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quarta-feira, 21 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26825: (Ex)citações (433): Ao pesquisar na Net informações relacionadas com o aquartelamento de Nova Sintra, li as crónicas do Fur Mil Joaquim Caldeira, da CCAÇ 2314, e numa delas com o título “Um tronco sem pernas e sem braços”, verifiquei que, pelas piores razões, eu era um dos protagonistas da história (Aníbal José da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre)

1. Em mensagem enviada ao blogue, o nosso camarada Aníbal José Soares da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483 / BCAV 2867 (Nova Sintra e Tite, 1969/70), a propósito do seu incidente, contado no post P26820 de ontem, conta-nos como um acaso de pesquisa na net, o levou até um camarada da CCAÇ 2314, o ex-Fur Mil Joaquim Caldeira, que comandava a coluna apeada que saiu de Tite em direcção a Nova Sintra. Neste percurso, o malogrado soldado da CCAV 2483, de seu nome Domingos da Conceição Verdade Ventinhas, natural do Concelho de Moura, pisou uma mina antipessoal reforçada, que além da sua morte, originou ferimentos graves ao Aníbal que seguia muito perto dele.
O título do texto que se segue diz tudo.



1 - EMOÇÕES E AMIZADES FORTES

Ao pesquisar na Net informações relacionadas com o aquartelamento de Nova Sintra, na Guiné, tive acesso ao Blogue do Batalhão de Artilharia 1914, que o meu, Batalhão de Cavalaria 2867, rendeu na região do Quínara em Março de 1969.

Nele li as crónicas do Furriel Joaquim Caldeira, da CCAÇ 2314, e numa delas com o título “Um tronco sem pernas e sem braços”, verifiquei que, pelas piores razões, eu era um dos protagonistas da história (ver recorte de imprensa abaixo). Fiquei com muita curiosidade e vontade de falar com o Caldeira.

Através do mensenger do facebook fiz-lhe chegar, em 30/11/2016, a seguinte mensagem:

Amigo Joaquim Caldeira

Peço desculpa por o tratar assim, mas creio que não me levará a mal este tratamento. Não nos conhecemos pessoalmente, muito embora tivéssemos tido um contacto pessoal, no, para mim, trágico dia 04/08/69.

Na net, ao pesquisar informaçoes e relatos sobre Nova Sintra, encontrei as suas crónicas e numa delas a referência àquele dia trágico com o título “Um tronco sem pernas e sem braços”. Eu era o vagomestre da CCAV 2483 sediada em Nova Sintra, que naquela madrugada chuvosa, fomos comboiados de Tite para Nova Sintra, numa coluna apeada que o meu amigo comandava e que segundo refere na crónica “tinha perdido os dois olhos”.

As lesões que sofri nos olhos e de que tenho sequelas, não foram tão graves quanto à aparência daquele dia. Estive quarenta dias no Hospital Militar de Bissau, trinta dos quais internado e dez na consulta externa. Nos primeiros vinte dias não via rigorosamente nada, para além das dores horríveis nos olhos.

E passo a apresentar-me. O meu nome é Aníbal (...) e quero agradecer-lhe o muito que fez por mim naquele dia.


Dias depois o Caldeira telefonou-me, mas não foi possível estabelecer qualquer conversa, tendo ele enviado a seguinte mensagem:

“Boa tarde, sou o Caldeira. Ainda estou comovido com a notícia de que, o homem que ficou cego naquela manhã, afinal vê. Levei quase 50 anos com estes demónios que me atormentavam desde então. Desculpa não ter conseguido falar. È muita emoção para gerir. Temos muito que falar , muitas memórias para recordar. Afinal, consegues ver e estou muito feliz por isso. Em boa hora me lembrei de escrever aquela aventura. Sem isso nunca teria tido paz e sossego. Também nunca cheguei a saber quem foi que pisou a mina. Assim que puder eu ligo. Ficas a pertencer ao meu grupo de combate.

Um abraço sentido,
J Caldeira”.


********************

Poucos dias depois o Caldeira, já refeito das emoções, voltou a ligar e então lembramos o acontecimento do tal dia, falamos sobre a vida pessoal e profissional de cada uma. Passamos a trocar mensagens nos aniversários, pela Páscoa e pelo Natal, mas faltava um encontro cara a cara para um melhor conhecimento pessoal. Tal tornou-se realidade no dia 22 de Setembro de 2018, data em que a sua companhia (CCAÇ 2314) realizou no Porto mais um almoço/convívio.
Fui convidado e estive presente.

Houve uma missa na Igreja do Cristo-Rei, à Boavista, e foi aí o local de concentração do pessoal. Só conhecia o Caldeira pela fotografia do facebook, bem como ele a mim. Ao chegar ao local identifiquei-o, embora estivesse de costas para mim. Os camaradas que o rodeavam não me conheciam e não sabiam o que ia acontecer. Toquei-lhe no ombro, ele virou-se e disse “tu és o Aníbal”.

Seguiu-se um abraço forte e emocionado por breves momentos e um humedecer dos olhos. Depois fixou-me olhos nos olhos e disse sentir uma enorme alegria pelo facto dos seus receios, de que ficara cego, não serem reais. Novo abraço e a minha apresentação aos seus amigos, dizendo, lembram-se daquela coluna apeada de Tite para Nova Sintra, em que um soldado desta companhia pisou uma mina e morreu e um Furriel tinha ficado sem ver?

Pois é, o ceguinho é este que está aqui à vossa frente e com os olhos bem abertos. Ficaram surpreendidos e satisfeitos e um deles à boa maneira da linguagem da tropa disse: "Oh pá, tiveste uma sorte do c@r@lho, nunca pensamos que voltases a ver, tanta a lama que tinhas na cabeça".

Seguiu-se a missa em homenagem a um camarada que falecera no ano anterior e a deposição de um ramo de flores na sua sepultura no cemitério da Foz do Douro, no Porto, seguida de animado almoço em Leça da Palmeira.

E ficou para sempre, a amizade, forte, sincera e desinteresada, construída na adversidade.

Arcozelo, 17 de Abril de 2025
Aníbal Silva



2 - UM TRONCO SEM PERNAS E SEM BRAÇOS

Lá vou eu, de novo, a caminho de Nova Sintra, desta vez comboiar alguns militares da unidade lá aquartelada. Meus, eram para aí vinte homens. De Nova Sintra apenas quatro. Mas alguém havia de fazer segurança para que eles chegassem bem. Saímos de Tite pelas três horas, numa madrugada chuvosa e escura. Pedi ao Zé Carlos, o enfermeiro, que seguisse ao meu alcance. Sempre poderiamos falar se fosse preciso.

Desta vez não me fazia acompanhar de guia, pois que o caminho era já sobejamente conhecido, embora nunca trilhássemos o mesmo. Lá fomos seguindo perto da picada que já nos era familiar, umas vezes à direita, outras à esquerda. Tínhamos passado Gatangó e informei, via rádio, que tudo seguia normal. A chuva era cada vez mais intensa, mas chuva civil não molha militares. A previsão de chegada era pelas oito horas e tinha combinado que um pelotão de Nova Sintra viria ao meu encontro logo, que houvesse luz para nos podermos juntar sem problemas.

BUMMMMMMMMMM... grande estrondo. Alguém tinha pisado uma mina. Após os procedimentos que se impunham, tentei saber quem tinha sido o infeliz. Mas ninguém sabia quem teria sido e não se via nada que pudesse indicar homem ferido. Tanto pior. Um soldado dos meus, já não me recordo de qual, disse-me que tinha voado por cima de mim e estava bastante ferido num braço, provocado pela queda. Entrguei-o ao Zé Carlos e continuei as buscas ajudado por quem estivesse são. Três homens vieram ter comigo. Um caminhava amparado pelos outros dois e pensei que estivesse encontrado o infeliz. Mas não. Era mais um, Furriel de Nova Sintra, que nunca cheguei a conhecer, que tinha perdido os dois olhos. Já não tinha dúvidas de que ainda havia outro. Este tinha os dois pés. O Zé Carlos não tinha mãos a medir e o Lourenço, o radiotelegrafista, não parava de comunicar com o Furriel Garcia, este em Tite, o que se ia passando.

Após algum tempo de buscas, alguém tropeçou numa coisa que parecia um corpo. Sem luz não era fácil saber do que se tratava, porque até podia ser um animal que tivesse, ao fugir de nós, ter pisado a mina. Fui verificar e após ter revirado o que restava, apurei que era uma cabeça presa a um tronco sem pernas e sem braços. Despi o blusão e embrulhei-o o melhor que pude, pedi a alguém que o carregasse e pedi ao Zé Carlos que o mantivesse vivo. A Força Aérea não evacuava mortos. A única maneira, disponível, era injetar CORAMINA e, sem saber, abreviámos-lhe a morte.

Pobre dele. Já não sentia sequer que vivia. Nunca cheguei a saber quem era. Chegados a Nova Sintra, consegui convencer a enfermeira paraquedista a levá-lo no avião, como se ainda estivesse vivo. Ela não era trouxa, mas compreendeu o meu problema, pois sabia que eu teria de carregá-lo de regresso a Tite, o que só poderia acontecer no dia seguinte durante a noite.

E assim se passou mais um episódio. Júlio Garcia, tu lembras-te muito bem. Comenta este episódio, tal como poderás comentar os restantes. Tu também os viveste. Só o Zé Carlos não pode por ter falecido pouco tempo após termos regressado a Portugal.

Joaquim Caldeira
Furriel Miliciano da CCAÇ 2314

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Notas do editor

Vd. post de 20 de Maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26820: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (11): O meu acidente

Último post da série de 4 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26764: (Ex)citações (432): Gosto de arquivar para mais tarde recordar e por vezes surpreender os amigos com peripécias vividas há anos (Aníbal José da Silva, ex-Fur Mil Vagomestre)

5 comentários:

Carlos Vinhal disse...

Vim só aqui dizer que na solidão do seu trabalho, o editor também se comove.
Fortes abraços para os camaradas Aníbal Silva e Joaquim Caldeira.
Carlos Vinhal
Coeditor

Eduardo Estrela disse...

" ficas a pertencer ao meu grupo de combate "

Ao nosso, ao grande grupo de combate dos homens que não têm medo de chorar quando nos recordamos dos amigos que não tiveram o " privilégio " do regresso na posição vertical.
Abraço
Eduardo Estrela

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Carlos, ao fim de 20 anos, ainda temos a capacidade de nos... comovermo-nos!... Dizia-se, na Guiné, que chorávamos o primeiro morto, ficávamos deprimidos com o segundo, f*didos com o terceiro...E depois ficávamos "blindados", sem lágrimas para chorar, sem raiva para extravasar, sem compaixão pelo(s) outro(s), e nomeadamente pelo(s) nosso(s) inimigo(s)...

E ainda há quem nos diga: oh!, pá, 20 vinte anos ?!..., fecha-me essa m*rda, que já cheira mal...

Sim, a guerra, qualquer que ela seja, de um lado e do outro, cheira mal, continuará sempre a cheirar mal....

Aníbal, e tu andavas por aqui connosco sem nunca pensares em contar este enorme pesadelo que ainda hoje te deve tirar o somo ?!... Entendo o teu pudor, o teu recato, o teu silêncio, a tua dor...

Obrigado, vagomestre, grande e bravo vagomestre!

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Aníbal, não temos nenhum representante da CCAÇ 2314 na Tabanca Grande. Vou-te incumbir de uma "missão diplomática": trazer o nosso camarada Joaquim Caldeira até nós... A vossa história é muito bonita. E o Joaquim é um grande ser humano. Já lhe pedi amizade, na página do Facebook da Tabanca Grande. Mas tu agora precisas de "mexer os teus cordelinhos" para o convencer a dar a cara no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

Anónimo disse...

Aníbal Silva (by email)
21 mai 2025 20:22

Caríssimo Caldeira

Reencaminho o email que acabo de receber do Luís Graça, incumbindo-me da missão de te levar a aderir ao Blogue Luís Graça & Companheiros da Guiné. Na nossa conversa telefónica de hoje, já disseste que ias passar a lê-lo e agora é só mais um saltinho e passares a colaborar com publicações.

O teu livro "Guiné - Memórias da Guerra Colonial", nas suas 323 páginas é um manancial de crónicas e narrativas, versando os mais variados temas, da guerra, obviamente, como o "Desastre de Bissássema" e outras bem humoradas, como aquela em que te apresentaste ao General Spínola, sem farda e "barba na face esquerda, bigode no lado direito".

Pessoalmente, ficaria muito contente que a tua participação se tornasse efetiva. Vamos lá.

Um abraço de amizade

Aníbal Silva