Fotos: © Albano Costa (2007). Direitos reservados.
VIII Parte das memórias de Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins (Como, Cachil, Catió, 1964/66) (1) .
Operação Tempestade [, nas matas do Cantanhez]por J.L. Mendes Gomes
Dizia-se que iria ser a maior operação, no sul, desde a da ilha do Como (2). Todas as companhias da região iriam entrar, além da força aérea vinda de Bissau e a da marinha, de Bolama, com um grupo de fuzileiros e o apoio fulminante das corvetas do Geba (3).
O dia da saída era uma incógnita; um silêncio estranho reinava em todo quartel. Os rostos transpareciam visível preocupação e não havia a frequência habitual nos bares exteriores da vila [de Catió]. Iria ser sempre assim, antes de se saber o destino de cada operação.
Depois da operação, seguia-se a compensação eufórica traduzida de muitas maneiras: era o ataque cerrado à cerveja, até esgotar; os casados, com filhos na metrópole, tinham acessos de verdadeira histeria, belicosa, uns, como um transmontano, que ponha a caserna em estado de sítio, depressiva e desesperante, outros.
Contra o habitual, o capitão Silva apareceu à hora do rancho, aparentando um ar bem disposto, a meter conversa com a rapaziada da companhia, já estendida pelas grandes mesas de tábuas toscas corridas, debaixo do refeitório e cozinha, atrás do sete e meio.
A notícia não se fez esperar. No final da ceia, estava tudo desvendado. Era nessa noite pelas 2 horas da manhã que a companhia sairia. Um silêncio fúnebre, nunca visto, caíu sobre a centena de rapazes, apagando a boa disposição que reinava.
Em escassos minutos, as casernas estavam cheias e começava-se os últimos preparativos. Munições a abarrotar. Três carregadores de cada cartucheira e as granadas de mão que cada um quisesse levar; ainda não se tinha a verdadeira noção do poder de fogo que representava uma carga simples das cartucheiras.
O receio de se verem sem munições, defronte aos turras, era medonho. As bazucas e os morteiros; os rádios e o material de enfermagem de primeiros socorros eram a principal preocupação.
Nem foi precisa a habitual insistência e controlo dos chefes. Tudo era mais importante que as próprias rações de combate. Excepto o tabaco, para os fumadores…
A maioria não se deitou, até à hora de partir. No Sete e Meio (1), a preocupação dos 3 alferes não era menor, apesar do disfarce dos trinados da viola a acompanhar a voz rouca do Sasso, nos fados da sua Lisboa amada, tão distante…
Eu deitei-me por cima da roupa, abrigado no mosquiteiro, e ainda passei pelas brasas, depois de me confortar no segredo da minha fé…
O pelotão negro do comandante João Bacar Jaló (3) estaria à nossa espera na tabanca dos fulas, mais adiante. Estes eram uma força de indígenas destemidos que iriam à nossa frente. Conheciam a selva melhor que ninguém. No decurso da nossa comissão, haviam de revelar-se um precioso escudo. Tantas vidas nos pouparam, sob o comando daquele chefe nativo, com uma capacidade e qualidades de comando admiráveis e inatas.
Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério (colonial) > Abril de 2006 > Lápide funerária do Capitão Comando João Bacar Jaló, natural da Guiné, morto em combate em 16 de Abril de 1971. Foi um valoroso e destemido combatente, segundo o Mendes Gomes.
Foto: © A. Marques Lopes (2006). Direitos reservados.
O comandante de batalhão, tenente coronel Arsélio Matias e vários oficiais vieram despedir-se da companhia, à porta de armas, virada a sul. O capelão militar, um anafado salesiano, inseparável da sua apaixonada batina preta, bem disposto, também lá estava a amenizar a partida, com os habituais gracejos de quem fica, mas visivelmente preocupado…
Uns 50 metros à frente, e já nada se via do quartel que deixávamos, tal era o nevoeiro, carregado de cacimbo denso.
Íamos percorrer, no começo, o mesmo trajecto da estrada de Cufar, o mesmo onde tínhamos recebido o baptismo de fogo, tempos antes.
Lentamente, em fila indiana, espaçados, quanto possível, sem nunca perder de vista o camarada da frente, a caminhada nocturna começou.
Ao longe, ouvia-se o mesmo ribombar desconexo e o mesmo matraquear cavo de tambor, nas tabancas, em redor. O ladrar dos cães, disperso, fazia-nos pensar que poderíamos estar, algures, no meio dos montes alentejanos, não fosse o lúgubre piar constante das aves nocturnas, já nosso conhecido… a esvoaçar, medonhas, por entre a folhagem negra das matas cerradas, sempre presentes.
As primeiras arremetidas do sono da madrugada venceram-me os passos, lançados já de forma automática e dei comigo a andar e sonhar, de pé, ao mesmo tempo...
Eram já muitos os quilómetros de caminho sem parar e a alvorada parecia dar os primeiros sinais. O firmamento negro clareava lentamente. Tudo corria normal e a descontracção foi-se apoderando de todos.
O amanhecer, dizia-se, era a altura mais propícia a emboscadas. Os turras sabiam-no bem. O sono e o relaxamento diminuíam os necessários cuidados de vigilância e o mais provável era que a nossa saída e trajecto fossem já do seu conhecimento.
Um Lancha de Fiscalização Grande (LFG), neste caso a Orion a navegar no Cacheu em Janeiro de 1967. Mas também operava no sul, em rios como o Cumbijã.
Foto: © Lema Santos (2006). Direitos reservados.
Uma primeira chicotada, logo ao raiar do dia, tería um efeito desmoralizante sobre nós, os invasores dos seus domínios, enquanto eles se organizavam, em defesa, ou, simplesmente, poderiam desviar-nos da rota que levaria ao seu quartel.
Via-se agora umas cubatas de palha, sem ninguém lá dentro. Tinham debandado, há pouco. Galinhas e porcos a correr desorientadas com a nossa chegada. Não havia dúvida de que já estávamos detectados. A reacção deles estaria, por certo, iminente.
Veio a ordem de incendiar as casotas. Era preciso enfraquecê-los, de todo o jeito. Um pouco mais e as labaredas devoravam-lhes o colmo seco deixando só e nuas as paredes circulares de adobe avermelhado, agora ressequido e negro pelas chamas e volutas de fumo espesso. Espectáculo dantesco, aquele…nunca visto.
Os toscos utensílios da vida rudimentar, umas mesas e panelas de alumíneo, ardiam ou ficavam calcinados e retorcidos. Os ânimos exaltavam e a vontade, paradoxal, de encontrar resistência crescia dentro de cada um. Já não era a razão do ideal que nos impelia, mas a vontade cega de sobreviver e regressar...tranquilos com a sensação duma razia infligida.
Mas não foi assim. Uma chuva de metralha aérea desabou umas centenas de metros mais à frente, durante uma hora e tal, pelos nossos bombardeiros, ronceiros, de um só motor. Seguiram-se descargas de artilharia, veementes, sem resposta de ninguém. Os altos comandos sabiam bem o que estavam a fazer.
Nós tínhamos descido para a borda de um longo descampado de bolanhas em cultivo, por razão de segurança e passávamos a meros espectadores daquele espectáculo verdadeiramente empolgante.
Lá em cima, a fumarada do rescaldo, no seio da mata, subia para o ar, em ondas de cacimbo negro. Por volta do meio dia, quando nos preparávamos para comer a primeira ração de combate, silvos agudos, vindos da altura do céu, cada vez mais perto começaram a descer sobre nós…partidos, não se sabia donde.
O pressentimento de que eram granadas de morteiro que ali vinham, terríveis, fez-nos precipitar nos regos mais fundos da bolanha, indiferentes à água encharcada ou às cobras mortíferas, que tínhamos visto serpentear por ali, esverdeadas e abundantes.
Uma sequência de estrondos fortes, seguidos de uma chuva de lama espessa em redor, salpicou-nos, desordenada, em toda a área onde nos encontrávamos. Alguns de nós, já mergulhados, só de cabeça fora de água.
Era impossível que não houvesse mortos ou feridos. E muitos, tal foi a intensidade e o acerto da pontaria. Pareceu uma eternidade de silvos lancinantes e estampidos, ali ao pé. Só no fim se saberia… Fugir, nem pensar. Atacar, para onde?…
Apesar de tudo o cabo dos morteiros, corajoso, ainda fez subir algumas granadas, ao acaso, pela mata e umas bazucadas partiram loucas e à sorte, sobre o sítio do fumo.
A nossa artilharia não se fez esperar, retumbante, para nossa salvação, durante longas horas a seguir, sem deixar um metro por metralhar.
Fora a resposta implacável à nossa barbárie da manhã. Felizmente, nem um só ferido!…Parecia impossível…com tanto rebentamento. Não queríamos acreditar…
A metralha da artilharia fora eficaz. A pouco e pouco, a calma voltou e pudemos retomar a bem merecida refeição do meio dia, interrompida…
Depois, foram umas longas horas de repouso, à espera de ordens. Entretanto, o tiroteio distante não parara, segundo os altos planos, desconhecidos.
A tarde avançava lenta e os ânimos sairam exaltados daquele banho de fogo, sem consequências…
Havia que procurar um local seguro para pernoitar. O capitão Silva, sereno, fez chegar a todos os pelotões, a ordem de seguir. Avançámos para o interior da bolanha imensa, para bem longe das matas ameaçadoras. Fora do alcance das metralhadoras.
A ordem de acampar chegou. Havia que distribuir os homens por forma a evitar o perigo do fogo que poderia vir da orla das matas, distantes.
Do lado oposto, ficava o rio largo, onde andavam as corvetas amigas da nossa marinha.
Uma escala de sentinela foi montada para acautelar a aproximação atrevida de um eventual golpe de mão dos turras.
A lua começou a erguer-se, em balão de fogo, sobre as copas frondosas de palmeiras ondulantes, ao longe, iluminando em esplendor a manta de neblina densa que nos envolvia majestosa, como só na África se vê… Era um espectáculo de beleza estonteante, a prendar-nos todo o susto da manhã.
Podíamos dormir descansados. As cobras de água tinham sido afugentadas com meia dúzia de granadas defensivas, o remédio certo para todos os males.
Quando pegávamos no primeiro sono, profundo, reparando o cansaço de uma noite por dormir, em caminhada longa, de muitas léguas, uma chuva de fogachos tracejantes começou a varrer, alta, as copas das matas medonhas, pensávamos nós, para nosso bem… Vinha das corvetas do rio, por cima de nós. Lentamente, o fogo foi baixando, ameaçador. Não queríamos acreditar.
Por instinto, toda a gente saltou para o lado contrário dos muretes de lama que dividiam a bolanha, virados para a mata. Em boa hora o fizémos. O fogo destroçar-nos-ia, a todos, impiedoso.As balas explosivas rebentavam surdas nos muretes à nossa frente, terrificados, encharcando-nos de lama. De vez em quando eu dava uma mirada sobre o meu corpo a ver se ainda estava inteiro…
Um soldado, mais incrédulo ou apenas dorminhoco do sono profundo, não quis fazer o mesmo e foi, irremediavelmente, despedaçado ao meio da cintura…
O capitão Silva agarrou-se ao rádio, vociferando, desta vez com justiça, todos os impropérios que ele sabia e não sabia, a tentar avisar a marinha, assassina, de que éramos nós… a companhia 728, que ali estava. Em vão. A ordem era para desfazer todo o ser vivo que mexesse.
Um grande equívoco que poderia ter custado vidas sem conta. Para esquecer. Ninguém mais pregou olho nessa noite, inesquecível, até ao romper da manhã, a mais longa de sempre.
Tínhamos recebido já o baptismo, em fogo brando. Aquilo era a verdadeira confirmação, em brasa, ... de guerreiros.
Para compensação, no dia seguinte, fomos poupados, pelos altos comandos, a qualquer acção.
Dali regressámos, a pé, por bolanhas e bolanhas sem fim, na linha mais direita, até Catió, guiados pela bússola do capitão e o instinto felino do chefe João Bacar Jaló.
À porta de armas, virada a sul, lá estavam, à nossa espera, o comandante de Batalhão, mais o seu cortejo "das damas guerreiras, só de estufa". O simpático capelão, de ar compungido, a perguntar a cada um, como tinha corrido.
- Ó Sor Padre. Até rezei, caralho!... - exclamou-lhe, o ateu confesso, o furriel Cunha, o enviado do alferes Teixeira, “uma das tais damas de estufa” , responsável das transmissões.
- Diga palmeira, senhor - atalhou, o capelão, afável… meio a brincar, meio a sério.
- Até rezei, palmeira… palmeira? Palmeira, não... Até rezei, caralho! Assim é que foi… caralho. - Acrescentou o furriel, repondo a verdade dos factos.
- Está bem, palmeira !… - retorquiu, compreensivo e puro, o capelão, redondo, dentro da batina preta.
Uma bela bifalhada da vitela que o comandante de batalhão, na sua peculiar bonomia, mandara abater, de propósito, acompanhada de uma cerveja de litro, fresquinha, foi a melhor prenda daquela noite de glória …depois de um saboroso duche da água dos bidões.
Durante quinze dias, podíamos ficar descansados, à espera da próxima… Para onde seria?… Era sempre a tremenda incógnita.
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Notas de L.G.:
(1) Vd. posts anteriores:
22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjolá, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira
8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo
11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar
1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG
20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia
2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo
20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo
(2) Sobre a batalha da Ilha do Como (1964), vd. posts de:
17 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCV: A verdade sobre a Op Tridente (Ilha do Como, 1964) (Carlos Fortunato / Mário Dias)
15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXX: Histórias do Como (Mário Dias)
15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias)
16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXV: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)
17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias)
15 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLI: Falsificação da história: a batalha da Ilha do Como (Mário Dias)
(3) Presumo que seja lapso do Mendes Gomes: deve ler-se lanchas de fiscalização grandes (LFG), não no Rio (Zona Leste), mas sim no Rio Cumbijã, no sul, na região do Cantanhez (vd. carta de Bedanda).