quarta-feira, 9 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23060: Historiografia da presença portuguesa em África (307): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (11) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
É imprescindível ler toda a epistolografia de Honório Pereira Barreto para conhecer o patriota, que a despeito da indiferença dos seus superiores, contribuiu decisivamente para definir as fronteiras da Guiné, batendo-se com galhardia contra as autoridades francesas e britânicas, desvelando patranhas, recorrendo à ironia para pôr à mostra a grosseria de procedimentos de outros, enfim, cita-se aqui um documento fundamental em que conta, passo a passo, o que viveu em Cacheu, como procedeu para defender os interesses portugueses neste período crucial em que, em tenaz, franceses e britânicos procuraram pulverizar o que restava da Senegâmbia Portuguesa. Barreto impõe-se pelo brio, pelo bom-senso das medidas, pelas propostas mais ajustadas, pelo envio de cartas às autoridades francesas pondo-as a ridículo, tanto pela ignorância demonstrada como pela grosseria dos procedimentos. E avançamos em direção a 1879, altura que Senna Barcelos põe termo ao seu extraordinário e incontornável trabalho.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (11)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.

É de um indiscutível valor histórico esta epistolografia de Honório Pereira Barreto travada pelas autoridades francesas, percebe-se facilmente que não se pode investigar este período da colónia da Guiné sem ter em conta a documentação que sai do punho do Governador Barreto. Falando com o delegado francês em Selho, é polido quanto baste e exige a diplomacia, mas não escamoteia os factos, falando do assassínio de súbditos franceses que tinha sido praticado por gentes de Pacau:
“Creio que Vossa Senhoria estará plenamente convencido que os portugueses não concorreram, nem direta nem indiretamente, para tal desgraça. Não posso deixar de dizer a Vossa Senhoria quando em 1844, nós portugueses, estávamos em guerra nesse rio com os Balantas de Jatacunda, que também nos assassinaram e saquearam, os comerciantes de Selho não só levaram a tais gentios armas e munições de guerra, mas até lhe compraram uma canoa que eles tomaram aos portugueses. Vossa Senhoria quer estabelecer o princípio que os portugueses devem sofrer prejuízos para benefício dos franceses, e que estes, pelo contrário, devem-se aproveitar das perdas daqueles. Estas ideias não são deste século, nem da grande nação a que Vossa Senhoria pertence. A França é justa. Os portugueses, apesar do precedente que podiam apresentar, e que acima expus, não levam ao gentio de Pacau munições de guerra; apenas vão ali vender sal, como costumam há séculos; e Vossa Senhoria nenhum direito tem de impedir as nossas canoas de navegarem por todos os pontos do rio. Se Vossa Senhoria julga ter tal direito, não pode também recusar aos portugueses o mesmo direito, isto é, impedir que por Ziguinchor passem as embarcações francesas que vão para esse ponto do Selho. Se Vossa Senhoria, porém, quer abusar da força, há-de permitir-me que lhe diga que isso não é próprio do caráter generoso da nação francesa; nunca a força dá direito algum. Vossa Senhoria, falando do sangue europeu, parece fazer diferenças de raças, e mesmo usar de uma frisante ironia para com o delegado administrativo de Ziguinchor, que é de cor preta, mas que não cede a europeu algum em honra e dignidade. Não distingo cores, mas homens pelas suas qualidades boas ou más. Estou intimamente convencido que o ilustrado governo francês concede proteção a todos os seus súbditos, seja qual for a sua cor. Sinto realmente que Vossa Senhoria trate uma autoridade portuguesa com tão pouca consideração, que lhe dirija correspondência oficial num papel em que eu me envergonharia de escrever a um súbdito meu”.

Em Cacheu, em 27 de outubro de 1855, Barreto envia ofício confidencial ao Governador-Geral dando-lhe conta de como as coisas se processam em Ziguinchor, assim terminando: “Corre aqui a notícia que a França, reconhecendo os nossos direitos sobre Casamansa, prometeu abandonar os estabelecimentos que ali tem hoje. Se isso for verdade, fica a Guiné feliz, porque aquele rio exporta o dobro do que exportam os outros portos juntos”. Para Senna Barcelos, a situação era deprimente: “Pouco era o comércio da Guiné; os franceses no Casamansa e os ingleses em Bolama colocaram no mercado fazendas por preços tão baixos que os da indústria portuguesa não podiam competir”. Barreto era a figura central da política guineense, e assim se compreende como em 7 de junho de 1857 uma representação dos moradores de Bissau, incluindo oficiais militares, se dirigiu ao governo pedindo a recondução de Barreto no governo. Estamos na época em que o governador-geral propôs para que a Guiné se constituísse em governo independente.

E Senna Barcelos conta-nos uma história rocambolesca:
“Em 10 de junho de 1856, tendo requerido o 2.º Sargento do Regimento de Lanceiros da Rainha, Venceslau de Andrade, para se averiguar se um seu tio de nome António Garcia de Andrade, de quem se dizia ter sido Governador de Cacheu e Comandante da Praça de Farim, era ou não vivo, foi mandado pedir informações a Honório Barreto que em 30 do mesmo mês respondeu: que nem o juiz Forâneo e nem o Administrador do Concelho de Cacheu souberam dar elementos para a informação exigida; que se houve engano no nome, este devia ser António José de Andrade, seu conhecido em Cacheu, e que faleceu em Farim, em 1842 ou 1843; este indivíduo viera degredado por toda a vida, com pena de morte se voltasse ao reino, constando que chegara a dar três voltas à forca, por crime de roubo; que chegara a Cacheu em 1833 ou 1834, assentou praça na companhia de 1.ª linha de Cacheu, onde foi promovido ao posto de sargento, e tendo dado a um certo governador um escravo de presente, este lhe rasgou a guia e o propôs então ao governador-geral para capitão de 2.ª linha de um dos redutos de Farim, passando depois a capitão-mor; que nunca fora governador de Cacheu mas sim comandante do presídio de Farim, o que é muito comum na Guiné”.

Continuam a fazer-se relatórios sobre a usurpação do Casamansa pelos franceses e Honório Pereira Barreto envia para o governador-geral um dos seus mais importantes relatos:
“Em 1829 cheguei eu a Cacheu vindo de receber em Lisboa uma mui limitada educação, porém, suficiente para poder avaliar e apreciar o procedimento das nossas autoridades em Cacheu. Notei que à indignidade e incapacidade dessas autoridades se devia o estado em que vim encontrar a pequena Cacheu. Bem se podia dizer que não havia governo porque não havia, nem quem entendesse o que era o governo, nem ao menos representasse o seu fantasma; porque o tempo era pouco para os empregados, incluindo o governador, ocuparem-se de um comércio, pois todos eram traficantes. O governador desse tempo andava na rua vestido indecentemente; passava dias a bordo dos pequenos navios estrangeiros de cabotagem que vão ali comerciar. Os estrangeiros tratavam e negociavam diretamente com os gentios tanto em Cacheu como em Ziguinchor. Pouca correspondência havia entre o Governador de Cacheu e o da Província. Para me resumir, direi que o governo de Cacheu era considerado uma aldeia de gentio independente. Em 1828 já os franceses haviam ocupado a ilha dos Mosquitos na embocadura do Casamansa: este facto tão significativo passou desapercebido em Ziguinchor e Cacheu; ninguém protestou nem disso deu parte. Tudo assim continuou até ao ano de 1834; fui nomeado Provedor de Cacheu, contava eu então 21 anos de idade. Os meus primeiros cuidados foram logo livrar o Concelho de Cacheu do domínio dos estrangeiros e da sujeição dos grumetes e dos gentios. Se tive aventura de obter o segundo objetivo, tive a desgraça, a grande desgraça, de ver os estrangeiros usurparem mais territórios nossos; obtive, contudo, tirar a esses estrangeiros toda a influência nos pontos ocupados por nós. Desde 1835 constou-me que os franceses iam ocupar um ponto ao sul da Gâmbia e que talvez escolhessem Casamansa. Tudo quanto um Provedor de Cacheu, enfim, um português, podia fazer, tudo fiz. Havia eu dado ordens muito terminantes para Ziguinchor para que se não tolerasse que os estrangeiros negociassem em outro ponto do Casamansa que não fosse Ziguinchor. O meu delegado cumprira esta ordem”.

É um documento memorável, peça obrigatória de consulta para quem pretende compreender o grande ecrã da questão do Casamansa. Descreve diligências, as suas idas a Ziguinchor, as cartas dirigidas ao governador-geral que não obtiveram resposta, a chegada dos franceses a Selho, Barreto protesta, pediu auxílio ao governador da Gâmbia, este respondeu que não era seu assunto. Barreto é nomeado Tenente-Coronel de 2.ª linha e então ironiza: “Apesar de o Ministro da Marinha haver declarado que eu era homem de cor, palavra esta que o redator ou editor escreveu em itálico; não há dúvida que o salutar prejuízo da cor, e porventura as conveniências políticas e sociais, exigiam que se fizesse tão interessante e imparcial declaração para serem devidamente apreciados tais serviços”.
A progressão francesa prossegue, a reação de Lisboa é sempre demorada e fraca. Barreto pede a demissão do governo em 1839 e diz no seu documento que teve o desgosto de ver destruído pelos seus sucessores tudo quanto havia feito, e diz sem rebuço: “Começaram logo a ter correspondência com os chefes franceses, em Selho, reconhecendo neles não só os títulos de comandantes que se arrogam mas o direito que julgam ter ao território. Mandaram retirar o destacamento que eu tinha posto em Gorm. O então Comandante de Ziguinchor, que é meu tio, cansado de participar ao Governador de Cacheu pactos, insultos e novas usurpações dos franceses, escreveu-me em 1844, narrando-me tudo, o abandono de Ziguinchor. Apesar de então nada ter com isso, pois era simpatia particular, vendo a apatia do governo fui a Ziguinchor, e à minha custa e em meu nome fiz e mandei fazer, com os chefes daqueles pontos, convenções, em que me cederam terreno, e ficava só reservado aos portugueses a navegação e comércio daqueles rios ou esteiros…”.

E continua a contar a história do Casamansa, desvela as mentiras de antecedentes da presença francesa no Casamansa e Senna Barcelos termina estas belas páginas revelando a carta que a Comissão Municipal de Bissau dirigiu a Barreto pedindo-lhe para não se retirar para Cacheu, a sua presença em Bissau era indispensável para o sossego público.


Continua
Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23044: Historiografia da presença portuguesa em África (306): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (10) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Já não há muito a dizer sobre este tema.
Já se sabe que a "displicência" com que a coroa lidava com a Guiné e as outra colónias é responsável pela miséria a que se chegou naquelas terras. Não era necessário ser um grande africanista para saber que o que ali se passava não fazia qualquer sentido e que era necessário melhorar qualquer "coisa". De qualquer modo, o absurdo e até o caricato da vivência diária deverá ser sempre posto em destaque, para que não se possa sequer levantar a suspeita de uma eventual "colonização exemplar" por parte dos portugueses.

Um Ab.
António J. P. Costa