sexta-feira, 12 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19673: Notas de leitura (1168): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Janeiro de 2019:

Queridos amigos,
Desconhecia inteiramente esta "Missão Cumprida" de Santos Andrade, a história do BCAV 490 em verso.
É um documento de grande importância, não pode ser escamoteado. Ocorreu-me a sua transcrição integral aqui no blogue, atraindo à cena muitos outros testemunhos, alguns a que eu reconheço elevado recorte literário, outros depoimentos talvez mais datados, o fundamental é convocá-los como nossos parceiros de missão, de dever de memória.
Do coração deixo aqui o apelo para a intervenção de todos com sugestões, memórias, fotografias, Santos Andrade é um aedo, um lírico porta-estandarte do BCAV 490, é ele próprio a falar da amizade, das dolorosíssimas perdas, pondo nomes a quem cedo partiu e a quem regressou com toda a sua vida transformada.
Peço ajuda para esta missão que vamos cumprindo, a de pontuar o que vimos, o que experimentamos, a Guiné que não deixámos perecer.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (1)

Beja Santos

“Missão Cumprida”, de Santos Andrade, é a história em verso do BCAV 490. Foi composto e impresso na Tipografia das Missões, Guiné Portuguesa, em julho de 1965, o que significa que o autor antes de regressar da sua comissão tinha a obra acabada. O bardo conta como vai para a vida militar, como chega a Mafra, passa por Estremoz, fala das desditas das perdas, da vida em Bissorã, da Batalha do Como, da chegada a Jumbembem, fala-se de Farim, Cuntima, Guidage, de operações, muitas, de emboscadas, de armadilhas, de valentia, do retorno a Bissau, há memórias de tudo, apelos sentimentais, até o termo da gesta, com o fado do regresso. É verdade que há já um conjunto de histórias de unidades militares em verso, creio, salvo melhor opinião, que esta é a primeira que se escreveu na literatura da guerra da Guiné, presta-se a uma homenagem a Santos Andrade, a quem fez parte do BCAV 490 e a quem tanto escreveu, por artes colaterais, incidentais, no que aqui em verso se nomeia. E assim ocorreu um projeto, com algo de mobilizador, ir publicando o que Santos Andrade versejou e lembrar outros autores, dando a possibilidade a muitos, a começar por quem esteve nas fileiras do BCAV 490 a quem tem histórias similares ir depondo ao longo de uma série de transcrições desta tão impressiva “Missão Cumprida”.
Assim, ao encetar o que o bardo conta de si e do seu batalhão, convida-se a que muitos testemunhem e aumentem esta missão cumprida que continuamos a cumprir até que o último dos combatentes entregue em definitivo o estandarte nos labirintos da História.
Valeu?


A missão cumprida começa assim:

Um rapaz que conta a sua vida e seguidamente a do seu Batalhão

Mote

Amigos do coração
vou para a vida militar.
Fui para as Caldas da Rainha
Para a recruta tirar.

No dia da minha abalada,
a 28 de Janeiro,
tomei o comboio para o Barreiro
com muita rapaziada.
Ás quatro da madrugada,
estava eu já na estação
Comecei a apertar a mão
a quem comigo não quis vir
e o meu destino vou seguir,
amigos do coração

A viagem foi bem boa:
não escapei nada mal!
Quando eram oito e tal
tomei o barco p’ra Lisboa.
O Cícero como boa pessoa
começou comigo a falar;
o Abelardo a perguntar
o que é que eu vinha fazer;
e eu lhe comecei a dizer:
vou para a vida militar.

Quando o barco foi atracado,
nós descemos do navio,
procurámos a estação do Rossio,
mas o comboio tinha abalado.
Eu estava ensonado
e muita fome tinha.
Fui comer uma galinha
mesmo em cima do passeio
e, quando a automotora veio,
fui para as Caldas da Rainha.


Assim começa Santos Andrade e de imediato me ocorreu o arranque do Diário do Soldado Inácio Maria Góis, seguramente o melhor diário da Guiné que até hoje se escreveu:
“Eu, Inácio Maria Góis, filho de Luís Justo Pereira de Góis e de Bárbara Antónia, natural dos Gasparões, concelho de Ferreira do Alentejo. No dia 2 de Agosto de 1962, fui alistado com toda a prontidão para cumprir o serviço militar obrigatório. Em pleno mês de Setembro de 1973, encontrava-me eu a trabalhar na vila da Batalha, onde exercia a profissão de operador de máquinas de terraplanagens”.

Tinha que se apresentar no RI3, em Beja, em 20 de outubro. Despediu-se dos colegas de trabalho e embarcou para Porto Covo para se despedir do pai e da namorada.
É um autor que se despe em toda a sua intimidade:
“Desci do autocarro, peguei na minha mala e caminhei em direcção a casa do meu pai, bati à porta, veio a minha madrasta, que me lançou um olhar de arrepiar, ela não gosta de mim, nunca gostou. Eu nunca lhe faltei ao respeito, apenas lhe disse que venho visitar os meus irmãos e o meu pai, é ela que manda, põe e dispõe à sua maneira, é mais nova que o meu pai dez anos. Tudo quanto ganhei até entrar para o serviço militar o meu pai se aproveitou da minha inocência e eu acreditei na boa-fé do meu pai, que afinal traiu o próprio filho e praticamente o abandonou, dizem que há Deus e eu tenho que acreditar. Vim também para ver a minha namorada, de quem gosto muito e me dá carinho e algum alento”.

E ocorreu-me igualmente o arranque da esplêndida obra de Filipe Leandro Martins, “O Pé na Paisagem” (Editorial Caminho, 1981):

“O comboio deixou-nos na cidade com mais ou menos vinte anos. Saímos aos trambolhões, entre malas e saquinhos, berrando uns pelos outros com a solidariedade de bairro, de vila ou de escola. Eu vinha só com a mala pesadíssima que trazia de casa para a caserna que nos esperava, velhaca. Arrastávamo-nos com pressa, desancados pela viagem, pelas bagagens, pelo sol provinciano à uma da tarde no largo amarela da estação e ouvi alguém gritar o meu nome uma porrada de vezes antes de me voltar. Não me apetecia partilhar o que ia ser a vida dali para diante.
Acabei por parar, com ar de poucos amigos e encarar um moço de óculos, amigo de um amigo, um pálido e nervoso bancário com quem trocara apenas uma dúzia de palavras. Durante três meses ia ouvir as suas angústias de autodidata, sem tempo para lhe falar nas minhas”.

(continua)

Forte do Pessegueiro, perto de Porto Covo.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 12 de Abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19670: Notas de leitura (1167): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (80) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Valdemar Silva disse...

O Forte do Pessegueiro, perto de Porto Covo.
Quem nunca foi à Praia do Pessegueiro, com a Ilha do Pessegueiro à nossa frente, não viu uma das belas paisagens de Portugal.
Ter ido lá despedir-se para ir para a guerra na Guiné é do caraças.
Em 1980, este Forte estava muito degradado e 'ocupado' por jovens veraneantes portugueses e estrangeiros e era difícil lá entrar por a ponte levadiça estar destruída. Depois, nos anos seguintes, com a 'expulsão dos ocupas' e com as obras dos anos 90, conseguimos visitar e admirar esta pérola do litoral alentejano.

Valdemar Queiroz

José Marcelino Martins disse...

Tive conhecimento de "O meu diário" de Inácio Maria Góis, através de um comentário ou pedido de informação sobre o Inácio, pelo escritor francês René Pélissier.
Procurei saber o seu contacto, através de uma junta de freguesia, e contactei-o.
Enviei um cheque para pagamento e um envelope "correio verde" para enviar o livro, que rapidamente chegou às minhas mãos.
Para mim, por tudo o que envolve o livro (a memória, os problemas de um trabalhador em Portugal, a comissão na Guiné) é um LIVRO DE REFERÊNCIA.

mELHOR: é O LIVRO mais genuíno que tenho na estante.

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

No decurso deste mês, tive o imenso prazer de apreciar o Diario do soldado Inácio M. Góis, cujo pelotao de soldados milicianos, comandados pelo Alferes Maia, foram os primeiros metropolitanos a ocupar o destacamento de Cambaju, em Outubro de 1964. Fica assim confirmado que foram os meus (nossos) primeiros contactos com soldados brancos no inicio da Guerra em Cambaju, cuja companhia, a C.CAC 674 (1964/66), estava sediada em Fajonquito. Teria, na altura, pouco mais de 5 anos de idade.

No seu Diario, ele fala das crianças magras e de barrigas inchadas que iam ao local improvisado de quartel, numa época muito atribulada, de medos e de fuga de populaçoes de um lado para outro, no inicio da Guerra que duraria 11 longos anos. Entre essas crianças, certamente, estaria eu e outras da aldeia de Cambaju que iam a procura de restos de comida e, também, para satisfazer suas curiosidades diante de outros seres diferentes e com modos estranhos. Quem diria que, passados mais ou menos 55 anos, essas mesmas crianças teriam a longevidade e a sorte de ver/ler com os seus proprios olhos o conteudo do Diario de um desses soldados.

Duas daquelas crianças quase nuas a que ele se referia, estariam dois filhos do Comandante do Pelotao de milicias de Fajonquito/Cambaju (Guela Baldé), nosso tio paterno, a quem o Gois se refere com muita frequencia com o nome de Galã, foram Deputados e representantes do nosso circulo eleitoral (14) desde 1994. A um terceiro filho, nascido na mesma altura, deram o nome de "Maia", em honra do comandante do Pelotao, Alferes Maia.

O Inácio M. Gois, também, faz referencia a casa comercial onde trabalhava o meu pai e que funcionava, também, como residência, pois diz ele "nesta localidade de Cambaju, so existem duas casas que vendem algumas coisas aos nativos, e uma delas encontra-se fechada". Mais tarde, o meu pai seria transferido para Fajonquito, entre finais de 1967 e principios de 1968, e com ele toda a nossa familia.

Com um abraço amigo,