1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Abril de 2016:
Queridos amigos,
Já ninguém ignorava que o MFA da Guiné agira singularmente e por conta própria num processo de descolonização com inúmeros melindres. Na Guiné, a contestação dos militares formara núcleo próprio e tinha vida desde 1973. Como escreveu o investigador António Duarte Silva, o MFA local controlava todo o aparelho militar: o Batalhão de Comandos Africanos, o Batalhão de Paraquedistas, a maioria do pilotos, a Companhia de Polícia Militar, o Agrupamento de Transmissões e o Grupo de Artilharia da Guiné.
Em 26 de Abril, em Bissau, tornou-se irreversível o golpe do dia anterior na metrópole. É sobre todo este processo imparável, com compreensíveis ziguezagues, dores e apertos de alma, onde houve relações amistosas entre as tropas portuguesas e o PAIGC, onde se revelou também que o PAIGC estava impreparado e até enviou para Bissau um comissário político com falta de envergadura, tudo isto é contado com impressionante rigor por alguém que viveu todo este processo do princípio ao fim.
De leitura obrigatória.
Um abraço do
Mário
A descolonização na Guiné-Bissau e o movimento dos capitães (2)
Beja Santos
“A Descolonização da Guiné-Bissau e o Movimento dos Capitães”, por Jorge Sales Golias, Edições Colibri, 2016, é o relato na primeira pessoa do singular de alguém que acompanhou na primeira fila a criação do MFA da Guiné e todo o processo de descolonização, descrevendo reuniões, relatórios, vicissitudes de vária ordem, negociações com o PAIGC, assembleias do MFA da Guiné, e muito mais. Jorge Sales Golias trabalhou diretamente com Mateus da Silva, primeiro Encarregado do Governo depois da partida do General Bettencourt Rodrigues e com Carlos Fabião.
Estamos em Junho, Spínola que insistira num referendo mudou de posição e começou a falar num Congresso do Povo em que ele apareceria como tutor da independência, fez chegar a Bissau 20 mil cartazes com a sua foto. A vida política deste período é suficientemente turbulenta para haver posições impensáveis enquanto o MFA da Guiné, reunido em Assembleia Geral, em 1 de Julho, aprova uma moção exigindo ao governo português não só o reconhecimento da República da Guiné-Bissau como o reatamento das negociações com o PAIGC. Ao mesmo tempo, começam a chover os ultimatos do PAIGC: logo no dia 1 de Julho um ultimato às tropas aquarteladas em Buruntuma, Fabião desloca-se ao local mas mais não conseguiu do que evacuar o quartel. Segundo Sales Golias, começa-se a observar discrepâncias e desorientações na hierarquia política e militar do PAIGC: no Sul, onde sempre se combateu a sério, negoceia-se com prudência, a retração do dispositivo ir-se-á fazendo sem sobressaltos nem humilhações para ninguém; no Leste, onde o PAIGC teve sempre problemas, houve comportamentos fundamentalistas, caso de Buruntuma e Pirada. Haverá uma eminência parda em todo este processo, o comissário político Juvêncio Gomes, colocado em Bissau, revelará imaturidade, duplicidade e comportamento grosseiro ao longo de todo o processo negocial até à independência de facto, com sérios prejuízos para ambas as partes.
Sales Golias pormenoriza as etapas da retração do dispositivo, a questão melindrosa de todas as tropas africanas e a procura de soluções mais avisadas para as tropas especiais. Ficou largamente escrito que se procurou providenciar segurança para as tropas especiais, inicialmente elas disseram que sim, que queria vir para a metrópole, o PAIGC deu garantias de tranquilidade, com raras exceções os membros das tropas especiais ficaram nos seus chãos. Todo o mês de Julho é uma permanente azáfama: as tensões com partidos como a FLING que procura disputar espaço ao PAIGC; em Lisboa, membros do MFA da Guiné procuram esclarecer os decisores políticos da evolução da situação na Guiné, em que a generalidade das tropas pretende partir o mais breve possível; os desencontros bem visíveis entre os comissários e comandantes militares do PAIGC, quadro que conheceu melhorias com os encontros que se realizaram no Cantanhez em 15, 16 e 18 de Julho; além de peripécias, acidentes e tensões entre as próprias forças portuguesas. Em 9 de Agosto, o MFA da Guiné alerta a Comissão Coordenadora do MFA para a gravidade da situação disciplinar nas unidades militares, era uma corrida contra o tempo em que se falava da retração, do pagamento de pensões, da passagem à disponibilidade e desarmamento do Batalhão de Comandos Africanos, o alívio vem com a notícia da assinatura do Acordo de Argel que reduziu muita da instabilidade existente. Porém sentia-se a insegurança da população branca, da cabo-verdiana e da guineense com laços culturais mais estreitos com Portugal, o PAIGC procurava desdramatizar pretextando que haveria reconciliação nacional e lugar para todos.
Estamos já em Setembro, o Comité Executivo de Luta ratificou o Protocolo de Acordo de Argel, a transferência de poderes acelera-se: o Emissor Regional da Guiné passou a designar-se Rádio Bissau, há uma comissão mista em permanente azáfama a resolver infindáveis problemas enquanto as tropas portuguesas vão abandonando o território. Foi preciso chegar a Outubro para se sentir que os quadros do PAIGC sentiam pressa em abordar questões de grande sensibilidade. A partir da independência: quadros no setor da educação, médicos, modo de pagamento até final de 1974 de vencimentos, comércio prioritário com Portugal, etc. É destes relatos que nos fica a imagem um tanto confrangedora que os quadros do PAIGC revelavam impreparação, desconhecimento e até mesmo insensibilidade para os problemas da administração de um território, foi revelador que deixaram para a última a apresentação de propostas de cooperação. Subjacente a estes ziguezagues estariam certamente duas correntes em conflito: os que pretendiam uma transição pacífica, com mais meses ou até anos de uma presença portuguesa e aqueles que pretendiam empurrar para os barcos e aviões os militares e os funcionários coloniais.
O autor releva o ambiente de grande cordialidade que existiu na generalidade dos encontros. Não deixa, porém, de deplorar procedimentos grosseiros como o de Juvêncio Gomes que já presidente da Câmara Municipal de Bissau e na presença portuguesa mandou apear as estátuas de Teixeira Pinto, Honório Pereira Barreto, Diogo Gomes. Em 14 de Outubro, as autoridades portuguesas ao mais alto nível retiraram-se, a bandeira nacional é arreada nas instalações navais de Bissau e a bandeira é entregue ao Comodoro Vicente Almeida d’Eça.
Que importância devemos atribuir a este relato da descolonização da Guiné: as notas pessoais de um oficial que acompanha as mudanças radicais no teatro de operações e que se apercebe com outros camaradas que se fechou a porta a qualquer negociação, a Guiné-Bissau passa a ser reconhecida a partir de Outubro de 1973 por mais de 80 Estados, os apoios político-militares previsivelmente ir-se-ão agravar, Marcello Caetano determina a Bettencourt Rodrigues que resista até à exaustão dos meios, no ar paira a ameaça da repetição da queda do Estado da Índia, forma-se o MFA-Guiné que irradia para a metrópole e deste recebem influxos; a 26 de Abril é na Guiné que se altera a situação político-militar que o autor descreve com uma grande riqueza de pormenores.
A historiografia da guerra colonial acaba de receber um apreciável documento que se deverá juntar a outros para ser compulsado com toda a documentação existente e depositada em arquivos, caso da Fundação Mário Soares. Como escreve no prefácio Carlos de Matos Gomes: “O processo que o núcleo dos militares do MFA na Guiné conduziu para dotar do caráter de anticolonialista o Portugal que iria emergir do 25 de Abril, essencial para a sua credibilidade, desenrolou-se com grande autonomia e, em boa parte, em contínua rebeldia. Primeiro contra o governo de Marcello Caetano, seguida contra as orientações da Junta de Salvação Nacional, finalmente contra as conceções do General Spínola quanto à descolonização”.
Insiste-se que toda esta autonomia, rebeldia e tensões com os poderes constituídos, a par do melindroso problema das negociações com o PAIGC numa atmosfera em que as nossas tropas já tinham afastado do horizonte a necessidade de combater, recebe neste livro um tratamento rigoroso que os estudos posteriores não poderão ignorar.
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Nota do editor
Último poste da série de 22 de abril de 2016 Guiné 63/74 - P16001: Nota de leitura (832): “A descolonização da Guiné-Bissau e o movimento dos capitães”, por Jorge Sales Golias, Edições Colibri, 2016 (1) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Obviamente o livro interessa-me.
Os promotores do golpe em Lisboa, parece terem sido surpreendidos com as diferentes reacções do dia seguinte, que ocorreram em todos os territórios, metropolitano e ultramarinos. Em nenhuma parte do ultramar havia gente preparada para a descolonização "justificada" pelo rebuscado "racismo" da presença portuguesa, "justificação" perturbadora de qualquer convivência, que passou a gerar ódios e comportamentos provocatórios, onde antes havia convivência e todos contribuíam para o bem comum. Havia diferenças? claro que havia, como aqui na metrópole, em África havia ainda muita gente que vivia no modo tradicional das tabancas (cubatas) e a viverem da agricultura e pastorícia de subsistência. Mas aqui também havia trabalhadores pobres, quer na terra, quer nas indústrias e serviços. O que o MFA provocou, principalmente, foi o confronto de classes e a desagregação da orgânica em que funcionava a nação, sem que se tivesse dado oportunidade ao equilíbrio de cada território com vista às autodeterminações, que poderiam ser a continuidade. Mas os membros do MFA tinham um "problema", sublimado em rivalidade de estatuto com os capitães milicianos, e queriam regressar para o aconchego de casa de imediato. Ora, eles foram militares do quadro, porque quiseram, não foram coagidos, e sabiam que a guerra fazia parte da escolha profissional por que enveredaram. O golpe foi uma traição, e como eram imberbes e desorganizados, nos dias seguintes andavam a semear ventos por todo o lado, pelo que as tempestades não se fizeram esperar. Sobre a democracia e o desenvolvimento também não é bom falar.
Assim, desde aquela ocasião Portugal nunca mais registou progresso económico (mais produção do que consumo), e só beneficia de empréstimos sucessivos por estar na Europa, e integrar a CE, onde, por enquanto, não convém registar fracturas, conforme a situação grega deixou explícito, mas deixa-nos empenhados e à mercê de vontades do exterior, que até já dão indicação sobre quem compra os nossos bancos. Quando chegar a ocasião de suspender ou estrangular os empréstimos, é que vai ser o bonito. Até lá vai havendo futebol e novelas em quantidades que nos distraem.
Abraços fraternos
JD
Estes relatos dos nossos militares sabem sempre a pouco, porque fica sempre o vazio de não ouvirmos os nossos aliados africanos.
Esses sim é que nos convenciam a não desistir, durante tantos anos de luta.
Em geral, todos os Régulos estavam contra o PAIGC, porque não o compreendiam e não tinham fé nos outros movimentos, que camuflados se infiltraram no PAIGC e na sociedade em geral.
E já sabiam que as independências africanas só traziam sangue em toda a África.
Em Angola ainda aconteceu e acontece hoje, muito pior do que se assistiu na Guiné.
Os guineenses entre eles são pacíficos, não se matam uns aos outros, só os políticos é que complicam e os Régulos sabiam isso.
De qualquer maneira obrigado BS.
E tu JD, esquece-te das nossas desgraças porque já somos um país velho demais para termos "bancos bons", já não temos cura.
Cumprimentos
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