terça-feira, 14 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11567: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (6): Léopold Senghor, o poeta, ou lembranças da Ala dos Namorados

1. Mensagem de Armando Pires [ex-fur mil enf, CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70]

Data: 12 de Maio de 2013, 18:06

Assunto: Reenvio

Meu caro Luís Graça. Camarada.


Ontem, 11 de Maio, em Paredes, foi o almoço da minha companhia.

Palavra puxa palavra e fui buscar um meu portátil para, como imaginas, tirar dúvidas que a memória acentua. As conversas são como as cerejas, e "vejam lá como se entra e se fazem buscas no blogue do Luís Graça".

E veio-me de novo à ideia: "mas que raio se passará com a história que eu enviei no 26 de Abril"?

Dizia assim o texto do e-mail:  "Meu Caro Luís Graça. Camaradas Editores. Blog Amigo. Perdoa que tardiamente te felicite pelo teu nono aniversário. Leva-o à conta de prementes afazeres, que não de menos cuidado por quem, na sua ainda que curta existência, tem sabido ser o ombro disponível a acolher gente caturra, em acertos de contas com a memória.

Deixa-me recompensar-te da falha, remetendo para teu acervo o 6º episódio da série que acolhes como "Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista".

Não sei se aprecias o estilo, mas quero aproveitar para fazer homenagem ao Manuel Joaquim, ex-furriel miliciano da CCAÇ 1419, que numa solitária demonstração de despojamento intimista, connosco tem partilhado as suas Cartas de Amor e Guerra. Vai com abraços."

E seguia em anexo o texto que também aqui vai anexado. Vais desculpar, meu Caro Luís, mas cheira-me que o e-mail passou à peluda antes de cumprir o tempo de serviço.

Toma lá um abraço e não te zangues comigo. Armando Pires


2. Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (6) >  Léopold Senghor, o poeta, ou lembranças da Ala dos Namorados 

por Armando Pires


Raios te partam, Manel Jaquim, que as tuas Cartas de Amor e Guerra incendeiam-me a memória na razão directa do respeito que me provocam.

Começo pelo fim, em que sou mais breve, para dizer de quanta admiração sinto por essa cumplicidade entre ti e a Dionilde, tua mulher, nascida no tempo do amor e dos segredos, trazida pela vida fora, chegando hoje à comum aceitação da partilha dessas palavras escritas, tão intensas de paixão e raiva, que só os amantes sabem dizer.

Faz tempo que andava para te o dizer, para te escrever.

Chegou a hora, sacudido pela inspiração desse teu Tombe la Pluie (poste P11263, de 16 de março de 2013), versos que bem podias ter deixado ao cuidado do teu soldado Lavinas, aquele que se perdeu pelo cheiro à terra e aos amores de Bissorã, e por lá ficou em negócio de restauração, para que deles, os versos, me fizesse entrega, que boa figura me teriam dado fazer, como adiante saberás.

Daqueles tempos, desses tempos, não tenho uma carta que seja.  Perderam-se nos vendavais da vida. Delas resta a memória do que quiseram dizer.

O rapaz do SPM tinha muito pouco trabalho comigo. Eu que escolhi a escrita como modo de vida, era espaçado e breve nos parágrafos em que alinhava, “por cá vou indo bem, felizmente”.  (Ó minha mãe, a paixão das nossas palavras são segredos indizíveis)

Parti sem deixar alma à minha espera. Amizades, sim, romances, também, mas a vida em que cedo fui esculpido não comportava melancólicas saudades. Agarro-me a gestos e afectos para me sentir nos lugares onde quero estar.

Foi assim que lá na Guiné venci o tempo, protegido por objectos de virtude, talismãs, ícones ou fetiches, figuras a que quiseram atribuir poderes tão sobrenaturais, que fossem capazes de me proteger e trazer de volta, são e salvo.

E porque assim deve ter sido, porque não sendo crente quero crer que o tenha sido, continuaram pela vida fora ao meu lado, e aqui perduram, na que já disse chamar-se a minha caixa dos segredos (poste P10629, de 7 de novembro de 2012 ), e para dentro da qual gosto, de quando em vez, de olhar e sorrir.

Porque lá dentro estão, a Maria da Luz, de trouxa às costas para me acudir nas aflições, mais aquela rapariga sardenta da Nazaré, que me julgava um lobo do mar, vê lá tu, eu que enjoo só de o ver, está também a versão francesa de “Le Petit Prince” [, o Princepezinho, criação de Saint Exupéry], aquele rapazinho que a Anne-Marie, lá porque ele andava sempre de chache-nez ao pescoço, teimava que era parecido com o fadista que eu era, e o corno do Aleixo, que me foi dado pela Odete. 







Guiné > Região de Cacheu > Bula > 1969 > CCS/BCAÇ 2861 (Buila e Biossrã, 1969/71) > Relíquias, ícones, fétiches, e talismãs… e a Maria da Luz, a Sardenta, Le Petite Prince, o cinto do “Rapina” mais o corno do Aleixo...

Foto (e legenda): © Armando Pires (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: LG].



O Aleixo não era corno. O Aleixo tinha um corno que pertenceu a um toiro que numa praça de Espanha o ia varando num sitio que, vida fora, lhe faria imensa falta. Recuperou da colhida e o corno, que trouxe de lá para por atrás da porta do bar da Odete, para que dela e da casa desviasse o mau olhado.

A Odete, namorada do Aleixo, uma “balzaquiana” bem apessoada, que tinha um pequeno bar, já o disse, ali às Amoreiras, em Lisboa, frequentado por gente tão apessoada quanto ela, não sendo eu apessoado quanto eles, dedicava-me gosto e estima, porque eu tinha o que eles não tinham mas gostavam de ter tido: Voz e jeito para cantar o fado.

Sucede que aquele bar de muitas vezes passou a ser o bar de todas as vezes quando, terminado o curso de enfermeiro, no Hospital Militar Principal, fui colocado no seu Anexo, antigas instalações militares que ocupavam quase todo o quarteirão da Rua de Artilharia 1. Do Anexo ao bar da Odete não se corria mais de duzentos metros.

Naquela espécie de depósito de doentes em geral, fui metido em serviço na Medicina 3, onde cabia gente que se declarava demente para fugir à tropa, até tipos no seu mais perfeito juízo que apenas esperavam que viesse a funcionar a cunha que o sr. de patente, ou de posição, amigo do pai, metera ao médico da junta médica militar.

E havia, também, embora esporadicamente, uma outra clientela que fazia todo o meu enlevo. Eram os velhos veteranos da primeira guerra mundial, que esperavam pelo fim dos seus dias no Lar Militar de Runa, próximo de Torres Vedras, e ali iam recuperar dos achaques próprios da idade e, sobretudo, da tragédia em que os mandaram envolver-se.

Via e respeitava neles a figura do meu avô João, meu ídolo, boieiro nos campos do Ribatejo. Ninguém lhes tocava. Só eu cuidava deles. E as manhãs começavam com o banho em que, se não morriam afogados, quase morriam de riso com os disparates que eu lançava às suas inertes partes pudengas.

E havia ternura nos olhos quando, à hora da despedida, diziam, “obrigado, nosso cabo miliciano, e até qualquer dia”.

Ao lado do meu Serviço havia um outro que exigia forças mentais tão poderosas que quase se tornavam incompatíveis com as nossas imberbes e frágeis idades. O Serviço 5, onde os mutilados de guerra e paraplégicos cumpriam a “última etapa” da sua recuperação, antes de serem lançados para os braços de uma sociedade e de famílias a mais das vezes impreparadas para os receber.

À tarde, quando o sol iniciava o seu declínio para ocidente, sentava-me à porta com eles em conversas de amigos. À noite, no imenso espaço que era aquela espécie de parada do Anexo, à vez, um havia que me emprestava a sua cadeira de rodas para disputadas gincanas que tinham como prémio uma cervejinha no bar que fechava às dez.

Ganhava quase sempre um transmontano a quem uma mina anti-carro levara as duas pernas, conhecido pelo “Rapina”, porque depois de embalar a cadeira à força de pulso, fazia o percurso curvado para diante e de braços abertos, imitando o voo das águias que caçavam nos alcantilados do Marão.

Caramba, Manel, que lições de vida e humanidade eu ganhei naquele Anexo!

Às vezes, muitas vezes, eu saía com um deles, empurrando-lhe a cadeira até ao bar da Odete (é aqui que volta a entrar a Odete), que não só lhes franqueava a porta como nada lhes cobrava pelo jantar e, o melhor de tudo, lhes dava “à morte” companhia feminina até antes das seis, que era o prazo máximo combinado com o homem da porta de armas para nos deixar passar.

Em Setembro de 1968, após seis meses a prestar serviço no Anexo, já promovido por antiguidade a Furriel Miliciano, chegou a ordem de me apresentar em Chaves para formar Batalhão com destino à Guiné. Foi então, na hora da despedida, que a Odete me entregou o corno do Aleixo para que de mim afastasse o perigo, e o “Rapina” me desse o seu cinto militar porque já não precisava dele para segurar a farda.

Certa manhã de Abril de 1969, lá em Bula, foi à enfermaria ter comigo o rapaz do SPM.
- Furriel, tem aqui uma encomenda para si.

A letra firme, imensa e bem desenhada do endereço, bem que dispensava o selo para que eu reconhecesse a sua origem. Do norte de França, da Bretanha, da cidade costeira de Sainte-Marine, a Anne-Marie, minha namorada de então e minha muito amiga de hoje, enviava-me um novo livro.

Era uma biografia e um estudo sobre a obra poética de Léopold Sédar Senghor, de autoria de Armand Guibert, poeta ele também, que traduziu para francês obras do nosso Fernando Pessoa. Em dedicatória, a entre capa do livro recomendava que era “para ler nas noites azuis, nas noites sem guerra”.

Não esperei tanto. Sentei-me à porta da enfermaria e logo ali comecei a ler

La faiblesse du coeur est saint…
Ah! Tu crois que je ne l’ai pas aimée
Ma négresse blond d’huile de palme à la taille de plume
Cuisses de loutre en surprise et de neige du Kilimandjaro…



Dos lados da sala de operações surgiu o major Candeias. Fechei o livro entre o polegar e o dedo médio, deixando o indicador marcar a página onde seguia, e levantei-me para o cumprimentar.
- Então o que estás a ler, perguntou-me.

Exibi-lhe a capa e indiquei-lhe tratar-se de um poeta.
- Olha lá, rapaz, tu achas que isso são leituras para aqui?

Respondi-lhe: “ó meu major, poesia é para ler em qualquer lado”.

O Candeias fitou-me por brevíssimos segundos, fiquei sem saber se quis ou não quis dizer-me mais alguma coisa, se ficou a pensar se era eu que era parvo ou se o estava a fazer passar a ele por estúpido, e partiu sem resolver tão grande equação. Não sei por onde anda, meu major, mas talvez eu vá ainda a tempo de dizer-lhe que nem uma coisa nem outra.




Foi assim uma espécie de, “e se fosse à merda e me deixasse ler em paz?”. E pronto, Manel Jaquim, era aqui que eu precisava que tivesses deixado ao Lavinas o teu Tombe la Pluie, para que eu pudesse escrever à Anna-Marie e dizer-lhe

Tombe la pluie 
Et tu es si loin de moi
Tombe la pluie
Et mon couer s’habille de noir
….

Tombe la pluie
Et tu es si loin de moi.
Tombe la pluie
Oh, comme je voudrais te voir! 


Adeus, Manel Jaquim. Obrigado por esta oportunidade.

Até segunda-feira, lá no armazém da Amadora, onde teimamos em não esquecer o futuro daqueles que, lá nas bolanhas que deixámos, o não têm.
__________

Nota do editor:

Último poste da série > 3 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11048: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (5): O dia em que a minha mala voou

5 comentários:

Anónimo disse...

Armando Pires

Não sei se gostei mais da forma de dizer a inveja do Manuel Joaquim, dos francesismos... ("Le Petit Prince", assim lido no idioma em que foi escrito e do poema do Senghor), se do corno da Odete, do "equívoco" do major Candeias ou dos retalhos de humanidade ao longo do texto.
Saudações
Alberto Branquinho

Luís Graça disse...

Viva a poesia!...

Armando, tens aqui uma biografia do poeta da negritude, nbo sítio da Assembleia Nacional Francesa, com va´rios vídeos...

Mesmo chauvinistas, os franceses não omitiram o facto de o apelido paterno "Senghor" vir do português, "Senhor"...

O pai era católico, a mãe muçulmana, fula ("peul").

Gostei muito do teu poste... LG




http://www.assemblee-nationale.fr/histoire/senghor/senghobiographie.asp

Bispo1419 disse...

Meu caro Armando:
Nem de propósito, no que me diz respeito. Após cerca de um mês a andar "fugido" deste blog, por razões familiares me terem afastado da residência e não ter levado o computador, eis que logo no dia do meu regresso deparo com esta tua mensagem! Que bela mensagem!
Deixo para trás as referências que me fazes e que me deixam feliz e agradecido mas, emotivamente, um pouco "engasgado" com os seus termos.
Quero frisar, sim, a qualidade do texto e da sua mensagem de onde transborda um forte e enternecedor humanismo envolto numa fina e sábia ironia, onde a alacridade espantosa das expressões me levam ao sorriso cúmplice e, por vezes, à gargalhada.
Um belo texto onde florescem as palavras de um homem bom que me emocionaram e me fizeram, por momentos, chegar as lágrimas aos olhos:
- a vivência no Anexo do HMP, as referências aos soldados amputados e aos velhos veteranos de guerra ... "Ninguém lhes tocava. Só eu cuidava deles. E as manhãs começavam com o banho em que, se não morriam afogados, quase morriam de riso com os disparates que eu lançava às suas partes pudengas".
- o convívio com a "balzaquiana" Odete e as peripécias passadas no seu estabelecimento.
- o convite à poesia para ser lida "nas noites azuis, nas noites sem guerra".
- etc. etc.
Eh pá, Armando, acho mesmo que a Odete e o "Rapina" te fizeram justiça, para além do preito que te prestaram com a oferta do corno do Aleixo e do cinturão do Rapina!
Podes crer, amigo,que este será um texto que irei separar para o reler numa "noite azul", sem sombra de qualquer "major" que me possa interromper o momento.
Quanto à "chuva" também hoje a sinto a vestir de negro o coração, também hoje me sinto fustigado por "ondées", por "aguaceiros de granizo" que me (nos?) atormentam o dia a dia. Mas também neste caso tenho esperança de encontrar o alívio numa outra "noite azul" que me faça crer que valeu a pena ter lutado tanto por uma vida melhor, a minha e a da sociedade em que estou inserido.
Um grande abraço, amigão!
Manuel Joaquim

Mário A. Vasconcelos disse...

Muitos dos escritos que fui lendo, para além de muitos outros que estão em espera, evidenciam-me duas coisas,no mínimo:
1- Autores há que bem podem ser considerados literatos de gema e de raiz, pela delícia das suas palavras, matizadas no colorido do arco-íris, da alegria ao sofrimento, do riso ao choro,da vida à queda, da prepotência ao humanismo;
2- Muitos outros, de forma mais simples e directa, mas não menos assertiva, vão apresentando as suas vivências e lembranças escorrendo num longo abraço a camaradagem que nos une na diversidade.
Assim sendo, desejável será, que todos continuem na senda traçada, e nos proporcionem estes momentos deliciosos e reconfortantes.
Prego ao fundo no blogue pois ainda há muito combustível.

Hélder Valério disse...

Caro Armando

Uma pessoa começa a ler e procura sempre mais.
Este teu texto contém um conjunto de situações, de personagens, de locais que, cada um por si, davam para se desenvolver mais profundamente.
Gostei bastante.

Abraço
Hélder S.