1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 3 de Junho de 2014:
Caros amigos e ilustres editores do Blogue:
Aqui vai mais um “salpico” que espero os vá encontrar de boa saúde, harmonia e bem-estar.
Abração.
Rui Silva
Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.
Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”
28 - O Trovoada no fundo do poço! Os morcegos alvoraçados e o Grilo a gritar!
É verdade, o “Trovoada” (Zé) caiu ao poço, bem fundinho, ali a uns escassos quilómetros do Olossato, para os lados de Maqué, e em pleno terreno da guerrilha.
Esta, como se sabia, era já ali, era só passar o arame farpado do aquartelamento.
Foi um grupo constituído por cerca de trinta homens, à lenha e, como era habitual e necessário: a lenha e o efetivo militar.
Desta feita foram então para os lados de Maqué, aí a uns 3-4 quilómetros e o local era o de uma Tabanca abandonada e, assim, provavelmente, um bom sítio para encontrar alguma lenha.
Eu, no entroncamento do carreiro para Maqué com a estrada Bissorã-Olossato e no “intervalo” (se é que haviam intervalos) de uma operação. Na foto, vê-se, em segundo plano, se não é o celebre poilão de Maqué, é outro lá perto. Toda a Companhia (e pelo que as conheci) tinham o seu fotógrafo. Na minha era o Correia radiotelegrafista. Ainda hoje nos Convívios lá anda ele a fotografar a tudo que mexe.
Uma parte do grupo procedia à recolha daquilo que podia então servir de lenha e a outra parte fazia a necessária segurança.
O “Trovoada”, elemento dos que garantiam a segurança aos esgravatadores da lenha, com tão redobrada atenção, acabou por vislumbrar uma bananeira e então há que ir buscar um cacho que tanto jeito fazia para tirar a barriga de misérias.
Pensou e melhor o fez; foi buscar um cacho e trouxe-o para junto do “Grilo” a quem se propunha dividir as bananas, mas o “Grilo”: - “Dividir o quê? Vou é lá buscar um cacho também pr’a mim”.
E assim, com a companhia do amigo do batedor “Trovoada” foi lá arrancar um cacho, só que o “Trovoada”, que ia à frente, pois sabia onde elas estavam, pisou capim de raiz falsa, que, para grande azar dele, cobria um poço que outrora abastecia, com certeza, a referida tabanca, agora, e como disse, abandonada.
Pamba!!... tchoc, tchoc…
O “Grilo” gritou logo, ante o desaparecimento relâmpago do seu companheiro de safra e do consequente estoiro, o qual também surpreendeu toda a gente que logo constatou que alguém tinha caído a um poço, provavelmente.
- “É o Trovoada, é o Trovoada”, grita o “Grilo”
O “Trovoada” qual voz do outro mundo, e passados uns segundos, diz lá de baixo e para sossego do alvoraçado “Grilo”.
- “Oh Grilo, eu estou bem!!”
Pois, não estava muito mal, depois de tirar a medida à altura da água, segurou-se como pôde e ficou à tona, contou ele depois, cá em cima e já algo refeito do susto.
O preto, o padeiro civil, que era também parte interessada na recolha da lenha, como já se vê, propôs-se a ir lá baixo buscar o “Trovoada”. Mas como? E com quê?
Já bastava um no fundo do poço. Uma outra versão do Black and White, podia acontecer.
Alguém se lembrou de que só com uma corda é que ele saía dali e então um pequeno grupo foi buscá-la ao aquartelamento do Olossato.
O Pinto (paz à sua alma – faleceu há meia dúzia de anos-) condutor da Unimog que iria trazer a lenha, mais 2 ou 3 elementos voaram para o aquartelamento. É verdade, por ali havia uma corda aí com 30 metros. Vá lá, vá lá…
Para lamento do “Trovoada” o Pinto, que até voou, demorou tempos infinitos.
Chegados ao local da tragédia, há que içar o “Trovoada” que apesar de tudo até nem era dos mais nervosos.
- Cara-ho (!) lá em baixo andavam morcegos que voavam à frente do meu nariz”.
O “Trovoada” a sacudir-se todo de alto abaixo, e alguém pergunta :
- “Oh carago (carago é favor) e a G3?… e as cartucheiras?”
- “ Ficaram lá no fundo!”, diz o “Trovoada” com ares de “eu é que já me safei!! Que se f… o resto…”
Bom, aí é que o preto padeiro, que estava ansioso por mostrar serviço (de coragem), com a ajuda da dita corda, amanda-se pelo poço abaixo e no regresso surge ele do poço com a arma e as ditas cartucheiras do “Trovoada”, sorridente e a mostrar toda a sua cremalheira branca encaixilhada por grossos lábios à boa maneira da natureza nativa, e com cara de quem acabou de fazer qual truque de magia.
E ele que ansiava ser protagonista.
Tudo acabou em bem, afinal, e para o Olossato veio a lenha e também vieram os cachos de bananas do “Trovoada” e do “Grilo“, que tanto custaram a apanhar, principalmente ao primeiro. Este quase que arranjou foi lenha para se queimar (afogar).
O preto padeiro, esse, nunca mais deixou de arreganhar a tacha.
Eu e o meu amigo Zé “Trovoada”, passados 48 (!) anos de o Zé ter caído ao poço, ou, (soa melhor), ter saído do poço, algures na Guiné.
(foto tirada agora no último Convívio da 816 (10/5/2014)
Rui Silva
____________
Nota do editor
Último poste da série de 18 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12601: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (27): Operações Vacas
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Viva Rui,
Texto a texto a colecção vai-se compondo, todos eles com bastante interesse, se bem que nem todos com as mesmas características, o que torna a sua leitura uma curiosidade constante. Continua ...
Raul Albino
Caro Rui
Gostei.
Foi, por assim dizer, um episódio 'lateral' à guerra, mas aconteceu por causa dela.
Caricato? Sem dúvida! Principalmente a esta distância.
Mas 'ao vivo e a cores' deve ter sido angustiante. Principalmente para o "Trovoada".
Hoje dará para provocar sorrisos, embelezar as histórias nos Encontros e unir as memórias.
Fizeste bem em trazer esta história.
Hélder S.
Enviar um comentário