Segundo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGRU 16, Mansoa, 1964/66.
Eu andava por ali, falava com muita gente, fazia parte de
diversas agremiações portuguesas, não só de carácter
social, como de angariação de fundos para ajudar
pessoas e causas, entre outras. Por altura do “Dia de
Portugal”, o senhor Cônsul de Portugal em Newak
solicitava a minha colaboração para que mostrasse
alguma coisa do passado do meu País, em exposições e
não só. Porque me relacionava com muitos ilustres da
comunidade Portuguesa, era fácil convidarem-me para
isto ou para aquilo.
O Senhor Primeiro Ministro, actual Presidente da
República de Portugal, veio com a sua esposa aos USA,
fizeram-lhe uma recepção em Nova Jersey, o senhor
Cônsul de Portugal em Newark, convidou-nos, lá fomos,
era à noite, no salão do mais representativo e antigo clube
português em Newark. Na altura havia alguns casos com
assuntos relacionados com propriedades e direitos dos
emigrantes em Portugal, portanto, cá fora havia
manifestações dos descontentes, falavam-se alguns
nomes, até mesmo frases, não muito correctas, mesmo
obscenas, quase tudo na língua de Camões, gestos não
muito usuais, mas tudo em ordem, sem provocações
directas, pois a polícia estava lá e não admitia qualquer
violência.
Passámos pela multidão e, como tanto eu como minha
esposa, íamos com roupa lavada, um pouco de cerimónia,
também “levámos pela tabela”, como por exemplo,
“também és do tacho”, (como nessa altura me lembrei das
noites que dormi sobre neve fria, com outros
descamisados, à beira do “Passaic River”, que por acaso
era mesmo ali, logo após duas quadras, para os lados de
Nova Iorque), mas passámos. Entrámos mostrando o
respectivo convite, levaram-nos a sentar numa mesa ao
lado do Senhor Primeiro Ministro e esposa.
Começou a cerimónia, discursos de “beija mão”, muitas
palmas, empregados de luvas brancas a servirem
qualquer coisa, que devia de ser “caviar e champanhe”,
todos a falarem uma linguagem que, ou eu sou mesmo
“burro”, ou então não compreendo nada de português e,
os anos que passei na escola do Adro em Águeda não
seviram de nada, pois falavam de grandezas,
investimentos, produtos que em Portugal eram quase de
graça e aqui rendiam fortunas, pois os “estúpidos dos
americanos”, não sabem o que compram, entre dois goles
de champanhe. Diziam qualquer coisa como, “o nosso
grupo é forte e o melhor”, ou “o nosso Banco tem
investimentos em todo o mundo, é o mais sério, é gerido
por uma família honrada” e, de vez em quando, olhavam
para nós e diziam, “qual é o vosso ramo, em termos de
seriedade e eficácia, somos só nós”.
Como o “nosso ramo” era o trabalho honesto do dia-a-dia
para irmos tentando sobreviver, colocando comida na
nossa mesa de jantar todos os dias para que os nossos
filhos se sentissem em casa, com carinho, incentivando-os
nos estudos para que no futuro pudessem ter uma
educação superior, portanto ouvíamos aquelas
personagens fazendo não perceber a ironia das
perguntas, sorrindo, aquele sorriso que nós dizemos que
é “amarelo” quando não simpatizamos com as pessoas
ou o local em que nos encontramos, mas eles teimavam,
esticando o pescoço e puxando os braços no sentido da
mesa, ocupando o seu espaço e o que normalmente seria
nosso, continuavam dizendo, “não tente investir no nosso
ramo, nós somos os melhores”, e, depois falavam
qualquer coisa baixinho, como a dizerem-nos um segredo
ao ouvido, que era mais ou menos, “aquilo é um dinheiro
tão fácil, quando nos avisam que chega mais uma ajuda
da Europa, é só meter o requerimento, é um dinheiro
limpinho, a fundo perdido”.
As senhoras, na sua maioria vindas de Portugal,
mostravam lindos vestidos adornados de colares com
algum valor e, esperando um elogio, diziam, “não é lindo,
amanhã vou a Nova Iorque comprar outro para levar para
Portugal”.
Era demais, o ambiente não era o nosso, não esperámos
pelo resto do serviço com a desculpa “de que temos que
nos retirar, pois temos outros compromissos”. Saímos.
Cá fora, os manifestantes e descontentes, depois de nos
ouvirem, ao sermos interpelados por alguns jornalistas,
alguns locais que nos conheciam, que queriam saber se
já tinha acabado o jantar, dizendo nós, que não, ainda
nem tinha começado, pois estavam lá todos muito
contentes, mas o ambiente não era o nosso, alguns riram-se,
bateram palmas e disseram palavras de alegria. Acabámos por ir comer qualquer coisa ao restaurante de
um amigo, do nosso tempo de Newark, que depois de lhe
contarmos o motivo da nossa presença ali, nos disse: “vou à cozinha buscar
comida e vou sentar-me com vocês, cada vez tenho mais
orgulho em ser vosso amigo”.
Tony Borie, Fevereiro de 2015
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Nota do editor
Primeiro poste da série de 25 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14186: Libertando-me (Tony Borié) (1): A leste do paraíso, a oeste do Inferno
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Meu caro Tony, tu continuas a honrar Portugal e os portugueses, onde quer que estejas, e isso é que interessa. Nem sempre povo e elite dirigente batem certo...
Olá Tony, bom dia!
Dou-te os parabéns por introduzires a reportagem política na Blogue. De facto, pode isso não estar comtemplado nos seus objectivos, mas gosto dessa genuinidade de relato sobre o relacionamento dos poderosos portugueses com o povo que os sustentas; estes costumavam mostrar-se honrados com a visita de S.Exas., agora a coisa já muda de figura, mas aqueles ainda não compreendem que devem pensar mais no bem comum (o interesse público) do que nos seus umbigos.
Aqui estamos com um problema com o mau tempo, mas temos um problema maior de dificil resolução, que se associa à ambição dos que chegam á política com uma mão à frente e outra atrás, mas, insaciáveis, saem com invejáveis fortunas mobiliárias e imobiliárias, enquanto se perde o património e não se notam melhoras nos valores da dívida, pelo contrário, está prestes a aumentar volumosamente.
Com um abraço
JD
Olá comandante Luis, José Dinis, pois é esta a maneira que eu gosto de vos chamar e, restantes companheiros.
Tenho abusado do "nosso blogue", dando notícias que, de uma maneira ou de outra, pelo menos no entender de alguns nossos companheiros, que andaram lá, sofreram, e claro, manifestam perfeito desacordo com estas notícias, pois, no seu pleno direito, esperam "coisas" da guerra que vivemos e, não estão lá muito de acordo com estas notícias, mas tudo isto faz parte do nosso passado de combatentes, creio mesmo, que de uma maneira ou de outra, é útil!.
Depois da "Guerra do Ultramar", muitos de nós saímos de Portugal, na procura de outros horizontes e, os USA receberam muitos antigos combatentes, sendo Newark uma espécie de "porta de entrada", onde depois da revolução de 25 de Abril, muitos novos políticos por aqui apareciam, na procura de popularidade e, como alguns diziam "vinham usar os bilhetes de avião, que ainda lhes restavam antes do ano terminar", tenho algumas histórias dessas personagens, creio que alguns ainda andam pelos corredores do poder!.
De uma maneira ou de outra, vou dando notícias, desculpem lá os meus erros na caligrafia, pois o dedicado do companheiro Carlos Vinhal, vai corrigindo!.
Um abraço,
Tony Borie.
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