1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Setembro de 2016:
Queridos amigos,
Este sociólogo guineense, professor no Brasil, com pergaminhos da sociologia política de há muito que estuda o papel da sociedade civil na Guiné-Bissau e decidiu para tema do seu doutoramento estudar as relações entre a sociedade civil e o Estado entre os dois países, tendo como balizas o arranque do multipartidarismo e até 2008.
Dá-nos um quadro das conceções teóricas que modelam a transição de políticas autoritárias para liberais, analisa os pontos de convergência e divergência gerados pela história na afirmação dos dois Estados, procede a trabalho de campo junto das célula da sociedade civil, confirma a identidade de duas culturas e um processo de desenvolvimento em que há inúmeras aspirações afins, desde o combate ao desemprego e à pobreza até à incessante procura de independência face ao apetites dos partidos políticos.
De leitura obrigatória, para quem queira conhecer estas duas sociedades civis em movimento.
Um abraço do
Mário
Cabo Verde e Guiné-Bissau: sociedade civil e Estado
Beja Santos
“Cabo Verde e Guiné-Bissau, As Relações entre a Sociedade Civil e o Estado”, por Ricardino Jacinto Dumas Teixeira, Editora UFPE, Recife, 2015, é o produto de uma tese de doutoramento de um professor universitário guineense que ganhou o seu título na Universidade Federal de Pernambuco. A sua investigação emerge na trajetória distinta e num relacionamento comum entre dois países que têm um denso cruzamento histórico. Por força de uma conceção ideológica montada por Amílcar Cabral, o termo unidade utilizado exaustivamente na luta armada pela libertação nacional apelava para dois países que devido a uma história comum deviam caminhar de braço dado, da guerrilha à fusão do Estado. Esse sonho desmantelou-se em 1980, os dois países mantiveram-se numa linha de partido-Estado até que o mundo deixou de ser bipolar, o comunismo afundou-se e as correntes liberais pareciam tomar conta de tudo. Da década de 1980 para a década de 1990 a estes países africanos acenou-se com a democracia multipartidária e a economia de mercado. Com as transformações políticas sociais e económicas, entrou-se numa era de democracia representativa e participativa, com grandes altos e baixos. É nessa fase que se dá um processo político distinto entre Cabo Verde, insular, sociedade crioula, com elevada diáspora, onde o sentimento de cabo-verdianidade é poderoso e a Guiné onde se acena com o fantasma militar, onde se manifestou o caudilhismo, a guerra civil e a permanente instabilidade política. As sociedades civis dos dois países têm recortes distintos mas também posições afins.
Tratando-se de uma investigação doutoral, Ricardino Teixeira inicia a sua investigação com quadro apurado de contornos teóricos-metodológicos e a análise comparada das relações entre a sociedade civil e o Estado tendo como referência o processo democrático em construção nos dois países entre 1994 e 2008, no fundo o investigador procura o grande ecrã da ciência política para enquadrar a democracia representativa, o triunfo nos princípios liberais e como a sociedade civil e o Estado se vão confrontar na vida quotidiana.
O segundo capítulo desvela os dois países em termos de história e organização, de sociedade e cultura. Cabo Verde foi descoberto, povoado por brancos e populações da Senegâmbia, a Guiné teve vida pré-colonial, a ocupação portuguesa foi radicalmente diferente da criação de uma sociedade crioula, encontraram-se na miscigenação e no comércio negreiro, em Cabo Verde expandiu-se o catolicismo, uma forma de organização agrária decalcada de modelos europeus, todas as localidades possuem nomes portugueses; a Guiné caracterizou-se por uma presença no Litoral, montaram-se praças e presídios, pagava-se aos régulos uma tributação para ocupar território e quando se avançou para uma ocupação efetiva contou-se sobretudo com o cabo-verdiano, culto e disciplinado, motivado para os negócios, na segunda metade do século XIX lançaram-se na criação de colónias agrícolas, nomeadamente no Sul. Ricardino Teixeira recorda a resistência oferecida pelas etnias guineenses contra a presença portuguesa, sublevações permanentes, só com o Capitão João Teixeira Pinto, a partir de 1913, com campanhas de pacificação, um hábil aproveitamento de tropas auxiliares conjuntamente com mercenários de outras regiões é que se conseguiu a capitulação dos revoltosos, entrou-se numa fase de interiorização da presença colonial a despeito de as comunidades rurais terem mantido um elevado grau de autonomia.
Como é óbvio, Ricardino Teixeira vai traçar os aspetos relevantes da tese da unidade Guiné-Cabo Verde forjada por Amílcar Cabral. A primeira mão-de-obra militar foi oferecida por jovens guineenses que terão um papel determinante nas sublevações a partir de 1962, no Sul da Guiné, esses homens estarão à frente das forças sublevadas em toda a região Sul, no Oio e no Corubal, partir de 1963.
Mobiliza-se o apoio popular guineense e os quadros cabo-verdianos vão se espalhar pelas zonas de luta, Conacri, Dakar e Ziguinchor. Iludiram-se contenciosos seculares entre guineenses e cabo-verdianos, Amílcar Cabral será assassinado fruto dessas discórdias. O golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980 clarifica a profunda dissensão e o fim da fórmula de unidade Guiné-Cabo Verde. Perante dois países tão distintos, no ADN, na espiritualidade, no conceito identitário, Ricardino Teixeira vai investigar as relações entre a sociedade civil e o Estado, num momento em que se enveredou pelo reconhecimento e se legitimou a democracia representativa e participativa.
Foi este o trabalho de campo que ele desenvolveu, junto de organizações cabo-verdianas e guineenses. No final, não subsistem dúvidas que há pontos de aproximação, embora, em muitíssimos casos, o quadro de aspirações é radicalmente distinto. Cabo Verde entrou no multipartidarismo sem dramas nem golpes militares, o PAIGV deu lugar ao Movimento para a Democracia, aceitaram-se as regras do jogo. Os inquéritos destacam inúmeras contradições no que é a fragilidade da sociedade civil, o seu grau de dependência dos humores dos poderes do dia e, inevitavelmente, da cooperação e dos apoios da diáspora. As perceções do Estado na Guiné-Bissau recordam os abusos de poder, o poder real na mão dos militares, a pulverização partidária e a ascensão da etnia Balanta, a especificidade dos grupos de mandjuandades, uma mobilização de solidariedade e cultura. A perceção da sociedade civil em Cabo Verde tem outros matizes, basta pensar nas manifestações culturais da Tabanka, do Batuko e do Funana, tem demorado a que as organizações da sociedade civil se dissociem dos interesses partidários em contenda, o PAIGV e o MpD.
E afinidades? É o combate à pobreza, a procura da satisfação das necessidades elementares da população, o uso do microcrédito num esforço de criar empresas que contrariem a elevada percentagem de desemprego; há a promoção dos valores ambientais, as lutas pela igualdade de género, a valorização da expressão musical, os direitos humanos, a procura de participação de jovens e mulheres nas decisões políticas.
E assim chegamos às relações entre a sociedade civil e o Estado, os inquiridos não se cansam de relevar a falta de recursos, a pressão dos partidos políticos, as sequelas do partido-Estado, o desapontamento face ao oportunismo político dos partidos no uso da sociedade civil. O autor sumula estas queixas dizendo
“observa-se em todas as colocações que a defesa da democracia e criação de novos espaços públicos, voltados para a revitalização das organizações da sociedade civil é colocada como uma falta na relação com o Estado”. Vários inquiridos na Guiné-Bissau lembram que este relacionamento estará sempre profundamente inquinado enquanto não houver reforma do Estado. Já nas considerações finais, o autor lembra que há aproximações entre as organizações de massas e grupos de base dos dois países no que tange ao aumento de desigualdades, às questões de género, ao desemprego, aos riscos ambientais e ao imperativo de que as organizações e grupos da sociedade civil devem permanecer equidistantes dos partidos. O investigador deixa diferentes questões em aberto que cabe aos outros responder, como é o caso das necessidades locais e como elas são perspetivadas pelas agências de financiamento e pelos grandes centros de cooperação internacional.
Temos aqui uma estimulante base de trabalho para conhecer na atualidade o grau de mobilização nas relações entre a sociedade civil e o Estado nos dois países, geograficamente próximos e com identidades tão distintas.
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Nota do editor
Último poste da série de 28 de Dezembro de 2018 >
Guiné 61/74 - P19341: Notas de leitura (1135): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (66) (Mário Beja Santos)