Mafra > Escola Prática de Infantaria (EPI) > 1968 > Cerimónia do Juramento de Bandeira > Desfile dos novos militares, onde se integrava o Paulo Raposo, frente ao Convento de Mafra. O Paulo Enes Lage Raposo, que nada tem a ver com a história que a seguir se conta (ficcionada, mas onde os factos são verdadeiros), foi alf mil inf, MA, CAÇ 2405 / BCAÇ 2852 ( Mansoa, Galomaro e Dulombi, Guiné,1968/70), e o organizador do histórico I Encontro Nacional da Tabanca Grande (Ameira, 2006). A sua companhia perdeu 17 militares na travessia do Rio Corubal, na sequência da retirada de Madina do Boé, em 6 de fevereiro de 1969 (Op Mabecos Bravios).
Foto (e legenda): © Paulo Raposo (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
A galeria dos meus heróis > De companheiros de infortúnio a amigos para a vida
- Parte I (Luís Graça)
Ainda me soava aos ouvidos a frase de uma canção de protesto, de um gajo de Coimbra, estudante de medicina, que deve ter chumbado a meio do curso, e que era do “reviralho”, cantava bem e tocava viola sofrivelmente : “Muita chuva, muito vento, muita merda… e um convento!", cantarolava ele na caserna, enlameado e estafado, depois do crosse semanal...
Por aqui passara eu, cerca de quatro anos antes, como “feijão-verde”. Eu, o meu antigo capitão miliciano e outros camaradas de que já havia perdido o rastro. Para mim, "criminoso" contra a minha vontade, era como voltar ao “local do crime” Foi dos regressos ao passado mais penosos da minha vida. Ao sítio onde não fora feliz, nem nunca o poderia ter sido. Foi aqui que recebi a trágica notícia da morte do meu pai. Prematura, sem ter completado os sessenta anos.
Não me autorizaram sequer a ir despedir-me dele. Morrera na véspera do meu juramento de bandeira. Mandaram-me, da agência funerária, um telegrama em cima da hora. O tenente da minha companhia de instrução chamou-me ao gabinete e disse-me, seco e perentório, em resposta ao meu pedido para ir a Mértola, ao funeral: “O senhor soldado-cadete pode ir, o pai é seu, mas perde o juramento de bandeira, chumba no COM, vai parar ao CSM, a Tavira, às Caldas ou a Santarém, atrasa o seu embarque para o Ultramar em mais alguns meses… Enfim, a escolha é sua!”…
Sim, o pai era meu, mas a pátria era deles... Enfrentei, nesse fim de tarde, um terrível dilema, dividido entre o meu amor filial, o meu dever de ir prestar a última homenagem ao meu pai, e a tomada de consciência, naquele preciso momento, de que passava a estar, doravante, na “linha a frente” e, ao mesmo tempo, a ser o sustento da minha família, da minha mãe e da minha irmã, mais pequena. Por outro lado, dava-me conta da impossível escapatória daquele sistema totalitário, que era a “Máfrica”, representado pela nudez e a cruza daquelas paredes que me encarceravam. Não ficara em França, não ía agora fugir do meu país...
Confesso que chorei lágrimas de sangue no dia seguinte, enquanto jurava bandeira, na praça frente ao palácio, com o povinho mudo e calado ao largo… Trágica ironia, jurava defender a minha Pátria (se necessário, “até à última gota do meu sangue”), no preciso momento que descia à terra o corpo do homem que me dera o ser.
Passado pouco tempo estava em Vendas Novas, na Escola Prática de Artilharia, a meio caminho de casa, e mais perto também da minha irmã mais velha, que vivia em Almada e cujo marido, soldador, trabalhava na Lisnave. Fui lá fazer a instrução de especialidade. Aproveitei uma licença de alguns dias para dar um salto à minha terra e depor um ramo de flores silvestres na campa, rasa, do meu velhote, morto pela silicose que lhe destruíra os pulmões.
Mas o Bacelar não tinha nada a ver com isto, com o meu passado recente e muito menos com os meus dramas de consciência. Ele era apenas mais um “companheiro de infortúnio” que eu tivera o azar de encontrar em Mafra, desta vez no mesmo emprego. Claro que eu não o conhecia de lado nenhum. E, muito provavelmente, não iria voltar mais a vê-lo, a partir do dia em que cada um de nós fosse à sua vida, uma vez colocados noutros sítios.
Mas eu devia estar, se não feliz, pelo menos aliviado por arranjar um emprego na função pública, com as habilitações literárias que tinha, o 7º ano do seminário que só dava equivalência para a tropa e o funcionalismo público. Mas não!... Logo por azar meu, as finanças estavam instaladas naquele pavoroso convento, o mesmo onde funcionava, nas traseiras, a “Máfrica”, de triste memória para mim.
Eu tinha chegado em cima da hora. O chefe da repartição, que me pareceu, à primeira vista, boa pessoa, afável, educado, com sotaque açoriano, foi quem nos apresentou um ao outro, e ao restante funcionalismo.
Mas, dado o adiantado da hora, fez questão de deixar a cerimónia da tomada de posse para a manhã do dia seguinte, com a promessa de, no respetivo termo, constar a data da véspera. Ele era a amabilidade e a calma em pessoa. E fez questão de nos dizer, no seu saboroso sotaque, que não nos queria, em caso algum, prejudicar a “antiguidade”. E carregava na penúltima sílaba com evidente deleite.
Percebi logo que também aqui, tal como na tropa, a “antiguidade” era um posto. Lixei-me com essa da "antiguidade", tive de substituir o capitão, na Guiné, depois de ele ter sido evacuado para a “metrópole”, por motivo de doença, que, segundo suspeitávamos, seria do “foro mental”.
Nunca fomos chegados, eu e o meu capitão, falávamos apenas das coisas estritamente indispensáveis de serviço. Ele também não era de grandes falas. Sei que tomava algumas drogas para o sistema nervoso, almoçávamos juntos na messe de oficiais. Tínhamos uma messe só para nós, o capitão e os quatro alferes milicianos. Na prática, a messe era igual, para oficiais e sargentos, mas havia uma divisória, uma espécie de biombo, a separar as duas classes.
Alguém da companhia ainda o encontrou em Bissau, no HM 241, na “psiquiatria”. Era um verdadeiro labéu para a reputação de um militar uma baixa psiquiátrica. Um tipo podia ser “apanhado do clima”, que se lhe desculpava tudo (ou quase tudo). Um gajo podia apanhar uma borracheira, daquelas de caixão à cova, que logo lhe acrescentavam mais uns pontos no currículo de macho. Um gajo podia até ser "cornudo", coitado, que isso não acontecia só aos outros. Um gajo podia ser “maluco”, mas nunca podia dar “parte de fraco”, "dar baixa", neste caso ir parar à “psiquiatria”… Muito menos sendo um comandante operacional.
Antes de saírem para o conforto dos seus lares, os novos colegas das finanças, solícitos, se não mesmo afáveis mas algo premonitoriamente distantes, deram-nos indicações sobre onde jantar e pernoitar. Que no dia seguinte logo se arranjaria melhor sítio para se ficar por uns tempos, já que quartos para alugar não faltavam naquela terra "acolhedora e hospitaleira" (sic). Confesso que não gostei da cara de alguns, que pareciam os verdadeiros “donos da baiuca”.
Dormimos, nessa noite, numa pensão, rasca, numa das ruas que atravessavam o casario frente ao canvento, e que o meu novo colega logo reconheceu. E que cheirava a grelhados, a serradura e a mijo de gato. Ele fizera aqui a tropa há quatro anos atrás, segundo me confidenciou. E ficara, desde então, com um asco a Mafra.
Em conversa com ele, ao jantar, descobrimos que ambos tínhamos regressado, ainda relativamente há pouco tempo, da guerra do Ultramar. Eu de Angola, ele da Guiné. Éramos da mesma colheita, 1947, embora eu fosse mais novo uns meses. Mas cada um, afinal, com diferentes memórias, experiências e até expectativas. As recordações que eu trazia eram até boas, as dele nem por isso, segundo percebi logo de início.
Eu evitei, deliberadamente, falar em demasia desse passado recente que nos aproximava. Talvez por pudor. E também porque não conhecia o Ravasco, ou melhor, tinha acabado de o conhecer há umas escassas horas. E, em boa verdade, não tinha a certeza de poder confiar nele. Tive até o pressentimento que muitas coisas nos podiam separar. Nunca fui pessoa de fazer amizades logo à primeira vista. Sempre foi uma das recomendações da minha mãezinha que era uma mulher sábia e com um formidável sexto sentido: nunca se enganava no primeiro juízo que fazia dos estranhos. Tirava-lhes logo a "pinta", pelas primeiras frases e gestos...
Para começar, o Ravasco era, seguramente, de famílias humildes. Em contrapartida, era um antigo camarada de armas, se bem que eu ainda não valorizasse muito essa condição. Agora era meu colega de trabalho. Mas eu, ao princípio. atrapalhava-me, tratava-o ora por colega ora por camarada. Com alguma cerimónia.
E apercebi-me logo que ele não gostava de tocar na tecla da Guiné. Eu pus-me então a imaginar que ele teria passado um tempo pior, na Guiné, do que o meu, em Angola. Talvez tivesse até apanhado uma porrada, ou coisa parecida. Toda a gente sabia que a Guiné era um duro osso de roer. Mas os gajos da Guiné também gostavam de cantar o "fado da desgraçadinha", como se em Angola e em Moçambique nós tivéssemos só andado a brincar aos índios e cobóis.
Percebi logo, também, que éramos diferentes, se calhar irredutivelmente diferentes, oriundos de diferentes regiões do País, e até de meios sociais distintos. Eu, do Norte, ele, do Sul.
O Ravasco era alentejano de Mértola, e eu minhoto de Ponte de Lima. Do Alentejo eu só conhecia meia dúzia de anedotas, estúpidas, direi hoje. E nenhum de nós conhecia a terra um do outro. O que não admirava: naquele tempo, há meio século atrás, ainda era fraca a mobilidade espacial dos portugueses, viajávamos pouco, dentro (e fora) do País, embora eu já tivesse carro. Mas o mais longe aonde já tinha ido, a Sul, era até Lisboa, quando prestei serviço no RI 5, nas Caldas da Rainha.
O Ravasco confessava que o mais a Norte aonde já tinha ido fora a Aveiro. Fora lá, de comboio, com uns camaradas, mobilizados para a Guiné, comer um ensopado de enguias. Um deles era da Murtosa ou coisa parecida.
Estivera menos de dois meses no Campo Militar de Santa Margarida, a formar companhia. Fora mobilizado para a Guiné pelo RI 2, o Regimento de Infantaria 2, em Abrantes. E não teve pejo em dizer-me que não sabia exatamente onde ficava Ponte de Lima, “lá no mapa do Minho”. O que para mim era imperdoável...
De facto, para mim, o Minho era a “joia da coroa” deste país à beira-mar plantado, o meu país. Era no Minho que começava Portugal, o Portugal do Minho a Timor, como havia aprendido na escola. Sempre tive muito orgulho no meu Minho e, claro, no meu torrão natal, Ponte de Lima, que, segundo me ensinaram os meus avoengos maternos, era a terra, a vila, mais antiga de Portugal.
Na primeira noite, em que nos conhecemos, por sinal desagradável por causa do frio e da chuva, falámos sobretudo do tempo- Falar do tempo é sempre uma solução airosa quando um gajo não tem assunto para conversa, ou não está afim de conversar, ou não quer mostrar logo o jogo, a sua maneira de ser e de estar, a sua história de vida, os seus pontos fortes e fracos… Falámos pouco das nossas terras e das nossas andanças pelo país que nos calhara na rifa.
Simpático, o Bacelar mandou vir duas aguardentes velhas de vinho verde, que fez questão de pôr na sua conta. E estivemos ali os dois a falar, afinal amenamente, evitando, todavia, tocar em assuntos da tropa e da guerra. O que era dfícil, convenhamos...
Na realidade, era como se estivéssemos ainda em África, a resguardarmo-nos do paludismo e a contar as noites e os dias que nos faltavam para a “peluda”. Em geral, eu era muito reservado, nunca ou raramente falava da tropa e, muito menos, da Guiné. Por outro lado, sempre nos tratámos por você, até pelo menos até ao 25 de Abril de 1974. Ele também era cerimonioso, talvez mais por educação do que eu.
Fiquei depois com a ideia de que lhe ficara o "bichinho de África" e que hoje ainda estaria arrependido de não ter aceite uma boa oferta de trabalho em Luanda. No Banco de Angola, gabava-se ele. De resto, não terão faltado outras propostas de emprego, menos aliciantes, como por exemplo a de escriturário numa fazenda de café, em Camabatela, se não erro.
Não me explicou as razões por que voltou para a santa terrinha, ele que se gabava de ter alguns “grandes africanistas” na sua ascendência, do lado materno, um dos quais, militar, ainda conhecera o Zé do Telhado no exílio, em Luanda, a caminho de Malanje.
Mas as saudades, às vezes, falam bem mais alto do que a razão. Disse-lhe que fizera bem, que haveria de continuar a fazer a sua vida na sua terra, e que o futuro de Angola era incerto, tal como o de toda a África Austral, últio reduto dos brancos, o mesmo era dizer, do colonialismo. E não me enganei, o velho “apartheid” branco haveria de ruir em 1994, tal como já tinha antes ruido o muro de Berlim e tudo o que ele representava, dividindo o mundo em duas partes como uma laranja…
Deitámo-nos cedo, estávamos ambos cansados, o Bacelar tinha vindo a conduzir desde Viana do Castelo. Eu viera de mais perto, de Almada, onde pernoitara na casa da minha mana mais velha. (Era casada com um operário da Lisnave, como já atrás referi. Tinham-se casado há pouco, estavam a montar a casa, viviam com dignidade mas com muito aperto, como as famílias operárias da época.) Vim de cacilheiro para Lisboa para depois apanhar, na Rua da Palma, uma camioneta da Mafrense, se bem recordo, ao fim destes anos todos.
Tínhamos guia de marcha para nos apresentarmos até às cinco horas da tarde desse dia, para a “tomada de posse”. Reparei no olho azul do Bacelar. Soube, mais tarde, que era oriundo de uma família de pequenos senhorios, donos de terras de um antigo morgadio com direito a brasão.
(Sempre invejei, diga-se de passagem, quem tinha algo de seu, casas e/ou terras. O meu pai construíra uma casinha de paredes de tabique no couto mineiro. Nada a que ele pudesse chamar seu. Nós, os do Sul, não tínhamos raízes telúricas e muito menos “pedigree”, brasão, árvore genealógica... E quem não tem raízes na terra nem árvore genealógica para mostrar aos outros, é mais propenso às depressões, ouvi essa teoria ao alferes miliciano médico do meu batalhão, que deve ter seguido psiquiatria, era mais “apanhado do clima” do que nós, operacionais.)
O primeiro emprego que o Bacelar arranjara, depois do regresso de Angola, fora numa repartição de finanças do distrito de Viana do Castelo. Um tio (ou tio-avô, materno, não fixei o grau de parentesco) tinha (ou tivera) um cargo importante na Direção Distrital de Finanças do Porto. Teria sido, ao que parece, condiscípulo de diretor-geral das contribuições e impostos, o dr. Vitor Duarte Faveiro. Por isso, no gozo, eu chamava-lhe “filho de Ansião”… E o apodo ficou, quando os outros sacanas dos colegas mafrenses descobriram… “Dor de corno!”, pensei eu. Quem tinha “cunhas” para entrar na DGCI, era logo apodado de “filho de Ansião”, a terra do director-geral que toda a gente reverenciava e temia, sendo tido como um grande fiscalista.
Eu não lhe disse, por vergonha, que também tivera uma cunha, essa eclesiástica. De um cónego do cabido da sé-catedral de Beja. Meu antigo professor. De qualquer modo, tanto eu como o Bacelar, havíamos feito, com sucesso, um concurso de provas públicas, como era norma do Estado Novo. Éramos já “concursados”… Consolava-me a ideia de ter entrado, por mérito, não tendo roubado o lugar a ninguém. (Ou roubara ?... É uma dúvida que, então, se não me dilacerava, pelo menos me incomodava um pouco.)
O Bacelar tinha a secreta esperança de ainda poder ser chamado para o Banco Nacional Ultramarino ou para o Banco de Portugal, se bem percebi. Ou de vir a ficar mais perto de casa, no caso de continuar nas finanças.
Se ele tinha defeitos que saltassem logo à vista, era essa de se gabar do seu “capital de relações sociais”, como se diz hoje…. A matriz da sociedade portuguesa era ainda na época muito clientelar, nada se conseguia (empregos, negócios, casamentos, tropa, etc., ou um simples internamento nos Hospitais Civis de Lisboa…) sem “conhecimentos”, o mesmo era dizer, sem “cunhas”. Mas não precisava de ser “cunha” de gente muito importante, às vezes até parecia que quem mandava mais neste país era a criada, o motorista, a amante, o sargento, o sacristão, o caseiro, o feitor, o maioral, enfim o chefe do pessoal menor… Nas zonas rurais, o feitor era um tipo poderoso, tal como o sargento na tropa… Eu via por Mértola e Beja, onde os latifundiários, a viver na capital, raramente lá punham os pés, a não ser na época das colheitas e da caça.
Ambos arranjámos um quarto, amplo, com duas camas, numa casa sita no centro da vila deMafra. Vivia-se, naquele tempo, do aluguer de quartos a professores primários, funcionários públicos e militares da Escola Prática de Infantaria, incluindo soldados-cadetes que tinham algum poder de compra. Era simpática, a velhota, a dona da casa, viúva de um sargento, se bem me lembro ainda.
Os quartos já não eram baratos na época e eu, tanto como o Bacelar, nos convencemos, estupidamente, que estávamos ali de passagem. Mais ele do que eu. A nossa ideia era, logo depois da tomada de posse do lugar do quadro, pedir de imediato transferência. Eu, para Beja ou para Almada (estava indeciso), o Bacelar para Braga ou Viana do Castelo. Acabaríamos por ficar mais de 21 meses naquela "vida de ciganos", a que passei a chamar Máfrica Dois.
Confesso que detestava a Máfrica, como eu chamava àquela terra, tomando a parte pelo todo. Estava farto da tropa. E se calhar as pessoas de Máfrica Dois também estavam, tirando as velhotas simpáticas que viviam do aluguer de quartos.
O meu tenente-coronel, comandante do meu batalhão, na Guiné, ainda me fez a cabeça para meter o chico. Deu-me um louvor, imaginem!
(E se eu tivesse metido o chico ? Não me livraria de voltar à Guiné, agora como capitão. Secretamente, a ideia não me desagradava de todo, teria hoje um melhor pé de meia. Mas também lá podia ter deixado a meia, o pé ou até a vida. Mas os galões dourados de capitão não me deixavam indiferente, a mim que, não passando de um simples alferes miliciano, experimentara, por breves meses, a secreta volúpia do poder, que tinha como contrapartida o angustiante desafio de comandar 150 homens num teatro de guerra, e o risco de perder alguns. Eu que antes nunca estivera à frente de nada, nunca fora ninguém, nem sequer chefe de turma ou capitão de equipa de futebol!...)
Tínhamos apenas um reposteiro a separar as duas camas, como nos quartos de hospital. A minha cama tinha um colchão de palha (!) onde me afundava com os meus 90 quilos. (Engordei, estupidamente, depois que passara à peluda.)
Não me importei de partilhar um quarto, com o Ravasco, afinal ainda estávamos habituados, tanto um como o outro, ao ambiente de caserna, aos seus maus cheiros, à sua bagunça, ao seu ar opressivo, à sua promiscuidade... O meu quartel no leste de Angola também era uma espelunca, dormíamos com cobras e ratos....Sempre poupávamos algum dinheiro e, dentro em breve, estaríamos de volta a casa. Ou, pelo menos, era essa a minha secreta esperança.
Vi que o Ravasco era poupado, se não mesmo forreta. Usava roupa fora de moda. O seu único luxo eram os jornais e um ou outro livro. Percebi que andava a preparar-se para fazer o exame do 7º ano do liceu. O 7º ano do seminário não lhe valia de nada. Queria seguir letras, julgo que direito. Tinha uma obsessão pelo direito. Se calhar, era-lhe mais fácil por causa do latim. Queria aproximar-se de Lisboa para poder entrar na universidade.
Acabámos também por tornarmo-nos, se não íntimos, pelo menos mais próximos, por força das circunstâncias, como os prisioneiros que estão na mesma cela e estão condenados a, minimamente, entenderem-se. Fiquei a saber que ele tinha deixado noiva em Beja. Ora eu, nesse aspecto, estava mais à vontade, era livre como um passarinho.
Fui conhecendo-o, a pouco e pouco. Fomo-nos conhecendo. Dei conta de que, debaixo da sua aparente bonomia, e do seu verbo fácil, fluente, alegre e até folgazão, havia um homem reservado, subtilmente amargo e revoltado com a vida e com a sorte que lhe coubera a ele e à sua família e à gente da sua terra. Não esquecia a injustiça da doença e da morte do pai. E tivera uma infância difícil, segundo percebi. “Criado a migas, a toucinho de porco e a ervas do campo que agora vão à mesa do rico”, rosnava ele, mal humorado.
Tanto quanto pude apurar das nossas conversas em Mafra, onde ambos estávamos “desterrados” (a expressão era dele), o Ravasco era neto de ganhões, e filho de mineiro, e que tirara o 7º ano do seminário, graças a uma bolsa de estudo da diocese de Beja. Julgo que por detrás dessa obra benemérita haveria uma senhora devota, de uma família de grandes proprietários agrícolas, muito conceituados na região. Foi o que ele me deu a entender, sem entrar em pormenores. Era uma bolsa para estudantes pobres, oriundos do Baixo Alentejo.
Quiseram-no encaminhar para o sacerdócio, mas ele terá percebido, quando acabou filosofia, o 7º ano, que “não tinha vocação”. Ou talvez pior, para um cristão: terá perdido a fé ao lidar (mal) com as injustiças de que o pai fora vítima, ainda em vida, nunca lhe tendo ocorrido que Deus poderia estar a pô-lo à prova. Como me pôs á prova a mim, quando deixei pai e mãe e fui para Angola, não para o “bem-bom”, mas para a guerra.
No verão, o Ravasco ia sempre para França, para a região de Bordéus, fazer a campanha das vindimas. Entretanto dera o nome para a tropa, mas beneficiava de uma licença militar para se poder ausentar temporariamente do país. Nunca lhe passou pela cabeça não voltar a casa e ficar em França, tornando-se refratário. Sempre se considerou um homem de palavra. E patriota. E aí a minha consideração por ele aumentou, apesar de eu o continuar a chamar “mouro”. Não levava a mal. Tal como eu, também não, quando no gozo me chamava “morgadinho” e, depois do 25 de Abril, "pequeno-burguês".
Ainda chegou a ser “aliciado” por um comité luso-francês, católico, contra a “guerra colonial” que dava apoio a desertores e refratários portugueses na região de Bordéus. Mas ele nessa altura não queria saber nada de “política”. E era agarrado à família. E, em boa verdade, temia represálias contra o pai, já doente, se ele não regressasse de França. O que, sabendo o que sabemos hoje, não houve represálias contra as famílias de exilados, desertores e refratários.
Segundo ele me contará, mais tarde, o pai tinha sido mineiro nas minas de São Domingos, entretanto definitivamente encerradas em meados dos anos 60. Vem a morrer quando ele estava aqui, em Mafra, a fazer o COM. De silicose, ao que parece, uma doença então muito comum entre os mineiros. Mas só tardiamente fora diagnosticada e reconhecida, ao pai, essa doença profissional, com direito a reparação médico-legal, segundo ele me explicou. De pouco lhe terá valido a “miserável pensão de invalidez” que lhe fora atribuída, a expressão era do Ravasco.
Eu ainda comentei que no Norte ainda era pior, os rendeiros e os pequenos lavradores, ao fim de um vida dura de trabalho, morriam de miséria num catre, numa cabana de madeira, só com a ajuda da família, quando a tinham. E chamavam o médico só na hora da morte. Ele endureceu a expressão do rosto e respondei-me com veemência: “É porque você não sabe o que é um ganhão nem nunca engoliu o pó de uma mina!”… E eu aí tive que reconhecer que ele tinha razão, eu sabia lá o que era um ganhão e muito menos uma mina ou um mineiro e essa coisa da silicose. Nalgumas coisas eu tinha sido um privilegiado da sorte, embora nunca tendo sido rico, fiz questão de lhe frisar.
O Ravasco tinha ajudado a família com o vencimento de alferes miliciano de artilharia, enquanto estivera na Guiné. Era frugal, não se metia em tainadas. Bebia de vez em quando o seu uísque. Não fumava. Nem sequer veio de férias para poupar o dinheiro da passagem. Saberei mais tarde, quando ganhámos mais confiança, que terá optado por ir uma semana a Bubaque, nos Bijagós. Tencionava arranjar um pé de meia para se poder casar. Mostrara-me, ao fim de uns meses, uma fotografia da rapariga que lá deixara em Beja. Não fixei o nome. Só reparei que não era lá muito bonita: era trigueira, de olhos de cor de azeitona, não fazendo o meu género.
Senti, isso sim, que a morte prematura do pai, antes dos sessenta anos, deixara-o muito abalado e revoltado. Percebi logo que ele era do “contra”, como diria o senhor meu pai. Não gostava de Salazar nem de Caetano. E referia-se à guerra do Ultramar como “guerra colonial”, expressão que era então proibida nos jornais. E, pior, também não frequentava a igreja. Fazia-me confusão, sendo ele um ex-seminarista.
Depois de vir da guerra, começou a interessar-se pela política e lia o “Diário de Lisboa”, além do “Comércio do Funchal”, de que eu nunca tinha ouvido falar antes. Era um jornal cor de rosa. Cheguei a dar uma vista de olhos, mas não me despertou a curiosidade.
Em suma, as nossas afinidades eram puramente acidentais ou circunstanciais. Fôramos parar àquela terra que, tal como a conhecemos hoje, não existiria se o nosso Dom João V, para mim de boa memória, não mandasse ali construir aquele monumental palácio e convento, um dos mais grandiosos da Europa, que o Ravasco teimava em qualificar de “monstruoso”.
A repartição de finanças estava lá instalada, tal como a EPI, e julgo que mais repartições públicas, já não me lembro ao certo, até por que convivia com pouca gente da terra, sempre que podia dava uma escapadela pelos arredores, sobretudo ao fim de semana.
No inverno rapava-se frio de rachar. Eu, que vinha do Norte, onde também faz frio, lembro-me de ter de usar ceroulas no inverno e grossas camisolas de lã em Mafra. Eu e o Ravasco dávamo-nos mal com aquela humidade marítima que nos chegava do Atlântico e se entranhava nos ossos. Não havia aquecimento central, nem uns simples aquecedores a gás. Mas Mafra tinha belas praias, com destaque para a Ericeira. Comecei a gostar da Ericeira, e da Foz do Lisandro, e sobretudo das miúdas estrangeiras que começavam a parar por lá.
O termo de posse já estava pré-preenchido, com os dados de cada um de nós, era só precisa a nossa assinatura, no final, depois de lido o famigerado juramento de lealdade ao Estado Novo.
Repeti mecanicamente a fórmula, como quem rezava o Padre Nosso, no último ano do seminário, depois de ter perdido a fé e a vocação. Olhei, com um misto de temor e de desdém, para os retratos, pendurados na parede, dos três mais altos magistrados da Nação (os vivos, Américo Tomaz e Marcelo Caetano; e o morto, Salazar, o “pai da Pátria”, ou o “refundador da Nação”, que ainda ninguém tivera a coragem de mandar retirar) e disse, firme e em voz bem alta:
“Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela constituição de 1933, com ativo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas”. (Dizem-me que o juramento dos funcionários públicos fora aprovado pelo decreto-lei nº 27 033, de 14 de Setembro de 1936, mas eu nunca chegara a ler esse diploma, tal como nunca lera a Constituição de 1933.)
E, de repente, lembrei-me do meu juramento de bandeira na “Máfrica” e indignei-me por, na altura, nem sequer ter questionado as palavras que, mesmo em voz baixa, atabalhoadamente e a medo, proferi na parada… Regressado de uma guerra, repugnava-me ter aceite, no passado, o dever absurdo de jurar “obedecer cegamente aos meus chefes”. Afinal, eles poderiam ser todos cegos, conduzindo todo um povo, também de cegos, à beira de um precipício…
Tivera um pesadelo nessa noite. Voltaria a tê-lo quatro anos depois...
(Continua)
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Nota do editor:
Último poste da série > 27 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21585: A galeria dos meus heróis (40): O meu amigo Doc - II (e última) parte (Luís Graça)
9 comentários:
Por acaso, a fotografia é do meu pelotão (1º Pelotão da 1ª Cª de Instrução)do COM de janeiro de 1967. Eu sou o 4º (de óculos)na fila da direita. A foto está impressa ao contrário. A foto foi tirada por um familiar de um camarada soldado-cadete quando regressávamos à parada interior da EPI após a cerimónia de juramento de bandeira (Março de 1967). Ainda fiquei mais cerca de 3meses em Mafra para a especialidade de atirador de infantaria.... Abraço para todos. Eduardo Moutinho Santos.
Isto de saber escrever é como tocar um instrumento por quem tem ouvido para a música.
Tocar ferrinhos, tambor, pífaro, campainhas de porta e, até, gaita de beiços não é a mesma coisa que saber tocar piano, violino ou trompete mesmo de ouvido e sem ter frequentado o conservatório.
E arranjar um filho de um mineiro alentejano que foi alferes na tropa por ter o curso do seminário, nem Richard Wagner se lembraria de tal mistura de notas musicais nas suas partituras.
Valdemar Queiroz
Valdemar, gosto de escrever e de ler. E de ler o que os meus amigos e camaradas escrevem (e publicam). O nosso blogue orgulha-se de, à sua escala modesta, ter posto muitos antigos combatentes a escrever.
Eu sei que não é fácil. É como aprender a andar. Eu levei um ano e tal a aprender a andar, como tu ou a minha neta... Mas agora desaprendi. Desde maio que ando na fisioterapia a tentar reaprender a andar. Mas a coisa não está fácil. Se não fossem as canadianas, caía para o lado...Preciso de uma prótese no joelho...Espero por outubro ou novembro com ansiedade.
O que a escrita tem de bom é que não é preciso... muletas nem próteses. Todos podemos podemos escrever uma simples história de meia dúzia de páginas. Não é preciso ser um génio... Agora, é verdade, dá trabalho, é preciso disciplina, persistência, crítica e autocrítica...
Tu, por exemplo, que tens mundo, uma vida inteira a lidar com gente, que és um excelente observador, boa memória, espírito crítico, sentido de humor, e talento (!)..., também te podes abalançar a escrever, se não um livro, para já uns contos...
Ando há mais de três meses à volta da "encontro" destes dois amigos improváveis, o Ravasco e o Bacelar...Conheci-os há mais de 50 anos... Ando sempre com um "notebook" no bolso, daqueles baratinhos, do Auchan (passe a publicidade...). Enquanto bebo uma bica na esplanada da praia, ou espero que me chamem para a fisioterapia, escrevo duas limhas, dois parágrafos, duas páginas...
Às vezes estou dias sem pegar na "minha escrita pessoal", até por que o blogue é absorvente... Há tempo para tudo, mas já não temos todo o tempo da vida... Às vezes quando me levanto às tantas da noite para ir regar as couves, ponho-me a imaginar como acaba a história...
Esta já tem fim. Será a última (e terceira) parte. Não te vou contar, não tinha graça. Espero que tenhas pachorra para ler o resto.
O nosso querido Renato Monteiro escreveu, de rajada, na noite de 3 para 4 de julho de 2021, trinta e um curtos poemas. E dedicou-os ao neto, Carlos Monteiro, que lhe perguntava: "Avô, porque não escreves ?"...
Pediu à Guida para lhe publicar o livrinho, depois da sua morte, e deu-lhe uma curta lista de amigos a quem deveria entregar um exemplar. Morreu uma semana depois, a 11. Título: "O tempo das coisas" (edição de autor, Julho de 2021, 37 pp.)
Li-o e reli-o de ponta a ponta. Escrevi à Guida: "Pungente. Vieram-me as lágrimas aos olhos. Um grande documento humano e uma pequena grande obra-prima da poesia em português."
Estamos cá todos. Está cá cada um de nós, na solidão mais medonha e fundamental da vida, na hora da nossa morte:
Só
Um fim. Um ponto de chegada
Sem retorno
E pior que tudo
Só!
Coração
Coração saltita
Assim: sal ti ta!
Arroz de cabidela
A galinha a antever
O arroz de cabidela
Que será
E ninguém
A dar por isso!
... Valdemar, escreve. Que eu também escrevo para "exorcizar os meus fantasmas"... A escrita faz parte do nosso PRP - Plano de Resistência e Resiliência...
Luís.
Pois, escrever tem que se lhe diga.
O meu caro amigo Monteiro também escrevia muito bem.
Pese, embora, eu ler muita coisa, gostava de saber escrever como deve ser, no que diz respeito à sintaxe e como dizia o meu chefe quando eu tinha 12 anos 'tens cá uma cacografia'.
O ter sempre acompanhado com gente de alguma cultura foi muito importante na ajuda da minha formação e interesse de ler, viajar e conhecer pessoas. Infelizmente agora...acabou.
Foram 59 anos a trabalhar sem necessidade de grandes escrituras, sendo os últimos 35 ocupados com gestão de pessoal e contabilidade, sem preocupações de literacia.
Agora tens que te aguentar nas ..muletas, até à operação "Joelho de Prata" ou não tivesses já habituado a ...foram dois anos a virar bolanhas.
Abraço e saúde
Valdemar Queiroz
Não posso deixar de manifestar a minha admiração ( e por vezes quase inveja) por todos os que pegam na caneta e escrevem, para benefício de muitos . Sejam histórias das suas vidas ou outras vidas, verdadeiras ou imaginadas; em lingua vernácula ( é assim que se diz certo?) ou em poesia; sejam mesmo sobre assuntos filosóficos, políticos, religiosos ou qualquer outros ... há sempre audiência para todos.
E quando se trata de assuntos que de alguma maneira nos atingem pessoalmente mais directamente ... é mesmo uma grande satisfação. Ao mesmo tempo que hoje por exemplo, acabo de ler memórias do Luís Graça, ( pelo que compreendi falta mais uma parte nesta série) e as memórias arremessadas para o fundo da memória do Beja Santos, da sua vida e momentos na Guiné, eu gosto de ver esta disputa entre o Luis Graça e o Valdemar Queiroz, o primeiro a querer convencer e motivar o segundo e escrever também. Devo dizer que as razões do Luís Graca me parecem mais fortes do que as desculpas pouco convincentes do nosso Valdemar; pelo que tenho lido, o Valdemar tem bagagem intelectual, conhecimentos e memória que justificam muito maior publicidade. O mesmo, tenho verificado, se pode dizer de outros que de vez em quando nos fazem o favor da suas entradas, mais não sejam sob a forma de comentários, neste blogue.
Disse no princípio deste "que sinto quase inveja" ; e isto porque muitas vezes sou, também eu, abordado para escrever mais. Franca e honestamente se me sentisse com mais autoridade e competência não deixaria de o fazer. Mas as minhas faculdades de escritor nunca foram grandes; este mesmo comentário meu é prova suficiente disso-- e se nunca me senti com grandes capacidades para escrever=== ( escrevi um "livro" que é pouco mais do que um apanhado de documentos de que não me queria desfazer , mas que os queria deixar para os meus filhos e netos, "como coisas/recordações do pai e avô, nada mais; e fi-lo que apenas porque me convenceram seria irresponsabilidade minha perante a história de Timor Leste e do papel da LAMETA na independência deste país não o fazer; e mesmo assim não tive a coragem sequer de o pôr nas rondas normais de circulação e recusei qualquer remuneração por ele, )=== agora a minha memória e faculdades intelectuais, ao contrário do que verifico com tantos outros cujas leituras me deliciam, ficam muito a desejar. Mas não posso deixar de deixar o meu bem convicto parecer de que quem pode e tem capacidade para fazer não deixem de o fazer. Mais do que uma simples escolha de escrever ou não, parece-me quase um dever fazê-lo. Que o digam os muitos trabalhos, livros ou simples relatórios de memórias que por terem vindo a lume, tanto têm enriquecido as nossas vidas. Bem hajam !
João Crisóstomo, Nova Iorque
Luis, permite-me algumas observações:
- "Máfrica" - Estive cerca de seis meses a frequentar o COM em Mafra e tenho que puxar muito pela memória para me lembrar de ouvir alguém chamar "Máfrica" a Mafra. De que eu tenha a certeza, só ouvi uma vez, mas admito que tenha ouvido mais uma vez, no máximo duas. Fora isso, sempre ouvi chamar Mafra a Mafra. Confesso que acho estranha esta insistência na palavra "Máfrica", mas se calhar a minha memória é que já não é o que era.
- Nós, os do Norte, já na altura os tratávamos por “mouros”. - Se bem me lembro, em 1972 ninguém do Norte chamava "mouros" aos do Sul. Este foi um rótulo inventado bastantes anos depois, desconfio que por razões futebolísticas.
- Fôramos parar àquela terra que não existiria se o nosso Dom João V, para mim de boa memória, não mandasse ali construir aquele monumental palácio e convento, um dos mais grandiosos da Europa, que o Ravasco teimava em qualificar de “monstruoso”. - Antes da construção do convento, Mafra já existia. A comprová-lo está a presença de uma igreja medieval (em estilo gótico rural) na outra ponta da vila. Há quem diga que foi pároco nesta igreja um padre chamado Pedro Julião, que veio a ser conhecido como Pedro Hispano e chegou a papa como João XXI, o único papa português! Será mesmo verdade?
- A repartição de finanças estava lá instalada, tal como a EPI. - Não era só a repartição de finanças que estava instalada no convento de Mafra, tal como a EPI. Também lá estavam a Câmara Muncipal e o tribunal da comarca. O convento é tão monstruoso que cabia lá tudo.
Fernando Ribeiro
Mafra, antes da construção do Convento, e que ainda se chama "Vila velha", situava-se 1,5 km mais a sul e ainda há vestígios do "Castelo de Mafra" tomado por D. Afonso Henriques aos mouros.
Quanto à Igreja de Santo André, estilo gótico rural, erigida nessa mesma zona, é comum dizer-se que Pedro Julião, ou Pedro Hispano, futuro português Papa XXI, teria sido o padre dessa Igreja pelo ano de 1260. Pedro Julião veio a morrer em Viterbo, em 1277, oito meses depois de ter sido Papa, devido ao desmoronamento duma parede do seu Palácio, diz-se devido à pancado dum pesado varão do reposteiro.
É actualmente considerado e quase ponto assente, que a Igreja de Santa André seja do século XIV, com as obras a acabar em 1342-44, e que feitas escavações não foram encontrados vestígios de templo anterior. E até mesmo o orago Santo André é bem posterior à construção. Tal como esta Igreja de Santo André, também foram construídas na mesma época e no mesmo estilo as Igrejas de Santa Maria da Lourinhã e de Sintra.
Mafra é considerada região saloia do Distrito de Lisboa, mas de saloios poucos ficaram a existir a partir da construção do Convento (c.1717). Com uma população de cerca 200 habitantes apareceram de repente cerca de 30.000 trabalhadores de todas as partes do Reino para a construção e muitos não regressaram às suas terras. Nos censos de 1860 a população de Mafra era de 22.500 habitantes também devido à fixação de instalações militares.
Abraço
Valdemar Queiroz
Obrigado por todos os comentários, e em especial ao Fernando Ribeiro e ao Valdemar Queiroz.
Em relação a Mafra, as "memórias" são das personagens, não do autor. Quarenta anos depois é natural que haja contaminação entre "ditos e feitos" de diferentes épocas. Há diversas referências ao termo "Máfrica" no nosso blogue.
Sim, concordo que essa de chamar "mouros", como insulto,aos gajos do Sul não é assim tão antiga como a "Reconquista". Enfim,tenho reler "O Memorial do Convento"..
Quanto ao descritor "Máfrica", tem 10 referências no nosso blogue... E Mafra cerca de sessenta.
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/M%C3%A1frica
Máfrica deve ser termo da gíria coimbrã...O nosso saudoso Vasco Pires, que morreu no Brasil, usava-o muito... Mas também o Rui Alexandrino Ferreira, no seu livro "Rumo a Fulacunda"....
Caro Valdemar,
Eu acho que Mafra é saloia e bem saloia, pelos usos e costumes das suas gentes, mesmo que a genética conte outra história.
Pensando melhor, o que é que resta em Mafra, na Malveira, em Sintra ou em Caneças dos saloios originais, isto é, daquelas populações que habitavam a região quando D. Afonso Henriques (ou algum cavaleiro em seu nome) a conquistou? De então para cá passaram-se tantos séculos e cruzaram-se tantas gerações!... Basta fazer as contas: todos nós descendemos de um pai e uma mãe, dois avôs e duas avós, quatro bisavôs e quatro bisavós, oito trisavôs e oito trisavós, dezasseis quadrisavôs e dezasseis quadrisavós, e assim sucessivamente, duplicando o número de nossos antepassados a cada geração que se recua. Mesmo que consideremos que, a partir de uma dada geração, as repetições também se multiplicam cada vez mais à medida que se recua no tempo, chegamos à conclusão de que todos nós temos uma quantidade incrível de antepassados diferentes e que são das mais diversas origens. Nós somos o resultado único e estatisticamente irrepetível de uma mistura espantosa de genes trazidos por celtas, mouros, negros, judeus, malaios, suevos, etc. etc. etc. Por isso é que não faz sentido nenhum falar em raças puras ou, sequer, em raças. Só existe uma raça, que é a raça humana. Dizer que Fulano é "mouro" porque nasceu no Sul e que Beltrano é "celtibero" por ser beirão é um completo disparate.
É verdade que a construção do faraónico convento atraiu milhares e milhares de trabalhadores para Mafra. Mas quando a construção do convento se deu por concluida, parece-me que a grande maioria desses trabalhadores saiu de Mafra e foi procurar trabalho noutras paragens, porque em Mafra não devia haver muitos postos de trabalho disponíveis para os novos desempregados. Estes ter-se-ão dispersado e a população de Mafra deve ter-se reduzido drasticamente. No entanto, algo ficou, e foi de grande valor artístico. Basta olhar para a estatuária de elevadíssima qualidade que existe no convento de Mafra, sobretudo na basílica. A construção do convento permitiu a constituição na localidade de uma escola de escultura e de arquitetura da mais elevada qualidade: a Escola de Mafra. É verdade que também a Escola de Mafra acabou por desaparecer. Desfez-se em fumo? A resposta é não.
O fruto mais notável que a Escola de Mafra nos deixou não está em Mafra, mas em Lisboa. É a Basílica da Estrela. Esta basílica, que a rainha D. Maria I mandou construir e que é um dos monumentos mais belos que em Lisboa existem, não teria sido possível com aquela qualidade artística e aquela beleza, se nela não tivessem trabalhado os discípulos dos discípulos dos arquitetos e escultores que fizeram o convento de Mafra.
(Já que falo na basílica da Estrela, chamo a atenção para o extraordinário presépio de Machado de Castro que na basílica está. É um presépio constituido por não sei quantas centenas de figurinhas, magistralmente modeladas, que nos dão um retrato de como era Portugal no séc. XVIII. A qualidade artística do presépio é assombrosa, mas a qualidade documental não lhe fica atrás. Eu não sei se no Natal o presépio está patente ao público. É possível que esteja. Se não estiver, vá-se ter com o sacristão e peça-se para nos mostrar o presépio. Foi o que eu fiz. Ele foi buscar a chave da sala onde o presépio estava fechado, acendeu as luzes da sala e eu fiquei maravilhado. Não há outro presépio assim.)
Prezado Luis,
Não tens nada que agradecer. Este teu blog é sobre a Guiné e a sangrenta guerra que nela teve lugar até 1974, mas eu não estive na Guiné. Por isso, não tenho autoridade para falar sobre a Guiné. Então, vou falar sobre o quê? Pois falo sobre o que aparece.
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