Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 16 de março de 2023
Guiné 61/74 - P24147: (In)citações (234): A (nossa) Cédula Pessoal (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)
1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 13 de Março de 2023, com uma lembrança curiosa, a nossa Cédula Pessoal. Quem ainda a conserva?
A Cédula Pessoal
Olá companheiros
Há mais de 50 anos que vivemos fora de Portugal. Assim, qualquer nosso escrito relacionado com a situação actual do País ou mesmo da Guerra Colonial que se travou em África, gera alguma polémica. É normal mas, tudo o que escrevemos é a verdade, talvez seja a nossa verdade, mas se virem ao pormenor e meditarem um pouco, a decisão final é que tudo o que foi escrito é a verdade. É intencional, passa ao lado disto ou daquilo, por vezes foca-se em pormenores sem importância, mesmo surgindo frases com pouco ou nenhum senso, mas lá no fundo no fundo, está a verdade.
Agora sim, vamos ao escrito de hoje que fala da “Cédula Pessoal”, lembram-se?
Ufff… quando vivemos oito ou mais décadas de vida, não é tão fácil de suportar como parece, no entanto, ainda seria pior se não houvesse nada para lembrar, porque isso iria parecer que todos esses anos vividos pareciam vazios. Como tal, a verdade é que o maior desafio aqui, é ter algo para se lembrar, é preencher o nosso pensamento com todos esses anos vividos, tal como fosse uma reflexão, ou seja, continuar a viver uma vida, mas uma vida de que agora… os outros se irão lembrar.
Porque apesar da idade avançada, continuamos a coleccionar sensações, histórias e lendas, ou seja, reinventando o nosso agora pequeno mundo fora de um mercado árduo de trabalho que sempre tivémos e, tendo ainda tanto para dizer, mesmo que às vezes seja entre lágrimas, suspiros ou com algumas dores no corpo, vamos organizando para os vindouros o sotão da nossa já longa existência, e claro, com tudo isto, vamos também recolhendo alguma força para continuar.
E felizmente, pelo menos nas madrugadas em que já estamos vigilantes, vamos escrevendo livremente numa linguagem do antigamente, porque a mentira ou a ocultação de qualquer medida emanada de um qualquer sistema de controle, ia concerteza destruir o foco de resistência que ainda vamos tendo, principalmente a algumas poderosas forças do mundo moderno em que presentemente vivemos, onde tentam sempre repudiar e não compreender o modo como descrevemos as nossas recordações de juventude, como por exemplo, a participação na Guerra Colonial ou até o valor da simples Cédula Pessoal, que embora não tivesse a nossa fotografia era o único documento que nos identificava.
Ainda hoje guardamos religiosamente a nossa Cédula Pessoal que bastante gostamos e que até tem uma capa verde que continua a dar esperança, embora já tenha alguma ferrugem no arame do agrafo que segura as suas páginas mas, o nosso nome continua lá desenhado, logo no cimo, a seguir à palavra “nascimento”.
E, dá-nos um certo alívio pensar, reviver o respeito que ainda sentimos pelo País onde nascemos. Aquela bandeira verde e rubra e o mapa de Portugal com a Beira Litoral e a Extremadura, a lareira com fogo de lenha, a candeia a azeite que nos alumiava nas noites de trevas, o colchão cheio com palha de centeio onde dormíamos, a fome e a miséria de inverno que por vezes éramos obrigados a passar, a roupa velha e coçada que vestíamos que tinha sido usada pelo nosso pai e pelos irmãos mais velhos ou… a ida para a Guerra Colonial na Guiné.
Juramos. Sentimos uma inveja mesmo invejosa de quem não recorda. Porquê? Porque são seres livres, rebeldes e indomáveis que, quando lhes apetece partem e vão embora sem remorsos nem pesos, não como nós, que sempre recordamos os anos vividos no nosso Portugal. Éramos uns “putos de rua” alegres, descalços e, praticamente não sabíamos que o mundo existia para lá da nossa aldeia. Estava sempre tudo bem. As doenças que aceitávamos como normais eram curadas com receitas domésticas, no entanto se algo era mais grave, havia a possibilidade de se aviar um qualquer xarope na “botica”, que até funcionava perfeitamente e… com a chegada da primavera tudo ficava bem.
Vivíamos ao redor de um povo crente, trabalhador, envolvido nas lides da lavoura e que acreditava… até demais. Se alguma praga ou doença desconhecida aparecia e o profissional da saúde, onde havia pelo menos um no Dispensário da Assistência Nacional aos Tuberculosos não conseguia curar, então agarravam-se à fé e… havia a possibilidade de ir ao Santuário de Fátima a pé, pedir à Nossa Senhora que rogasse por nós lá no céu. Assim, se isto também não funcionasse e não querendo ser desilegantes, pelo menos caminhar dias e dias seguidos, devia fazer algum bem à saúde, embora não curando a doença, se infelizmente fosse a da tuberculose. Verdade?
Tudo isto na nossa aldeia na Beira Litoral, porque para as famílias no interior norte, também havia a possibilidade de cumprir a mesma promessa de caminhar os caminhos de Santiago, que os levava a Santiago de Compostela mas, tinham o problema de precisar de passaporte para passar a fronteira o que não era permitido ao cidadão trabalhador rural do interior.
No entanto, podiam mostrar a tal Cédula Pessoal para se identificar, no entanto, os Carabineiros não aceitavam e desconfiavam, e claro, imediatamente entravam em contacto com a Guarda Fiscal da fronteira Portuguesa, que depois de um interrogatório e umas “chibatadas” lhes perguntavam porque é que queriam ir para Espanha, que até dava ascesso para se poder fugir “d’assalto prá França”, tendo ali o Santuário de Fátima mais perto e não era preciso nenhum documento! Mas… como a maior parte dessas humildes pessoas eram analfabetas, criavam estas situações embaraçosas que se podiam evitar. Verdade?
Voltando à Cédula Pessoal, era o único documento de identificação que para nós povo simples das vilas e aldeias, talvez até cidades existia. Depois… já mais crescidos, já se usava um Bilhete de Identidade que servia para quem queria inscrever-se na universidade ou ter um emprego publico, o que para nós, povo do interior era uma miragem, pois nem sapatos usávamos, depois era preciso tirar o retrato, requerer-se na sede do concelho na Vila, os pais acompanharem-nos para assinar, e claro, lá vinha o interrogatório “para que raio queriam um Bilhete de Identidade pró rapaz” e… custava dinheiro. Verdade?
No nosso caso, fomos recrutados, treinados e mentalizados de que já éramos homens de combate invencíveis e, sempre identificados pela Cédula Pessoal embarcaram-nos no porão do navio Ana Mafalda, que na altura era um dos que podia encostar ao cais de Bissau, navegando para sul do oceano.
E, não foi ao desembarcar, foi passado quase os dois longos anos que por lá fomos sobrevivendo, aí sim, deram-nos um cartão de identificação, que era uma “espécie de uso e porte de arma abrangente”, ou seja, incluía vários modelos de armas e, estávamos autorizados, claro, em caso extremo… a poder mesmo tirar a cavilha ou puxar o gatilho e disparar… ferindo ou matando outro ser humano legalmente. Verdade?
Felizmente e dada a nossa especialidade que era “operador cripto”, portanto um soldado desarmado, nunca nos foi distribuída uma arma e como tal nunca usámos as regalias do referido cartão para identificação e… tal como nós, houve milhares de companheiros que regressaram à Europa na mesma situação. Verdade?
Até um dia destes, companheiros.
Tony Borie
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Nota do editor
Último poste da série de 28 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24109: (In)citações (233): Volta, Zé Belo, estás perdoado! (dizem os "sámi")
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3 comentários:
Muito bem, Tony é tudo verdade.
E uma particularidade, a Cédula Pessoal era preenchida por quem tinha letra bonita e perceptível.
Não me lembro bem, mas julgo que quando cheguei a Lisboa, a Santa Apolónia, com 11 anos, fui à Rua da Prata tirar fotografias na máquina photomaton e seguir para o Arquivo de Identificação na Rua de S. Paulo. A pressa era para entregar documentação no ingresso nas Oficinas de São José, o que não veio a acontecer por ter arranjado emprego com 12 anos.
E tal como a Cédula, o BI era um caderninho com fotografia, também preenchido com letra bonita.
Eu, passado tempos, rasurei Valdemar acrescentando mais um V para ficar Waldemar, depois foi desbotando e dava barraca até ser substítuido.
Saúde da boa
Valdemar Queiroz
Era a chamada prova de caligratia e só eram admitidos a funcionários públicos (Escrivões)aqueles que a prova de caligrafia os tinham aprovado, o que deu origem a haver cursos de caligrafia. Nota: esta norma não se aplicava aos médicos.
Olá Tony
Falas no Caminho de Santiago.Talvez saibas que o Caminho Português de Santigo,passa em Águeda,tem marcação de Lisboa até Compostela.Entra no concelho por Aguada de Baixo e é utilizado por imensos peregrinos,principalmente nos meses menos chuvosos.Quase todos estrangeiros.
Abraço
Paulo Santiago
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