1. Parte VIII dos dias da batalha de Guidaje, de autoria do nosso camarada Daniel Matos (ex-Fur Mil da CCaç 3518, Gadamael, 1972/74), enviado ao nosso Blogue em 6 de Março de 2010:
Os Marados de Gadamael
e os dias da Batalha de Guidaje
Parte VIII
Daniel de Matos
Os Dias da Batalha
24 de Maio
A claridade solar já tinha penetrado pela porta há mais de uma hora e iluminado os degraus de acesso à superfície. À medida que vai acordando, mas sem abandonar a sonolência, o pessoal espreguiça-se. Alguém solta um sonoro traque. Não se ouvem réplicas nem reacções. Lá fora há quem converse constantemente e o furriel Machado, identificando as vozes dos tagarelas, levanta-se e vai acender um cigarro para o pé deles, encostando-se aos bidões de protecção do obus. A noite, – já não era sem tempo! – correu sem sobressaltos, não fomos bombardeados e conseguimos dormir algumas horas seguidas. O furriel Silva e o alferes Igreja tinham ido à messe ver se havia farnel, missão sem êxito, o pequeno-almoço estava atrasado, voltassem a meio da manhã. Continuávamos sem horários certos para as refeições. A cantina dos soldados abria quando calhava e o alerta para o tacho era dado quando alguém aparecia de marmita e colher nas mãos, a anunciar, “pessoal, hoje a salsicha é com bianda”! E água? – perguntei. Para beber sim, bebemos um copo cada um, mas das torneiras não pinga uma gota, – respondeu o Igreja, – as sanitas estão um nojo, nos balneários nem se pode entrar...
O nosso cabo artilheiro vasculha dentro da mala que tem deitada debaixo da cama, saca de um “transístor” do meio da roupa e das cartas, confirma se já está tudo acordado e põe o rádio a tocar. Escutam-se sons de
kora (espécie de harpa mandinga, mas cujo formato é mais parecido com uma viola), depois
ngumbé, ritmo nacional guineense, mas não deve ser tocado pelo grupo Cobiana Djazz, impedido de actuar na UDIB de Bissau e cujo vocalista, – José Carlos Schwartz, o Zeca Afonso da Guiné – estará ainda na prisão de “Djiu di Galinha” – a Ilha das Galinhas, onde se situa a espécie de Tarrafal guineense, o Campo de Trabalho no arquipélago dos Bijagós.
Em meados de 1969 vieram transferidos do Campo de Concentração do Tarrafal (Santiago, Cabo Verde) 58 presos políticos guineenses, colocados nas catacumbas construídas na Ilha das Galinhas. O número de detidos tem vindo a crescer nos últimos anos. Apesar de alguns terem morrido, vítimas de espancamentos, o número de novos presos é consideravelmente superior.
Não sei que raio de língua ou dialecto fala o locutor que entre os temas musicais pronuncia uma algaraviada de coisas esquisitas para os nossos ouvidos. O que escuto na telefonia do artilheiro virá da Emissora Nacional ou de postos de rádio dos países mais próximos (ouvimos com maior ou menor dificuldades emissões de onda média do Senegal, Gâmbia, Mali, Guiné/Conacry, Serra Leoa)?
Quanto a música africana, as emissões nacionais transmitem sons guineenses, de preferência instrumentais. Vocalmente, um ou outro tema do grupo Voz da Guiné. De Cabo Verde, sobretudo Bana e Luís de Morais, e também os angolanos Duo Ouro Negro e Lili Tchiumba. A "Rádio Libertação − A Voz do PAIGC, Força, Luz e Guia do Nosso Povo", tem os seus noticiários e passa músicas muito variadas (cheguei a ouvir música portuguesa que é proibida em Portugal). E há o PFA, umas quantas horas por dia, com espaços que procuram distrair a tropa, mas muito distintos entre si. Por vezes chega a ser imbecilizante um “programa” produzido pelo “casal Primeiro Dias e Senhora Tenente”. Havia de tudo, desde espaços de entretenimento inteligente, com o Armando Carvalheda (nosso artilheiro em Gadamael que, felizmente para ele, viria a “mudar de ramo” e a trocar o obus pelo microfone) – ainda hoje um profissionalão de rádio e uma das vozes mais influentes da RDP/Antena 1, onde é o principal divulgador da música popular portuguesa no seu “palco da rádio”, ao vivo, todas as semanas. Também João Paulo Diniz (que regressado à metrópole passou, penso que a pedido de Otelo, que o conheceria de Bissau, o tema “E Depois do Adeus”, primeiro sinal radiofónico antes da senha “Grândola Vila Morena”. E outros nomes que, de tanto os ouvirmos, ficaram na nossa memória: Faride Magide, julgo que técnico de som que terá estado anos depois em Coimbra, na RDP; e também censores políticos que eram militares, e que faziam os cortes mais absurdos em programas enviados pelas unidades que estavam no mato. Ainda se os cortes fossem originados pela má qualidade do som (eram gravações geralmente efectuadas em cassettes domésticas) compreender-se-ia! Mas não, era censura política pura e dura, às locuções e à música que se incluía nesses programas. Isso sucedeu connosco, gravámos um belo dum programa no meu quarto em Bafatá (meu, e dos furriéis José Alberto Ferreira Durão, mecânico-auto, e Hélder Pereira Calvão, – o nosso “ranger”, isto é, de operações especiais). Quando ouvimos a transmissão do nosso programa “Frequência 3-5-1-8” (participaram também o furriel miliciano de transmissões Domingos Gomes Pinto, o furriel miliciano de minas e armadilhas Ângelo Silva e o furriel miliciano atirador António Guerreiro), no lugar do fado de Coimbra cantado por José Bernardino apareceu uma doce canção d’Os Beatles, o poema “O Rico e o Pobre” (altamente “subversivo”, declamado entusiasticamente pelo homem de transmissões José Elias Gomes de Oliveira), também foi à vida!, saiu tudo alterado, segundo apurámos, por um zeloso guardador do regime, um tal Madeira. E pensar que à testa do PFA estava o capitão miliciano José Manuel Barroso, ligado ao Comércio do Funchal, jornal que, apesar de dar vivas ao marxismo-leninismo-maoismo (para achincalhar a CDE em período dito pré-eleitoral) aparecia nas bancas como sendo de oposição ao regime (o capitão Manuel de Sousa recebia-o algumas vezes e eu permutava com ele o “meu” Notícias da Amadora, O Mundo da Canção e, às vezes, outros recortes de notícias que os meus amigos Acácio Vicente e Fernando Simões me mandavam)…
Embora nesta altura não se registe a presença incómoda de muitos mosquitos, nem as noites se carreguem de frígido cacimbo, pernoitar ao relento não é pêra doce nenhuma. Todavia, o sono só nos verga pelo cansaço. Fumar no escuro é arriscadíssimo (só com mil cuidados para evitar que o morrão do cigarro se veja de longe) e nem uma gota de álcool temos para nos aquecer o corpo e a alma. Resultado: tagarela-se, de preferência baixíssimo, para que ninguém nos oiça para lá do cotovelo seguinte da vala. Uns falam do sonho de um dia chegarem à peluda, dos projectos de vida constantemente adiados; outros de novas recebidas das suas terras (e há quanto tempo se estava sem receber uma carta?); outros ainda contam anedotas avisando previamente os interlocutores que devem rir-se pianinho, para não despertar atenções… Como se sabia que o nosso poiso de origem tinha sido Gadamael, um pára-quedista quis saber se já tínhamos notícias de Guileje. Não tínhamos, claro. Novidades só trazidas de fora! Sem se aperceber que a história ainda desmoralizaria mais qualquer Marado, informou que quartel e aldeia de Guileje tinham sido abandonados e que toda a gente (cerca de duzentos militares e mais de meio milhar de civis) estava agora refugiada em Gadamael, que terá ficado a rebentar pelas costuras!
O pessoal ouve com incredulidade. Será também esta a nossa sorte? Pensando bem, e conhecedores que somos do local, nem nos é difícil imaginar que se Guileje estivesse cercada como nós aqui estamos, pertinho da fronteira, sem a aviação em pleno e com um único acesso ao exterior, o abandono seria lógico e inevitável! Esta opinião é prontamente contraditada por alguém que diz que não senhor, que com ele lá andava tudo no mato a afogar turras ao bochecho. Pois, mas isso é se tiveres água para encher a boca! Em menos de quatro dias, esclareceu o narrador pára-quedista, levaram com três dezenas de bombardeamentos dentro do quartel!
– Chiça, – atalhou um dos soldados madeirenses, – então parece Guidaje! E vejam lá que ainda há pouco mais de um mês haviam feito obras e inaugurado o novo bar do sargentos, que até gira-discos tinha, e agora ficou lá tudo?
25 de Maio
O dia decorre com a tensão do costume. Perguntamo-nos se não estaremos com fome e concluímos que antes o aperto no estômago que o risco de ir à messe e ser surpreendido por um balázio à ida ou à volta. Já perdemos o apetite, esquecemo-nos de comer, as horas e dias passam e nem damos pela necessidade de comer... Quanto alguém está de maré e se deita ao caminho, ao longo da vala que passa mais próxima do refeitório ou da messe, cravamos a esse parceiro um prato, tigela, marmita, o que houver com comida e nos puder transportar trazer com nas mãos, à cabeça, como puder. Cada qual passa a trazer para o abrigo o número de refeições que o vasilhame permitir e dividimos os morfos. Sede? Também já não sentimos, que se lixe a água. Somos novos e o corpo aguenta. Aprendemos a compartilhar, a dividir a bianda, que da última vez apareceu no lugar do esparguete e, em vez da salsicha, os cozinheiros foram desencantar sardinha em lata.
Há quem dialogue sobre as informações prestadas pelo pára-quedista quanto à saída de Guileje, questionando se não será também uma boa “saída” para nós, em… Guidaje. Sim, há que pôr sobre a mesa todas as possibilidades e equacioná-las. Uma tal hipótese teria de ser bem medida, teríamos que avaliar todas as consequências. Até se admite que uma coluna em debandada mais facilmente sairá de Guidaje por terrenos senegaleses do que em direcção a Binta. Sem se pôr de parte a ideia (um miliciano da CCaç 19 alvitra que nesse caso deveríamos entalar o comandante, “encostá-lo à parede” para que também adira), vinga a opinião mais sóbria de que uma solução militar haverá de encontrar-se para nos safarmos. Apesar do estado psicológico (moral em baixo) e dos desaires anteriores, contando os homens que aqui estão sitiados, nenhum de nós quer acreditar que numa operação em força não consigamos mesmo furar as barreiras do PAIGC.
A improbabilidade de se fazerem evacuações de feridos e mortos, o tempo quente e a quantidade de corpos em decomposição (o cheiro que exala da enfermaria é horrível), leva os enfermeiros, que já não conseguem acudir às gangrenas, a derreter velas e a tapar os orifícios dos mortos (nariz, boca, orelhas) com velas de estearina. Os corpos são trancados numa sala afastada da enfermaria propriamente dita, mas o cheiro pestilento escapule-se pelas frestas da porta, pelo buraco aberto pela morteirada no canto da parede… Sem perspectivas de tão depressa haver coluna que possibilite a saída do pessoal e sem restar um único caixão livre nem havendo a mínima possibilidade de o construir de improviso, Correia de Campos fala com os comandantes das unidades respectivas e é decidido enterrar os mortos mais “antigos”, no sítio onde já repousam dois cadáveres, que é no perímetro externo das fiadas de arame farpado, “a 25 metros da caserna do lado sul e na direcção do azimute 112”.
Há pára-quedistas a meter bala na câmara, dá a sensação que se preparam para sair, embora a hora não pareça a mais propícia (se é que ainda existem horas melhores e piores para o efeito). Se eles abalarem, nós vamos atrás, admitimos. Afinal, trata-se dos preparativos para enterrarem os seus três camaradas (abatidos na emboscada de dia 23). São abertas covas no local onde já repousam os soldados Manuel Geraldes (da 2.ª companhia do BCaç 4512/72, que teve morte brutal, a 10 de Maio, também dia de crise e de isolamento locais), e Becute Tungué, do 4.º grupo da 3.ª companhia de comandos (ferido na operação Ametista Real).
São numerosos os pára-quedistas da CCP 121 que vão dirigir um último adeus aos camaradas António Vitoriano, José Lourenço e Manuel Peixoto, ao lado dos quais ficará também o corpo do soldado António Talibó Baio, da CCaç 19. O comandante comparece para dirigir as cerimónias. Atrás dele estão outros graduados, nomeadamente o alferes Luciano Diniz, que por ser madeirense aproveita estes dias para matar saudades da terra e sempre que pode vem tagarelar com os nossos soldados. Os semblantes estão carregados, nem poderiam estar de outra forma. Depois das continências e das palavras de Correia de Campos, os pára-quedistas apontam as armas ao alto e dão três 3 tiros sincopados para o ar. São tiros da cerimónia militar, mas o IN que tem vigilantes sobre as árvores mais próximas da fronteira e controla os nossos movimentos, pensa que o estão a atacar e reage ao fogo, naturalmente que levando o pessoal a abrigar-se. No meio da precipitação o alferes da companhia africana atirou-se mesmo para dentro de uma das campas. O fogacho não dura muito, clarifica-se o equívoco e os corpos são tapados com terra. Só no fim o pessoal se retira, angustiado, alguns temendo ver o seu futuro a passar por aquele espaço nas costas da caserna do lado sul…
Os pára-quedistas e todo o pessoal que assistiu à cerimónia fúnebre regressam aos seus lugares e a circulação volta a ser quase nula. Está um ror de gente dentro do perímetro do quartel e quase não se vê vivalma, tudo enfiado nos buracos. Nem os poucos que restam a morar do lado civil metem o bedelho de fora. Nas moranças residem essencialmente as famílias de militares africanos da CCaç 19. Em geral, são desarranchados, isto é, atravessam a passagem que divide o arame, tipo porta de armas, e vão comer e dormir “a casa”. E habita ali também um par de
djilas, comerciantes da raia guineense que fazem o seu contrabando de produtos, fronteira cá fronteira lá, quando os dias estão bons para o comércio, o que não acontece agora. Costumam falar francês muito bem e ser utilizados como informadores, soa que muitos são agentes duplos que levam e trazem o que os dois lados da contenda querem ouvir. Não faço ideia se tal se passa com os que aqui moram.
Estamos sentados nas camas (dificilmente conseguimos deitar-nos os oito ao mesmo tempo em camas tão apertadas), uns encostados à parede, outros debruçados sobre os joelhos. Fumamos quase todos Português Suave, sem filtro, o “barista” disse que já não há de outra marca. Mas o tabaco ainda não faltou e, se nenhuma bernarda der cabo do
stock, ainda há bastantes pacotes entre as paredes que restam do armazém. Por isso, fuma-se. Que mais se pode fazer? A lâmpada de 25
velas que parece querer desprender-se do casquilho do tecto alumia o abrigo que, a esta hora, parece ter paredes de ardósia. Irradia uma luz que dança consoante o gemer do gerador. Quando a corrente baixa quase se oculta por cima na nuvem de fumo em que estamos. De dia ainda vamos fumar lá para fora, só que de noite poucos se arriscam a transformar-se num alvo luminoso e apetecível. Não me lembro de quantos fumamos ao mesmo tempo nesta cova sem janelas, mas devemos ser muitos. Para já, arrumados como podemos, estamos cá dentro eu, os alferes Igreja e Cruz, os furriéis Monteiro, Machado, Silva e Fernandes e o nosso cabo artilheiro.
Já se dormita quando damos por novo ataque de artilharia. São mais levas de granadas, (serão seis de cada vez?), a estoirarem bem no interior da guarnição. Dá a ideia que os tipos nem se deslocam com o armamento, sabem que não conseguimos desalojá-los e têm os canhões, morteiros e o
carago todos os dias no mesmo sítio, prévia e certeiramente apontados a nós, é só passarem por ali de vez em quando, meter munições e catrapumba! O alferes Diniz e soldado Talibó, ambos da CCaç 19, que estão de passagem, descem os degraus do abrigo e vêm refugiar-se ao pé de nós. Um outro militar africano entra atrás deles, mas a identidade escapa-me. As granadas rebentam cada vez mais perto de nós. Ouço palavrões lá de fora que as mães dos atacantes não gostariam de ouvir. Por instantes, parece que tudo se vai acalmar, mas ainda estamos a respirar fundo e outros silvos anunciam a queda de mais bombarda.
Na sequência duma granada que estrondeou tudo em redor do abrigo, faltou-nos a luz. De dentro do buraco não percebemos se o corte é geral ou se apenas a lâmpada do abrigo, de tão fraquinha que se mostra, foi desta vez que se finou. Os minutos passam e a intensidade do fogo sobe de tom. São maiores e mais assimétricos os rebentamentos. Como no último ataque houve feridos nas valas (um projéctil cair dentro de uma vala de meio metro de largura é uma probabilidade reduzida) há mais pessoal a rastejar por elas em direcção ao obus e a vir abrigar-se junto de nós. Às escuras não os identifico, mas rapidamente percebo pelas vozes que entram o cabo Telo e os soldados Ferreira e Gonçalves, todos da minha companhia. Trazem consigo o cabo Santos, do COMBIS, que veio connosco na operação. Alguns arranjam lugar nas camas de cima e por aí se acomodam. Outros, sem espaço, ficam de pé no pouca área que sobeja entre os degraus e as camas. Nota-se um certo abrandamento no fogo, mas sentimos que os rebentamentos estão muito concentrados à volta do abrigo e cada vez parecem mais próximos.
Há opiniões, que só mais recentemente conheci, de que os postos de artilharia eram os alvos a atingir neste ataque específico do PAIGC, que faria o tiro com observadores avançados, como numa carreira de tiro. Essa tese é sustentada pelo capitão Salgueiro Maia no livro Capitão de Abril – Histórias da Guerra do Ultramar e do 25 de Abril, Editorial Notícias, Novembro de 1997. pág. 64)
É aflitivo estarmos enfiados num buraco sem luz, sem nos vermos uns aos outros e sem controlarmos o que se passa lá fora. Já nas noites anteriores havíamos admitido que um dia destes “eles” viriam atacar-nos ao arame, com armas ligeiras e, de passagem pelo abrigo, bastava atirarem uma granada-de-mão cá para dentro para nos limpar a todos…
Num instante, fez-se um clarão capaz de cegar qualquer um, não sei bem dizer bem o que se passou. Quer dizer, sei, mas há um hiato de tempo em que não me lembro de nada. Uma granada imensa perfura o tecto que tínhamos como muito seguro e provoca o caos. Confesso que não me lembro patavina do estrondo, apenas do clarão. Passado não sei quanto tempo abro os olhos e os meus braços tremem sem que consiga controlar os movimentos. Eu devo ter desmaiado por alguns instantes, nem faço ideia se breves, se longos! Estou sentado ao fundo, na cama de baixo, do lado esquerdo. Oiço gemidos vários. O Igreja grita roucamente “as minhas pernas, ai as minhas ricas perninhas”, apercebendo-se que as tinha num crivo de estilhaços. O Cruz (ferido num pé, viu-se depois que sem gravidade) sobe os degraus para o exterior, parece-me que auxiliando o Monteiro, que dobra uma perna com dificuldade. Também o cabo artilheiro sai, puxado por alguém que lhe estica os braços lá de fora. Vai muito queixoso e parece bastante debilitado. Lá fora o obus dá um disparo, depois outro.
Só bastante mais tarde vim a saber que o soldado Vieira, sem nunca obter formação para tal, recebeu ali mesmo umas dicas do cabo artilheiro e, provavelmente sem a melhor das direcções, agarrou-se ao obus 10,5 e desatou a responder ao fogo inimigo. Foi mandado parar, para evitar o desperdício de munições e porque, entretanto, haviam chegado maqueiros que levaram para a enfermaria os feridos mais graves, nomeadamente o soldado Gonçalves e o furriel Fernandes, cujos ferimentos eram de tal monta que “ninguém já dava nada por eles”…
A meu lado, o Silva desata a rezar a Avé Maria em voz alta e eu, porventura mais assustado do que ele, dou-lhe um valente safanão e imploro-lhe: “cala-te caralho”! Nem sei mesmo (nem ele o saberá) se o sítio das costas em que o empurrei foi o mesmo por onde um estilhaço o tinha perfurado, mas nada de importância. Eu queria ouvir bem o que se passava em redor, sobretudo lá fora. Percebo muito próxima uma respiração irregular, gorgolejante. Guio-me pelo ouvido e concluo que o ruído dos borbotões tem origem no corpo do Machado, que sei estar sentado da mesma coma que eu, na outra ponta. Apalpo-lhe o corpo e trago na mão uma substância quente e pegajosa. Foi atingido no peito e o sangue das feridas entope-lhe a respiração. O som atrofiado apaga-se suavemente e com ele percebo que também o Machado se apaga, atravessado na cama, encostado à parede e pernas de fora, estendidas. Depois, bem, depois acho que me fui outra vez a baixo das canetas, já que não me lembro de ver o Silva sair nem os outros feridos, como o alferes Luciano Diniz, também com as pernas bastante danificadas por estilhaços. Se estivesse acordado certamente teria saído com eles; se estivesse acordado também eles dariam por mim e não me deixariam ali “sozinho”!?
Quando recobro noto um silêncio estranho. Gritos e lamentos que ouvira antes desapareceram em absoluto. E é esse vácuo que me desperta os sentidos, sobretudo o auditivo e o olfactivo. A fumarada, que agora não é provocada pelos cigarros, some-se muito, muito lentamente. Percebo isso ao ver no tecto, no lugar da desaparecida lâmpada de 25
velas, aparecer um círculo baço de céu a querer impor-se à escuridão. É estranho que só neste momento interiorize que fomos atingidos pelo IN (granada de Morteiro 120 mm).
Passo as mãos pela cabeça, pelo rosto, ao longo do camuflado e em todos os lugares dou por mim encharcado. Cheiro as mãos, o odor pastoso do sangue invade-me as narinas e provoca-me um vómito. Penso para comigo que estou ferido. Bem, nada me dói em particular. Também o desenho dos degraus, aos pés da cama, para lá das pernas do Machado parece furar a escuridão. Interrogo-me sobre o que faço aqui e resolvo sair. Ergo-me, tento apoiar-me nos ferros das camas de cima e, de cada vez que pouso as mãos sinto que o faço sobre corpos que nem consigo imaginar a quem pertencem. Antes, nunca imaginei que pudesse haver mais vítimas mortais para além do Machado. Tento dar um passo em frente no estreito “corredor” entre camas e piso um corpo. Alargo o passo e tropeço nas pernas que podem ser do meu amigo ou de outro camarada qualquer. Quem serão estes companheiros? E se algum deles ainda vive? Que maleita poderei causar-lhe, calcando-o e passando-lhe por cima? Desespero e sento-me no mesmo sítio. É curioso que, fumador inveterado desde muito novo, não me lembro de alguma vez não trazer lume comigo. Sempre usei isqueiro mas, dada a dificuldade de arranjar pedras e gasolina no mato compro sempre carteiras de fósforos (de cera, que os de madeira apagam-se mais com o vento). Logo agora, não tenho uma coisa nem outra e não consigo iluminar a saída e zarpar daqui para fora, para o pé dos outros, onde estarão?
Guio-me mais uma vez pelo ouvido. Qualquer coisa frita baixinho a cama à minha frente. Ajoelho-me, estico o braço e apanho o “rádio-banana” (AVP-1) utilizado pelo cabo artilheiro e que a explosão deve ter projectado para ali. Como estava farto de ouvir o nome de código do comandante arrisquei:
– Águia Águia, diga se me ouve, escuto!…
Aí à terceira tentativa irrompe a voz do tenente-coronel a responder. Queixo-me que estou no abrigo do obus, com vários mortos em redor (da existência destes, logicamente, ele já sabe), que está escuro como breu e que preciso de ajuda para sair. Correia de Campos assegura-me que enviará alguém ao abrigo logo que seja possível, pois a barafunda é grande na enfermaria. Aguardo prolongadíssimos minutos e por fim oiço o milagre de duas vozes que se aproximam e passos a descer os degraus do abrigo. Um clarão de lanterna percorre rapidamente o interior:
– Ena como isto está! – exclama um dos homens. Ele vê (e eu também, pela primeira vez), as silhuetas dos camaradas que jazem sobre as camas e no chão.
– Alumia aqui para o fundo! – peço-lhe.
– Olha pá, está aqui um gajo vivo! – exclama o soldado da lanterna.
Ilumina-me, então, a passagem. Alargo o passo para ultrapassar um corpo tombado a meus pés e, logo depois, passar por cima das pernas esticadas do Machado. O espaço entre as camas é exíguo (a minha memória visual aponta para os 40 centímetros) e à passagem raspo o meu ombro num braço que pende da cama superior. O braço, que só deve estar preso ao corpo por umas farripas dum sovaco de dólmen, cai ao chão. O som cavo que provoca só desaparecerá dos meus ouvidos no dia em que a morte também me bata à porta.
O soldado não me deixa ver bem os terrenos que piso, talvez para não me impressionar. Os repentes da lanterna deixam-me identificar os rostos dos meus camaradas Telo e Ferreira e do soldado da CCaç 19 que durante o ataque se refugiou no abrigo com o alferes madeirense. Cá fora, abatido com o que vi, sento-me no chão, no lado interior da cerca de bidões cheios de terra que protegem o obus. Puxo dum cigarro e peço lume ao soldado (europeu, não sei de que unidade) enviado pelo comandante. Acendo o cigarro com o quico a fazer de abat-jour e não sei se alguma vez na vida estive tão triste e angustiado como neste momento. Os dois soldados voltam ao interior do abrigo e um deles sai a correr, para regressar três minutos depois com uma maca e mais um ajudante. Algo os fez desconfiar que o corpo do africano deitado no chão ainda respira, pelo que decidem transportá-lo para a enfermaria, quem sabe? Em vez disso, chamar um enfermeiro não seria a melhor opção, estavam todos sem mãos a medir.
Volto a apalpar nuca, pescoço, peito, tudo o que as mãos alcançam até me certificar se não estou realmente com ferimentos. É “apenas” o sangue dos meus camaradas que me ensopa da cabeça aos pés e isso já é ferida bastante. Deito um derradeiro olhar para dentro do abrigo e retenho a imagem do gravador de Akay virado do avesso, no chão. Sigo atrás da maca até à enfermaria para me inteirar do estado dos evacuados, pois nem sabia ao certo quem sofrera o quê. A azáfama é tanta que me barram o caminho, os enfermeiros não deixam entrar ninguém. Encontro finalmente o Ângelo Silva, abraçamo-nos em lágrimas (confirma-me que levou apenas com um pequeno estilhaço nas costas) e fico a saber por ele do estado dos restantes militares da companhia. O Gonçalves, que dificilmente resistirá a tão profundos ferimentos, é um caso à parte. Dos restantes, a mais complicada é a ocorrência do Igreja, bastante atingido mas felizmente só nas pernas e, informara o sargento enfermeiro, dos joelhos para baixo. O Monteiro tem também um joelho bastante ferido e o Cruz um estilhaço no pé, coisa de pouca monta, o mesmo sucedendo com o nosso cabo de artilharia. O alferes madeirense da companhia africana (Diniz) tem nas pernas ferimentos parecidos com os do Igreja, embora pareça que houve estilhaços que lhe atingiram os ossos. O estado do furriel Fernandes é bastante crítico. Verificamos que o meu corpo (que não a minha mente) terá sido o único a safar-se aos estilhaços…
Por heresia do destino, este é o proclamado Dia de África (também Dia da Libertação de África), por ser a data da fundação da OUA, – Organização da Unidade Africana, fundada a 25 de Maio de 1963, – “para o Mundo celebrar com os africanos, medindo o progresso que este continente faz na comunidade internacional”… Penso que, pela nossa parte, estamos a pagar uma factura pesadíssima para assinalar este 10.º aniversário! Por estes dias, durante a crise de Guidaje (e ainda antes do que viria a passar-se a sul, em Guileje), o comandante-chefe informou o titular da pasta da Defesa, – ministro Silva Cunha, – que “nos aproximamos, cada vez mais, da contingência do colapso militar” e que, “de há uns tempos para cá o PAIGC alcançou uma inesperada supremacia em potencial de guerra”. O homem parece que é bruxo, digo eu, mas anos mais tarde…
26 de Maio
Se já era difícil dormirmos alguma coisa no abrigo, mais difícil foi fechar os olhos nas valas. Passámos mais uma noite em claro, percebemos melhor as queixas dos que já habitavam no “metro” há mais dias, não conseguimos dormitar nem um
cagagésimo de tempo. Quando rompeu o sol vimos que na palmeira pendia não só o cacho de dendém, mas um volume escuro e grosso, cheio de abelhas a entrar e a sair. Não é nada agradável conviver com favos àquela distância. Para já, ninguém se queixa de ter sido picado, talvez o dia se torne mais propício a uma soneca, estendidos no fundo da vala.
No fundo? Logo eu, que ainda em Gadamael ganhei complexos de me atirar para dentro de valas, sobretudo, à noite. Tinha acabado de sair do banho (que se tomava em balneários construídos com bidões, já perto do rio), de chegar ao meu quarto e me enxugar, a única roupa que tinha no corpo era um par de peúgas e nesse instante uma sentinela dispara uma rajada (teria dado por “saídas” de fogo IN e deu assim o alarme de flagelação), e mal tive tempo de agarrar na G3 e correr naquele estado para a vala mais próxima. Agachado, mas positivamente com o rabo de fora, passados instantes pressinto algo no pé. Apesar do lusco-fusco, vislumbro uma senhora cobra a roçar-se nos meus tornozelos, levando-me a esquecer os perigos das bernardas que caíam em redor e a pular para fora, naquela triste figura… Foram os soldados que ali se encontravam que, calçados com botas de lona, a mataram e atiraram para fora da vala. Como os rebentamentos continuaram, tornei ao interior da vala. Foi uma incursão breve, pois duas lombrigonas, filhotes da falecida, andavam no fundo aos pinotes…
Cedo nos confirmam o que já se esperava: a morte do furriel Fernandes. Um pouco mais tarde, sucumbe também devido aos ferimentos o soldado da CCaç 19, António Talibó Baio.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de > 5 de Abril de 2010 >
Guiné 63/74 - P6108: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (7): Os dias da batalha de Guidaje, 22 e 23 de Maio de 1973