Silva Banazol e o 2º Comandante o Coronel Tirocinado Octávio de Carvalho Galvão de Figueiredo.
A CSJD era chefiada, na altura, pelo Major do SGE Mário Lobão, mais tarde substituído pelo Ten-Coronel do SGE Manuel de Moura, se não me falha a memória.
Naquele serviço eram tratados todos os processos judiciais, louvores, doenças, acidentes, feridos, mortos, etc. relativos a todo o pessoal do exército, bem como ao pessoal civil ao seu serviço.
Os processos, instruídos nas Companhias ou Batalhões, eram para ali enviados onde eram analisados e dado o respectivo encaminhamento – envio para Tribunal, proposta de atribuição de louvor e, no caso das doenças, ferimentos ou morte, se eram consideradas ou não em serviço, em campanha ou em combate.
Estas tarefas eram realizadas por Alf. Milicianos, licenciados em Direito, coadjuvados por Fur. Milicianos. Àqueles ninguém tratava por Alf. Milº, mas sim por Doutor, incluindo a Chefia.
Foi aí que conheci o Dr. Celso Cruzeiro, único Alf. Milº que participou nas reuniões do Movimento de Capitães em Bissau, antes do 25 de Abril. Advogado em Aveiro, foi quem defendeu, anos mais tarde, o Dr. Paulo Pedroso no processo da Casa Pia.
Na CSJD fiquei a prestar serviço na Secção designada eufemisticamente como de “doenças” e que tratava dos processos de doenças, acidentes, feridos e mortos em serviço, em campanha ou em combate.
Uma das principais tarefas que executava era a de verificar se os processos continham todos os documentos e procedimentos obrigatórios, antes de seguirem para o Alf. Milº que os ia apreciar – Dr. Dias.
A burocracia era mais que muita e os processos andavam para trás e para a frente enquanto, na Metrópole, os familiares aguardavam penosamente pela concessão da pensão de sangue, no caso de morte de um seu familiar militar.
Atendendo à distância temporal que nos separa dos acontecimentos, ressalvem-se possíveis lapsos de memória e, neste contexto, poderei resumir assim:
- O militar morria em combate;
- O Comandante de Companhia (julgo eu) organizava o processo que tinha de conter toda a documentação do militar desde a incorporação, relatório sucinto de como se deram os acontecimentos atestados por 2 testemunhas e certidão de óbito.
- Tudo pronto, era enviado à CSJD, muitas das vezes através de colunas de reabastecimento, quando as havia.
Na CSJD era por mim recebido, catalogado e feita a respectiva “inspecção”, isto é: se continha todos os elementos para que pudesse seguir em “frente”.
A “inspecção” constava, para além da verificação da presença de todos os documentos necessários e se estes estavam nos “conformes”, em sublinhar, a marcador, os factos mais significativos, a fim de propiciar uma apreciação mais célere ao Dr. Dias.
E é nesta fase que começo a tomar consciência do ridículo de alguma burocracia e, pior ainda, da injustiça para com aqueles que, vivendo as agruras de um interior empobrecido, perdiam um ente querido ao serviço da Pátria e tardavam em receber, ao menos, uma pequena pensão de sangue que lhes mitigasse minimamente a situação económica.
De facto, até que o processo fosse concluído, havia que efectuar diversos procedimentos que atrasavam imenso a sua conclusão e a tarefa mais frequente que realizava e que mais mal me fazia ao “fígado” era a de devolver todo o processo ao remetente “a fim de as testemunhas serem devidamente ajuramentadas”.
Isto é: o Comandante da Companhia tinha de substituir a folha onde constavam os depoimentos das testemunhas que confirmavam os factos e acrescentar “as testemunhas juraram por Deus dizer a verdade e só a verdade”.
Caso em que as testemunhas não fossem católicas, “por não serem católicas, as testemunhas juraram por sua honra dizer a verdade e só a verdade".
Enquanto isto, o processo andava de cá para lá e de lá para cá, ao sabor da disponibilidade de transporte.
“E eu a vê-los passar!”, como dizia o mecânico das Dyane.
A acrescentar a tudo isto, há a realçar o facto de eu ter ido substituir um Cabo Milº africano do recrutamento local e que tinha sido preso ou “despachado” para outro lado qualquer por “bom comportamento” e que, segundo constatei mais tarde, teria o hábito de arquivar papelada “à molhada”, pois vim a encontrar alguns processos com dezenas de boletins da JHI (Junta Hospitalar de Inspecção) referentes a outros militares e importantes para atribuição de graus incapacidade aos feridos em serviço, campanha ou combate.
Em suma, a minha “guerra” rivalizava perfeitamente com a do saudoso Raul Solnado.
(*) Para quem não sabe, Kako Baldé era o nome por que era conhecido, entre a tropa, o General Spínola. Kako – (caco) lente que o General metia no olho. Baldé – Nome muito comum na Guiné
AM
(Próximo capítulo – (3) Sargento da Guarda ao QG/CTIG)
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Nota de CV:
Vd. primeiro poste da série de 16 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10950: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (1): A chegada
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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5 comentários:
Pelos vistos grande parte dos "burocratas" dos SGE e outras chefias superiores estavam-se marimbando para os processos e com isso descuravam as necessidades dos combatentes e suas famílias...Andavam era ao deles. No fundo, eram principalmente os milicianos que se preocupavam em solucionar atempadamente os problemas de uma guerra que parecia interminável... por interesse de muitos!
Não Zé, nem os "burocras" do SGE, nem os Milianos tinham culpa alguma.
Era a lei!
Eu limitava-me a cumpri-la naquilo que me dizia respeito.
E devolver um processo ao mato só para lá escrever que as testemunhas tinham sido ajuramentadas, era completamente ridículo, quando estas nem sequer assinavam os depoimentos, tanto quanto me recordo. Poderei estar enganado.
Abraço
AM
Não estás enganado, Abílio Magro.
Sendo o furriel de transmissões, acabou por me "calhar" ser escrivão dos autos.
Na minha CCaç 5 (Canjadude) não havia G3 para todos, pelo que a minha secção tinha 6 G3 e 6 mauser, que rodavam de "mão em mão" ao sabor das colunas e operações.
Num dia um cabo da minha secção pegou, no fim de uma coluna, no "molho das armas" para as levar para o abrigo.
Uma delas disparou inopinadamente e feriu o dito num braço, tendo que ser evacuado e instaurado o competente auto de acidente em serviço.
No batalhão "voltou para traz" porque não tinha identificado o militar a quem estava distribuída a arma. Foi indicado o nome do militar que tinha sido o último a utilizá-la.
A seguir "voltou" de novo à base, porque o auto não mencionava quem tinha dado a ordem para que um militar transportasse 6 armas em conjunto.
Só numa deslocação ao batalhão e, depois de longa "conversa" com o 2º comandante e alertado para o facto de a companhia não ter armas para todos os militares (a situação era recorrente em todas as secções de serviços)
, aceitou o auto que deve ter morrido ali.
Uma que eu não conhecia a falta de armas, eu que sou do início da guerra na minha companhia todos tinham G3 com excepção do pessoal das transmissões só esses podiam optar por a pistola Walther ou a G3 devido à carga extra do rádio e a nossa missão também não era a da linha de ataque.
Um alfa bravo
Colaço.
Caro camarada Abílio
Ora aqui está um visão 'dos tempos de guerra' que não me parece ser muito conhecida.
E faz-nos bem tomar conhecimento.
E é, também, por isto, que este Blogue é tão importante, por nos possibilitar conhecer todos estes aspectos, todas estas 'frentes'.
Ficámos, pelo menos eu fiquei, a saber que em termos de burocracia e métodos de trabalho tudo isso se aproxima muito de um filme de Woody Allen, e que deve ter havido ocasiões que os processos 'batiam certo' só por sorte...
Abraço
Hélder S.
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