sexta-feira, 15 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11257: Blogoterapia (224): Cozinhas de campanha (Ernesto Duarte)

1. Mensagem do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67) com data de 9 de Março de 2013:


Cozinhas de campanha

Eu até gostei do Exército

Da minha serra à cidade de Lagos eram para aí 30 quilómetros, aonde eu ia muitas vezes porque tinha lá a viver muitos familiares, que naquela rua estreita era a porta em frente ao Caçadores 4, ou seria Infantaria 4. Muito miúdo ainda, hoje espreitava um pouco, amanhã outro e dentro de pouco tempo eu andava lá por tudo quanto era sítio.

Tudo aquilo era um encanto para mim, só nunca lá vi foi munições, agora armamento vi todo desde as armas ligeiras até às pesadas, postas em cima de carros puxados a cavalos ou machos e mulas, acho que não havia nenhuma viatura mecânica.

Nos concelhos à volta de Lagos todo o gado cavalar e muar estava na tropa, com caderneta e tudo e os donos tinham que as ir mostrar de quando em quando e sempre que vendiam alguma ou compravam tinham que tratar dos respetivos registos, papelada de militar.

O Quartel tinha a sua quantidade de bestas. Naquele tempo, ali, a vida de soldado era varrer, varrer, limpar os bichos dar-lhe palha e água. Passavam lá muito tempo, porque eu conhecia uma série de malta, eu ia e voltava e eles continuavam lá de vassoura na mão.

Dizer que deixei de gostar do Exército é muito forte e inofensivo, diga-se assim, comecei a retribuir-lhe a mesma simpatia que ele, Exército, tinha pelos seus soldados.

Eu fui o primeiro fulano a chegar à CCaç 1421 em Abrantes, tendo recebido um molho de chaves e não sei quantos cabos quarteleiros, tendo estado para aí uma semana só, até que o RI2 emprestou um alferes e um 2º sargento. Aquilo passou e eu ganho, como prémio, ir para Santa Margarida à frente receber material e militares de outras unidades que iam para lá formar a companhia.

Aí eu levei o primeiro grande pontapé no estômago, em relação ao Exército! Entre o que recebi, recebi uma cozinha de campanha que rebocámos para o sitio onde ficaria a funcionar. Aí na segunda semana já tinha muita gente comigo. A cozinha era de chapa, com juntas soldadas em vários sítios. Assentámo-la e o ultimo acto foi abrir a tampa.

A cozinha não estava branca, estava amarela, o que é, o que não é, chega-se à conclusão que era maça consistente. Fui ter com o sargento Barrigudo, foi simpático e colaborante mas todas as que vimos estavam na mesma, cheias de massa. Lá me disse como aquilo era chapa, entre uma utilização e outra, tinham que fazer aquilo, porque segundo ele, assim era melhor que ferrugenta, deu-me potassa e uns esfregões.

Lavamos a cozinha, escaldamos, mas o cheiro a ranço nunca passou, cheirou sempre e a comida era intragável. Ali a uns metros havia as messes, eu tinha nascido e crescido em comunidade, não entendia tamanha diferença, mas volto a encontrar o cheiro a ranço.

Cozinha de campanha > Comando da Zona Militar da Madeira (ex-GAG-2) > S. Martinho > Funchal

Foto: © Carlos Vinhal

O tempo passou e nós lá aparecemos dentro do Niassa, com uma ida à Madeira onde foi tudo passar uma noite louca.

Trago comigo para o naviuo o meu 1º Sargento, um homem grande e bom, mas que teimava em trazer umas garrafas de vinho da Madeira. Lá vamos por aqueles corredores fora, até que nos apercebemos de algo de anormal, conhecemos logo outro grande homem, o 1º Sargento da 1419, grande amigo, uma amizade que durou muito tempo cá fora. Estava cercado por tipos vestidos de branco.

Eu não sei se todos os que viajaram de Niassa, foram alguma vez ao fundo dos seus porões onde os nossos homens dormiam em beliches que chegavam quase cá acima, como o tempo era pouco para limpar, aquilo cheirava a ranço e a vomitado, para muitos era insuportável, nunca foram lá ao fundo.

Nessa viagem iam mulheres de marinheiros, cabos EP, mulheres de outros soldados e penso que de policias e também muita criançada.
Como não tinham amarelos iam no porão, e o nosso primeiro Teixeira lutava para lhes dar uma casa, um quarto cá mais acima, como de repente apareceram muitos soldados, os homens de branco cederam e arranjaram um quarto cá em cima, e passaram a comer da nossa comida, meio roubado, meio clandestino.

Portanto quando cheguei a Mansabá, a minha simpatia pelo Exército era igual à que ele tinha por mim, pelos seus soldados, era nula.

 Ernesto Duarte em Mansabá

Se achares que tem algum interesse, é teu.

Um muito obrigado
Um grande abraço
Ernesto Duarte
Furriel Miliciano
BCaç 1857 / CCaç 1421
Mansabá – Mores – OIO
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 16 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11102: Blogoterapia (223): Agradeço as manifestações de pesar que me foram dirigidas a propósito do falecimento da minha mãe (Carlos Vinhal)

3 comentários:

Anónimo disse...

Gostei de todo este relato e da forma como foi feito.Porém, de entre tudo o que está escrito, houve um pormenor que me calou cá bem no fundo. Aliás eu já tenho referido esse pormenor, por acaso ou talvez não, um "pormaior" bem grande - refiro-me à vida nos porões. A mim, como a tantos milhares, calhou-me ir num do porões do UIGE e voltar num dos porões do CARVALHO ARAUJO. Termino já. Mas foi uma pena ter havido tanta gente importante que ia nos barcos e nunca entrou num porão. Foi uma pena.
Carlos Pinheiro

Hélder Valério disse...

Caro camarada Ernesto

Muito interessante a forma como nos deste a conhecer a progressão do teu amor à tropa....

Essa relação de 'cheiros' e comportamentos está bem 'esgalhada'.

Como escreveu o Carlos Pinheiro, foi pena que as 'gentes importantes' não se tivessem dado ao incómodo de, ao menos uma vez, se inteirarem 'in loco' das condições de transporte do seu pessoal.

Abraço
Hélder S.

José Marcelino Martins disse...

"porta em frente ao Caçadores 4, ou seria Infantaria 4."

Era efectivamente o BATALHÃO DE CAÇADORES Nº4, criado pela Portaria 12302 de 9 de Março de 1948, que foi publicado na Ordem do Exército nº 02 de 20 de Maio de 1948.

Foi extinto pela Portaria 22683 de 17 de Maio de 1967, publicado na Ordem do Exército nº 05 de 31 de Maio de 1967.

A primeira unidade militar instalada em Lagos, data de 14 de Agosto de 1693 e tinha a designação de TERÇO NOVO DO ALGARVE.

Teve várias unidades de Infantaria, Artilharia, Centro de Instrução Auto e Distrito de Recrutamento até 1975, ano em que foram extintas as existentes..