Queridos amigos,
Evento de indiscutível importância para o futuro da Guiné, o que se passou no cais do Pidjiquiti em 3 de agosto de 1959 foi alvo de diferentes olhares e os números apontados estão longe de coincidir. O PAIGC manifestou sempre uma certa reserva em chamar a si a greve. A hipótese posta por Leopoldo Amado foi que teria sido Rafael Barbosa e o seu Movimento de Libertação para a Guiné a dinamizá-la, parece próxima da realidade. Mas foi mesmo um momento de viragem, as autoridades sabiam perfeitamente que houvera mudanças nos países vizinhos, um já independente e o outro a caminho, era fatal a aspiração nacionalista.
Um abraço do
Mário
Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: para cada um a sua verdade
Mário Beja Santos
Histórias Coloniais, por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, A Esfera dos Livros, 2013, reúne a descrição de uma série de conflitos sociais que ocorreram nas antigas colónias portuguesas e que deixaram rasto para os movimentos de libertação, entre eles o massacre de Batepá, 1953, S. Tomé; a greve do Pidjiquiti, 1959, Guiné; a manifestação de Mueda, 1960, Moçambique; a greve da Baixa de Cassange, 1961 Angola, e o motim 1-2-3, 1966 Macau.
Foquemo-nos nos acontecimentos do Pidjiquiti. Nunca se demonstrou qualquer associação causa-efeito entre a greve de marinheiros e estivadores, mormente da etnia Manjaca, e as atividades do PAIGC. Há muita fabulação e os testemunhos posteriores são contraditórios. Luís Cabral, por exemplo, não insinua nem ao de leve a existência de uma associação. Isto para desdizer o que escrevem os autores, isto é, de que entre a meia centena de membros ativos do PAI (primeira designação do PAIGC) contavam-se marinheiros e estivadores, isto dito a cru e com o que se segue faz subentender o que os factos históricos não demonstram. Verdade era a miséria em que viviam estes trabalhadores: “Os salários mensais variavam entre os 150 e os 300 escudos. E por cada viagem, o tripulante recebia para alimentação certa quantidade de arroz e mais uns 50 centavos para o molho. Ora, o transporte de cabotagem era o que garantia mais elevados lucros às empresas, pois os custos por tonelada transportada estavam entre os mais baratos. Encorajados pelo descontentamento dos estivadores, cuja situação também era escandalosamente má, os marinheiros fizeram saber às empresas que estavam decididos a parar o trabalho se as suas reivindicações não fossem atendidas”. Mas nada aconteceu e veio a greve.
Os autores relevam as diferentes versões a que tiveram acesso, a do Tenente Sousa Guimarães, a de um responsável da Sociedade Comercial Ultramarina, a da PIDE e a do Padre Franciscano Henrique Pinto Rema. Sousa Guimarães envia uma carta em 18 de agosto ao Comandante Salgueiro Rego, alude ao impedimento feito pelos marinheiros da saída de uma lancha da Casa Gouveia, dois agentes da PIDE prenderam três dos identificados, os grevistas revoltaram-se, o patrão-mor chamou a PSP. Começa a pancadaria, dá-se a agressão dos 2 chefes da Polícia, vem então um corpo de agentes da PSP, há tiroteio, e ele escreve que destes acontecimentos resultaram 4 mortos, e vários feridos do lado grevista. A versão da Sociedade Comercial Ultramarina anda próxima da anterior, refere mortos, gente ferida e fugitiva, tendo os feridos sido retirados das embarcações e da água e conduzidos ao hospital, resultaram 7 mortos e numerosos feridos, destes viriam a falecer mais 3 ou 4. A versão da PIDE refere a precipitação dos acontecimentos, os grevistas a tentar libertar os companheiros detidos, as agressões aos polícias, atirando paus, remos e tijolos contra o piquete da Polícia. Houve detenções, o número de mortos foi de 12 e o de feridos de umas dezenas. A própria Polícia publica uma lista identificando 8 mortos. O Padre Henrique Pinto Rema diz explicitamente que estes trabalhadores respondiam às solicitações do Partido, não conseguiu haver diálogo entre as duas partes em confronto, houve 17 guardas feridos e a Polícia começou a matar em força, no final houve uns 13 a 15 mortos e mais cadáveres de marítimos e estivadores foram arrastados pelas águas do Geba, não se sabendo ao certo quantos.
A propaganda do PAI anunciou 50 mortos. Contudo, Amílcar Cabral, numa carta enviada ao angolano Lúcio Lara, refere 24 mortos e 35 feridos. Todo este grave acidente demorou a sanar, os grevistas fizeram exigências, reclamaram a libertação dos presos, aumentos de salários, a saída de António Carreira, gerente da Casa Gouveia, e também a do encarregado da secção marítima da Sociedade Comercial Ultramarina, atribuíram-lhes responsabilidades pelas mortes.
Para a PIDE, tudo se devia essencialmente ao contexto externo, ao papel catalisador da independência da República da Guiné e das emissões da Rádio Conacri, de infiltrações perniciosas. Já na década de 1990, Carlos Fabião, que foi o último Governador da Guiné, atribuía os acontecimentos do Pidjiquiti a três causas: o não cumprimento do administrador da Casa Gouveia da indicação dada pela CUF em Lisboa, no sentido de aumentar os salários aos trabalhadores; um desentendimento entre a PIDE e a administração civil; um ajuste de contas entre polícias Papéis e estivadores Manjacos. Todo este incidente irá transformar-se num símbolo de combate pela libertação, no decurso da reunião do PAI de 19 de setembro de 1959, em que Amílcar Cabral está presente, o líder procura retirar os devidos ensinamentos, a subversão deverá centrar-se nas zonas rurais, era inevitável a partir de agora caminhar-se para a luta armada, ficou decidido a transferência para o exterior de uma parte da Direção do Partido.
Aqui se recorda que há mais interpretações e testemunhos sobre os incidentes do Pidjiquiti. Já se escreveu sobre o relatório do Comando da Defesa Marítima, que vem apenso à História dos Fuzileiros, 3.º volume, dedicado à Guiné, de Luís Sanches de Baêna, Comissão Cultural da Marinha, 2006. António Duarte Silva, no seu livro "Invenção e Construção da Guiné-Bissau", Almedina, 2010, refere abundantemente estes factos a partir da página 102, apontam-se 9 mortos, 15 feridos de certa gravidade e hospitalidades e 23 marítimos presos. O autor recorda que este número de 9 se limita aos cadáveres transportados para a casa mortuária e que nenhum dos relatórios oficiais refere os grevistas que foram abatidos pelos guardas e mesmo alguns civis quando fugiam pela lama e lodo e cujos cadáveres foram arrastados pelas águas do rio Geba. António Duarte Silva cita o historiador Leopoldo Amado, o PAI não teria tido diretamente uma ação naquilo que veio a desembocar em Pidjiquiti. Terão sido ativistas do Movimento de Libertação da Guiné a empenhar-se. Rafael Barbosa era membro deste Movimento de Libertação da Guiné e reconheceu ter sido um dos responsáveis da questão do Pidjiquiti. Barbosa vai estabelecer um pacto com Cabral, o MLG fundiu-se com o PAI.
Em "Os cronistas desconhecidos do canal do Geba", Húmus Edições, 2019, relato a partir da página 252 a versão apresentada pelo responsável do BNU da Guiné. Dirá que houve 12 mortos, 15 feridos e a prisão de muitos e a fuga de alguns. Voltará a escrever em 20 de agosto anunciando que se voltara à normalidade e informa Lisboa do seguinte:
“Há a deplorar o número de vítimas resultantes da repressão prontamente efetuada na medida adequada à intensidade da investida dos amotinados e lamenta-se que estes tenham recorrido à greve como meio de revelar as suas reivindicações, numa ocasião em que o Governo da Província, por intermédio da Secção Permanente do Conselho do Governo estava há tempos procedendo ao estudo do ajustamento dos salários dos trabalhadores indígenas. Verifica-se com satisfação que a vida no cais retomou o seu ritmo normal e que cessou a perturbação provocada na economia da Província pela suspensão da atividade comercial portuária”.
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Nota do editor
Último poste da série de 24 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24094: Notas de leitura (1558): Fernanda de Castro, uma figura de proa da literatura colonial guineense, autora de livros como África Raiz e Mariazinha (Mário Beja Santos)
2 comentários:
Mario, temos aqui no blogue o testemunho do nosso Mario Dias que esteve lá no Pijiguiti nesse dia trágico...
Por outro lado, estranho o Luís Cabral nunca apontar o dedo à "sua" Casa Gouveia e ao António Carreira... Que o PAI e o Amílcar Cabral tiraram dividendos políticos desta tragédia, isso fica b patente na "Cronicá da Libertação" (que ando a reler)... Ab, Luis.
Mario, temos aqui no blogue o testemunho do nosso Mario Dias que esteve lá no Pijiguiti nesse dia trágico...
Por outro lado, estranho o Luís Cabral nunca apontar o dedo à "sua" Casa Gouveia e ao António Carreira... Que o PAI e o Amílcar Cabral tiraram dividendos políticos desta tragédia, isso fica b patente na "Cronicá da Libertação" (que ando a reler)... Ab, Luis.
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