terça-feira, 13 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P168: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã (Luís Graça)



Guiné > Zona Leste > Aquartelamento de Mansambo > Refeitório (1)(1973)

Foto gentilmente cedida por Manuel G. Ferreira, ex-soldado condutor auto, da CART 3494 (1972/74), aquartelada no Xime (1972/73) e depois em Mansambo (1973/74), pertencente ao BART 3873 (1972/1974), com sede em Bambadinca.


© Manuel Ferreira (2005) 



A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã 


1.− E no fim quem levou a taça foi o capitão!... Quer-se dizer, mais uns galões, mais graveto ao fim do mês…

− Mas, ó Campanhã, era a vida dele, a carreira dele!  atalhou o ex-alferes Pimentel, transmontano, que nada tinha perdido do seu espírito de subserviência em relação a todas as hierarquias deste mundo.

 E depois nós éramos milicianos, estávamo-nos nas tintas para as divisas e os galões! – atalhei eu, tentando sem jeito deitar água na fervura.

− E, nós, soldados do contingente geral! – ripostou o Campanhã.

 Estávamos todos metidos no mesmo barco, essa é que essa! - opinou o Pimentel.

 
   Mas mesmo assim havia diferenças, carago! No meio daquela merda toda – desculpem lá a expressão! – vocês até eram uns fidalgos: tinham patacão, graveto; tinham messe, bar, bebidas estrangeiras; iam matar a malvada a Bafatá; comiam umas garinas, brancas ou verdianas de vez em quando, em Bissau; vinham de férias, na TAP, à Metrópole…

E lá continuou o reguila do Campanhã a vociferar contra os privilegiados dos tugas que na guerra tinham messe, com direito a comer de garfo e faca e toalha branca na mesa:

 Alguns de vocês, alferes e furriéis (não vale a pena citar nomes) até nem queriam outra vida se não fosse terem de andar com a puta da canhota no mato!... Mais: alguns milicianos que eu conheci, em Bambadinca, nunca tinham ganho um tostão na puta da vida, a não ser a mesada do velho…

 Calma aí e pára o baile, ó Campanhã! Estás a ser injusto, ao fazer generalizações abusivas ! - interrompeu, de chofre, o Pimentel.

− Muitos de nós, furriéis e alferes, já trabalhávamos... - comentei eu, ajudando a cortar o fio à meada do discurso torrencial do Campanhã, a quem os primeiros goles da cerveja da Trindade começava a abrir as goelas da desinibição.

−  Cá o Zé Soldado como eu já era chefe de família e há muito que fossava no duro, antes de ir parar com os quatros costados à Guiné. É bom que não se esqueçam isto, carago!... Quanto ao resto, reconheço que éramos todos tugas e iguais, que elas no mato não traziam código postal!

2. O Campanhã, o nosso soldado Campanhã!... Era com emoção, com alguma emoção, mal disfarçada, que eu voltava a abraçar, ali no Trindade, no Bairro Alto, em Lisboa, dez depois, em 1981, o soldado Campanhã, com o seu inimitável sotaque tripeiro e a franqueza que era timbre da boa gente do Norte.

Tínhamo-nos tornado amigos (ou, talvez melhor, confidentes e cúmplices um do outro, camaradas, no sentido etimológico do termo, já que na tropa não havia amigos, mas apenas gente que partilhava o mesmo chão, a mesma caserna, o mesmo bivaque, o mesmo abrigo, a mesma tenda, o mesmo beliche, a mesma cama, o mesmo buraco) nessa longa noite em que viajáramos juntos, de comboio, do Campo Militar de Santa Margarida (1) até ao cais de embarque, em Lisboa.

Entre dois tragos de bagaço de vinho verde, rasca, o Campanhã fora-me contando a sua vida, os seus sonhos, os seus projectos, a mim, seu confidente de circunstância, vizinho de lugar e companheiro de infortúnio, lucidamente deprimido, à medida que o comboio da CP, requisitado pela tropa, galgava as terras banhadas pelo Tejo, pela calada da noite.

Para lá do Douro, ficava uma infância pobre, uma adolescência truculenta, uma filha de mãe solteira, um futuro incerto de operário do têxtil. Filho de pequenos rendeiros pobres, de Entre Douro e Minho, cedo pegara na trouxa para apanhar o comboio da Linha do Douro e assentar arraiais numa ilha na freguesia de Campanhã, razão de ser da alcunha que lhe deram na tropa.

− Em busca de melhores dias, já que em casa o caldo, a broa e o binho berde tinto, o "jaqué",  mal chegavam para dez bocas.

−  Fome... mesmo, a sério ? - insinuei eu, timidamente, cujo rio mais a Norte que conhecia ero o Vouga...

 Não, meu furriel, você não sabe o que é isso: uma sardinha para três em dia de festa; um bocado de toucinho quando se matava o porco lá pelo Natal; um caldo de água quente, pencas e pão de milho esfarelado para aconchegar o estômago; batatas com batatas, quando as havia… Castamhas, na época delas...Mas um homem habitua-se a tudo... Fome, fome, não. Digamos que passei necessidades...

E no Porto, na sua Campanhã, ainda popular e operária, faria entretanto a sua "universidade da vida": marçano, barbeiro, trolha, futebolista, empregado de café, chulo de puta fina – “azeiteiro, como se diz na minha terra”… até descobrir o duro caminho que o levaria aos portões da fábrica.

 Cães grandes ?!... Aprendi a tirar-lhes o chapéu e a cuspir-lhes na sombra desde o dia em que, descalço, mas já com pêlo na venta, acompanhava o meu velho  na visita anual à Casa do Fidalgo, pelo São Miguel, para acertar a renda: dois terços do vinho, metade do milho, a melhor fruta para a senhora, a viúva de um juiz salazarista que tinha mais quintas na zona do que dedos na mão…

Falava do seu velho pai, com ternura contida e com o respeito comovido que lhe mereciam os mortos de que a História não fala. Tinha falecido em Fevereiro de 1969, nas vésperas da ordem da sua mobilização para a Guiné.

 As alegrias passam, meu furriel. Só as desgraças e as injustiças nunca se perdoam e nem se esquecem. As tainadas, as bezanas, tudo isso a gente caga e mija... Veja o meu falecido pai. Trabalhou uma vida inteira como uma besta de carga para morrer pobre como Job, sem um cantinho a que chamasse seu, como qualquer cabaneiro. Sem saber uma letra. Sem nunca ter ido sequer à Foz a ver o mar… Conheceu muitos fidalgos, como ele chamava aos senhorios ou patrões… Sempre o conheci de chapéu na mão, agradecendo a suas senhorias o grandessíssimo favor de continuar na terra por mais um ano, depois do São Miguel… Viveu uma vida emprestada, viveu por favor... É isso que me revolta, carago. E é por isso que me chamam reguila… Mas eu digo-lhe: há coisas que um homem nunca esquece por muitos tombos que dê na puta da vida, por muitas bezanas que apanhe ou por muitas sacanices que faça… E eu já fiz muita merda, nesta meia dúzia de anos em que me tornei homem.

Curiosamente, verificava ali no Trindade, dez anos depois de "tudo ter acabado em bem", como dizia o safado do Pimentel, que nenhum de nós se desculpava por feito aquela guerra e muito menos de a ter perdido. Para alguns de nós, por ventura para a maior parte de nós, tugas, agora despidos, desfardados, paisanos, passados à peluda, nus de corpo e alma como no dia em que fomos à inspecção, alcunhados de antigos combatentes do ultramar, últimos guerreiros do império colonial português, mal amados 
−  "mas vivinhos da costa como o carapau, graças a Deus!" (era a voz efeminada do Peniche, o básico, que sempre acabara por ir parar à vida artística da noite)  , tinha sido afinal a primeira e a última grande aventura das nossas vidas cinzentas, um rito de passagem, uma iniciação (entre dolorosa e divertida) à vida adulta. Uma espécie de acidente de percurso. Um pesadelo climatizado. Uma trovoada fantasmagórica numa bela noite de verão tropical. Um abcesso. Um furúnculo. Uma dor de dentes...

   Um parto, meu furriel, um parto!  arrematava o Peniche, no meio da galhofa geral.

Talvez, eu, ingénuo, esperasse ouvir a confissão pública de alguém que, agora, à distância dos acontecimentos e na atmosfera distendida do Trindade, quisesse tomar partido e se levantasse para fazer um discurso puro e duro sobre a traição dos capitães de Abril, do Spínola, do Caetano e de todos os gajos que andaram a gozar connosco. Ou então sobre o trágico equívoco que fora a guerra colonial, ceifando vidas, gastando cabedais, hipotecando o futuro. Mas não, nenhum dos presentes levantara a caneca para gritar Viva ou Morra !...

É que todos fazíamos o jogo da cumplicidade, jogo cujas regras tacitamente ninguém estava disposto a violar. Porque o momento era único, era mágico, e todos sabíamos que nunca mais voltaria a repetir-se, apesar das trocas de cartões e de fotos da família e das promessas de, para o ano, irmos comer uma valente feijoada à transmontana e provar a famosa posta mirandesa, para lá do Marão "onde mandam os que lá estão" (assegurava o Pimentel, "agora autarca do poder local democrático").

 Nunca lá pus os butes, e bibo no Porto, carago
    ironizou o Campanhã que continuava, a miúde, a trocar os vês pelos bês, sentindo que ainda lhe achavam alguma graça, os gajos do Sul.

No fundo, sabíamos que, na vida, há momentos irrepetíveis, pelo que nem os fantasmas, dolorosos, do passado, nem as paixões, ainda mornas, do presente, nem muito menos as inquietações, impercetíveis, do futuro deveriam perturbar este insólito e fugaz encontro de meia dúzia de ex-combatentes da Guiné, mesmo quando, já no fim do jantar e depois de uma nova rodada de uísques (de uma Old Parr que o vago-mestre trouxera de lembrança, "from Sctoland to the Portuguese Armed Forces"), alguém tivera o mau gosto (ou o azar) de evocar os mortos da companhia...

 Agora é que foderam tudo! – arrematou o Campanhã.

Nunca conheci nenhuma alma tão sensível como a dele. Ou melhor: nenhum ator, com lágrima tão fácil como a dele... 

Fonte: (Pre)texto: “Na Guiné, longe do Vietname” (inédito). © Luís Graça (1981-2005)(2)

Revisto: 24/11/2022
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 24 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXX: A cerimónia de despedida no Campo Militar de Santa Margarida

(2) Nenhum destes heróis foi condecorado, muito menos o Campanhã (que antes de ir parar à Guiné levou uma porrada, sendo despromovido do posto de cabo atirador de infantaria). Felizmente que nenhum deles foi condecorado no 10 de Junho, a título póstumo. Também nenhum destes heróis existiu. Nem poderiam existir: afinal, perdemos a guerra. Em todo o caso, qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.

Guiné 63/74 - P167: Tabanca Grande: Luís Moreira, Alf. Mil. Sapador, CCS/ BART 2917


© Luís Moreira (2005)

1. Mensagem enviada pelo Luís Moreira ao David Guimarães, com data de 11 de Setembro de 2005:

Caro camarada ex-combatente:

Pela mão do Belmiro Vaqueiro, que conheço há muitos anos mas que só há pouco tempo soube que também ele esteve na Guiné nos mesmos locais que percorremos, tive acesso ao site do Luís Graça e a felicidade de rever fotos de locais que muito me dizem e de alguns camaradas do meu Batalhão, no qual te incluis assim como o Padre Poim, o Quaresma, o Cap. Espinha de Almeida, o Alf. Soares e outros a quem a memória já não me ajuda a recordar.

Estive em Bambadinca na CCS [do BART 2917] e sou o ex-alferes sapador Luís Moreira que fui ao ar com uma mina anti-carro no reordenamento dos Nhabijões (espero não estar a errar no nome).

Na sequência desse acidente passei aos serviços auxiliares e fui colocado no Batalhão de Engenharia, em Bissau, até ao fim da minha comissão que terminou já depois de vocês terem regressado e que fez com que eu hoje faça parte do grupo dos DFA [Deficientes das Forças Armadas].

Infelizmente não me recordo do nome da maioria dos camaradas com quem convivi, talvez devido ao traumatismo craneano que sofri na sequência do acidente. No entanto gostaria de recordar e contactar com o maior número de camaradas para tentar reconstituir esse período de quase um ano que passei em Bambadinca.

Tenho algumas fotos que vou retirar da "arca" onde têm estado depositadas todos estes anos, e que depois enviarei. Ainda recordo o nome dos alferes Machado e Guerreiro, da CCS, e tenho bem presente a figura do alferes mecânico, mas já não lhe recordo o nome. Outra figura ímpar que recordo com saudade é a do alferes Vacas de Carvalho, das Daimler, e da sua viola que nos animava os serões.

Fico a aguardar notícias e possíveis contactos.

Um abraço, Luís Moreira.


2. Mensagem do David Guimarães, com data de ontem:


Olá, Luís Moreira. Se pelo nome já não me lembrava de ti, já o facto de seres o Alferes Sapador da CCS do BART 2917 da CCC me diz muito mais. Efectivamente o tempo passa e os nomes também. Hoje resta-nos a imagem que tínhamos na altura : eramos uns miúdios, todos muito novinhos....

Eu estive na CART 2716 do Xitole, comandada pelo Cap Mil Espinha de Almeida... Os Alferes eram o Soares, o Correia, o Sampaio e o Coutinho que foi substituir o Ferreirinha (que se tinha ferido na instrução ainda na Pesada 2, isso te lembrarás possivelmente). Se do Coutinho não tiveres a imagem, é natural que tenhas a do Ferreirinha que foi desmobilizado do nosso Batalhão (mais tarde parece que foi num BART para Moçambique)...

Guiné > Zona Leste > Xitole > CART 2716 >1970: Da esquerda para a direita: O Cap Mil Espinha de Almeida, o Fur Mil Guimarães e o Alf Mil Soares.

© David J. Guimarães (2005).

Os Furriéis desta CART 2716 eram o Rei, o Augusto, o Quaresma, o Leones, o Santos, o Martins, o Ribeiro, o Ferreira e eu, o Guimarães, todos natiradores. Depois havia ainda o Meirinho, o enfermeiro; o Cabete, o mecânico; o Marques, Vago-Mestre e o Henriques, de armas pesadas. Estes eram os quadros da CART 2716...

No nossa página sobre o Xitole podes ver a minha figura de então - eu também era daqueles que tinha numa mão a espingarda e noutra mão a Viola... Avivarás a memória... Creio que um dia foste tu que me levaste ao [Major] Anjos de Carvalho para me apresentar: estavas de oficial de dia.

Já da malta da CCS, de Bambadinca, o tempo me fez esquecer os nomes. Mas, como Alferes Sapador, deves lembrar-te do Furriel Rebelo, também sapador, do Vinagre, o mecânico... O Machado é daqui de Riba D'Ave. Digo daqui, do Norte e perto relativamente de onde vivo (eu moro em Espinho). Guerreiro, só hoje mo lembraste... Do Vacas de Carvalho, sim, com a sua viola, e que o Machado também acompanhava...

Claro que a CCS enquadrava o Comando: Tenente Coronel Magalhães Filipe , que foi substituído pelo Tenente Coronel Polidoro Monteiro (cuja figura já aqui evoquei, neste blogue); Major Anjos de Carvalho, 2º Comandante; Major Barros e Bastos, major de operações; e o Cap Passos Marques, comandante de Companhia. Depois vocês todos...

No Xime [CART 2715], e de nome, lembro-me do [Furriel] Cunha (morto em combate) [vd. post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970) ], do Furriel Carias, do Baptista ... Outros nomes já não me ocorrem. Lembro-me do Alferes Torres, esse de Mansambo. Enfim, a memória esvai-se porque já lá passa muito tempo...
Quero contudo apresentar-te ao ex-Furriel Henriques, da CCAÇ 12, e que tem um blogue importante onde estamos a colocar a nossa guerra toda. Creio que ele esteve envolvido nesse acidente de que tu saíste muito maltratado...

Mando este mail com conhecimento a ele e vamos continuar a nossa guerra, reconstituindo as nossas memórias, o que só nos fará bem...

Um abraço, Guimarães (ex-Furr Mil da CART 2717, a companhia do Capitão Espinha de Almeida).

Luís Graça: mando-te aí um alferes que conheceste pela certa - um abraço, David Guimarães.

3. O meu comentário:

Amigos & camaradas de tertúlia:

Façam o favor de se acomodar e arranjar espaço, na nossa camarata, para mais um camarada da Guiné. Ele chegou aqui por mão do Belmiro Vaqueiro e do David Guimarães. Era alferes sapador da CCS do BART 2917 (1970/72), sedeado em Bambadinca.

E, espantosamente, é o mesmo que foi vítima do rebentamento da mina a/c, accionada às 11.25h, do dia 13 de Janeiro de 1971, pela viatura Unimog 411, conduzido pelo nosso (da CCAÇ 12) soldado Soares que ia buscar, a Bambadinca, a 2ª refeição, para o pessoal destacado no reordenamento de Nhabijões…

O Soares teve morte imediata, tendo ficado gravemente feridos um oficial (o Luís Moreira) e um soldado da CCS/BART 2917, mais o nosso (desta tertúlia) Jaquim Fernandes, furriel miliciano da CCAÇ 12...

Eu, pessoalmente, nunca mais esqueci essa data fatídica de 13 de Janeiro de 1971... Porque logo a seguir fui eu, mais o Furriel Mil. Marques e o nosso grupo de combate, em socorro das vítimas, que fomos cair noutra mina anticarro, no mesmo sítio, à entrada do reordenamento de Nahbijões...

É claro que a malta da CCAÇ 12 se lembra dele, Luís Moreira: estou a referir-me ao Tony Levezinho, ao Joaquim Fernandes e ao Humberto Reis, além do blogador, que fazem parte desta tertúlia…

Por sua vez, o Luís Moreira lembra-se de amigos comuns, que conviviam com a malta da CCAÇ 12 (a velhice de Bambadinca, partir de meados de 1970, com a rendição do BCAÇ 2852 pelo BART 2917), tais como o Alferes Machado (de Riba D’Ave) ou o Alferes Vacas de Carvalho... Lembra-se do Furriel Cunha, do Xime, que morreu na operação em que participámos (Op Abencerragem Candente, em 26 de Novembro de 1970)...

Em suma, o Luís Moreira está em casa e é bem vindo. Entra, camarada. Temos muito que conversar.

Luís Graça (ex-furriel miliciano Henrqiues, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).


PS – Luís Moreira: Aqui vai o endereço de e-mail do Joaquim Fernandes que ia contigo no Unimog e que hoje mora no Barreiro (haveremos de voltar a esta trágica estória de Nhabijões). Se assim o entenderes, manda-nos uma foito tua, antiga e actual, que é para gente te pôr na fotogaleria.

segunda-feira, 12 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P166: No "reino do Nino": Catió, Cacine, Gadamael, Guileje (1970) (João Tunes)


Brazão actual de Catió, vila da Guiné-Bissau
Fonte: International Civic Heraldry (por sugetsão do nosso tertuliano Jorge Santos)

Texto de João Tunes (que, em 1970, era alferes miliciano de transmissões na CCS do Batalhão sedeado em Catió):

O Afonso Sousa, a quem agradeço a saudação de amizade (com o exagero do tamanho da efusão de um abraço camarada) pergunta-me sobre a localização de Ganjola (onde terá estado o José António, soldado da Lourinhã e justamente evocado) e enumera uma data de nomes de tabancas da zona Sul.

Ora, em 1970, quando estive em Catió (e esse Batalhão comandava todas as unidades no Sul até à fronteira da Guiné-Conacry) todos os pontos assinalados (que evoco por mera ressonância de memória) estavam no mapa das NT assinalados como pontos a bombardear (por aviação e artilharia) ou para sofrerem golpes de mão de forças especiais.

Porque tudo isso estava sob absoluto controlo militar e populacional do "Reino do Nino" (Frente Sul do PAIGC, comandada por Nino Vieira). As nossas únicas posições, e com dispositivos meramente defensivos e de apoio a operações especiais, já só eram: Catió (comando do Batalhão), Cacine, Gadamael e Guileje.

Por natureza das minhas funções militares eu, pelo menos uma vez por mês, tinha de dar a volta a todos os Quartéis do Sul e o único meio de comunicação entre qualquer combinação de dois quartéis era apenas por via aérea. Ou seja, os quartéis enumerados eram ilhas NT (únicas) no meio de território libertado pelo PAIGC. E todas as unidades resistiam numa postura defensiva e de sobrevivência (todos os quartéis eram sistematicamente flagelados pela artilharia do PAIGC) e a capacidade operacional (mais evidente em Gadamael em que se dispunha de uma unidade de blindados ligeiros que permitiam um certo raio de acção) era garantir a sobrevivência da presença militar e as populações sob controle, funcionando ainda como ponto de apoio e retaguarda de operações de golpes de mão e emboscada a realizar por paras, fuzas e comandos.

Os dramas em 1973 de Guileje e Gadamael foram como que a prova do "algodão" (não enganaram - faltando o apoio aéreo, toda a zona passou a ser de defesa e sobrevivência impossíveis, sobrando a opção racional da debandada ou a irracional do martírio). Assim, o quartel (destacamento) a que se refere o José António na sua carta ao "Alvorada" de 1965 (Ganjolá, confirmando-se que era cerca de Catió) (1), a que se seguiu a sua morte, terá sido depois ocupado pelo PAIGC (desculpem lá, NT ainda consigo usar mas essa do IN é que não me passa pelo estreito) e portanto constava já no meu tempo (1970) não de território com bandeira portuguesa hasteada mas sim do "Reino do Nino".

Abraços do
João Tunes
___________

Nota de L.G.:

(1) O nosso post de 8 de Setembro de 2005 (Guiné 63/74 - CLXXXI: Antologia (18): Um domingo no mato, em Ganjolá ) foi gentilmente reproduzido no sítio do João Tunes - Água Lisa (3) -, em post de 9 de Setembro de 2005, com o seguinte comentário que ajuda a contextualizar e a compreender o conteúdo da carta, escrita pelo soldado Nogueira, destacado (e provavelmente morto) em Ganjolá (1965):

"Esta carta tem quarenta anos. Foi uma das últimas enviadas pelo Soldado nº 2955/63 antes de se encontrar com a morte na terra da Guiné-Bissau. Foi publicada no quinzenário regionalista Alvorada da Lourinhã. Reveladora da forma muito própria como os soldados do exército colonial português, de uma forma geral, sentiam a atmosfera da guerra e procuravam conservar o optimismo e a auto-estima. Embora se notem os cuidados sublimados na sua redacção por ser uma carta dirigida a um jornal da época, portanto sabendo que existiam os crivos da polícia e da censura, e referindo-se a um teatro de guerra que só se agravou dramaticamente mais tarde, a candura épica do povo fardado está ali entranhada e que é um dos muitos factores que ajudam a explicar como foi possível que, no fascismo-colonialismo português e durante treze anos, centenas de milhares de cidadãos portugueses aceitassem lutar e morrer, procurando matar e sobreviver, para prolongar o pesadelo da quimera de uma demência imperial.

"Texto e imagem obtidos no blogue do Luís Graça".

Guiné 63/74 - P165: Alpoím Calvão e Amílcar Cabral (Marques Lopes)

Texto do A. Marques Lopes:

Caros amigos:

Estou completamente de acordo que o principal é contarmos as nossas experiências pessoais. Isso é um contributo importante e fundamental para conhecermos a totalidade do que foi a nossa experiência colectiva durante a guerra colonial, nomeadamente na Guiné. A visão que cada um de nós teve foi a do real e do concreto, experimentada no terreno. Na altura, foi aquilo que vivemos, foi aquilo que vimos, foi os sentimentos que experimetámos com o que nos tocou directamente.

Para alguns certamente, mas para a generalidade não houve tempo para reflectir, era o imediato que exigia acção, não reflexão sobre as razões da acção. Daí que eu pense que, decorridos tantos anos, a reflexão já feita, a que tivemos tempo e condições para fazer, nos possa dar já uma outra visão, não subordinada ao ter que disparar para não morrer, ao ter que matar para poder viver.

É pois natural que, perante certas opiniões e experiências, possamos já dar outras opiniões fundamentadas no nosso sentimento íntimo, construído na realidade vivida, naquilo que soubemos e viemos a saber depois. O esclarecimento depende desta troca de opiniões.

Permitam-me, então, que faça algumas considerações sobtre a entrevista de Alpoim Calvão de que só agora tomei conhecimento e que está, em minha opinião e usando a bela expressão do novo membro da nossa tertúlia (de acordo com a entrada dele!), pintada e filtrada de um só côr.

Não sei onde é que Alpoim Calvão foi buscar o "Congresso do PAIGC de 1969, em Conakry". É que, são dados históricos, o PAIGC realizou dois congressos antes da independência da Guiné: o primeiro realizou-se, de 13 a 17 de Fevereiro de 1964, em Cassacá, a cerca de 3km a SW de Catió, durante a chamada Batalha de Como, liderada por Nino Vieira; o segundo realiza-se a 18 de Julho de 1973 em Madina do Boé, seis meses depois do assassinato de Amilcar Cabral e dois meses antes da declaração unilateral da independência. Como pode ele ter documentos de um congresso que não existiu?... Estranho, pelo menos e com boa vontade.

Sobre quem o mandou matar, já o próprio Amilcar Cabral tinha adivinhado quem seria, num documento que distribuíu aos quadros do PAIGC em Março de 1972 (in "Guiné-Bissau - Nação Africana Forjada na Luta", de Amilcar Cabral, editado por Maria Natália Teixeira Lopes, em Lisboa, 1974, pp 123-125):

"O objectivo principal do inimigo é destruir o nosso Partido, porque em África e em todo o mundo o seu prestígio e o prestígio dos seus principais dirigentes estão no auge.

"Ele está convencido de que a prisão ou a morte do principal dirigente significaria o fim do Partido e da nossa luta.

"Por isso mesmo, o objectivo real dos portugueses na sua tentativa de invasão da República da Guiné (Conakry), em 22 de Novembro de 1970, era o assassinato do secretário geral do Partido e a destruição da base na retaguarda da revolução constituída pelo regime de Sékou Touré.

"Numa palavra, destruir o Partido agindo no seu interior.

"O plano inimigo far-se-á em três fases:

"Primeira fase:

"Actualmente, muitos compatriotas abandonam Bissau e outros centros urbanos para se juntarem às nossas fileiras. Nesta ocasião, o general Spínola espera poder introduzir agentes (antigos ou novos membros do Partido) nas nossas fileiras.

"A sua tarefa: estudar as fraquezas do nosso Partido e tentar provocações apoiando-se no racismo, no tribalismo, opondo os muçulmanos aos não-muçulmanos, etc.

"Segunda fase:

"1. Criar uma rede clandestina (penetrando, por exemplo, no Partido e nas forças armadas);

"2. Criar uma direcção paralela, se possível com um ou dois agentes e alguns dirigentes actuais do Partido (de entre os descontentes);

"3. Desacreditar o secretário geral, para preparar a sua eliminação no quadro do Partido ou, se a necessidade o impuser, pela sua liquidação física;

"4. Preparar a nova direcção clandestina para fazer dela o verdadeiro organismo dirigente do P. A. I. G. C.;

"5. Paralelamente, lançar uma grande ofensiva para aterrorizar as populações dos territórios libertados.

"Terceira fase:

"a. No caso de falhar a segunda fase, tentar um golpe contra a direcção do Partido, fazendo assassinar o seu secretário geral;

"b. Formar uma nova direcção baseada no racismo e opondo guineenses e caboverdianos, utilizando o tribalismo e a religião (muçulmanos contra não-muçulmanos).

"c. Impedir a luta no interior do país, liquidar os que permanecem fiéis à linha do Partido;

"d. Entrar em contacto com o governo português. Falsa negociação, autonomia interna, criação de um govemo-fantoche na Guiné-Bissau que seria designada Estado da Guiné e faria parte da comunidade portuguesa;

"e. Postos importantes estão prometidos pelo general Spínola a todos os que executaram o plano.

"Conclusão — Devemos reforçar a nossa vigilância para desmascarar e eliminar os agentes do inimigo, para defender o Partido e encorajar a luta armada Assim poderemos frustrar todos os planos criminosos dos colonialistas portugueses.

"O inimigo tentou corromper os nossos homens, mas a esmagadora maioria dos responsáveis contactados não aceitou vender-se, comportaram-se como dignos militantes do nosso Partido e contribuíram mesmo para castigar severamente os portugueses que tentavam comprá-los, como foi o caso dos quatro oficiais, próximos colaboradores de Spínola, liquidados no norte do país.» [os negritos são meus, M.L.]

Alpoim Calvão sabe muito bem que, na luta "anti-subversiva" ou "contra-revolucionária", há um objectivo importante que pode ser decisivo na evolução dessa luta: a eliminação ou aniquilamento da cabeça pensante da subversão e da revolução, do elemento congregador das vontades nesse objectivo.

Para não ir mais longe, em Portugal prenderam os comunistas e outros subversivos, tentando evitar o inevitável: o progresso da história e do sentimento de liberdade dos povos. Desde muito, pelo menos desde 1967, a organização policial portuguesa PIDE/DGS procurava matar Cabral. Alguns guerrilheiros prisioneiros foram manobrados para colaborarem com a polícia política. Ficou provado em relação a alguns dos intervenientes no atentado. Tudo leva a crer que, em medida ainda desconhecida, a PIDE não foi alheia a toda a trama. Já o conseguira com Edward Mondlane.

Na obra atrás citada vem também a intervenção feita por Amilcar Cabral perante a IV Comissão da Assembleia Geral das Nações Unidas (XXVII Sessão) em Outubro de 1972:

«Sr. Presidente, submetemos à apreciação da O. N. U., por intermédio desta Comissão, as seguintes propostas, baseadas na realidade concreta da vida do nosso povo e em tudo o que dissemos:

"1. Diligências junto do governo português a fim de que sejam imediatamente abertas negociações entre os representantes desse governo e o nosso Partido. Propomos que essas negociações tenham como base de trabalho a pesquisa das vias e dos meios mais adequados e mais eficazes para o acesso imediato do nosso povo à independência. No caso de o governo de Portugal responder favoravelmente a tal diligência, poderíamos encarar, ao mesmo tempo, como tomar em consideração os interesses de Portugal no nosso país.

"2. Aceitação dos delegados do nosso Partido, com a capacidade de membros associados ou de observadores, em todos os organismos especializados da O. N. U., como únicos e legítimos representantes do nosso povo, como acontece já em relação à Comissão Económica para a África (C. E. A.)

"3. Desenvolvimento de um auxílio concreto desses organismos especializados, especialmente da U.N.E.S.C.O., da U.N.I.C.E.F., da O.M.S. e da F.A.O., ao nosso povo, no quadro da reconstrução nacional do nosso país.

"4. Apoio da O. N. U., moral e político, a todas as iniciativas que o nosso povo e o nosso Partido decidam empreender para acelerar o fim da guerra colonial portuguesa e a independência da nossa nação africana, para que essa possa em breve ocupar o lugar que lhe é devido por direito no seio da Comunidade Internacional.

"Na perspectiva de estas propostas serem seriamente consideradas, lançamos um veemente apelo a todos os Estados membros da O. N. U., em particular aos aliados de Portugal, aos países da América Latina, e muito especialmente ao Brasil, para que compreendam a nossa posição e dêem o seu apoio às aspirações legítimas do nosso povo africano à liberdade, à independência e ao progresso a que tem direito.»[osnegritos são meus, M.L.]

Em 27 de Outubro de 1971, numa entrevista concedida à revista Anticolonislismo, disse Amilcar Cabral:

«Como sabe, nós temos uma longa caminhada juntamente com o povo de Portugal. Não foi decidido por nós, não foi decidido pelo povo português, foi decidido pelas circunstâncias históricas do tempo da Europa das descobertas e pela classe dirigente portuguesa de antanho, como se diz em português antigo; mas é verdade, é isso! Há essa realidade concreta! Eu estou aqui falando português como qualquer outro português, e infelizmente melhor que centenas de milhares de portugueses que o Estado português tem deixado na ignorância e na miséria.

"Nós marchamos juntos e, além disso, no nosso povo, seja em Cabo Verde, seja na Guiné, existe toda uma ligação de sangue, não só de história mas também de sangue, e fundamentalmente de cultura, com o povo de Portugal. Quando falei há bocado sobre a nossa cultura não tive necessidade de lembrar que essa nossa cultura também está influenciada pela cultura portuguesa e nós estamos prontos a aceitar todo o aspecto positivo da cultura dos outros. Nós, em princípio, o nosso problema não é de nos desligarmos do povo português. Se porventura em Portugal houvesse um regime que estivesse disposto a construir não só o futuro e o bem estar do povo de Portugal mas também o nosso, mas em pé de absoluta igualdade, quer dizer que o Presidente da República pudesse ser tanto de Cabo Verde, da Guiné, como de Portugal, etc., que todas as funções estatais, administrativas, etc., fossem igualmente possíveis para toda a gente, nós não veríamos nenhuma necessidade de estar a fazer a luta pela independência, porque já seríamos independentes num quadro humano muito mais largo e talvezmuito mais eficaz do ponto de vista da história. Mas infelizmente, como sabem, a coisa não é essa: o colonialismo português explorou o nosso povo da maneira mais bárbara e criminosa e quando reclamamos o direito de ser gente, nós mesmos, de sermos homens, parte da humanidade, e de termos a nossa própria personalidade, a resposta é a repressão com a guerra colonial.

"Mas nós nunca confundimos colonialismo português com povo de Portugal e temos feito tudo, na medida das nossas possibilidades, para preservar, apesar dos crimes cometidos pelos colonialistas portugueses, as possibilidades duma cooperação, de amizade, de solidariedade e de colaboração eficaz com o povo de Portugal, numa base de independência, de igualdade de direitos e de reciprocidade de vantagens, seja para o progresso da nossa terra, seja para o progresso do povo português.

"O povo português está submetido há cerca já quase de meio século a um regime que, pelas suas características, não pode deixar de ser chamado fascista.

"A nossa luta é contra o colonialismo português. Nós somos povos africanos, ou um povo africano, lutando contra o colonialismo português, contra a dominação colonial portuguesa, mas não deixamos de ver a ligação que existe entre a luta antifascista e a luta anticolonialista. Nós estamos absolutamente convencidos de que se em Portugal se instalasse amanhã um governo que não fosse fascista, mas fosse democrático, progressista, reconhecedor do direito dos povos à autodeterminação e à independência, a nossa luta não teria razão de ser. Aí está a ligação íntima que pode existir entre a nossa luta e a luta antifascista em Portugal; mas também, vice-versa, estamos absolutamente convencidos de que na medida em que os povos das colónias portuguesas avance com a sua luta e se libertem totalmente da dominação colonial portuguesa estarão contribuindo duma maneira muito eficaz para a liquidação do regime fascista em Portugal. E cremos mesmo que até hoje, embora nenhum dos países esteja completamente independente, o que já fizemos nas nossas terras tem contribuído, e claro que também a ajuda dos próprios fascistas-colonialistas portugueses, a mostrar ao povo português claramente que o caminho da luta é o único caminho que poderá libertá-lo da dominação e da opressão a que está sujeito. Nós queremos entretanto exprimir claramente o seguinte: nós não confundimos a nossa luta, na nossa terra, com a luta do povo português; estão ligadas, mas nós, no interesse do nosso povo, combatemos contra o colonialismo português. Liquidar o fascismo em Portugal, se ele não se liquidar pela liquidação do colonialismo, isso é função dos próprios portugueses patriotas, que cada dia estão mais conscientes da necessidade de desenvolver a sua luta e de servir o melhor possível o seu povo."

E o que dizia o Governo por essas alturas? Já não vou buscar o Salazar, pois o seu pensamento era demasiado claro e evidente em matéria de Ultramar. Quando começaram a soprar os chamados "ventos da História", isto é, quando o Terceiro Mundo começou a tornar-se independente, as colónias passaram a chamar-se "províncias ultramarinas", porque a palavra colónias começou a ter uma carga muito pejorativa. Os grandes impérios abriram mão dos seus domínios políticos, mas não económicos, e deram a independência aos países que até aí dominavam. Mas Salazer continuou a mesma política, continuando na contramão da História, porque julgou que podia vencer pela força, que era a única coisa que não tínhamos. Veio Marcelo e criou os "Estados Ultramarinos", mas seguindo a mesma política. Vamos ao marcelismo ver como é que a sua "abertura" e a revisão constitucional de 1971 encarava os criados "Estados" do Ultramar.

Marcelo Caetano ao jornal L'Aurore, em 7 de Abril de 1971:

«Os terroristas pretendem que ocupam dois terços do nosso território ginéu... (...)Na verdade o tipo de guerra que temos de enfrentar corresponde a uma série de pequenas infiltrações, efectuadas no nosso território por comandos vindos do estrangeiro, armados e treinados pelo estrangeiro. É uma guerra subversiva que nos fazem e nós sabemos como responder... Na Guiné, repito, eles atacam as populações, incendeiam as aldeias e, depois, retiram-se. É a isto, é a estas breves operações, limitadas no espaço e no tempo, que se chama a ocupação de dois terços do território da Guiné."

E, mais à frente, quando lhe perguntaram sobre o alargamento da autonomia às províncias de África:

"Trata-se de desenvolver a autonomia financeira das províncias e, por outro lado, de aumentar os seus poderes legislativos. É assim uma reforma interna que de modo algum atenta contra o conjunto formado pelo Ultramar e pela Metrópole, conjunto que continuará rigorosamnte indivisível."

Marcelo Caetano, numa entrevista à BBC em 12 de Julho de 1973, quando lhe perguntaram se pensava dar a independência aos territórios ultramarinos:

«São perguntas que não podem ser feitas a uma pessoa que não é um autocrata. Eu não tenho a possibilidade de, por mim, dar ou não dar. A independência é uma solução que só os povos podem resolver [curioso!]. Não pode ser dada por um político.»

Marcelo Caetano, citado pelo jornal O Século, de 18 de Março de 1974, disse ao semanário Le Point que «nunca negociará com os adversários de Portugal, aqueles que, pagos por potências estrangeiras, sustentam uma luta de guerrilhas, inútil e cruel».

Rui Patrício ao Jornal do Brasil, de 16 de Março de 1974: «A autonomia dos Estados e das províncias ultramarinas é já extremamente ampla e, na prática, superior à de muitps Estados membros de certas federações... aquela autonomia abrange a faculdade de legislar, através de órgãos próprios sobre todas as matérias de interesse local e de aprovar orçamentos e planos de desenvolvimento próprios de cada território. É isto que corresponde às aspirações dos portugueses de África assim como aos seus desejos de manter a unidade nacional...»

Não me parece, pois, que Amilcar Cabral quizesse a guerra pela guerra, mas quereria, sim, uma solução que o governo de Lisboa não queria. Mas nem esta Salazar queria. Efectivamente, nunca houve vontade de se sentarem à mesa com os movimentos de libertação e discutir uma solução. Tudo tinha de caminhar, pois, no sentido do fim da guerra com a vitória dos contestatários, mais tarde ou mais cedo, de acordo com o curso da História. Nem Salazar nem Caetano tiveram esta percepção que evitaria os milhares de mortos? Acho que tiveram, mas, por interesse político, fingiram que não viram. Foi a forma de se manterem no poder. E era uma guerra votada ao fracasso. A única maneira de termos evitado a derrota seria termos feito um pacto com as populações e com os movimentos de libertação. Mas é claríssimo que nunca houve vontade do regime em dar esse passo.

Racista o Amilcar Cabral, casado com a branca Maria Helena de Athayde Vilhena Rodrigues, sua colega no Instituto de Agronomia com quem viria a ter duas filhas? Não me parece, nem é essa a opinião dos que o conheceram no Instituto de Agronomia, à Ajuda. Por dizer que "dar um tiro num portuga numa emboscada é um acto político de primeira grandeza"? Que andámos nós a fazer senão dar tiros nos turras, alguns a ganhar medalhas e louvores por isso mesmo? Por racismo? Eu dei muitos tiros em emboscadas e nunca foi por racismo. Foi para cumprir a missão que me tinham, mal ou bem, dado e para sobreviver. A acção política deles vingou e a minha não. Eles estariam mais certos da sua razão do que eu (é verdade, sempre tive dúvidas).

É para rir que um militar de carreira possa dizer uma coisa destas. Qual é o papel de quem anda em guerra, de um lado ou do outro, não é disparar e matar o outro? E não tem nada de racismo, evidentemente. Os meus jagudis fizeram emboscadas contra os da sua côr sem racismo nenhum. Foi um acto político, sem consciência política, tenho a certeza. Se Cabral de facto disse isso no tal congresso que não existiu (...) foi para transmitir consciência política aos guerrilheiros do PAIGC, tal como nos quizeram transmitir consciência política para que matássemos os turras quando nos falaram do "património nacional" e da "defesa da civilização ocidental"... Essa do Alpoim Calvão é muito primária. A que chamará ele às imagens que envio (1) ? Precalços de uma "sociedade multirracial" que viu a superioridade dos brancos ameaçada pelos nharros ou contingências de uma guerra sem razão?

Todos os homens têm o direito de defenderem livremente os seus pontos de vista, mas devem fazê-lo de forma honesta e correcta, sem albergar ódios no coração, sem desvirtuar e falsear os fundamentos reais das questões. Não me parece que Alpoim Calvão tenha feito isso nesta entrevista.

A. Marques Lopes
___

(1) Imagens que, por enquanto, só circulam dentro da tertúlia. L.G.

Guiné 63/74 - P164: Tabanca Grande: João Tunes: Do Pelundo e do Canchungo ao Catió...

1. Amigos & camaradas da Tertúlia dos ex-combatentes da Guiné:

Aqui vai, para vosso conhecimento, um pedido de adesão à nossa tertúlia. O João Tunes não precisa de apresentação. Ainda há pouco publicámos aqui um texto dele, com a evocação, emocionada, da memória dos três bravos majores e seus amigos (Osório, Pereira da Silva e Passos Ramos) que foram executados, pelo PAIGC, no chão manjanco (vd. post de 11 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLIX: Antologia (15): Lembranças do chão manjaco: Do Pelundo ao Canchungo...

Permitam-me recordar o que deles escreveu João Tunes, no final do post: "No 25 de Abril de 1974, senti uma enorme frustação por não os abraçar nas ruas de Lisboa e, em vez disso, ter de ver o focinho patibular de Spínola na Televisão a presidir à Junta de Salvação. Resta-me a memória de Teixeira Pinto. Perdão, de Canchungo".

Não conheço pessoalmente o João Tunes. E ainda não respondi à sua mensagem, amável e solidária. É claro que a ele, como a qualquer outro antigo combatente da guerra da Guiné, cabe-lhe o pleno direito de se juntar a nós... Além disso, é um conhecido blogador, o que muito nos honra. De qualquer modo, gostava também de conhecer opinião dos restantes membros da tertúlia... Um abraço. Luís

2. Mensagem de João Tunes com data de 9 de Setembro de 2005:

Assunto: COM ÁGUA LISA

Caro camarada(*) Luís Graça,

Ando há tempos para lhe escrever mas a netcabo faz-me, volta e meia, negaças. O objecto principal é agradecer-lhe a sua simpática transcrição de um meu post sobre a morte dos "três majores" na guerra da Guiné. Depois, felicitá-lo pelo seu blogue e por alimentar e dinamizar a "Tertúlia" (a que gostaria de me vir a juntar).

Entretanto, tive o grato conhecimento de que o Luís tinha chegado à fala com o académico guineense Leopoldo Amado que tenho o prazer de conhecer pessoalmente e contar com a sua amizade. Por mera coincidência no fio da conversa, verificámos, eu e o Leopoldo, que tínhamos sido "vizinhos" em Catió no ano de 1970 - eu, armado em alferes (miliciano!) de transmissões da tropa colonial e ele um dos muitos miúdos guineenses que viviam na tabanca sob protecção das NT. É excelente pessoa e um homem cultíssimo, despreconceituado relativamente ao passado da guerra e alguém que pode ajudar na catarse histórica daquele encontro de povos com metralha, com benefícios para portugueses e guinéus mas sem que a memória tenha de ser pintada de qualquer cor e muito menos filtrada.

Informo que publiquei recentemente dois posts sobre a Guiné, um sobre Nino & Amílcar Cabral e outro sobre um romance recentemente editado e que resulta de uma experiência na guerra da Guiné. Claro que gostaria de ter, sobre estes posts, a sua opinião de entendido e erudito.

Uma continência. Mais um abraço do

João Tunes
http://agualisa3.blogs.sapo.pt  
___________

(*) entenda-se o termo no seu significado castrense

3. Comentários do pessoal da tertúlia:

Afonso M.F. Sousa:

"O João Tunes andou lá para os lados de Catió ! Será que ele não terá pormenores da
tal Ganjola (Ou Dabenche) ? Localidades próximas: Gansona (Chungue), Cufar, Ganjola Nalu, Ganjola Porto.

"O João Tunes é uma aquisição imperdível ! Isto só prova que o blogue já está a despertar a atenção de alguns vultos".

domingo, 11 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P163: O que faremos desta tertúlia ? (Luís Graça)

1. O Guimarães escreveu-me, de regresso de férias, e pediu-me, a mim (e, indirectamente, ao resto da tertúlia), para falarmos mais dos acontecimentos que vivemos e dos lugares e das gentes que conhecemos em vez de pormos os outros a falar por nós, a opinar sobre a guerra, as causas e as consequência políticas da guerra, a especular sobre a (in)evitabilidade da guerra, etc., por muito respeitáveis e autorizadas que sejam as opiniões dos actores e espectadores desta guerra (que, reconheça-se, foi terrível para todos)… Em suma, e em linguagem de caserna, mais factos e menos bitaites, mais trabalho e menos bocas...

Eu acho que o Guimarães é um homem sábio…

Post scriptum 1 - Isto não quer dizer que não respeitemos as opiniões uns dos outros, incluindo as preferências político-ideológicas de cada um. E que não possamos também discutir os aspectos políticos e históricos da guerra, o seu contexto nacional e internacional, etc. Afinal os nossos pequenos contributos têm a pretensão de ser subsídios para a história da guerra colonial (ou do ultramar, como queiram).

Sempre que se justifica, podemos mandar documentos ou excertos de documentos, importantes mas pouco conhecidos, para a secção "antologia" (que já tem 18 posts, o penúltimo dos quais uma entrevista, muita controversa, de Alpoím Galvão à Agência Lusa em finais de 2004) (vd. post de 7 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - P168: Antologia (17): Alpoim Galvão: Guerra era evitável)

Mas temos que ser criteriosos e críticos. Não vamos divulgar sistematicamente tudo aquilo que os outros dizem ou escrevem noutros sítios só por que se refere à à Guiné-Bissau de hoje ou à guerra da Guiné de ontem... Temos que ser (ou tentar ser) originais... E sobretudo modestos: afinal, cada um de nós sabe apenas um pouco do que lá se passou. E conhece um pouco da região por onde andou...

Eu, confesso, todos os dias estou a aprender… com todos vós! Com o Marques Lopes fui a Geba e a Barro, com o Carlos Fortunato andei por Bigene, com o Guimarões conheci melhor o Xitole, com o Sousa de Castro recordei o Xime e Mansambo, com o Humberto Reis voltei a Bissau, Bafatá e Bambadinca, com o Américo Marques fui ao Gabu aonde nunca tinha ido (nem muito menos ouvido falar de Cansissé)... Pela minha parte, muito obrigado. Luís Graça

Post scriptum 2 - Façamos o que quisermos desta tertúlia, desde que todos ganhemos com isso, o que implica, no mínimo, a garantia de pluralismo de opiniões e de liberdade de expressão...

2. Sobre este assunto, aqui fica um primeiro comentário do Sousa de Castro (9 de Setembro de 2005):

Caros amigos da tertúlia, o que o Guimarães escreveu merece-me o seguinte comentário: Concordo que temos de ser originais, mas isso é para os escritores e ficcionistas. Sobre o que nós vivemos lá, creio que já foi tudo mais ou menos dito e não vale a pena sermos repetitivos.

O que eu acho é que qualquer de nós possui textos ou documentos sobre a realidade da Guiné a ganhar pó, escritos por outros que muitos de nós não conhecemos. Quem aceder ao blogue tem oportunidade de conhecer factos reais, contados muitas vezes pelo próprio interveniente. Por exemplo: Uma estória do ex-paraquedista Carlos Fernandes, nascido em 1949 no antigo edifício dos bombeiros da Parede, em Lisboa, que diz ter pertencido ao grupo "Os Vingadores", liderado pelo Marcelino da Mata e terá escoltado muitas vezes o General Spínola e o seu guarda-costas ao Senegal.

Todas as segundas feiras, segundo o Carlos Fernandes, o general Spínola ia ao Senegal "informar Senghor das nossas operações. Depois Senghor transmitia todas as informações ao PAIGC. Muitas das nossas operações falharam porque eles não estavam lá quando chegávamos ao local", critica o ex-soldado paraquedista Carlos Fernandes.

São estas coisas que também me interessam. Para além das nossas estórias do que lá passámos, temos também obrigação de contar aquilo que cada um de nós achava daquela guerra. Para muitos, como o Carlos Fernandes, aquela guerra na Guiné era uma farsa. Ele vai até mais longe afirmando que "Spínola estava feito com pessoal do PAIGC".

Portanto, a guerra na Guiné, e não só, não é a que consta dos relatórios que se faziam diariamente para o QG [Quartel General]. Para além disso, devo dizer que o blogue não é meu nem opino sobre o que se publica no blogue. Se o Graça achar que é de interesse geral publicar depoimentos feitos pelos outros [fora da nossa tertúlia], está à vontade, pelo menos quem tiver oportunidade de aceder ao blogue ficará a conhecer algumas coisas muito interessantes, mesmo discordando do conteúdo de alguns pontos de vista. Um abraço para todos.

2. Comentário, off-record, do responsável do blogue (Luís Graça):

Caro Castro: Não me sinto propriamente "dono" do Blogue-fora-nada. Nem queria que tu ou outros ex-camaradas da Guiné me tratassem como tal. Se quiseres, sou apenas o animador e o responsável editorial do blogue. É, claro, tenho alguns privilégios de que, prometo, não procurarei abusar: por exemplo, o que de decidir o que é publicável ou não é; o de editar os textos (posts ou postagens, como dizem os brasileiros); o de corrigir uma ou outra frase mais mal amanhada... De qualquer modo, por razões técnicas e logísticas, alguém teria que fazer este papel, que é ingrato, que consome tempo mas que eu considero de interesse público. Oq ue decididamente nunca farei é infuenciar o conteúdo ou a orientação das intervenções: reservo-me apenas de decidir, por razões de economia de espaço e de revelância para o conhecimento da guerra de que fomos actores (e não apenas simples figuarantes), da inserção (ou não, na íntegra ou em parte) de documentos não originais, já publicados.

Quando nasceu, num espaço emprestado (os meus agradecimentos à Blogger), estava longe de imaginar que a guerra colonial na Guiné passasse a deter o recorde dos posts publicados e que a nossa tertúlia (para quem abri, entusiastica, generosa e solidariamemnte, o espaço da minha página pessoal na Net, Saúde e Trabalho)tivesse o relativo sucesso que teve: cerca de três dezenas de amigos & camaradas podem comunicar uns com os outros, por e-mail, bem como pelo blogue e pela nossa página na Net que,aliás, tem como título o seguinte: Luís Graça & Camaradas > Subsídios para a História da Guerra Colonial > Guiné (1963/74).

Já agora permite-me meter a foice em seara alheia: não conheço esse depoimento do Carlos Fernandes nem sei se valerá a pena publicá-lo... Permite-me uma primeira reacção, muito franca: essa estória é delirante, faz-me lembrar as fofoquices da criadagem em relação ao que se passa na alcova da raínha... Essa acusação ao Spínola é gravíssima. Se isso tivesse algum fundamento, seria crime de alta traição... Ora eu tenho o Spínola na conta de grande cabo de guerra e de patriota. Para mais está morto e nós temos que ter algum pudor, qaundo evocmaos os nossos mortos, os ilustres e os menos ilustres. Spíonola, quer se gsote ou não, faz já parte da nossa história, tal outros figuras que marcaram o nosso Séc. XX. E na Guiné euq, que o conheci pessoalmente, respeitava-o, como meu comandante-chefe, muito embora não simpatizasse nada com a sua figura prussiana...

3. Comentário do David Guimarães, na mesma data, à mensagem do Sousa de Castro (comentário privado que o Sousa de Castro retransmitiu ao resto da tertúlia e que eu acho que é de interesse editorial, daí o divulgar aqui):

Amigo Sousa de Castro: isso que diz, desculpe mas não é verdade. Todos nós, os da tertúlia, tivemos grandes combates e ainda pouco foi dito sobre a matéria. Quem contou sobre nós foram outros porque nós lhes contámos. E eles, sim, fizeram ficção e até mentiram... Nós contamos a realidade, não ficcionamos.

(...) Quanto ao que eu escrevi a Luís Graça, efectivamente o Sousa de Castro nem sabe, embora ele lhe possa passar o texto na íntegra: não o lancei para a tertúlia porque poderia ferir suceptibiliaddes. Mas, repare, quantas batalhas e emboscadas teremos nós que contar e que aconteceram, de facto, para que tudo seja dito ?

Pela estima que lhe tenho não me diga isso, que já está quase tudo dito. Pelo contrário, está tudo muito pouco contado. Não em interessa somente os que morreram no Xime ou Xitole, aqui ou ali. Interessa, sim, também, os momentos bons e maus que vivemos nos dois anos que lá passámos...

O que eu disse, e reafirmo, é que não nos devemos envolver em análises políticas sobre a época, isso sim é para os historiadores. Devemos continuar a contar os nossos episódios e você terá muitos, possívelmente, para contar. Mas os outros também o têm e todos assim faremos uma história inédita sobre aquele ou aqueles sectores onde estivemos e combatemos.

Creio que ninguém aqui anda a ficcionar, andamos a contar o que sucedeu...Documentos como estes que aqui vão aparecendo, poucos os têm e muitos gostariam de os ter ou de ler.

Esta é a minha opinião. E desculpe a minha intervenção (...).

Um abraço, Guimarães.

4. Resposta do Sousa de Castro à intervenção do Guimarães:

Amigo Guimarães: Todos nós temos opiniões diferentes de ver as coisas e respeito todas as correntes de opinião, mas o que muita gente não sabe é que se disse e escreveu muitas coisas sobre a guerra colonial, em geral, que não correspondem à realidade e escreveu-se muitas coisas conforme mais convinha aos senhores da guerra.

Algumas coisas copiei de artigos assinados. Alguns deles são contados na primeira pessoa, logo por homens que também estiveram no terreno. Pode ser que alguma dessas pessoas tenha oportunidade de descobrir o Blogue-fora-nada e assim possa rebater o que se tem publicado e contar outras histórias, mais reais e verdadeiras do que aquelas que estão publicadas em livro (que muitas vezes distorce a verdade sobre as coisas).

No meu tempo havia boatos alarmistas, notícias que não são sabíamos se eram falsas ou verdadeiras... Lembro-me de, num jornal de caserna de então, quando Guilege ou Guidage (já não me lembro bem qual a localidade)foi atacada pelo PAIGC em 1973 e em que tivemos vinte e tantos mortos, dizia-se que parte da mortandade fora levada a cabo pela nossa aviação por ordem do Spínola para evitar que os homens do PAIGC levassem para o outro lado da fronteira os nossos homens como prisioneiros e diverso material. Era isto o que se comentava em Mansambo em 1973. Bem, falta-nos provas para saber se corresponde à verdade.

Um abraço,
Sousa de Castro.

sexta-feira, 9 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P162: Onde fica(va) Ganjolá ? (Luís Graça / Afonso Sousa)

1. A propósito do post anterior - Guiné 63/74 - P161: Antologia (18): Um domingo no mato, em Ganjolá -, em que lancei um pedido de ajuda para uma correcta localização do sítio, o Afonso M. F. Sousa veio de imediato em meu socorro, dando-me as coordenadas de Ganjolá (onde estava destacado o Nogueira, meu conterrâneo e parente, morto em combate em combate nos finais de Janeiro de 1965).

Já observei e conclui, por outras vezes, que o Afonso é o melhor pisteiro do grupo, um verdadeiro guia, um apaixonado pelas coisas e gentes da Guiné e um conhecedor ou um estudioso da sua geografia, o que para um homem de transmissões é de se lhe tirar o chapéu.... Eu, confesso, sempre tive um péssimo sentido de orientação. Devia ter andado nos escoteiros, quando djubi, mas não andei, e agora é tarde...


Pois, meus amigos, Gandojá - diz o nosso camarada Afonso Sousa, socorrendo-se da página sobre a Guiné-Bissau de um portal geográfico alemão que me parece muito bom, fica a 5,6 km de Catió e a 7,5 de Cufar, no sul da Guiné,, perto de Ganjolá Porto e de Ganjolá Nalu.

Localização de Ganjola (ou Dabenche), a 1,6 Km de Gansona
Fonte: Multimap (2005) & Afonso M.F. Sousa (2005)

As coordenadas correctas são 015°15' W 11°19' N. Pelas minhas contas, o sítio fica por cima de Catió. Outras localidades próximas, que constam da carta da Guiné, dos serviços cartográficos do Exército Português (1961), disponível on line, numa das nossas páginas: Priame (5,7 km)e Cantone (7,4 km), além de Catió e de Cufar, já acima referidas...

Não conheço a região de Catió, mas pelo nosso mapa parece-me um emaranhado de rios, ilhas e ilhéus... E é lá que fica a famosa Ilha do Como, a sul. O que a gente aprende uns com os outros!


2. O Afonso mandou-me, logo a seguir, um segundo e-mail dando mais pormenores: "Ganjola (ou Dabenche) fica a 1,6 Km de Gansona, não longe, como se pode ver no mapa, de Cabolol Balanta, antigo refúgio de Nino Vieira, antes de integrar o PAIGC".

Sítios mais próximos de Gansonà ou Chungue: Rio Camerreu (1.9 km); Rio Cantolom (1.9 km); Ganjola ou Dabenche (1.6 km); Rio Catiebam (2.5 km); Dimbissile (2.5 km); Rio de Ganjola (2.5 km); Cadonga (2.5 km); Rio Cangula (2.5 km); Ganjola Porto (2.5 km); Cachanga (2.5 km); Cabaco (3.7 km)...


3. O que diz o Centro de Documentação 25 de Abri sobre Nino Vieira. Nesta breve nota biográfica não há referência ao episódio de Cabobol Balanta aonde Nino se terá refugiado, antes de passar à clandestinidade como militante do PAIGC (enfim, esta história está mal contada, e eu não conheço nenhum biografia, nem oficial nem crítica, do senhor).

"João Bernardo Vieira, conhecido por Nino ou Nino Vieira, é o exemplo mais marcante do guerrilheiro que se transformou em lenda viva.

"Nasceu em Bissau, em 1939, e pertenceu ao primeiro grupo de militantes do PAIGC que frequentou a Academia Militar de Pequim, na China, logo em 1960. No regresso à Guiné dedicou-se à organização militar da guerrilha no Sul do território. Em 1964, durante a grande Operação Tridente, em que as forças portuguesas reocuparam a ilha de Como, numa acção que durou 60 dias, Nino era já, com apenas 25 anos, o comandante militar da zona sul, que abrangia a região de Catió até à fronteira com a Guiné-Conacri.

"Será quase sempre no Sul que Nino actuará, transformando esta zona, que abrangia o Cantanhez e o Quitafine, num dos mais duros, senão o mais duro, de todos os teatros de operações em que as forças portuguesas estiveram empenhadas e do qual ainda restam nomes míticos de Guileje, que ele veio a ocupar em 1973, Gadamael, Gandembel, Cacine, Catió, Cufar, Cadique, Bedanda e tantos outros.

"Além da indesmentível coragem, Nino teve também pelo seu lado a sorte que faz os heróis sobreviverem, e foi essa sorte que lhe permitiu escapar por várias vezes a emboscadas montadas pelas forças portuguesas, sendo o caso mais conhecido o da Operação Jove, em que foi feito prisioneiro o capitão cubano Pedro Peralta.

"Embora se tenha dedicado principalmente à actividade militar, como comandante de unidades de guerrilheiros, Nino Vieira ocupou os mais altos cargos na estrutura do PAIGC, sendo membro eleito do bureau político do seu Comité Central desde 1964, vice-presidente do Conselho de Guerra presidido por Amílcar Cabral em 1965, acumulando com o comando da Frente Sul, e ainda comandante militar de operações, a nível nacional, a partir de 1970. Em 1973, foi eleito deputado e, posteriormente, presidente da Assembleia Nacional Popular, que proclamou a República da Guiné-Bissau, em 24 de Setembro de 1973".

quinta-feira, 8 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P161: Antologia (18): Um domingo no mato, em Ganjolá (Luís Graça)

1. Já aqui referi o nome do lourinhanense e meu parente José António Canoa Nogueira, que morreu na Guiné em 1965: vd. post de 24 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXV: Homenagem aos mortos da minha terra (Lourinhã, 2005). E na altura recordei a notícia do seu funeral que eu próprio escrevi, na minha qualidade de responsável da redacção do quinzenário regionalista Alvorada. Tinha eu então 18 anos.

Há dias repesquei essa notícia e dei conta que o jornal tinha publicado também a última ou uma das últimas cartas que o Nogueira terá escrito, antes de morrer em combate no sul da Guiné. Ele estava destacado em Ganjolá, sítio que ainda não consegui localizar correctamente no mapa. Há uma Ganjolá Porto e uma Ganjolá Nalu, entre Emapaf e Bedanda, na região sudoeste da Guiné. Não sei se o destacamento de Ganjolá fica perto destas povoações. Também não sei a que companhia pertencia o Nogueira.

Um facto, desconhecido e insólito para mim, mas ao tempo revelador da grande solidariedade dos portugas: na época os restos mortais dos nossos soldados não eram embarcados para a Metrópole, a expensas do Estado. No caso do Nogueira, foram os seus camaradas que se quotizaram para pagar, do seu bolso, o transporte por via marítima da urna... Aliás, entre a morte em Ganjola e o funeral na Lourinhã passaram cerca de três meses e meio...

Fica aqui a minha homenagem a esses bravos anónimos de Ganjolá. E mais uma vez aqui deixo também a saudosa recordação do meu conterrâneo e parente, reproduzindo uma notícia que já tem 40 anos e uma das suas cartas, relatando um pacato domingo no mato!


2. Alvorada. (Lourinhã). 23 de Maio de 1965 : Os restos mortais do José António jazem finalmente na sua Terra Natal.

Depois de transportados da Guiné para a Metrópole a expensas dos seus companheiros de campanha que lhe votavam particular estima e amizade, os restos mortais do soldado José António Canoa Nogueira repousam finalmente no cemitério da sua terra natal.

O funeral, realizado no segundo domingo do corrente, constituiu uma homenagem pública à memória daquele de cuja presença e convívio a morte irremediavelmente nos separou, e um testemunho de apreço pelo sacrifício da sua vida. Nele se incorporaram, além da multidão anónima e inumerável, o sr. Presidente do Conselho, outras autoridades civis e militares e os Bombeiros Voluntários.

À chegada do auto-fúnebre militar, com a urna, os clarins dos Soldados da Paz tocaram a silêncio. E o préstito atravessou a Vila, sob uma impressionante atmosfera de recolhimento e dor.

Antes da urna ser depositada no jazigo, os Bombeiros tocaram a continência, num último adeus e derradeiro tributo de homenagem ao Soldado e Jovem Lourinhanense.

3. Uma carta dirigida ao Alvorada

O jornal publicou uma carta, datada de 10 de Janeiro, endereçada ao Alvorada, que o jornal não chegou a receber, mas que foi entregue pelo seu pai. E onde se revela “a alma simples e transparente do José António, e da sua sensibilidade fina, delicada, capaz de descobrir motivos de beleza numa bandeira que flutua perdida no mato ou numa improvisada e fraterna refeição de campanha. Tinha razão o filósofo e ensaísta brasileiro Tristão de Ataíde quando disse: “No fundo de cada homem dorme um poeta desconhecido.

"Por ser , pois, a última ou uma das últimas cartas que escreveu para a Metrópole, e um apontamento breve mas sugestivo de expedicionário, aqui a publicamos"- acrescentava a notícia do jornal da terra.


Um domingo no mato
Aqui, Ganjolá, Guiné, 10-1-1965

Mesmo no sul da Guiné, pequeno destacamento militar presta continência à Bandeira Verde-Rubra que sobre o mastro fica brilhando ao sol. E que linda que é a nossa bandeira; e é tão alegre, tão garrida, só olhá-la nos faz sentir alegria e também emoção; alegria de sermos portugueses e emoção por estarmos cá longe para a defender. Embora assim perdida no mato, a bandeira, brilhando, afirma que aqui também é Portugal.

Em volta, meia dúzia de barracas verdes, o nosso aquartelamento, a única nota de civilização nesta imensa planície. Muito ao longe, quase perdidas no mato e no capim, algumas palhotas indígenas; de resto, tudo é solidão. Somos soldados de Infantaria e por isso o nosso trabalho é fazer operações em qualquer parte do mato.

Aqui não há escolas e as igrejas não têm paredes; o tecto é o céu. Em toda a parte se reza e tudo nos incita à oração. Deus está em toda a parte e ouve-nos.

Hoje é domingo, dia de descanso, não se trabalha, mas distracções também não há. Alguns vão à pesca ou à caça; outros, deitados debaixo das enormes árvores, dormem e pensam nas suas terras e famílias distantes, mas pertinho do coração. Como são diferentes aqui os divertimentos nos domingos.

Dois soldados vão todos os dias à caça; por isso, fome não há. Temos carne com abundância, mas falta tanta coisa!... Ei-los que chegam com tenros cabritos e gazelas e logo enorme fogueira crepita alegremente. Esfolam-se os animais e lava-se a carne; a água não falta, embora para se beber seja preciso enorme cuidado. Prepara-se um espeto para se assar a carne. Espalha-se então o cheiro da carne assada pelo pequeno acampamento. Está a refeição preparada; troncos de árvores, caixotes vazios, servem de mesa e de cadeiras.

Todos se servem. A refeição é pouco variada: apenas carne assada e pão. O vinho também é pouco, mas dividido irmãmente dá para todos; que bem que sabe uma pinguita com este almoço!...

Bebi-se mais mas não há, paciência… O improvisado cozinheiro faz enormes quantidades de café. Todos enchemos os copos de alumínio e bebemos alegremente. Acaba a refeição; por fim, alguns macacos, meio domesticados, que por aqui andam, aproximam-se e reclamam a sua parte.

É assim um domingo no mato. Depois de explanar esta ideia, termino. Despeço-me com o mais ardente desejo de a todos vós abraçar brevemente, fazendo preces ao Senhor para que tenhais saúde e boa sorte. Vosso amigo que respeitosamente se subscreve, todo vosso.

José António Canoa Nogueira.
Soldado nº 2955/63
SPM 2058.

quarta-feira, 7 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P160: Teixeira Pinto ou Canchungo ? (Afonso Sousa / Marques Lopes)

1. Texto do Afonso M.F. Sousa:

Hoje existem duas localidades Canchungo e ambas na região do Cacheu. Uma delas corresponde à antiga Teixeira Pinto (população 100% manjaca, chão manjaco, população 9.000 habitantes, num raio de 7 Km (*). Altitude 25m. De Canchungo a Pelundo: 9,4 Km

A outra Canchungo localiza-se mais a Norte (margem direita do Rio Cacheu), junto à fronteira com o Senegal (10.900 habitantes - num raio de 7 Km). Altitude 17m.

Afinal descubro agora [através do Travelpost.com] que existem três localidades "Canchungo" e uma "Canchungozinho".
_____

(*) Só na vila: à volta de 6.300 pessoas.


2. Texto do A. Marques Lopes:

É tendência nossa, quando nos referimos a Teixeira Pinto, dizer "agora Canchungo". Descobri, recentemente, que estaria mais certo dizermos "novamente Canchungo".

Fonte: Carreira (1947).

É que o nome daquela terra da Guiné chamou-se Canchungo desde os tempos mais remotos. Assim é referida em alguns livros em meu poder quando narram as campanhas do capitão João Teixeira Pinto de 1912 a 1915. Nomeadamente em "A Guiné Através da História", da autoria do Coronel Leite de Magalhães, publicado pela Editorial Cosmos com o nº 34 da sua colecção Cadernos Coloniais (sem indicação de data de publicação), e em "História da Guiné - Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936", de René Pélissier, publicado pela Editorial Estampa em 1997 (dois volumes).

A imagem que vos envio é retirada de um mapa inserto no livro "Vida Social dos Manjacos", de António Carreira, editado pelo Centro de Estudos da Guiné Portuguesa em 1947. António Carreira foi, nessa altura, administrador da circunscrição de Cacheu, à qual pertencia a povoação de Canchungo.

Mais tarde, ainda não descobri quando, é que foi dado a Canchungo o nome do "pacificador" Teixeira Pinto (que acabou por morrer no combate de Negonamo, em Moçambique, quando continuava a "pacificar").

Os guineenses, natural e logicamente, baniram o nome de Teixeira Pinto e repuseram o nome original da povoação.

Marques Lopes

Guiné 63/74 - P159: Tabanca Grande: Leopoldo Amado, guinense, historiador, novo membro da nossa tertúlia

1. Mensagem enviada a 21 de Agosto de 2005:

Caro Luís Graça: Gostaria de louvá-lo vivamente pelo trabalho que vem desenvolvendo de há um tempo a esta parte sobre a guerra colonial: Guiné. Não o conheço pessoalmente, mas algo diz-me que que também é meu compatriota, ou seja, que é guineense de alguma forma, como aliás todos os guineenses.

Sou historiador guineense, vivo em Lisboa e estou justamente a fechar uma tese sobre a guerra colonial versus guerra de libertação (o caso da Guiné), ou seja, a mesma realidade vista dos sois lados: do Exército português e Portugal, por um lado, e doutro, as FARP e o PAIGC.

Assim, gostaria de manter contacto contactos consigo e, porque não, trocar imenso material, na medida em que, não obstante estar já na fase final da tese, ando a investigar este assunto há pelo menos 7 anos, 3 dos quais para o livro que escrevi para o ex-Presidente Aristides Pereira (um livro que versa mais o aspecto político da guerra da Guiné) e 4 anos dedicados a minha tese (que versa mais os aspectos militares dos contendores.

Para mim, e para a Guiné-Bissau, é sumamente importante a compreensão dos contornos desta guerra, até para que a imprescindível catarse tenha lugar e possa curar as feridas que abriu (e são elas tantas!), pelo que proponho que me aceitem no vosso grupo de tertúlia, caso acharem que a minha presença não iria de alguma forma perturbar, na medida em que [sou] tão somente um estudioso do assunto e bem tão pouco participei na guerra, senão ouvindo os tiros de um o outro lado, que me deixavam borrado de medo (ainda era uma criança) (...).

Leopoldo Amado


2. A minha resposta seguiu só hoje:

Caríssimo Leopoldo:

Fui com alegria que, ao chegar de férias, vi na minha caixa do correio a sua mensagem. Começo por dizer-lhe que as suas palavras me sensibilizaram. De facto, eu e a generalidade dos meus camaradas, ex-combatentes da guerra colonial (ou do Ultramar, como outros preferem dizer), que vivemos quase dois anos das nossas vidas na Guiné, sentimo-nos guineenses e nada do que se lá passou (e até do que se lá passa hoje) nos é indiferente. É impossível não amar a Guiné e o povo guineense. E nessa medida todos somos guineenses, de alma e coração… A história aproximou-nos e afastou-nos. O nosso modesto contributo, através dos nossos escritos na Net, visam de algum modo manter e se possível fortalecer os laços (que são sobretudo culturais e afectivos…) que nos unem às gentes da Guiné.

Leopoldo: O seu nome e alguns dos seus escritos já não nos eram desconhecidos. Fico entusiasmado ao saber que tem um longo trabalho de investigação sobre os aspectos políticos e militares da guerra colonial na Guiné, e que está é está a ultimar uma tese sobre este tópico. O que é ainda mais interessante (e inédito) é a sua dupla abordagem da guerra, vista pelos dois lados. Além disso, você era djubi nesse tempo (tal como o nosso amigo de tertúlia o José Carlos Mussá Biai, natural do Xime) e, como criança, foi uma vítima especial da guerra, tal como nós fomos actores.

É, por isso, que me sinto honrado em aceitá-lo na nossa tertúlia. Falo, em meu nome pessoal. Mas creio também interpretar o sentir dos restanets membros da tertúlia (que já são quase treze dezenas). Seja bem vindo. Temos muito que conversar. Um abraço e até breve.

Luís Graça

PS – Se quiser falar-nos do seu tempo de criança na Guiné e das suas memórias de guerra, esteja à vontade. Pode contactar, por e-mail, com os todos os membros da nossa tertúlia, e decidir o que quer divulgar através deste blogue ou das páginas da minha/nossa página na Net.

Guiné 63/74 - P158: Antologia (17): Alpoim Calvão: Guerra era evitável (Afonso Sousa)

Texto enviado pelo Afonso M.F. Sousa

Alpoím Calvão: "Guerra na Guiné era evitável"
Agência Lusa, Quarta-feira, 18 de Fevereiro de 2004

O capitão-de-mar-e-guerra português Alpoim Calvão, hoje na reforma, defendeu em Bissau que a guerra colonial que Portugal manteve na então província da Guiné (1963/74) era "evitável" se o PAIGC e a OUA não tivessem interferido.

Numa entrevista à Agência Lusa em Bissau, o militar português responsabilizou o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e a Organização da Unidade Africana (OUA, actual União Africana - UA) de terem recusado uma proposta de Lisboa no sentido da independência.

"O PAIGC não quis entrar na coligação da União dos Naturais da Guiné Portuguesa (UNGP), liderada por Benjamim Pinto Bull (1) e que congregava oito dos nove partidos nacionalistas então existentes. A proposta, com a aprovação de (o então presidente senegalês, Leopold) Senghor, visava, primeiro, a formação de quadros, para depois se caminhar para uma autonomia e, mais tarde, a independência", afirmou.

Para Alpoim Calvão, que cumpriu duas comissões na Guiné (1963/65 e 1969/70) (2), essa "intransigência" do PAIGC, de exigir "independência imediata", foi ao encontro daquilo que a OUA pretendia, tendo sido esta organização que acabou por ajudar a cortar o diálogo entre Lisboa e os movimentos anti-colonialistas.

Segundo Alpoim Calvão, que não se mostrou arrependido pela acção desenvolvida na guerra na Guiné, tudo fora acertado, em Julho de 1963, por António Oliveira Salazar - principal figura do regime português de então - Senghor e Pinto Bull, através de contactos estabelecidos em Dacar pelo cônsul português Gonzaga Ferreira.

"O PAIGC obteve o apoio dos países radicais da OUA e lançou-se abertamente na luta armada e era natural que o outro lado (Portugal) se defendesse e agisse de forma a defender os seus interesses para alcançar os seus fins", disse.

Na opinião de Alpoim Calvão, que esteve uma semana em Bissau a convite do canal de televisão por cabo espanhol "Viver", se o PAIGC tivesse aceite integrar a coligação e a OUA não interferisse, a Guiné-Bissau estaria hoje "muito melhor do que se encontra".

"Passados 30 anos, alguém de bom senso pode dizer que a independência foi um sucesso? Era este o sonho de Amílcar Cabral? Mas foi este o caminho em que ele (Amílcar Cabral) meteu o país. A intenção era, com certeza, outra, mas a realidade é que o país chegou onde chegou", declarou.

Sobre Amílcar Cabral (3), o militar português considerou-o um homem "inteligente", um engenheiro agrónomo "distinto" e uma pessoa de "craveira superior", mas que tinha dois discursos: "um de homem de Estado e outro de racista", um para dentro do partido e outro para fora.

Alpoim Calvão sustentou a afirmação com documentos que disse possuir relacionados com o Congresso do PAIGC de 1969, em Conacri, durante o qual o "pai" das independências da Guiné e Cabo Verde terá afirmado que os guerrilheiros eram "muito amigos do povo português".

"É mentira. Textualmente ele disse o seguinte: 'dar um tiro num portuga numa emboscada é um acto político de primeira grandeza'. Isso não demonstra grande amizade", afirmou.

Além disso, acrescentou, Cabral mostrava alguns "sentimentos racistas" nas suas intervenções para dentro do PAIGC, "pedindo aos guerrilheiros para não se casarem com cidadãs estrangeiras, mas sim com mulheres guineenses".

Alpoim Calvão considerou que Cabral, assassinado a 20 de Janeiro de 1973, em Conacri, em circunstâncias nunca completamente esclarecidas, era um homem "que propunha o terrorismo", pois "incitava os seus homens a matar" o então comandante-chefe das tropas portuguesas, general António de Spínola.

"Como é possível que o general Spínola possa inaugurar três escolas em Bambadinca (centro) e ninguém o mate? Basta uma granada de mão para o matar. É preciso ir a Bissau e matar as famílias dos alferes e dos portugueses que lá estão", terá dito Cabral no congresso, segundo os documentos de Alpoim Calvão.

Questionado pela Lusa sobre quem mandou matar Cabral, Alpoim Calvão disse desconhecer, sublinhando ter a "sensação" de que essa questão "vai ficar em aberto para sempre" e que tem de ser vista à luz de quem lucraria mais com o assassínio do líder guineense.

"Tenho uma teoria, que é apenas uma teoria, mas não tenho provas. Quem lucrou mais foi Sékou Touré (então presidente da vizinha Guiné-Conacri), que tinha ciúmes da estatura de estadista de Cabral, que tinha o sonho da Grande Guiné, até à Casamança, e Cabral era um obstáculo. Mas não sei quem o matou. Não faço ideia", respondeu.

Negando o envolvimento de Portugal na morte de Cabral - "não tinha interesse nenhum, pois Lisboa queria dialogar" -, Alpoim Calvão afirmou que o PAIGC poderá ter estado envolvido na morte de Cabral, "uma vez que havia clivagens entre os cabo-verdianos e os guineenses".

"Por aí também se pode ir lá. Na sequência da morte dele, quantos homens foram fuzilados pelo PAIGC, como ajuste de contas? Dezenas e dezenas", afirmou o militar português, que se escusou a comentar à Lusa o actual momento político na Guiné-Bissau.

Por outro lado, Alpoim Calvão criticou a descolonização feita por Portugal após a queda da ditadura salazarista, a 25 de Abril de 1974, e acusou o então ministro dos Negócios Estrangeiros e ex-presidente português Mário Soares de ter sido "negligente", de forma "quase criminosa".

Segundo Alpoim Calvão, em 1974, nas negociações para o Acordo de Argel, a parte negociadora portuguesa não teve em conta que o PAIGC tinha aprovado, em Dezembro de 1973, a Lei da Justiça Militar, em que se falava de fuzilamentos.

"Da parte dos negociadores do PAIGC houve uma reserva mental. Do lado dos portugueses, não houve o cuidado de estudar o problema em toda a sua extensão. Não vou fazer o insulto a Mário Soares e dizer que sabia. Mas foi muito negligente, de forma quase criminosa", acusou, numa alusão aos milhares de soldados guineenses que lutaram ao lado do exército português, alguns dos quais, disse, foram mais tarde fuzilados.

"Em termos puramente militares, todos sabem que uma guerra de guerrilha não se ganha nem se perde. Aliás, as guerras são iniciadas pelos políticos e têm de ser terminadas pelos políticos. Os militares limitam-se a aguentar o espaço e o tempo para se desenhar uma solução política. A solução política a que os políticos chegaram foi o desastre que foi. Para ambos os lados", concluiu.

_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. o texto de Leopoldo Amado, historiador guineense e membro da nossa tertúla > Elegia ao Professor Pinto Bull

(2) Vd. post de 22 de julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXX: Bibliografia de uma guerra (9): a invasão de Conacri

(3) Vd. biografia de Amílcar Cabral (1924-1973), por Carlos Pinto Santos

terça-feira, 6 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P157: Carta da Província Portuguesa da Guiné (1991) (II) (Luís Graça)

1. O A. Marques Lopes acaba de mandar os seus agradecimentos (muitos...) ao Humberto Reis: " Finalmente consigo ter o mapa perfeito para dar a localização correcta da CART 1690", com sede em Geba. Recorde-se que ele foi alferes miliciano na CART 1690 e já deixou neste blogue muitas estórias, umas dramáticas, outras divertidas, desse tempo (1967/68).

Ao visualizar a carta da Guiné, à escla 1:50.000, que passou a ter disponível nas nossas páginas sobre a guerra colonial,o Marques Lopes conseguiu perfeitamente localizar os sítios dos aquartelamentos e destacamentos da CART 1690 (Geba, Camamudo, Cantacunda, Saré Banda, Banjara), as tabancas em autodefesa (Sare Ganà, Sinchã, Sutu) bem como as bases do PAIGC (Sinchã Jobel, Samba Culo).

2. O Humberto Reis diz, em resposta: "Limitei-me a disponibilizar, com muito gosto, o material cartográfico que tenho e que adquiri em 96 quando voltei à Guiné. Tenho as 71 cartas em que estava dividida a Guiné no nosso tempo, todas à esc. 1/50.000".

3. Nova mensagem do A. Marques Lopes:

Eu conheço essas cartas. Tenho em meu poder a da zona de Barro, que usei e que consegui trazer. É a folha nº 13, encimada "Bigene" (as confinantes seriam 1 "Guidage", 12 "Sedengal", 14 "Binta", 24 "Pelundo", 25 "Bula" e 26 "Mansoa").

De Geba, devido às circunstâncias em que de lá saí [ferido, em combate], só consegui trazer uma, a folha 29 encimada "Bafatá". Mas não tenho a 16 "Banjara", a 17 "Contuboel" e a 28 "Bambadinca", que apanham a maior parte das zonas da minha actividade em Geba.

Sei que elas estão nos Serviços Cartográficos do Exército. Talvez um dia lá vá. Mas, apesar, de ter estado no meio, não sei bem como é que essas coisas funcionam... A Diana Andringa, quando foi à Guiné, foi lá pedir uma carta mas eles disseram-lhe que "só com autorização da Embaixada da Guiné-Bissau".

4. O Carlos Fortunato, por sua vez, considera "excelente este mapa", tendo-lhe permitido "chegar à conclusão que tenho algumas imprecisões no meu site, que tenho que corrigir".

segunda-feira, 5 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P156: Carta da Província Portuguesa da Guiné (1961) (I) (Luís Graça)

Amigos & Camaradas de Tertúlia:

1. Há tempos o Sousa de Castro (mas também o David Guimarães) mandaram-me um bom mapa da Guiné-Bissau, proveniente dos serviços cartográficos das Nações Unidas, em formato.pdf. Era dos mais completos e actualizados que havia. Tinha boa qualidade de imagem. E estava disponível “on line”, em páginas como por exemplo a OMS, que como sabem é a agência especializada das Nações Unidas para a saúde. Eu tenho-o utilizado muito, no blogue, fazendo ligações para a página da OMS (http://www.who.int/) . Só que o raio do mapa, entretanto, desapareceu, ou deixou de estar disponível, o que é uma coisa que acontece com muita frequência na Net…

O ideal era ter um bom mapa da Guiné disponível nas nossas páginas, que é para gente poder consultar com frequência, saber onde ficava Nova Lamego (agora, Gabu), Teixeira Pinto (agora, Canchungo), Aldeia Formosa (agora, Quebo) e muitos outros sítios por onde passaram uns de nós e não passaram outros… ou que entretanto mudaram de nome depois da nossa saída em 1974…

Até lá guardem este. O Humberto Reis deu-me há tempos um fotocópia de vários mapas dos serviços cartográficos do Exército Português, sobretudo da Zona Leste. Há um geral sobre a Guiné, mas é impossível digitalizá-lo com qualidade… Só se o Humberto conseguir a partir do original, e reduzindo-o uma dimensão razoável. Entretanto, se algum de vocês tiver um bom mapa (ou o endereço de página com um bom mapa da Guiné-Bissau), digam-me. Eu tenho procurado, mas não estou satisfeito. O das Nações Unidas ainda o melhor existente na Net: Nações Unidas, mapa nº 4063, Julho de 1998, escala em km e em milhas…


2. O Humberto Reis que é um verdadeiro ranger, da escola de Lamego, não conhece obstáculos: foi dar a volta ao mundo para nos arranjar um mapa da Guiné do “nosso tempo”!... A primeira versão, digitalizada que me mandou, não era famosa. Mas ele não desistiu. Prometeu arranjar outra versão com muito melhor resolução.

3. Ao chegar de férias, fui encontrar na minha caixa do correio, o prometido mapa da Guiné Portuguesa, edição dos nossos conhecidos Serviços Cartográficos do Exército, de 1961…

Ficamos a dever um grande favor ao nosso camarada Humberto Reis. Utilizem o zoom para ver o mapa em detalhe. Façam o favor de identificar eventuais erros e lacunas: por exemplo, em 1961, não havia nenhuma localidade chamada Mansambo (que, no nosso tempo, ou seja, em 1969/71, não passava de um aquartelamento, com o tamanho de campo de futebol, fortificado, no meio do mato)...

De facto, Mansambo, na estrada Bambadinca-Xitole, não existia em 1961… Havia lá perto a tabanca de Moricanhe (no nosso tempo, um importante destacamento de milícias que as NT foram obrigadas a abandonar). E estão lá, na carta, bem nítidos os rios e as bolanhas que tornavam aquela estrada um inferno (para além do Senhor IN): O Rio Pulon (com a sua famosa Ponte dos Fulas), o Rio Jagarajá, o Rio Bissari, o Rio Carantaba...

Cliquem aqui para ter acesso à página onde está inserida a carta. E, por favor, aproveitem para fazer grandes viagens, de regresso ao passado…

Carta da Província Portuguesa da Guiné (1961) > Escala 1:50.000

4. Fica aqui também a nossa homenagem aos valorosos cartógrafos militares portugueses. Como sabem, a história da nossa cartografia militar remonta ao Séc. XV, tendo-se desenvolvido com os Descobrimentos. Os Serviços Cartográficos do Exército foram criados em 1933, sendo mais tarde (1993) integrados no actual Instituto Geográfico do Exército .

Um abraço. Em breve, estará disponível a página sobre Bissorã, elaborada pelo Carlos Fortunato (ex-furriel miliciano de transmissões da CCAÇ 13, "Os Leões Negros") (vd. respectivo sítio na Net)

Vosso amigo e camarada,
Luís Graça.

terça-feira, 16 de agosto de 2005

Guiné 63/74 - P155: Antologia (16): Op Ametista Real (Senegal, 1973) (João Almeida Bruno)

1. Texto seleccionado e enviado pelo Américo Marques, membro da tertúlia dos ex-combatentes da Guiné (Foi operador de transmissões, na 3ª CART do BART 6523 , Cansissé, Gabu, entre Junho de 1973 e Setembro de 1974).

O Américo, que hoje estou ligado à segurança do trabalho numa grande empresa de Viana do Castelo, mandou-me a seguinte mensagem, que agradeço, juntamente com o texto que abaixo se reproduz, com a devida vénia:

"Amigo Luis, espero que estejas viver umas férias reconfortantes! Se a tua opção for fazer uns passeios peripatéticos pela montanha, tem cuidado que nas nossas florestas existe um turra muito poderoso. Que é o FOGO!

"Depois destas palavrinhas preventivas, vou enviar-te um relato de uma intensa batalha. Não interessa quem mais Vidas destruiu. O que interessa é que os Homens novos reforcem a sua sabedoria e conhecimento sobre o anteontem. Para que se transformem e gerem amanhã um NOVO HOMEM!"


Operação Ametista Real

por João de Almeida Bruno (1995)(a):

A operação mais importante que comandei foi, no entanto, na Guiné. O nome de código foi Ametista Real - eu sempre dei nomes de pedras preciosas às operações que comandei. Penso que, na altura, foi a operação de maior envergadura daquele tipo, fora do território nacional. Comandava então o Batalhão de Comandos Africanos que foi, julgo, uma das unidades que ganharam o Guião de Mérito, um estandarte especial que penso só ter sido também atribuído à unidade do então capitão de Infantaria Maurício Saraiva, meu grande amigo. De qualquer modo esses guiões estão hoje na Amadora.

A 16 de Maio de 1973 fui chamado de urgência ao Comandante-Chefe; o então general António de Spínola, que me traçou um panorama geral da guarnição militar de Guidage, junto à fronteira com o Senegal. Estava isolada por terra por causa dos fortíssimos campos de minas lançados pelo inimigo. As colunas logísticas, enquadradas por forças pára-quedistas, não conseguiram romper. Era difícil o reabastecimento aéreo e a evacuação de feridos, por causa dos mísseis terra¬ar Strella de que dispunha o PAIGC. E era grande o desgaste físico e psicológico da guarnição.

Tudo indicava que o inimigo pretendia lançar um assalto final a Guidage para tirar dividendos internos e externos. E, por isso, era necessário aliviar a pressão: o único caminho possível era pelo Norte, pelo território senegalês.

A missão foi dada de forma clara e simples: atacar a base inimiga de Kumbamory, que ficava uns cinco quilómetros a norte da fronteira. Era preciso, no mínimo, desarticular o dispositivo inimigo. Se possível, destruir a base ou, pelo menos, causar o maior número possível de baixas e destruir a maior quantidade possível de material.

Foi decidido transportar a força, em meios navais, de Bissau para Bigene. E lançar depois uma operação de curta duração, em terra, por forma a atacar a base inimiga a partir de uma base de ataque já instalada em território senegalês. "Limpar", por fim, a região de acesso a Guidage, recolhendo as nossas forças a essa povoação.

O apoio de fogos ficaria a cargo de seis baterias fixas de 10,5 e de heli-canhões. Verificou-se que não eram possíveis reabastecimentos e evacuações por helicóptero. Os mortos e os feridos teriam de ser transportados para Guidage sem meios auxiliares, e a haver reabastecimento de munições ele teria de ser feito nos paióis inimigos detectados. Nada se sabia quanto à localização exacta do objectivo, a não ser que era na área da povoação senegalesa de Kumbamory.

Na tarde de 19 de Maio o batalhão embarcou para Bigene, onde chegou pouco antes do pôr-do-sol. Foram constituídos três agrupamentos, com uma companhia de comandos cada um. Eram comandados pelos capitães Raúl Folques (que ficaria gravemente ferido) e Matos Gomes e pelo capitão pára-quedista António Ramos. Este comandava o agrupamento a que ficou adstrito o grupo especial comandado pelo alferes Marcelino da Mata, especializado em demolições.

Nele me integrei, o batalhão entrou em território senegalês pelas seis da manhã do dia 20. A artilharia de Bigene concentrava entretanto o seu fogo sobre o objectivo, mais como manobra de diversão do que como forma de destruição, uma vez que não era conhecida com rigor a localização da base inimiga. Hora e meia depois os agrupamentos estavam dispostos na base de ataque, a sul da povoação senegalesa.

Foi necessário cortar a estrada que corria paralela à fronteira e «reter» o comandante de um batalhão de pára-quedistas senegalês que chegara entretanto em missão de reconhecimento. A conversa entre mim e ele foi cordial e amistosa. E franca, claro. O comandante senegalês sabia perfeitamente da existência da base do PAIGC, mas argumentava que ela ficava em território português. Pedia assim que abandonássemos rapidamente o Senegal e garantia que não iria haver nenhum incidente diplomático. E não houve.

Pelas oito horas a Força Aérea iniciou um pesado bombardeamento, a que se seguiu o assalto. Um pouco à sorte, já que não se sabia onde ficava a base. E a sorte foi decisiva.

Quase de imediato os dois agrupamentos que iam à frente detectaram vários depósitos de material de guerra. O terceiro agrupamento, que estava em reserva e logo deixou de estar, envolveu-se em violento combate com um forte grupo inimigo que dispunha de canhões sem recuo e de metralhadoras pesadas: defendia o depósito principal, o de foguetões de 122 mm.

Não é fácil descrever a acção. A tónica principal deve ter sido a confusão, não só a própria da batalha, como a decorrente do facto de se enfrentarem adversários da mesma cor e com armamento semelhante, e de ser impossível delimitar claramente a frente. E foi nesta grande confusão que o posto de comando aéreo teve um papel decisivo: os agrupamentos, correndo embora o risco de serem referenciados, iam indicando a sua posição com sinais pirotécnicos. Pela rádio, o posto de comando aéreo ia-me informando do movimento das tropas. Pelo meio-dia, a missão estava cumprida.

O agrupamento, que era comandado pelo capitão Folques ficou, a dada altura, praticamente sem munições. Foi então dada ordem de retirada, o que equivalia a continuar na direcção de Guidage. Foi um movimento lento, interrompido por vários e violentos combates, até que, pelas quatro da tarde, o inimigo abandonou o terreno.
Pelas seis da tarde as nossas tropas chegaram a Guidage. Depois continuaram a pé, até serem recolhidas, no dia seguinte, pela Marinha de Guerra, no rio Cacheu.
Os resultados conseguidos foram assinaláveis e foi aliviada a pressão sobre Guidage, cuja guarnição militar recuperou a iniciativa depois de rendidos os seus efectivos.

Não é sem uma ponta de orgulho que me vejo forçado a afirmar que nesta operação ficou patente o alto espírito agressivo dos Comandos Africanos, a sua capacidade excepcional de orientação na selva e a sua invulgar resistência física. Ficou também patente que os quatro oficiais europeus que comandaram a acção foram decisivos nos momentos mais difíceis, sobretudo pelo bom senso e capacidade de decisão que revelaram.

O inimigo sofreu 67 mortos. As nossas tropas 14 mortos (dos quais dois alferes), onze desaparecidos, mais tarde confirmados como mortos, e 23 feridos graves (dos quais três oficiais e sete sargentos). Ao inimigo foram destruídos 22 depósitos de material de guerra.


Fonte: Autores vários: Os Últimos Guerreiros do Império. Lisboa: Edições Erasmos. 1995, pp. 72-75. (Excertos, com a devida vénia...)

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(a) O Comandante da operação e autor do texto: João de Almeida Bruno, na altura tenente-coronel, hoje general.