A hierarquia dos abutres a devorarem uma carcaça (foto retirada, com a devida vénia, do Portal dos Animais)
1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
Camaradas,
A nossa existência de vida diz-nos que os abutres são aves necrófagas que se alimentam de restos de cadáveres. Na sociedade, onde há milhares de anos coabitamos, era normal a existência de voos rasantes de presumíveis “abutres” que “comiam tudo e não deixavam nada”.
Nos tempos de antigamente, do Estado Novo onde o conflito colonial imperava, gentes do poder envergavam fatos de fazenda fina, camisas acetinadas, sapatos e gravatas de luxo, comentavam os teores da guerra e traziam ao conhecimento do povo inverdades, mas, por outro lado, procriavam réstias de esperanças em familiares de “miúdos” que, entretanto, se encaixavam nas trincheiras da morte.
E é neste contexto que vou debitando temas que farão parte eterna das nossas memórias que, no nosso caso, foram cruéis. Eu, à beira dos 70 e com 14 anos de um AVC que me deixou profundas sequelas no lado direito, a mão destra continua ausente, lá vou dedilhando histórias no meu computador, mas, somente, com a mão esquerda. É, aliás, com esta tenaz persistência que continuarei, aqui no blogue de Luís Graça & Camaradas da Guiné, a dizer: Presente!...
Deixo a dica aos camaradas, caso porventura assim o queiram, adquirirem a minha última obra, nona, “Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74 Memórias de Gabu”, lançada pela Editora Colibri, Lisboa.
Um livro que integra uma coletânea de “Memórias de Guerra e Revolução” cuja coleção é pertença do Comandante Almada Contreiras, um dos militares do MFA – Movimento das Forças Armadas – que esteve envolvido na Revolução dos Cravos, o 25 de Abril de 1974, e que terminou com a guerra colonial.
Pássaros que esvoaçavam os céus da Guiné
Abutres
Numa breve reflexão sobre a passarada guineense, que era e é enorme, detenho-me perante uma veracidade que me fora conhecida, ousando trazer à estampa o universo dos abutres, pássaros necrófagos que proliferavam em todo o solo e que amiúde observava com algum interesse. O seu aspeto atirava para um horripilante semblante e o habitat natural passava pela procura sistemática de restos de cadáveres.
Não vacilo, porém, em recordar Hitchcock na sua análise psicanalítica sobre um filme onde o tema era, obviamente, “Os Pássaros”. Os conteúdos do emaranhado de imagens remetiam-nos para o ataque dos pássaros aos seres humanos. Um filme que se estreou nas telas cinematográficas mundiais no ano de 1963 e que bom dinheiro rendeu à produção, sobrando as inúmeras interpretações feitas pelos amantes do cinema que assumiam presumíveis traduções que esbarravam em análises científicas.
Mas demos um passo em frente, ouçamos, abstratamente, o clarinete e apresentemos armas numa infindável parada, falando nos “abutres” conhecidos numa Guiné em tempo de guerra e não numa outra espécie de “aves de rapina” que se multiplicavam na metrópole lusitana. Estes rapazes de então, bem ou malvestidos de acordo com as circunstâncias propostas, pareciam “bandos de pardais à solta” que esmiuçavam vidas e citavam, com ênfase, a provável falsificada ideologia de um patriotismo entendido, por eles, como inigualável.
Simultaneamente ao evoluir das desgraças conhecidas onde a morte de camaradas se amontoavam nas frentes de combate, lá vinham os senhores de gravatas acetinadas e fatos à príncipe de “Gales” que na hora da despedida no cais portuário de Alcântara, incentivarem um contingente de jovens mergulhados em porões de navios cuja etiqueta transportada era, tão-somente, o pregão ao dito popular que a encomenda que seguia a bordo registava: “carne para canhão”.
Passemos, licitamente, à vanguarda porque esses fatídicos tempos foram maus de mais para ser verdade. Com efeito, concentremos atenções no respetivo pássaro e observemos que o abutre é uma ave accipitriforme e originária da família chamada de accipitridae. Refletindo em pormenor sobre estes necrófagos, diz-se que as aves são também conhecidas como abutres do velho mundo. A sua longevidade chega a atingir os 30 anos, sobretudo quando se encontram em cativeiro.
Conheci o seu esvoaçar num horizonte interminável e os seus impulsos animalescos na procura de um lugar para pernoitar. Conheci, também, a obstinada azáfama na procura de alimentos. Conheci, ainda, as suas visitas quotidianas às proximidades do barracão do Seidi, “magarefe-dia” onde o nosso quartel angariava carne de vaca fresca para uma pontual refeição mais abastada, sendo que este rapaz de etnia fula matava, esfolava e dividia a carcaça do animal de acordo com os pedidos previamente feitos.
Lembro, e foram muitas vezes a que assisti, o Seidi, após a trabalheira da matança lançar para o bando de abutres pequenas dádivas para os pássaros se deliciarem com primor.
Recordo, simultaneamente, as lutas desenfreadas travadas entre eles pelo melhor naco, ou, as guerras para limparem parte das ossadas do animal, ficando a certeza que no grupo havia regras que os mais desenfreados comilões, sempre de bico “afiado”, assumiam por inteiro, tendo em conta o posto hierárquico emanado pelo bando.
Claro que as lutas dos pássaros desenhavam ávidos momentos em que a prioridade era o encher o papo. Noutros lugares existiam sequiosos “abutres”, mas estes literalmente curvados ao faustoso e recheado prato que lhe fora colocado na mesa. A nutritiva refeição era tão-só uma pausa pontual ao arroz com salsichas.
Para outros, pássaros de rapina imbuídos num minucioso calculismo, a tal vaca morta e desmanchada pelo Seidi tinha os seus dividendos. Restava a certeza que a mão “milagrosa” do Seidi jamais recusou atirar para os abutres as sobras da carcaça que, por razões evidentes, “não iam à mesa do rei”.
Hoje, ao lembrar as memórias de Gabu detenho-me perante as minhas vulgares idas ao matadouro do Seidi. A sua azáfama era de todo interessante. A túnica, veste que usualmente transportava no seu corpo e que aparentava alguma sagacidade, estava normalmente manchada de sangue, tal como as mãos que reproduziam um trabalho que ele próprio assumia com dignidade. Era, aliás, dessa árdua faina constante que o nosso amigo recolhia proveitos monetários para alimentar a família.
Retalhos de vidas que em tempo de guerra abasteciam tabancas de gentes que faziam do momento imponderáveis desejos de uma existência vergada pelos horripilantes sons vindos de outras batalhas campais que ocorriam ali por perto.
Lá longe, muito longe, os arautos do despotismo debitavam discursos, qual “abutres” esvoaçando sobre negros horizontes, dizendo às massas que os militares portugueses lutavam nos palcos de guerra com honra e dignidade.
Na verdade, nós jovens lutávamos como heróis visando a essencial salvaguarda da nossa “carcaça”, mas numa guerra que não era decididamente nossa. Os defuntos “abutres” que num limiar de cautas razões que na época ostentavam, levantem-se dos sepulcros, escutem o julgamento final e defendam a triste tese que certamente não transitará em julgado.
Histórias avulsas de incautos cenários onde fomos meros “pássaros” andantes de uma imigração obrigatória em território alheio.
Um abraço, camaradas,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
___________
Nota de M.R.:
Vd. também o poste anterior deste autor:
17 DE SETEMBRO DE 2020 > Guiné 61/74 – P21366: (Ex)citações (370): Rumo à guerra colonial na Guiné (José Saúde)
4 comentários:
Zé Saúde.
Referindo-me aos abutres, propriamente ditos, aves da família dos accipitrídeos, recordo os ter visto pela primeira vez no telhado do Mercado de Bissau, quando bebia uma cervejola bem fresquinha na esplanada da "Solmar".
Depois, no mato eram 'companhia' frequentemente avistados planando ou poisados à espero de comida. Lembro-me de uma vez na segurança/acompanhamento de uma coluna Nova Lamego-Bafatá, uma das camionetas de carga civil ter atropelado um macaco de um bando que atravessava a estrada. Já vai haver comida para os abutres, comentei, mas abutres nem velos por perto ou longe. No regresso, que levou pouco tempo deixando a coluna e voltando, quando passamos pelo mesmo local do atropelamento lá estava a carcaça do macaco, melhor dizendo alguns ossos limpos e polidos como se fossem de marfim.
Quanto a outros 'abutres', tal como os necrófagos, têm cada um a sua especialidade que é fácil de distinguir pela forma da cabeça e do bico conforme o que querem abocar.
Abracelos e saúde da boa
Valdemar Queiroz
José Saúde:
Tenho pena que no teu texto não apareça pelo menos uma vez termo "jagudi" pois lá ninguém lhe chamava abutres…
Abraço
Fernando Gouveia
Fernando Gouveia
Concordo contigo. Nada a contrapor. Conheci o desígnio de "jagudi", mas a narrativa tem um duplo sentido e eis a razão pela qual me fixei, simplesmente, nos abutres que povoavam o território guineense. Não quis desmontar a "teia" do texto, uma vez que os "abutres" proliferavam não só na Guiné, assim como nos corredores governamentais do Terreiro do Paço.
Abraço,
Zé Saúde
Boas
Estão a ser envenenados por toda a Guiné.
Encontrei alguns mortos este ano.
O pessoal do Ambiente, está preocupado com a situação.
Dizem, que é para lhe retirar algo, que serve para as cerimonias...
Enviar um comentário