domingo, 1 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25901: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte VII: "Carvalhinho, você ainda me mata algum homem, temos tropas na mata! " (ten cor Fernando Cavaleiro, cmdt da Op Tridente)



Foto à direita: os alferes milicianos José Álvaro Carvalho ("Carvalhinho"), do QG / CTIG (em 1º plano, à esquerda), e João Sacôto, da CCAÇ 617/ BCAÇ 619, em 2º plano, à direita



1. Estamos a publicar algumas das memóras do ex-alf mil art, José Álvaro Carvalho, membro  nº 890 da nossa Tabanca Grande:

(i) tem 85 anos, sendo natural de Reguengo Grande, Lourinhã;

(ii) com 26 meses de tropa, acabou por ser moblizado para o CTIG por volta da primavera de 1963 (não conseguimos ainda  apurar a data);

 (iii) foi render um alferes de uma companhia de intervenção, de infantaria, sediada em Bissau (QG/CTIG); 

(iv) irá cumprir mais uns 26 ou 27 meses, no TO da Guiné, entre o primeiro trimestre de 1963 e o início do segundo semestre de 1965;

 (v) passou por Bissau, Olossato, Catió e a ilha do Como, aqui já a comandar um Pel Art, obus 8.8 (a duas bocas de fogo), com que participou, entre outras, na Op Tridente (jan-mar 1964);

(vi) no CTIG era popularmente conhecido pelo seu nome artístico, "Carvalhinho" (cantava o fado de Lisboa e tocava guitarra); em Bissau, chegou a fazer espetáculos com o alf médico Luís Goes (que cantaca e tocava o "fado de Coimbra"); 

(vii) tornou-se também amigo dos então alferes milicianos 'comandos' Justino Coelho Godinho e Maurício Saraiva (já falecidos), quando se estavam a organizar os Comandos do CTIG;

 (viii) o José Álvaro Almeida de Carvalho (seu nome completo) publicou em 2019 o "Livro de C", Lisboa, na Chiado Books (710 pp.) ("C" é o "nickname" pelo qual o pai o tratava); 

(ix) é empresário reformado, trabalhou também como quadro técnico em  empresas metalomecânicas como  a L. Dargent Lda, de que  o Zé Álvaro era diretor do departamento de trabalhos exteriores, e sócio minoritário (fez , por exemplo, a montagem da superestrutura metálica e cabos de suspensão da ponte na foz do Rio Cuanza em Angola).

2. Voltando às memórias do José Álvaro Carvalho (*), estamos agora em 1964, em Catió, no BCAÇ 619, 1964/66: ele está destacado com um Pel Art 8.8 a duas bocas de fogo, pertencente à BAC (Bateria de Artilharia de Campanha) (ou ao BCAÇ 600, estamos na dúvida).

Este Pel Art participaria em grandes operações no setor de Catió ("Tridente", "Broca", "Macaco", "Tornado" e "Remate"). A atuação do seu comandante, no campo operacional valeu-lhe, em 1967, uma Cruz de Guerra de 3ª Classe.

Estamos  na Ilha do Como, no decorrer da Op Tridente (jan-mar 1964). O texto que se segue, será completado por um apontamento do Mário Dias sobre o "alferes Carvalhinho" como comandante do Pel Art que apoiou as NT no Como.

 
Guiné > Região de Tombali > Ilha do Como > O sargento do Pel Art / BAC obus 8.8, comandando pelo alf mil art José Álvaro Carvalho. O obus .8,8 cm m/943.possuía uma plataforma circular,  fazia tiro empregando munições de carga variada (granada explosiva 11,3 kg e granada de fumos) tnha em alcance de 12250 metros a + 44º.  Peso: 1796 kg (incluindo reparo). Tracção por tractor de rodas. Na Op Tridente terão sido disparadas c. 1200 granadas de obus 8,8.


Fotos  (e legendas): © José Álvaro Carvalho (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) (*)


Parte VII: "Carvalhinho, você ainda me mata algum homem, temos tropas na mata"



Era noite e o alf mil art Carvalho, cmdt do Pel Art 8.8,  preparava-se para dormir quando foi chamado ao comando do batalhão porque o rádio emitia preocupantes pedidos de socorro, que partiam dum pelotão estacionado a cerca de 7 km que estava a ser atacado por um grupo numeroso de guerrilheiros impossíveis de conter sem ajuda.

A água, a lama e a mata cerrada que na zona crescia tornavam impossível enviar reforços à noite,  só de manhã. Mandaram-lhe ver o que conseguia fazer com os obuses. 

O pelotão a cerca de 7 kms de distância, encontrava-se entre os atacantes e um canal e rodeado de mata com lama exceto por onde estava a ser atacado. Só havia a possibilidade de fazer fogo de barreira para trás dos atacantes e começar a rodar os tubos na direcção do pelotão, havendo sempre o perigo de com algum descuido lhe acertar. As pontarias em direcção eram mais delicadas que em alcance. No rádio, os pedidos de socorro sucediam-se cada vez com mais insistência.

O alferes decidiu trabalhar só com um obus e verificar pessoalmente as pontarias. Disse ao sargento para carregar sempre e só o primeiro obus e só disparasse por sua ordem depois da pontaria ser por si verificada.

− Alça 8000 jardas, direcção 81º.

Verificou os elementos introduzidos pelo apontador e ordenou:

− Fogo!

A primeira granada partiu. Disparou mais 3 granadas com alcances intervalados de 300 jardas.

Ouviu-se no rádio :

− Mais para cá. Estão a cair longe. Mais para cá!

Sempre junto do apontador disse-lhe :

− Alça 7500 jardas, direção 80º. 

Verificou os elementos e ordenou:

− Fogo!

Mandou disparar mais 2 granadas com alcances de 300 jardas para mais e para menos.

No rádio ouviu-se:

− Está melhor. O ataque diminuiu. Mas mais para cá.

A voz já estava menos assustada mas pedia granadas para junto de si próprio. A preocupação que tinha de acertar no pelotão aumentou.

− Alça 7200 jardas, direção 79.5º. 

Verificou de novo os elementos e ordenou:

− Fogo!

No rádio ouviu-se:

− O ataque continua a diminuir. Mas mais para cá! Mais para cá!

Mandou disparar outras 2 granadas com a diferença no alcance de mais e menos 300 jardas. O rádio continuou a pedi-las mais próximas, tendo chegado á direção de 79º. Àquela distância,  1º representava muitos metros. Daqui a sua preocupação. Continuou a disparar granadas de flagelação para a zona com direções diferenciadas em alguns minutos até o operador rádio dizer:

− Obrigado, o ataque terminou por agora.

A preocupação que teve nesta operação fê-lo desprezar a necessidade de abrir a boca quando de cada disparo, o que lhe originou a perfuração dum tímpano com infeção e dores violentas nos dias que se seguiram. O médico começou a dar-lhe injeções de penicilina 2 vezes por dia e só passadas 2 semanas conseguiu entrar de novo em operações com o ouvido muito protegido e afastado das zonas de disparo tanto quanto possível .

No dia seguinte o comandante do batalhão visitou o local de helicóptero e verificou que tinham rebentado granadas a cerca de 150m do sítio onde o pelotão se encontrava estacionado.

(Revisão / fixação de texto/ título e subtítulo: LG)



2. Excerto do poste P356 (**),  de Mário Dias, ex-srgt 'comando' (Brá, 1963/66), que participou na Op Tridente, integrando o Gr Comds do alf mil 'cmd' Maurício Saraiva

(...) A Base Logística onde também funcionava o posto de comando, estava ampliada e melhorada. Pousavam lá os aviões ligeiros (Auster e Dornier) bem como helicópteros desde que a maré não estivesse totalmente cheia. A areia molhada formava uma excelente pista de aterragem. 

Também já lá estavam duas bocas de fogo de obus 8,8cm, comandadas pelo alf mil Carvalhinho, exímio tocador de guitarra e igualmente exímio tocador de garrafa de cerveja que nunca abandonava.

Uma tarde, depois de almoço, estava eu a descansar um pouco e ouvi um tiro de obus. Fui ver. O alferes Carvalinho, de calções, tronco nu, indispensável cerveja na mão, alguns passos atrás das peças ia ordenando ao apontador:

 Pá, levanta um bocadinho… não, foi demais, baixa… um pouco para a direita… está bom. Fogo!

E a granada partiu rumo ao seu destino. Salta de lá o tenente-coronel  Fernando Cavaleiro, comandante da Op Tridente:

 
− Ó Carvalinho, você ainda me mata algum homem, temos tropas na mata!

 
− Calma,  meu tenente coronel, isto vai ter aonde eu quero . 

E continuou:

 Eh pá, baixa um pouco… está bom. Fogo! 

E foi assim até disparar 4 granadas. Acercando-me dele perguntei:

− Meu alferes, para onde foram esses tiros? 

Mostrando-me a carta,  indicou:

 Para o cruzamento destes caminhos. 

E apontou um cruzamento de um caminho com a picada de Cassaca.

Não é que, alguns dias depois, ao passar pelo referido local, lá estavam, muito próximos uns dos outros, os 4 impactos das granadas?!

(Revisão / fixação de texto, itálicos, negritos: LG)
____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 11 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25830: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte VI: dois meses na ilha do Como, na Op Tridente: farto do arroz com conservas, o pessoal comia búzios, e carne e ovos de tartaruga

4 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

É uma pena o "Carvalhinho" (como era conhecido por toda a gente em Bissau, em Catió, no Como...) ter poucas fotos do seu tempo de Guiné... As que tem da ilha do Como, são duas ou três e de fraca qualidade...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

A "base logística" (e "posto de comando") a que se refere o Carvalhinho ficava em plena Ilha do Como, na praia, no lado sudoeste, a escasssas centenas de metros da famosa "Casa Brandão", donde partia uma picada, passando por Cassacá, até ao Cachil, na outra ponta da ilha, a nordeste. Aqui fazia-se a ligação, por barco, a Catió. Os 2 obuses 8.8 estavam montados nessa praia, onde funcionava também o "posto e comando", a "messe" e demais instalações logísticas...

Não há excertos do relatório da Op Tridente no livro da CECA sobre a atividade operacional no TO da Guiné (1963-1966).

Vd. o croquis da Op Tridente (1964) (atenção, esta Cassacá não é a da I Congresso do PAIGC, onde o Amílcar Cabral mandou limpar o sebo a uma série de "senhores da guerra", alegadamente por comportamentos crimininosos, como vem relatado mas memórias do Luís Cabral).

20 de agosto de 2024
Guiné 61/74 - P25860: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte I (Mário Dias / Armor Pires Mota)

ManuelLluís Lomba disse...

A Operação Razia à mata de Cufar Nalu decorreu em 16 e 17 de maio de 1965,
eu e a secção que comandava (nunca tive secção certa...) ficamos por escala em Catió, de "reserva de manobra e ação", assisti ao bombardeamento dos obuses 8.8, do alferes Carvalhinho, em troco nu e com a sua cerveja, era muito respeitado, mas lembro-me que os soldados se lhe referiam como o "cavalinho"...
Abraço.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Manuel Luís, ele vai adorar quando eu lhe contar...