sábado, 30 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25318: Um conto de António Graça de Abeu: "Lai Yong e Bernardo, uma História Simples" (2018) - Parte II

Retrato do artista quando jovem... António Graça de Abreu, 
nascido no Porto, em 1947, licenciado em línguas germànicas 
pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 
trabalhou na China, como tradutor, na Editora Pequim 
em Línguas Estrangeiras.  Viveu em Pequim 
e Xangai de 1977 a 1983. Esteve no  CTIG como alf mil, 
CAOP1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar,  1972/74). 
Escritor, poeta, tradutor, professor universitário...
e "globe-trotter", tem mais de 20 títulos publicados,


Capa do livro. 
Contacto do autor:
abreuchina@netcabo.pt
1. Segunda  parte do  conto, " Lai Yong e Bernardo, uma História Simples" extraído do livro "Lay-Yong, Bernardo e outros poemas", de António Graça de Abreu (Póvoa de Santa Iria,  Lua de Marfim Editora, 2018, pp. 36-57) (capa â direita).

É uma gentileza do autor e nosso camarada, a quem agradecemos. É uma história de encontro e separação de duas culturas,  e de amores efémeros de um homem (Bernardo, português, com formação universitária, e já na casa dos 30 e tal, claramente um "alter ego" do escritor) e uma jovem chinesa de Cantão e Macau,  de 24 anos,   Lay Yong.

Estamos em 1981 em  Cantão  e em Macau (território ainda sob administração portuguesa,  até 1999). 

Lay Yong e Bernardo conheceram-se quando  viajaram juntos, em 1981. na "ferry-boat" que fazia a viagem, de 120 quilómetros, entre  Cantão e Macau, ao longo do rio das Pérolas (*)

 

Lai Yong e Bernardo, uma História Simples - Parte II

por António Graça de Abreu (*)


 II


Monsenhor Manuel Teixeira
 (1912-2003),
figura proeminente da comunidade
 macaense e da cultura luso-chinesa.
Foto: Cortesia de Jornal Tribuna
 de Macau (2018)
Bernardo decide, com alguma originalidade e ousadia, levar Lai Yong na visita ao padre Manuel Teixeira e ao Seminário de S. José.

Conhecera o velho missionário na primeira vinda à cidade do Nome de Deus
na
hina, em 1979, num jantar em casa de um engenheiro português da CEM (Companhia de Electricidade de Macau). 

No fim do repasto, enriquecido com iguarias luso-chinesas, e uns olorosos tintos de excelsa cepa portuguesa, o bom sacerdote despediu-se dos convivas e regressou ao seu Seminário de S. José sobraçando uma garrafa de bom whisky velho. 

Informaram Bernardo que uma garrafinha do depurado néctar escocês, domelhor, trinta anos de casco, rótulo não sei de qual cor, era  a normal recompensa para se poder contar  com a presença do nosso clérigo em jantares, com gente importante (ou tida como tal!).

O padre Manuel Teixeira haveria de me confirmar que, para combater o calor nestas terras subtropicais do sul da China, nada melhor do que uns valentes copázios de “chá da Escócia” ou seja, de bom whisky, com umas pedrinhas de gelo.

O excelente sacerdote, nascido na transmontana Freixo de Espada à Cinta, chegara a Macau em 1924, com apenas 12 anos de idade. Aqui havia estudado no Seminário de S. José, aqui havia sido ordenado padre e, para além de uma passagem pelas missões de Malaca e Singapura, a Macau dedicara quase toda a sua longa vida.

Conhecia, como ninguém, as singularidades da fascinante História de Macau. Eescrevia, escrevia dezenas e dezenas de volumes sobre a presença portuguesa em terras do Extremo Oriente.

Inconfundível na sua batina branca, umas longas barbas também brancas, meão de altura, os olhos curiosos a cintilar por detrás de uns óculos pequenos, de aros pretos, o sacerdote simpatizara com Bernardo, a quem chamava “o homem de Pequim”, esse estranho rapaz português, habitante lá das paragens do norte da China que nunca deixava de o visitar, cada vez que vinha a Macau.

Era tempo do falsamente denominado pequinense ir ao encontro do padre Manuel Teixeira levando a Lai Yong como companhia. A menina de Cantão, como quase toda a gente chinesa, macaense e portuguesa desta zona sul da cidade, conhecia oreligioso de vista, pousara os olhos na sua figura única atravessando as ruas de Macau, sabia das longas caminhadas que fazia cruzando a ponte Nobre de Carvalho. 

A caminho de casa, na Praia do Manduco, a Lai Yong passara incontáveis vezes pelo largo de Santo Agostinho, descera, subira mil vezes a ladeira e calçada anexa ao seminário de S. José. Mas jamais sonhara entrar um dia naquele vasto espaço fechado onde residia o padre Teixeira.

Toquei à campainha da escola religiosa e um empregado, já idoso, veio abrir. Mandou avançar o português e a chinesa. Rapidamente subimos as escadas e entrámos no seminário. À esquerda, cruzámos um longo corredor ladeado por pinturas religiosas dos séculos XVII e XVIII, que conduzia aos aposentos do sacerdote, situados ao fundo, à direita, num quarto que eu já conhecia de visitas anteriores. A porta estava entreaberta,   espreitei para o interior. O padre Teixeira sentava-se à sua secretária onde se montoavam papéis desordenados e muitos livros antigos. Vestia umas calças brancas emuma simples t-shirt colorida, com a imagem de uma praia e os dizeres I love California.

Ao dar pela inesperada chegada dos visitantes, levantou-se célere, rodou no quarto, foi ao cabide e vestiu apressadamente a batina branca, de velho missionário, por cima damsua original t-shirt. Estava pronto para nos receber.

Alguma surpresa ao ver Bernardo acompanhado por uma formosa mulher chinesa. Os cumprimentos de circunstância e logo quis saber quem era a moçoila. Uma amiga, uma jovem de Cantão enraizada em Macau, a viver com os pais ali na rua da Praia do Manduco, quase paredes meias com o seminário de S. José. Conhecia o padre e o admirava-o.

– Sim, mas onde é que foi buscar esta mulher, Dr. Bernardo? – perguntou o sacerdote.

O “homem de Pequim” lá desbobinou a história do encontro recente no barco da carreira Cantão-Macau e a descoberta da simpática Lai Yong.

–  A rapariga é muito bonita. Então, porque é que não fica cá por Macau? Até pode casar com ela, e ela pode dar à luz uma data de macaenses que tanta falta fazem nesta nossa terra.

– Vou pensar, meu caro amigo, vou pensar nisso.

O padre Manuel Teixeira conta-nos então a história de um casamento recente que fez ali na igreja do seminário de S. José.

– Sabe,  Dr. Bernardo, aqui ao lado no Teatro D. Pedro V, temos, todas as noites, o espectáculo do Crazy Horse Club Show. São umas bonitas bailarinas francesas que dançam todas nuas. Já me convidaram a assistir, mas eu sou padre, não posso ir a essas coisas. Uma das moças fala muito comigo, é devota a Deus, e pediu-me ajuda para a casar com um dos rapazes, também bailarino. Há duas semanas fizemos um bonito casamento aqui na igreja de S. José, com a presença destas lindas mulheres francesas, todas muito bem vestidas.

Pois, o fluir das vidas, os insondáveis mistérios da fé e as damas “pecadoras” que se despem todos os dias, com engenho e arte, para agradar aos olhos gulosos dos homens. Tudo ao de leve, passageiro. Ou talvez não.

Num outro contexto, ou talvez não, num dos muitos artigos que escreveu para osjornais de Macau, o padre Manuel Teixeira, investigador, historiador e sacerdote,conclui a sua prosa nos seguintes termos: 

“O homem é pó. A fama é fumo e o fim é cinza (…) Só os meus livros permanecerão (…) essa é a minha consolação.”


IV

Lai Yong e Bernardo vão esta noite jantar a uma espécie de taberna chinesa situada num recanto do Porto Interior. Foi decisão da menina que conhece todos os esconsos do quarteirão, cresceu ali ao lado, na Praia do Manduco. Esta mulher gosta de jogar, de ludibriar os enredos simples e complexos do quotidiano. Faz-se agora acompanhar de um português bem parecido, que vive em Pequim, e que até fala um pouco de mandarim, coisa raríssima em Macau.

 No meio do seu povo, mostra o rapaz e mostra também o distanciamento que convém, nem mão na mão, nem uma carícia, nem um olhar mais quente, ou simplesmente tépido. Apenas amigos, ou conhecidos, hoje para um jantar de negócios, com sopa de fitas, peixe frito, legumes e camarão.

No tasco, aparece e mete conversa um sujeito chinês, nascido em Macau que a Lai Yong me diz ser “o rei do camarão”, comerciante de peixe e dono de não sei quantos barcos de pesca. O empresário, especialista em moluscos e crustáceos, esteve ecentemente em Pequim, pela primeira vez na vida, e num mandarim das docas, quase tão mau como o de Bernardo, fala na capital da China como sendo “tudo em grande”, as normes e largas avenidas onde cabia, com facilidade, toda a cidade de Macau. Pois, mas na opinião de Bernardo, as cidades são muito diferentes, uma é a enorme capital do velho Império do Meio, outra um pequenino abcesso exótico, com portugueses lá dentro, no sul da excêntrica província de Guangdong.

A minha amiga Lai Yong nunca foi a Pequim, nem a Xangai. Em toda a sua vida na China quedou-se sempre por estas terras do sul, Macau, Hong Kong e Cantão. Não conhece mais nada. Digo-lhe que talvez um dia seja possível partirmos os dois pela China dentro, eu a servir de cicerone, a mostrar-lhe os recantos do Império a que ela pertence. Eu, a fingir que sou especialista em cultura chinesa, que conheço razoavelmente o mundo chinês, e ela a duvidar, o sorriso outra vez a bailar nas frestas dos olhos, na comissura dos lábios.

Bem comidos, é tempo de devolver a Lai Yong ao seu lar, logo ali ao lado do Porto Interior. Mas fazemos uma caminhada mais longa até à Barra, e regresso. O braço de Bernardo sobre os ombros da mulher chinesa, apertando-a na carícia do humilde e mais do que humano desejo. Ela, na aparência sempre meio tímida e surpreendida, aconchega o seu corpo no meu. 

Pergunto-lhe se tem, ou tem tido namorados. Sim, dois ou três, mas nada de importante, não confia muito nos homens, não prestam, agora não tem namorado nenhum. Então e eu, o Bernardo, o homem de Pequim? Não és meu namorado, apenas um português que conheci no barco da Cantão para Macau. És muito kind (Lai Yong utiliza o adjectivo inglês!) para comigo. Gosto de te conhecer e de, pela primeira vez na minha vida ter, conversando comigo, um homem de Putaoya 葡萄牙 (Portugal), o país lá do Ocidente.

Bernardo responde dizendo, tu também és a primeira mulher chinesa que eu tenho, a sério, por isso, todo este prazer em te agasalhar nos meus braços, de te beber como um manancial de vida, de te beijar a testa, a boca, o colo, de desejar a viagem pelom teu corpo inteiro, da cabeça aos pés, dos pés à cabeça.

V

Para a menina de Guangdong, chegada de surpresa no apogeu do dia:


Vieste, branca e pura
como a água de um regato escondido
nos requebros e esconsos da montanha.
O teu corpo aberto como um prado
no resplandecer do sol nos meus olhos.
Fazia calor,
a humidade escorria pelas paredes da tarde,
mas toda a frescura nascia no lótus do teu sorriso.
As minhas mãos correndo na tua pele de seda,
a tua cintura deslizando como uma serpente num lago.
Houve regatos chilreantes, gritos de pássaros,
ocarinas, timbales e gongos.
Depois, uma taça de caldo de peixe.

VI

Hoje, depois de uma grande volta, de mão dada, pela fortaleza do Monte e pelo jardim de Lou Lim Ioc, voltámos a jantar no restaurante do Hotel Metrópole, com aquelas meninas cantoras de Hong Kong de voz delicodoce, bem timbrada, mais os petiscos luso-chineses, e vinho verde. Ao lado, a companhia da Lai Yong, do infindável sorriso e do corpo perfumado a pó de pérolas. 

Ah, Macau, Macau! Bernardo que vem de três anos de quotidianos em Pequim, a capital do Império, austera e fria, puritana e falsa, já não sabe o que dizer.

Faltam dois dias para o seu regresso à capital chinesa. Lai Yong tem uma pequena oferta para o seu amigo português. Escreveu sobre um tecido de seda, usando cuidadosamente o pincel e a tinta da China -- na sua caligrafia arredondada e insinuante --, um poema de Du Fu (712-770), com Li Bai, os maiores poetas de toda a história literária da China. São três dezenas de versos sobre a amizade entre letrados, sobre o respeito, a admiração entre pessoas que se querem bem. Diz-me que o poema terá mais a ver comigo do que com ela.

Lê-me o poema, mas são tantas as palavras, os caracteres que eu não conheço! Peço-lhe ajuda. Meio em mandarim, meio em inglês, lá vamos desbravando os versos.

Continua a haver tanta coisa que eu não entendo! Não faz mal. Lai Yong diz-me para eu levar o poema de Du Fu e, para em Pequim, com a ajuda dos meus companheiros de trabalho chineses, tentar traduzi-lo para a minha língua.

Sentados num recanto do jardim de Lou Lim Ioc, a menina chinesa pega na mão direita de Bernardo, levanta-a e passa-a, acariciante, pelo jade do seu rosto. Pousa depois a mão do rapaz português na polpa da sua perna, e deixa-a ficar.

O poema do grande Du Fu é assim:

醉時歌

諸公袞袞登臺省

廣文先生官獨冷

甲第紛紛厭粱肉

廣文先生飯不足

先生有道出羲皇

先生有才過屈宋

德尊一代常轗軻

名垂萬古知何用

杜陵野客人更嗤

被褐短窄鬢如絲

日糴太倉五升米

時赴鄭老同襟期

得錢即相覓

沽酒不復疑

忘形到爾汝

痛飲真吾師

清夜沈沈動春酌

燈前細雨檐花落

但覺高歌有鬼神

焉知餓死填溝壑

相如逸才親滌器

子雲識字終投閣

先生早賦歸去來

石田茅屋荒蒼苔

儒術於我何有哉

孔丘盜跖俱塵埃

不須聞此意慘愴

生前相遇且銜杯



Ébrio, uma canção

Muitos ascenderam ao topo da hierarquia,
tu, meu amigo, continuas a padecer ao frio.
Nas grandes mansões, empanturrados com iguarias,
tu, meu amigo, mal consegues uma malga de arroz.
A tua filosofia, um coração cristalino, pouca ambição,
o teu talento, superior ao dos letrados do passado.
Respeitado pela tua virtude, condenado, sem glória,
a deixar o teu nome para além dos séculos.

Sou um rústico que não é desta terra,
de cabelos finos, motivo de mofa e zombaria.
Quero arroz, vou ao celeiro imperial,
obtenho ainda cinco colheres por dia,
mas se quero abrir o coração,
vou ter contigo, meu amigo.
Quando ganho umas tantas moedas,
cuidamos de nós, vamos gastá-las em vinho.
Que nos interessa a pompa, o luxo, as cortesias,
somos gente simples, descuidada e livre!...

Meu mestre, enchemos, bebemos as taças até ao fim,
no silêncio da noite da Primavera.
Lá fora, a chuva fina como flores
caindo dos telhados, apagando as lanternas.
Entoamos cânticos, animados, iluminados
por espíritos a montante, a jusante do rio.
Para quê pensar tanto no destino?
Sim, a fome, e por túmulo, uma vala qualquer.

Outrora, um grande poeta lavava canecas e pratos,
um ilustre letrado lançou-se de um torreão.
Quem somos nós, no fim de tudo?
Melhor retirarmo-nos cedo, voltar a lavrar a terra,
cuidar dos telhados de colmo, dos caminhos, do musgo.
Os ensinamentos de Confúcio, afinal para que servem?
Sábio, salteador de estradas, todos regressam ao pó.

Para quê tanta tristeza, tanto queixume?
Estamos vivos, vamos beber umas taças de vinho. (#)

António  Graça de Abreu

(#) Nota do autor: Numa posterior revisão à tradução do poema, procurei substituir a sobrecarga de nomes e apelidos que Du Fu usa  conhecidos de qualquer cidadão chinês medianamente culto , por palavras e títulos semelhantes, sem o nome em chinês, o que creio, ajuda o fluir da tradução para língua portuguesa. 

Assim, o “amigo” de Du Fu é o mandarim Zheng Qian, seu contemporâneo, os “letrados do passado” são o imperador mitológico Fuxi (sec. XXVIII a.C.), mais os poetas Qu Yuan e Song Yu (sec. III a.C.). 

“rústico que não é desta terra” é o próprio Du Fu, habitante do lugar de Duling, nos arredores de Chang’an.

O “poeta que lavava canecas e pratos” e o letrado que se “lançou de um torreão”, são respectivamente Sima Xiangru (179 a.C. – 117 a.C.) e Yang Xiong (53 a.C.- 18 d.C.). 

Por último, Du Fu fala de Confúcio (551 a.C. – 479 a.C.) e de Zhi, o “salteador de estradas.”

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 (Continua) 

(Seleção,  revisão / fixação de texto para efeitos de publicação neste poste: LG)

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 25 de março de  2024 > Guiné 61/74 - P25305: Notas de leitura (1678): "Lay Yong, Bernardo e outros poemas", de António Graça de Abreu (Lua de Marfim Editora, 2018, 90 pp.) (Luís Graça)

3 comentários:

José da Silva Marcelino Martins disse...

O Graça Abreu foi, hoje de madrugada, muito elogiado pelo Pedro Mexia, por trazer até nós, poemas chineses que, se não fossem traduzidos, seriam completamente desconhecidos.
Grande abraço.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mais do que justo esse elogio: o Graça de Abreu é um grande artesão da palavra...

Traduzir grandes poetas, se não os maiores da literatura chinesa de séculos passados, Li Bai (em 1990), Han Shan (2009) Lu Fu (2015) ou Susana Dongpo (2013) e trabalho de uma vida...

Ficamos também orgulhosos por ele



Valdemar Silva disse...

Já tinha visto fotos do Monsenhor Manuel Teixeira e estava convencido que era natural de Macau.

Valdemar Queiroz