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terça-feira, 20 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26819: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte II: De Lisboa a Bissau, no T/T Uíge



Foto: o paquete Uíge no qual viajei/viajámos para  Bissau.


1.  O Carlos Filipe Gonçalves, de alcunha Kalu Nhô Roque (como consta na sua página no facebook) nasceu em 1950, no Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde. 

Foi fur mil amanuense, na Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74... 

É membro da nossa Tabanca Grande desde 14 de maio de 2019, sentando-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 790. Tem cerca de 2 dezenas de referências no nosso blogue.

É uma figura conhecida do na sua terra: r
adialista, jornalista, historiógrafo musical, e escritor, vive na Praia, capital de Cabo Verde. 

É também amigo do nosso camarada Manuel Amante da Rosa, e seu contemporâneo no QG/CTIG. 

Já aqui publicámos cinco postes com a sua versão dos acontecimentos do 25 de Abril de 1974, em Bissau (*). São excertos de um livro de memórias que ele tem em preparação, ainda sem  título (definitivo). E que quer continuar a partilhar connosco.

Abrimos, entretanto, uma nova série, de modo a abarcar o início da sua comissão no CTIG, em 1973. Na Metrópole, durante a recruta, a especialidade e a mobilização em rendição individual para o CTIG,  passou por Tavira, Vendas Novas,  Leiria e Lisboa.   

A fonte que utilizamos é a página do Facebook da Tabanca Grande.(***)





Cabo Verde > Ilha de São  Vicente > Mindelo > 9/11/2012 > 11h11 >  Baía do Porto Grande e Monte Cara, ao fundo.

Foto (e legenda): © João Graça (2012). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) (**)



Parte IIA: Despedida e Partida para a Guiné



Noite sim, noite sim, na pândega, fui vivendo aqueles dias de «férias». Finalmente, a viagem para Bissau ficou marcada para domingo, 25 de fevereiro de 1973, no paquete Uíge. 

Era um envio especial de «efectivos» para «rendição individual» de militares que já tinham ultrapassado muitos meses após o final da comissão no ultramar! Não puderam regressar a tempo à metrópole, porque havia falta de gente para os substituir! 

Bem, quando a rapaziada do Campo de Ourique soube que eu partia no próximo domingo, disseram logo: “Temos que fazer uma despedida em grande!” Teria de ser na sexta-feira, pois, no sábado eu devia de dormir nos Adidos e, como se sabe, no quartel depois da meia-noite ninguém entra, ninguém sai; eu não queria correr o risco de um atraso no embarque, que seria mal interpretado e seria punido!isciplina militar é para se cumprir! 

Reunidos no Café Gigante, no meio da conversa fiada, Dani me perguntou: “Então? Como vai ser a despedida?” O Zé Rui argumentou: “Eh pá, vais para a Guiné!! Olha, que aquilo está mau! Proponho o novo cabaré que abriu aí pelos lados da Avenida Liberdade… a noite termina com striptease!” 

Na minha cabeça surgiu logo o pensamento: posso não voltar! Aceitei então a proposta. (…) (#)

(...) Chegou a hora da despedida, a malta, vai me dando fortes abraços, acompanhados de conversas ocas, sem significado para mim. Dizia um: “O tempo passa depressa! Já, já, cá estarás connosco a parodiar!” Gritava outro: “Não vai ser nada, pá! Aguenta-te, OK!” Ou então: “Ficamos à tua espera! Logo, logo, estarás de regresso!” 

Cada um foi para o seu lado, pois, naquele dia, o popó do John estava avariado, aliás nem me despedi dele porque não nos acompanhou! E não voltei a vê-lo depois. Apanhei um táxi… cheguei ao QG…. 

De repente senti-me só e envolvido num absoluto silêncio, a minha cabeça andava à roda, a mente vazia… adormeci.

Sábado, foi arrumar a mala e ultimar os preparativos para a viagem, dormi no Quartel de Adidos, em Belém. Domingo logo cedo, nem houve tempo para o pequeno-almoço, foi logo formatura e «chamada» da malta que ia embarcar.

 Entregaram a “guia de marcha” e os papéis da promoção a furriel miliciano, foram logo avisando: “Só colocam as divisas quando já estiverem no barco!” Dada a ordem “Está no ir”, subimos nos camiões com a bagagem, formou-se depois um comboio, lá fomos rumo ao cais de Alcântara. 

Quando lá chegámos, fiquei espantado com o povo que lá estava: centenas de pessoas, entre familiares, amigos, namoradas, esposas, algumas com bebés ao colo! Gente e mais gente para despedir dos cerca de 600 militares que iam partir para a Guiné. O ambiente estava pesado, choros, abraços, beijos de uma mãe ou namorada em lágrimas, olhos vermelhos que os lenços limpam constantemente… 

No meio daquela confusão, ouço chamar: “Kalu! Kalu!” Reconheci logo, a minha tia e o meu primo! Prometeram que iam ao cais e não faltaram! Fiquei sensibilizado, senti-me querido, amparado pelo apoio da família. Eu estava emocionado, a conversa foi pouca, ficamos ali parados… 

A tia Orlanda tinha providenciado a abertura de uma conta num banco, para eu depositar e amealhar o vencimento que a partir de agora ia dispor. Ela alertou: “Guarda bem estes papéis de referência da conta, para poderes fazer as transferências!” 

Eu acenava que sim, havia então uma pausa…. Minha tia repisava: “Quando voltares terás um dinheirinho para comprar um carro, mas, pensa em estudar, o estudo é o mais importante!” Estas palavras, nada significavam para mim, porque, dois anos de comissão na Guiné, eram uma eternidade e ainda nem tinham começado!

Dada a ordem para o embarque, eu não quis esperar muito, decidido, abracei a minha tia e o meu primo, despedimo-nos, apanhei a bagagem… dirigi-me às escadas do barco. O paquete Uíge era um barco grande, sobretudo muito alto… ao subir as escadas, notei, centenas de serpentinas lançadas ao vento, balançavam e faziam um som estridente… 

Quando cheguei ao barco, fui logo arrumar a bagagem no camarote e voltei para a amurada. Daqui de cima, via lá em baixo aquela gente toda aos prantos, há um murmúrio constante, os que estão no barco seguram serpentinas que estão nas mãos de alguém em terra. Se a fita de papel se partia, os meus colegas logo gritavam, chamavam o familiar e lançavam outra serpentina… 

Fiquei emocionado com este espectáculo, lágrimas afloraram nos meus olhos. Tirei os óculos, limpei as lentes. Aumentava cada vez mais o número destas longas e compridas tirinhas de papel de várias cores. 

Finalmente, ouve-se um grosso apito, são retiradas as escadas, o barco ainda apita várias vezes, enquanto afasta-se do cais… Os militares a bordo desenrolam cada vez mais e mais, as serpentinas, aumenta o ruído… prá, prá, prá, daquele conjunto enorme de tiras de papel ao vento… que ligam os que estão a bordo, àqueles que estão em terra… até que… pouco a pouco, uma a uma, as fitas de papel começam a partir-se e ficam soltas ao sabor do vento…

Lá no cais, os familiares a acenam com lenços brancos… à medida que o barco se afasta, as pessoas ficam cada vez mais pequenas; começa-se então a sentir os primeiros balanços do barco. Iniciamos a viagem a caminho da Guiné!

____________

Nota do autor:

(#) Não posso publicar o livro integralmente são apenas extractos… Por isso, apenas posso dizer agora, que depois de muitas peripécias e flashes da vida nocturna lisboeta… e ocorrências insólitas nesse cabaré… Foi uma noite de luxo, com Whisky, etc. e tal…. Até que…. saídos do tal cabaré...


Parte IIB:   De Lisboa a Bissau, no T/T Uíge
 


No tombadilho do barco sopra um vento frio, Lisboa vai ficando para trás, não há muita conversa entre nós, imperam a tristeza e a saudade. Os meus companheiros de viagem começam a retirar-se do convés. Eu também vou para o camarote, encontro três colegas, vejo-os a retirar as divisas de cabo miliciano e colocar sobre os ombros as divisas de furriel. Fiz a mesma coisa, concretiza-se assim a tão ansiada promoção.

Sinto-me outra pessoa. Para trás ficaram meses de uma vida difícil e até de humilhações quando da instrução (recruta e especialidade). Escondido vestia-me à civil, pois, isso era vedado aos praças e instruendos como eu; a comida melhorou com a promoção a cabo miliciano, mas continuava a não ter qualquer salário; durante mais de seis meses, o pré (salário do soldado) era menos de uma dezena de escudos; depois da promoção a cabo miliciano, passara a 90 escudos! Uma miséria! (***)

Logo dependia da mesada que a minha mãe me enviava. Com esse dinheirinho, que recebia em carta registada, pagava as despesas, lavagem da roupa, as comezainas em Tavira e Vendas Novas (onde tinha feito a recruta) ou em Leiria (onde tinha feito a especialidade) e as paródias com a malta estudante em Campo de Ourique. 

Nessa fase inicial da tropa para além do frio (chegara Portugal em janeiro de 1972) o problema foi a minha adaptação ao rancho: café pão com marmelada ou margarina ao pequeno-almoço; sopa e alguns pratos preestabelecidos ao almoço como por exemplo, feijoada com chispe ou massa com carne; ao jantar, pescadinha de rabo na boca com batatas cozidas, um prato invariável! Sempre que podia, ia comer umas bifanas por aí, num restaurante ou tasca. (…)

Ao meio-dia sou acordado pelo toque de corneta para refeição. Levantei-me a correr, felizmente não tinha despido a farda, saio do camarote e vejo que o barco é um quartel flutuante! No convés estavam os «praças» a fazer a formatura para o almoço! Os furriéis, depressa descartaram a responsabilidade e delegaram nos cabos a tarefa de fazer a chamada, etc. e tal. 

Os «praças» foram para um refeitório onde nunca cheguei a ir. Nós, os graduados, fomos almoçar num salão de luxo destinado a sargentos e oficiais. Boa comida, bom vinho, boa sobremesa… e o melhor de tudo: garçons a servir! Portanto, nada a reclamar. Depois da bica, fomos dormir.

Às 16 horas, sou de novo acordado pelo toque de refeição da corneta. Bolas, devem ter-se enganado, o jantar é com certeza às 7 ou 8 horas, o que se passa? Mas, ordens são ordens, levantei-me da cama e saí. No corredor, ouço dizer que é hora do lanche! Fomos, ao salão, encontramos mesa posta: bolos, bolachas, sumos, chá e café… garçons a servir! Nada mau! Voltamos a comer!

(…) O tempo foi passando, às 7 horas soou a corneta, toque para o jantar. Repete-se o cenário: boa comida, bom vinho, garçons a servir. Pouco se falava à mesa, as amizades irão desenvolver-se ao longo dos próximos cinco dias da viagem, depois de se travar conhecimento e obter a confiança dos colegas.

Depois do jantar, fez-se a leitura da “Ordem do Dia”. Recorde-se, estamos num quartel flutuante, tudo se passa como em qualquer quartel. Soube então que haveria projecção de filme no convés e que durante a viagem não haveria toques de recolher e nem de alvorada, apenas os toques à refeição. 

E lá fomos ver um filme projectado num ecrã dependurado num dos mastros do navio; os oficiais e sargentos ficavam na amurada da meia nau, os soldados no convés. Logo no início, desenhos animados da Disney, depois o filme…. 

Enquanto passavam as imagens, olhava de vez em quando para o céu estrelado! Sentia então aquela saudade da minha Ilha de S. Vicente e dos meus familiares… A malta interrompia os meus pensamentos com alguma conversa, fumava-se, o tempo ia passando…

Estava assim estabelecida a rotina da viagem, a que se juntou nos dias seguintes, uma jogatina de cartas e de dados, pelos «praças» no convés. Dezenas de grupos de quatro a seis soldados apostavam e jogavam, ouviam-se risadas, gritos quando alguém ganhava, discussões quando havia desconfianças de enganações… Os oficiais e sargentos apenas observam, para não dar confiança e atrevimento aos subordinados, mas, alguns, à socapa também apostavam.

No terceiro dia de viagem comecei a sentir o calor tropical, imaginei que estaríamos a aproximar do mar de Cabo Verde. Comecei então a tomar banhos de sol, ia só de calções para o convés, estendia-me, imaginava estar numa das praias do meu distante S. Vicente… Os outros imitaram-me, logo, todo o mundo também estava de calções e sem camisa a tomar banhos de Sol! 

Antes do almoço, voltava ao camarote e tomava um longo um banho de chuveiro para refrescar. Que remédio! Com o mar ali à nossa volta, mas impensável um banho de mar…. Relembrava então o hábito de nadar na água sempre tépida e depois ficar estendido ao sol na praia da Matiota em S. Vicente, a minha ilha… (…)
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Nota do Autor – Como devem compreender, são extratos que estou a publicar… Devo, pois,  explicar, neste ponto, em flash back descrevo várias peripécias, na recruta e especialidade e como consegui ir para a junta de saúde e obter uma reclassificação para Serviços Auxiliares, o que me livrou da especialidade “Atirador/Operador Cine”, ou seja, envio para o mato no caso de mobilização! 

Também descrevo situações que tive com a Pide em Mindelo, etc., num jogo surdo e mudo, por causa de uma carta que recebi de um amigo, em Comissão no Ultramar, na qual ele dizia estar apreensivo pois ia para uma operação no mato e logo ele temia pela vida! 

Imaginem, a carta tinha sido violada…. Felizmente, não me valeu nem prisão nem convocação à sede, como aconteceu com muitas outras pessoas, por ninharias. 

(Revisão / fixação de texto: LG)



T/T Quanza > BCaç 617 >  A caminho da Guiné > c. 8-15 janeiro de 1964 > Tela para projeção de filmes  ao ar livre...


Foto (e legenda): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(*) Vd. o último poste a série > 3 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26760: No 25 de Abril eu estava em... (40): Bissau, em comissão de serviço na Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG (Carlos Filipe Gonçalves, ex-fur mil amanuense, natural do Mindelo, vive hoje na Praia, Cabo Verde) - Parte V


(**) Para se ter uma ideia da depreciação do valor da moeda de então (o escudo português), ao longo do período da guerra do ultramar /guerra colonial (1961/75):  90$00 valiam (a preços de hoje) 47 € (em 1960)...

  • 45 € (1963), 
  • 39 € (1966), 
  • 32 € (1969),
  • 25 € (1972), 
  • 22 € (1973), 
  • 18 € (1974), 
  • 15 € (1975). 

Fonte: Pordata > Simulares > Simulador de Inflação.

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Uma honra ter aqui um antigo camarada cabo-verdiano!

Tabanca Grande Luís Graça disse...

E para mais mindelense! Terra da Cesária!

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Cabo-verdianos e portugueses continuam a fazer um "apagão" deste período da nossa história comum... É importante que cheguem ao nosso blogue estas e outras memórias... LG