segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23628: Notas de leitura (1496): "Orgulhosamente Sós - A Diplomacia em Guerra (1962-1974), por Bernardo Futscher Pereira; Publicações D. Quixote, 2022 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Não hesito em considerar esta obra como uma visão inovadora das relações internacionais durante todo o período em que vingou a nossa guerra em África. O diplomata e investigador escalpeliza elementos de grande significado, logo com Angola, o Catanga e o Congo, depois o início da guerra na Guiné, a crescente pressão na ONU, a nova relação de forças na África austral, o conflito interno do Congo, o início das hostilidades em Moçambique, as sucessivas tentativas externas para pôr termo à guerra, a recusa enérgica de Salazar, Cabora Bassa, a chegada de Marcello Caetano; a viragem provocada pelo ano de 1970, não só pelo isolamento diplomático como pela verificação que operações tipo Nó Górdio só serviam para alastrar a guerrilha, e assim iremos até ao 25 de Abril, uma abordagem diacrónica que é merecedora de ser saudada. Nestes 2 textos verificar-se-á que pontualmente o investigador ou expende ideias extravagantes como a de dizer que Amílcar Cabral era oriundo de uma família abastada de funcionários ou a repetição do mantra de que Schultz jogava à defesa e confiava mais nos bombardeamentos aéreos, hoje demonstradamente uma inverdade consumada. Enfim, rica apreciação das relações internacionais e a necessidade de estudar melhor o que aconteceu na Guiné.

Um abraço do
Mário



A Guiné no importante livro de Bernardo Futscher Pereira, Orgulhosamente Sós (1)

Mário Beja Santos

Orgulhosamente Sós, A Diplomacia em Guerra (1962-1974), por Bernardo Futscher Pereira [foto à direita], Publicações Dom Quixote, 2022, asseguro-vos, é uma obra de referência, muito bem sistematizada, o ponto focal, em diacronia, é uma área que o investigador domina. Trata-se de um trabalho de pesquisa e organização de grande solidez e onde um olhar sobre as relações internacionais correspondentes à guerra que travámos em África regista os dados fundamentais da luta de libertação e a permanente resposta portuguesa. O autor trata este livro como uma crónica, onde se “procura apresentar uma narrativa coerente deste período centrada na história diplomática, mas abarcando os principais aspetos políticos e militares que a enquadram”. Considera que uma visão completa deste período carece ainda de uma história militar pormenorizada das guerras coloniais.

Tenha-se em conta o parágrafo final da sua apresentação:
“História de resistência, a história deste período é, também, uma história de oportunidades perdidas. A capacidade de sobrevivência evidenciada pelo regime surpreendeu a comunidade internacional e os próprios países africanos. Em 1963, 1968/69 e até em 1972, houve condições objetivas propícias para tentar uma saída negociada para o conflito, que o regime não quis ou não soube aproveitar. Pela sua obstinação, pagámos todos um preço elevado: os milhares de vidas perdidas na guerra, os traumatismos que causou, os recursos nela desperdiçados, as sequelas de ressentimento que deixou e o atraso que provocou na transição para a democracia em Portugal e na inevitável transformação das ex-colónias em África em novos Estados independentes.”

Era obrigatório tratar a guerra da Guiné, por esta se ter tratado de um teatro decisivo, pelos aspetos mais impressivos, desde a primeira hora. E a primeira hora, como observa o autor, foi a abertura de uma segunda frente que era esperada, a Guiné estava encravada entre dois países recentemente independentes, desde o segundo semestre de 1962 que há documentação oficial e outra, e até livros de memórias, que relatam a constante presença da guerrilha, nomeadamente no Sul, onde desarticulou as comunicações, incendiou armazéns, gerou o abandono de lugares, intimidou populações. E subitamente o autor surpreende-nos com uma frase extravagante, historicamente descabida: “Amílcar Cabral, filho de uma família culta e abastada de funcionários, padres e comerciantes cabo-verdianos, crescera na Guiné, onde o pai ocupou vários cargos…”

Não sei onde Futscher Pereira foi buscar a família abastada, Iva Pinhel Évora trabalhou como uma moura nas tarefas mais humildes, Juvenal Cabral era um modesto professor, quando se separou de Iva, foi para Cabo Verde e levou uma vida remediada, quem cuidou de Amílcar foi Iva, primeiro na Guiné depois em Cabo Verde. O seu itinerário, como o autor descreve, está de acordo com as informações disponíveis, é fidedigno o que se escreve aqui sobre o seu projeto da luta armada, as tentativas de negociar uma solução política para o conflito, as suas preocupações com a dimensão internacional do combate anticolonialista. Comenta a estratégia militar do PAIGC definida por Cabral, a criação do que se passou a chamar “áreas libertadas”, mostra-nos o que separa Senghor de Touré, eram adversários figadais, Senghor bem tentou inicialmente apoiar um plano que levasse a FLING à governação, tudo parecia bem encaminhado, Salazar revela-se irredutível, nada de aberturas.

Futscher Pereira não investigou a guerra da Guiné e comete os mesmos erros de outros pesquisadores que o antecedem. Falando de Schulz, diz o que todos dizem: "Não revelou uma melhor compreensão da guerra subversiva do que o seu antecessor. Durante os anos em que permaneceu no comando da Guiné, antes de ser substituído por Spínola, manteve-se essencialmente na defensiva, recorrendo a bombardeamentos aéreos para atacar os redutos da guerrilha. Tais métodos permitiram ao PAIGC estender a presença no território e ganhar as populações para a sua causa.” Bastaria que tivesse manuseado os diferentes volumes da Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África, edição do Estado-Maior do Exército, a leitura pode não ser a mais aliciante, mas estão lá as múltiplas operações efetuadas ao longo dos quatro anos do seu mandato, pesaram muitíssimo mais bombardeamentos aéreos, como o próprio autor observa o armamento do PAIGC ia-se progressivamente melhorando e a crítica que muitos fazem que Schulz expressou as unidades por todo o território decorria da necessidade de apoiar as populações ou impedir a circulação dos guerrilheiros das populações que os apoiavam.

Iremos ter o mesmo mantra quando se referir à chegada de Spínola à Guiné, dirá que as tropas portuguesas estavam confinadas nos aquartelamentos, dispersas pelo território e sem mobilidade e que as operações de envergadura era competência das forças especiais. Discreteia sobre a personalidade suis generis deste oficial de Cavalaria, a sua vinda a Lisboa depois da tomada de posse de Marcello Caetano, em 8 de novembro de 1968, fez briefing no Conselho Superior de Defesa Nacional, o novo governador diagnosticou uma situação extremamente crítica, exigiu reforços, previa um “colapso militar a curto prazo”, tendo dito que era necessário insuflar novo ânimo nas tropas portuguesas que precisavam de sentir que lutavam “por um objetivo suscetível de ser atingido”. A reação de Marcello Caetano foi perentória, “estava fora de questão abandonar a Guiné”. Dá-nos conta daquilo que ele designa como o vice-reinado de Spínola na Guiné: a prioridade absoluta ao aspeto político da guerra, conquistar as populações através do progresso económico e social, garantir-lhes segurança através de aldeamentos com amplas facilidades de autodefesa, foi lançado o slogan “Uma Guiné melhor” a que se seguiu outro que tinha objetivos claros “A Guiné para os guinéus”. Esta multiplicidade de medidas proativas exigiram a Amílcar Cabral uma movimentação diplomática para obtenção de apoios, irá consegui-los e conquistará amizades na Escandinávia.

O autor detalha cuidadosamente as sucessivas tentativas de Senghor em deixar uma porta aberta para negociações que pusessem termo à guerra, não deixando, contudo, de apresentar queixas no Conselho de Segurança da ONU por violações do seu território, ficamos igualmente a saber as negociações tentadas por Senghor em França, sem êxito. E assim chegamos à operação Mar Verde, os resultados são bem conhecidos, com destaque para o isolamento diplomático acrescentado. E observa: “Convencido da cumplicidade de Senghor na operação, Touré cobriu de insultos e vitupérios o líder do país vizinho. Para se eximir de responsabilidades, Dakar mostrou-se intransigente na ONU, reclamando uma resolução contra Portugal ao abrigo do capítulo VII da Carta. A 8 de dezembro, Portugal foi condenado no Conselho de Segurança, com as abstenções da França, Reino Unido, Espanha e EUA. Pela primeira vez, o Conselho declarou que o colonialismo português constituía uma ameaça à paz e segurança dos Estados africanos.” 1970 fora um ano para esquecer. Inclusivamente morrera na queda de um helicóptero na Guiné José Pedro Pinto Leite, o seu desaparecimento precipitou o fim do diálogo com a Ala Liberal.

Recorda-se ao leitor que estamos a falar de uma obra que consideramos de referência pelo inovador caráter organizativo. No tocante à Guiné, espera-se que o autor em próximas edições retifique comentários desajustados aos factos documentados.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23621: Notas de leitura (1495): BC 513 - História do Batalhão, por Artur Lagoela, execução gráfica no Jornal de Matosinhos, 2000 (3) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Manuel Luís Lomba disse...

Lapso do autor, acontece a quem se enfronha nestes temas, família abastada seria a da mulher, Maria Helena, a de Amílcar Cabral era remediada, padrões da época, quando este se despediu do emprego na Fazenda Tentativa, Angola, e se lançou no empreendimento da sua guerra de libertação (começou pela China) e esgotadas as economias do casal, ela custeou-lhe as suas despesas com o seu ordenado de funcionária pública - o que é extraordinário: era contra a guerra, aderiu ao general Humberto Delgado, mas financiara o advento da guerra independentista da Guiné durante dois anos!

Na sua tradicional ingratidão para com os seus antepassados, o regime guineense não a distinguiu com topónimo de praça, rua ou travessa.

No referido ao comando do general Arnaldo Schulz, registo-lhe uma injustiça: o meu Batalhão (BCAV 705) chegou em meados de 1964, a Guerra da Guiné já grassava em mais de metade do território, ele investiu-nos um ano em intervenções no Norte e no Sul, mais um Destacamento de Fuzileiros e um Pelotão de Para-quedistas, as únicas forças especiais de que dispunha, Amílcar Cabral andava a queixar-se pelo mundo da sua agressividade, na correspondência capturada, os seus combatentes queixavam-se do mesmo.

O nosso erro foi mandar exércitos combater ideias.
Abr. e bom Outono, pelo da vida estamos nós a passar.