GUINÉ, IR E VOLTAR - II
Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (2)
Coluna para Farim
Viaturas prontas, sacos de areia nos lugares da frente para o condutor e acompanhante, se houvesse voluntário. Os militares, oito a dez, mais nativos com paus, sacos aos ombros, galinhas, porcos, bidões vazios, tudo a monte nas caixas das Mercedes e GMCs.
Como é que todo este pessoal teve conhecimento que havia coluna para Farim, se só ontem à noite fora informado pelo comandante da companhia que a preparasse?
À saída de Cuntima, rumo a Farim com paragem em Jumbembem
A coluna tinha-se posto em marcha de Cuntima para Farim, com uma paragem em Jumbembem para os habituais cumprimentos ao pessoal da CCav 488 e ao comandante, um jovem tenente11, chegado também não há muito tempo.
Pessoal de Jumbembem, amigo e simpático
Cerca de trinta e tal quilómetros em pouco mais de três horas, com impedimentos menores. O furriel Covas descrevera-lhe os procedimentos habituais. Largar o pessoal civil à entrada de Farim, atravessar a povoação rumo ao posto de comando do batalhão e depois como manda a cavalaria, dispor as viaturas em linha, militares dentro delas em sentido, bolsos apertados, e o comandante da coluna deveria dirigir-se para o posto de comando e apresentar-se ao Comandante do batalhão, Tenente Coronel F. Cavaleiro.
Dá licença, meu Tenente-Coronel, apresenta-se o comandante da coluna procedente de Cuntima.
Mande seguir aos seus destinos, encarregue o sargento mais antigo, o nosso alferes fica aqui, almoça connosco.
Apresentou-se aos alferes, capitães e ao major Paixão Ribeiro, 2.º comandante, quase todos com trombas de 18 meses de comissão.
Depois, à mesa, perante o silêncio geral, seguiram-se as perguntas do Tenente-Coronel Cavaleiro. E como vão as coisas por Cuntima? Quando foi a última vez que saíram para o mato? Para onde? O que aconteceu? A que horas? Quanto tempo lá estiveram? Quando foi a última vez que o vosso capitão saiu com vocês? Quando? Com quem? Nem dava tempo a engolir o arroz com frango do almoço.
O rio Cacheu na margem do lado de Farim. © Foto do Autor.
Deu as voltas todas durante a tarde, inteirou-se dos carregamentos, teriam que pernoitar em Farim, os combustíveis vindos de Bissau estavam ainda a ser descarregados.
Uma volta pela povoação, pouca coisa para ver, uma lata de anchovas e uma cerveja numa esplanada para entreter.
Homem Grande da tabanca
O rio Cacheu em Farim
Tabanca de Farim. © Foto do autor.
Onde dorme? No quarto do alferes Mealha, lá tem sempre vaga, respondeu-lhe o capitão Arriscado Nunes.
No meio do silêncio que já se sentia àquela hora, um chinfrim enorme, do quarto que lhe indicara o capitão. É ali que vou dormir?
O Mealha? Excesso, em tudo! Intelecto vigoroso, ironia cortante, um autoclismo a falar, muita cerveja, todas as noites até cair para o lado, ele e quem tivesse o azar ou a sorte de estar nas proximidades. E sempre a suar, como se estivesse a sair do chuveiro. Tudo nota vinte, uma força da natureza, concordavam todos os que com ele privavam.
Nascera com sorte, de boas famílias como então se dizia, latifúndio registado no Alentejo, espigara rodeado de mimos, criadas para quase todas as dependências da casa. Mal dera pela passagem pelo liceu, anos e cadeiras a jacto. Registada na caderneta escolar ficou a suspensão decretada pelo reitor, apesar do respeito reverencial pela família, sanção imposta pelo pai que, nessas coisas primava pelo exemplo.
No decorrer de um campeonato que metia fita métrica, a jovem professora de inglês tê-lo-á apanhado a medir o instrumento, numa cadeira lá para trás de uma turma com 31 rapazes. Corada até nos cabelos loiros, contou o Zé Russo, a professora decidira acabar ali a aula e chamar o reitor, uma medida demasiado drástica no entender de quase todos os alunos e de alguns professores.
E a aula de inglês daquele dia acabou mesmo ali. Parece ter sido este o facto mais marcante da passagem, aliás brilhante em termos de aproveitamento escolar, do Mealha pelo liceu.
O pai, advogado, da situação ainda a somar, despachou-o com uma criada, para uma casa que tinham em Lisboa, ali para os lados do Príncipe Real, naqueles anos ainda um sítio muito calmo.
Nas recomendações iniciais que o pai lhe fizera, a importância em assistir às aulas dos mestres dos direitos todos, sem esquecer claro, a brilhante cabeça do Professor Caetano, uma inteligência de agora e do futuro, que ele, Mealha, deveria ter em conta se quisesse encarreirar. As aulas, como era de prever, passaram depressa, mal deu por elas, as necessárias para medir o pulso dos professores, pedidos de esclarecimento contínuos, tudo entendido até à próxima aula, quando calhasse.
Em cinco anos tinha a licenciatura na mão que era o que o pai queria. A tropa, à espreita, mal acabou o curso, vestiu-lhe um fato zuarte, que ele, como outros, nunca vira nem em sonhos e despachou-o para a escola mais perto de casa, no caso a Escola Prática de Cavalaria em Santarém, onde deu abundantes provas de como montar a sério.
No cais da Rocha Conde de Óbidos estavam todos de escuro, a mãe, as avós, as criadas que couberam nos dois carros, todas com lenços nas mãos, as lágrimas a escorrerem, e o pai claro, comovido, uma oportunidade única na tua vida, a defesa da Pátria, os valores da civilização, foi assim que contou quem assistiu.
Acordou na Guiné sem se lembrar bem de todos os episódios da viagem, salvo uma conversa que fora obrigado a ter no navio, com o Comandante do Batalhão, conversa que não lhe correra lá muito bem. O Tenente-Coronel, militar encarniçado, homem direito e competente, discursara-lhe na cara os valores da Pátria, do Exército, da Cavalaria, até a família nomeara!
Há três dias em Bissau, novo episódio, desta vez com a participação da Polícia Militar. O Tenente-Coronel fartou-se, deve ter concluído que tinha mais que fazer.
E o Mealha continuou o seu percurso, sempre ao lado do batalhão, cervejas até cair para o lado, ele e quem o acompanhava, às vezes com as cadeiras, as mesas, as garrafas vazias, empregados, patrões, polícia militar, o que estivesse na frente. E foi assim que um oportunista, daqueles que aparecem sempre, lhe chamou Medalhas, e logo a seguir, um nome mais abrangente, Medalha com letra grande para abarcar todas.
Os três alferes que partilhavam a enorme sala que lhes servia de quarto estavam a começar mais uma noitada, eram para aí nove da noite, os dois frigoríficos a abarrotarem de líquidos, garrafas já vazias pelo chão, lençóis desalinhados, sumaúma a cair de pára-quedas, camisas desabotoadas até baixo, o Mealha só com umas cuecas, mas até ao joelho.
Cama para mim há?
Mal tinha acabado de adormecer, acordou, a cama molhada, bêbedo de cheiro a cerveja, o Mealha com sabão na cara, ó maçarico dum raio, a coluna está lá fora à tua espera.
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Nota:
11 - Fernandes Thomaz
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Javalis na estrada
A coluna estava diferente, as viaturas atestadas de farinha, vinho do Cartaxo em garrafões, leite condensado e outros líquidos, cunhetes com munições, marmelada em caixotes, latões com chouriço e outros enchidos, outros nativos com outros sacos, outras galinhas, porcos diferentes, uma ninhada acabada de ser parida. Ainda não tinha percebido bem este movimento dos civis, vêm uns para cá, vão outros para lá, mas adiante para o posto de comando, outra vez viaturas em linha, procedimentos idênticos aos da chegada.
Iam a andar bem, mais devagar, claro, até que atingiram a curva da morte, uma história que se contava em todos os lados ter-se-ia passado ali também.
De um momento para o outro sentiu-se empurrado para a berma da picada, uma fuzilaria tão grande que nem nos exercícios da carreira de tiro da Carregueira. Deu por ele deitado, a G-3 em posição, com o dedo no gatilho. Olhou em frente, a bolanha a perder de vista, saltou para o lado errado, claro, foi o que pensou.
Deixa lá ver, deve ser do outro lado, a fuzilaria em bom ritmo, pensou duas vezes, mais uma, aí foi, agachado, quase colado ao chão como lhe ensinaram nas matas de Mafra, ziguezague por entre duas viaturas até à outra margem da estrada, outra vez a G-3 em posição, olhou em frente, tudo capinado, um tronco aqui, outro além, montículos de baga-baga12 ainda pequenos. Então, onde estão os turras? Alguns soldados de pé, gargalhadas nervosas, o Furriel Covas, não é nada, alto ao fogo, não é nada, parem essa merda, porra!
Na caixa da viatura da frente, um soldado da secção do furriel Quadrado atento a todos os movimentos, terá visto uma vara de javalis a atravessar a picada e deve ter-se lembrado da fome que passou no Como.
Que grande reabastecimento, dedo fácil no gatilho, as balas a bater nas rodas das viaturas lá de trás e a resposta concludente, como ainda se ouvia. Quase tudo normalizado, rodas para substituir e um militar não ouvia nem via nada, nem queria, só a G-3, as mãos no carregador encravado, a aflição na cara, não sai, encravou-se!
Quase noite entraram em Cuntima.
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Nota:
12 - Baga-baga é o nome por que são conhecidas na Guiné as formigas térmitas, que constroem ninhos de argila, duros como pedra, com metros de altura.
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Sitató
Um dia destes vou sair com o pelotão, meu capitão, mas a outras horas, se não vir inconveniente, claro. Para onde? Para onde costumamos ir, Faquinas, Sitató, para esses lados!
Tem mas é juízo, pá, o Didi logo. Já tivemos guerra que chegasse, não precisamos de mais sarilhos! Temos tido paz aqui na zona, custou-nos muito ganhá-la. Cuidado, meu capitão!
O pessoal está cá há muitos meses, há muito tempo, já viu e já fez muita guerra. Falta-lhe pouco para regressar à metrópole. Precisa mais de quem o proteja do que gente que o meta ao barulho. Mas Cuntima, meu capitão, isto é um corredor, uma pista desimpedida para a guerrilha, para meterem minas e armas no Oio, vêem-se os trilhos pisados de fresco, passam todos os dias por eles.
A minha ideia, meu capitão? Sair daqui sem espalhafato, a uma hora diferente, permanecer na zona até eles aparecerem. Se vamos sempre para o mesmo sítio montar emboscadas, se nunca os encontramos e se o caminho está sempre pisado de fresco, só não os apanhamos se não quisermos.
Ao princípio de uma tarde daquelas, numa conversa com o Covas, escolheu-se quem deveria sair dali a uma hora. A seguir formou-se o pelotão na presença do capitão, que fez questão de assistir à partida. Vamos dar uma volta por aí, quem quer vir?
Voluntários, só voluntários, atalhou o capitão, e o pelotão todo a dizer, eu vou.
Tu, tem mas é juízo! Mas eu também quero ir, meu capitão, o soldado a insistir!
Dos furriéis só não foi um, que alegou estar um pouco febril e se calhar não tinha muito jeito para voluntário. 22 mais um guia indígena e 5 auxiliares nativos prepararam-se logo de seguida. Saíram da povoação em duas viaturas, em direcção à fronteira, logo ali. Uns minutos depois, apearam-se e internaram-se no mato, por um carreiro que mal se via, de há tanto tempo não passar ali ninguém.
Pelotão a caminho de Sitató, na fronteira com o Senegal. © Foto do autor.
Foram andando com cuidado, devagar, mais separados uns dos outros, sem grandes barulhos. Afinal, o pessoal sabe andar no mato. Avistaram a tabanca de Faquina Mandinga, abandonada há anos. Chegados perto do local onde costumavam emboscar-se, prosseguiram pelas margens do trilho, até à fronteira.
Para os lados de Sitató13, quase em frente a Koldá, no Senegal, da mata avistaram um local descampado e acertaram com um trilho todo marcado com pegadas recentes. Abrigados em arbustos e montes de baga-baga, estabeleceram uma frente em curva de cerca de 100 metros, ao longo do trilho que vinha do Senegal, com a bolanha em frente, um ângulo de visão de mais de 180 graus. Uma volta pelo pessoal para ajustar algumas posições individuais, pareceu estar tudo em ordem.
Todos na expectativa, prontos para o que desse e viesse. E dispostos a esperar, pelo menos até ao meio-dia do dia seguinte. Mas eles devem aparecer antes.
Deitou-se com a G3 ao lado, tirou do casaco a Agfa que recebera de Angra uns dias antes, para o caso de haver motivos.
Eram para aí 17, 17 e 30, quando se ouviu uma voz muito baixa dizer, atenção malta, vêm aí gajos! É agora, o coração a dizer-lhe conta comigo. No meio de um silêncio enorme, ouve-se uma culatra a ser puxada atrás, um barulho que até eles devem ter ouvido. Agora? A que propósito?
Uns tiros, uma rajada, depois uma girândola de rajadas para o descampado em frente, tudo em pouco mais de um minuto. Sacos pelo chão, gritaria, um intruso a mancar com uma bicicleta ao lado, a tentar montar para cima dela, uns tipos caídos a gemer, um nem se mexia, os valentes alentejanos pareciam que estavam a jogar rugby, todos ao monte para cima deles, para aí 5 ou 6, cada um a fugir para seu lado, seus filhos desta e daquela. Sacos, de arroz, sal e cola, duas bicicletas, um caixa com granadas, duas com munições, uma Mauser, portuguesa em tempos, livros de leitura em português e correspondência, no meio de outras tralhas. Uma pequena secção de reabastecimento do PAIGC posta fora de combate em pouco mais de meia hora.
E o trabalhão que foi pegar naqueles alentejanos e pô-los de regresso, com os prisioneiros feridos em padiolas improvisadas? Levou mais tempo a regressarem do que a irem, está bom de ver.
Pelo caminho iam fazendo perguntas aos infelizes que tinham sido apanhados, para onde tanto arroz, para família, e livros, para meninos da família aprender a ler, cola para a família também, e que família é essa? É uma família muito grande, não é?
E quem foi o artolas que puxou a culatra atrás? Quem usa Mauser14 aqui, os milícias, quem havia de ser! Meu alfero, turra vinha lá! Mas porquê, logo quando eles estavam a entrar na zona de morte?
Este sim, foi um baptismo de fogo! Era assim que gostaria que fosse sempre, apanhá-los à sorrelfa, sem darem por ela.
Avistaram Cuntima ao longe, a noite já fechada, os petromaxes acesos, e, junto ao arame farpado, militares e população civil a olharem. O capitão, ao encontro deles, então?
Eu não lhe dizia que era uma questão de horário, meu capitão?
Vamos ver, vamos ver! Vá-me dando pormenores, vamos para o posto de rádio, vá falando15.
Uma desorganização total, meu capitão. Um milícia precipitou tudo, lembrou-se de puxar a culatra da Mauser. E depois, cada um fez o que lhe deu na mona, abriram fogo, a correrem todos a monte, sem segurança nenhuma. Mesmo assim não foi mau, meu capitão.
Espera-lhe pela volta, o Didi a virar costas, quem havia de ser?
Mas a guerra, de facto, tomou conta de Cuntima. Foi como se tivessem mexido num enxame de abelhas. Uma ou duas semanas mais tarde, a outras horas, nova emboscada, e desta vez ninguém puxou a culatra antes. Depois, umas minas, a seguir um ataque a Cuntima. Nunca mais houve paz ali.
A fronteira da Guiné tinha sido riscada num mapa, era mais administrativa que outra coisa, não correspondia a nenhuma divisão real entre as pessoas ou etnias. Familiares viviam de um lado e do outro, às vezes mudavam-se com as famílias todas atrás.
Em Cuntima fazia-se muita psicossocial. O médico, um açoriano da Terceira, era um homem bom, com espírito muito prático, não protestava com as condições precárias. Era preciso, fazia-se. Sempre disposto a dar uma ajuda àquelas populações, eram sempre horas.
Mais que uma vez, o doutor Lourenço tivera que ir ao Senegal ver gente doente. A tropa conduzia-o até à fronteira, depois entregava-o aos guardas senegaleses que o acompanhavam até à tabanca.
No passado, aquela gente nunca tinha tido um apoio tão grande como agora. Ajudavam-se os nativos na construção das casas, providenciavam-se mosquiteiros, faziam-se desinfestações, limpavam-se caminhos, abriam-se outros. Nunca faltavam voluntários para ajudar. Nem precisavam de arregaçar as mangas, andavam sempre quase todos em tronco nu.
De facto, naqueles dois ou três anos, desde que o PAIGC tinha iniciado a guerrilha, estava a fazer-se mais por aquela gente do que nos outros anos todos para trás. Isto, se se levasse em conta o que se via feito até então. Quase nada. A guerra tem destas coisas.
A companhia militar estacionada em Cuntima, Colina do Norte como era agora chamada, tinha um efectivo a rondar os 150 homens, a esmagadora maioria já a meia dúzia de meses de regressar à metrópole.
Alguns, muito poucos, estavam lá em rendição individual, para tapar as falhas que ocorrem sempre. Era o caso do alferes chegado há pouco mais de um mês e de outro chegado dois ou três meses antes.
Os outros alferes, o Didi e o Ferreira tinham partido de Estremoz com o 490.
O Didi tinha o tamanho de um português, um ar de bem-nascido, com o sotaque do Rio, muito pronunciado. Totalmente contra, dava a entender, por vezes, estar tão próximo dos guerrilheiros como das tropas que comandava. Um bom coração para as questões humanitárias, sempre pronto a ajudar, quase sempre de má vontade para tudo o que fosse acção ofensiva contra a guerrilha.
O Ferreira mantinha-se ao largo destas discussões, não se manifestava, por cansaço ou por outro motivo. Falava da namorada e da mãe, com os olhos brilhantes para as fotos ao lado da cama. Tinha ganho no Como a imagem do alferes mais operacional da companhia, os soldados falavam dele com respeito, via-se que tinha ascendente.
Os outros dois alferes da Companhia que com eles tinham partido de Estremoz, já estavam na metrópole, ambos evacuados, o Sequeira por doença incapacitante e o outro, o Monteiro, atingido por estilhaços de um engenho explosivo que obrigaram à evacuação para o Hospital Militar da Estrela.
O alferes que estava a substituir o camarada evacuado para a Estrela, acreditava no Império, em Portugal do Minho a Timor. De mãos dadas com as populações, de arma na mão contra os que se opunham.
Impensável, não via como podiam ter entre eles quem pensasse como o Didi. Tanto choque de pontos de vista em tão pouco tempo, a guerra deixou de ser motivo de conversa, evitavam-na. Limitaram-se a conviver o resto do tempo que permaneceram juntos. Quando, por qualquer motivo, um deles insistia na conversa da guerra, o outro, como se tivessem combinado antes, punha-se a falar do Benfica e do Sporting ou então ia dar uma volta.
O capitão, um pouco sobre o alto, magro, algo distante, olhar desconfiado, deixava as coisas andarem. Via-se nele o desejo de acabar a comissão o mais depressa possível, sem mais chatices, o que não era nada fácil com um Tenente-Coronel daqueles.
O doutor Lourenço falava dos doentes e de Angra, a cidade onde nascera. Agora que tinha ali um recém-chegado da sua terra puxava-lhe pela língua. Conheceste o quê? O Monte Brasil e as Lajes, claro, a Praia da Vitória, a Terra Chã, a Serreta, os Biscoitos, e que mais? Visitaste o Palácio dos Capitães-Generais, o Outeiro da Memória, a Igreja da Misericórdia, os Impérios, o Algar do Carvão? E que gente conheceste? Em que café paravas, ora diz lá! No Internacional do Mário?
Horas de conversa, perguntas atrás de perguntas que lhe serviam para matar saudades da sua ilha. E a namorada terceirense, que tal? Não tens? Então de quem são as cartas que vem de Angra? Como sei? Ora, pelo endereço, calhou ver, só isso, mais nada. Olha, por acaso conheço a família dela, e a ela também, cheguei até a ver-lhe a garganta!
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Notas:
13 - Um dos corredores que a guerrilha utilizava para Canjambari e daí para o Oio
14 - Espingarda de repetição, de origem alemã
15 - Nas regiões fronteiriças, o adversário procura pôr-se a coberto da acção das NT refugiando-se nos territórios vizinhos. Uma emboscada montada nas cercanias de Cuntima, foi bem sucedida e causou dois mortos e vários feridos confirmados. Os bandoleiros fugiram para a República do Senegal, donde flagelaram as NT. Nesta acção foi capturado armamento, munições, material diverso e abastecimentos.’ Do Boletim n.º 6, do E.M.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 30 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14814: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IIa Parte) Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (1)
5 comentários:
Sou do tempo,do Saraiva (comando) na Guiné, juntamente com quem participei em algumas operações, na zona do Tombali.
Gostei deste bom trabalho do Virginio Briote. Parabéns, queremos mais.
Um abraço,
JS
Olá, caro Sacôto. És uns meses mais "velhinho" que eu na Guiné. Cheguei em Jan65, já tu andavas por lá aos tiros.
Chegaste a conhecer o Mário Sasso, salvo erro da 728, que morreu a caminho de Empada?
Com o Saraiva ainda fomos mantendo o contacto até 1974. Nunca mais o vi. Quando o procurei já era tarde, tinha morrido meses antes.
Vou continuar a enviar algumas memórias daqueles anos...
Um abraço do V Briote
Caro Briote:
Conheci bem o Mário Sasso foi meu contemporâneo na zona de Catió ele estava no Cachil, Ilha do Como.
Numa operação em que participou, foi alvejado por uma bala que, entrou na zona da axila de forma que não foi fácil descobrir o ferimento que o vitimou.
Eramos bons companheiros, gostava muito dele. Paz à sua Alma.
Fico à espera de mais memórias.
Um abraço,
JS
Eh, Virgínio!
Felicito-te pela memória e pela excelência da prosa.
Começaste a pisar o chão da Guiné estávamos nós a iniciar a ocupação de Cufar, onde interagimos com o amigo comum, o comando João Parreira, além dos históricos comandos Maurício Saraiva, João Bacar, Marcelino da Mata e outros. Conheci o tenente-coronel Fernando Cavaleiro, um cavaleiro olímpico medalhado e comandante da Operação Tridente. Gozava da reputação de homem justo e soldado valente. Constava que em Farim, ao deparar com um reabastecimento de batatas apodrecidas, questionou o piloto do Dakota se não tinha vergonha de comandante de "merda", que lhe respondeu ter recebido "no mato comem tudo", como resposta à sua reclamação. Meteu-se no avião para Bissau, foi ao gabinete do comandante da Manutenção Militar, agarrou-lhe os colarinhos, afocinhou-o no caixote de batatas podres que levava, enquanto dizia: - Com que então os do mato comem tudo? Livra-te da próxima!
Ainda tens muito que contar...
Abraço
Manuel Luís Lomba
Viva Manuel Lomba,
Ouvi essa história e várias outras do Coronel Cavaleiro. Era de facto um Militar e um Homem. Os meus contactos com ele continuaram depois de eu passar à peluda e até a carreira profissional que segui devo-a a ele.
Abraço
VBriote
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